TL 14: SER EMAGRECIDO - REFLEXÕES SOBRE O TRANSTORNO ALIMENTAR COMPULSIVO E A CIRURGIA BARIÁTRICA
Resumo
TL 14: SER EMAGRECIDO - REFLEXÕES SOBRE O TRANSTORNO ALIMENTAR COMPULSIVO E A CIRURGIA BARIÁTRICA Izabela Guedes Linhares Livia Maria Silva Nehme RESUMO Iniciando com a breve explanação de algumas características comuns aos comedores compulsivos, prosseguiremos fazendo a apresentação do relato de um caso, a partir do qual procuraremos relacionar o processo pós-cirúrgico de reconfiguração corporal e existencial com o ciclo de contato da Gestalt-terapia. Desenvolvido a partir de uma experiência clínica, pretendemos questionar o uso indiscriminado da cirurgia bariátrica como recurso de emagrecimento, em especial por quem sofre com transtorno de compulsão alimentar periódica. Palavras-chaves: cirurgia bariátrica, transtorno de compulsão alimentar, ciclo de contato. PROPOSTA Ao lidar com clientes envolvidos em situação de transtorno alimentar (no caso específico, TACP - Transtorno Alimentar de Compulsão Periódica), que chegam ao consultório em busca de mais uma solução mágica para sua situação de sofrimento, uma das inúmeras questões que levantamos frequentemente é "quais transformações são possíveis para esses indivíduos, após submeterem-se ao procedimento da cirurgia bariátrica?". Depois de diversas tentativas infrutíferas e frustrantes, muitos dos que vêm lutando para perder peso ao longo de décadas se referem a esta intervenção como sendo "o último recurso", e diante da chance derradeira não se sentem no direito de falhar novamente. Dentre outros aspectos que observamos naqueles que sofrem com o TACP, ressaltamos a autoestima baixa, o excesso de preocupação com o peso e com a forma física, a vergonha e o sentimento de inadequação, diferenciando-os dos indivíduos que também possuem algum sobrepeso, mas que, entretanto, não apresentam o transtorno. A pessoa com obesidade apresenta sofrimento psicológico resultante tanto do preconceito advindo da sociedade, quanto do seu próprio comportamento (OLIVEIRA, LINARDI e AZEVEDO, 2004). Tratando-se de pacientes obesos mórbidos, a maioria que chega a procurar a cirurgia bariátrica apresenta alterações emocionais significativas, não sendo possível determinar se as dificuldades psicológicas estão presentes entre os fatores desencadeantes ou consequentes do distúrbio. Ao trabalhar com obesos comedores compulsivos e recorrendo a produções científicas sobre o tema, vemos que, muitas vezes, esses indivíduos apresentam algumas comorbidades, adicionando um maior grau de complexidade à situação que, por diversos fatores, já não é simples de digerir. Mais comumente encontramos depressão, transtorno obsessivo compulsivo e transtorno de personalidade como psicopatologias associadas importantes, além da apresentação mais precoce e mais severa da obesidade (AZEVEDO, SANTOS e FONSECA, 2004). Esse conjunto de características traz inúmeros prejuízos não só para o funcionamento fisiológico do indivíduo, como também para suas relações em geral (familiares, amorosas, sociais, profissionais etc), não raro caracterizando um quadro de pouca nutrição afetiva e de isolamento social. Alguns estudos afirmam que a fase de desenvolvimento no qual teve início a obesidade traz diferenças para a evolução pós-operatória da cirurgia bariátrica. Os que foram magros, mas tornaram-se obesos a partir de uma situação pontual da vida, tendem a reconfigurar sua imagem corporal como magro mais facilmente, enquanto que aqueles que se veem como gordos desde a mais tenra idade têm bastante dificuldade para se adaptar a uma nova imagem de si. A fim de "dar corpo" a esses constructos teóricos, primeiramente será apresentado o caso clínico de uma cliente diagnosticada com o referido transtorno, para, em seguida, serem propostos alguns questionamentos construídos à luz da Gestalt-terapia. UMA LUTA DE MAIS DE VINTE ANOS: RELATO DE CASO J. é mulher, branca, solteira, tem 33 anos e possui ensino superior. Submeteu-se à cirurgia Bariátrica do tipo Gastroplastia com Derivação em Y de Roux (cirurgia de Fobi Capella) há aproximadamente 5 anos, passando de 120 para 75kg, hoje encontrando-se próxima aos 90kg. Relata experimentar frustração por encontrar-se no peso atual e sente medo constante de continuar engordando. Teve acompanhamento psicológico breve nos períodos pré e pós-operatório. Quatro anos depois decidiu buscar psicoterapia espontaneamente devido ao incômodo frente à sua relação compulsiva e compensatória com a comida, além da dependência emocional/afetiva de algumas pessoas, principalmente do último relacionamento amoroso, o qual teve início logo após a realização da cirurgia. Contou que desde criança esteve acima do peso, recusando-se a seguir as dietas propostas pelas diversas nutricionistas que frequentou. Lembra-se que quando comia muita quantidade, era para "guardar na reserva" (sic). Apesar disso, considera a infância uma fase boa. Refere a adolescência como a fase em que teve início o sofrimento, passando a se privar da vida social por perceber-se gorda, sentindo-se envergonhada e achando que todos se aproximavam dela para debochar ou humilhar. Tais sentimentos perduraram até descobrir a cirurgia bariátrica, decidindo fazê-la por acreditar na possibilidade de ter encontrado a salvação para o sofrimento com seu corpo. Entretanto, apesar de ter havido muitas mudanças, principalmente em relação à criação de novos vínculos de amizades e a permissão para maior intimidade na relação amorosa, permaneceu insatisfeita, e o sofrimento da privação deu lugar à forte angústia mediante a ameaça de rompimento desses novos vínculos. Perdeu sua mãe biológica com apenas 29 dias de vida, quando ficou o dia inteiro sem comer por terem esquecido de que ainda era amamentada no seio (sic). Em tom de brincadeira, diz ser esta a causa de sua obesidade. Ainda, se culpa por não conseguir ter um relacionamento mais próximo com a tia a quem chama de mãe adotiva, nem de falar sobre seus sentimentos e demonstrar seus afetos, acreditando ter uma dívida com esta que sacrificou sua vida por ela. J. cobra soluções da terapia, ficando na posição de quem deseja receber “mastigado” uma resolução para seus conflitos. O trabalho psicoterápico vem evoluindo com muitas oscilações, pois o rápido abandono da awareness e da construção das novas percepções é uma frequente armadilha. Encontra-se mais consciente de como não consegue abrir mão do relacionamento amoroso tóxico que vive e atribui à comida um sentido de "companhia". Mantêm-se em psicoterapia a fim de ampliar a tomada de consciência, que lhe possibilite fechar o ciclo de contato da reconfiguração existencial que se iniciou a partir da experiência da cirurgia B ariátrica. O QUE A GESTALT-TERAPIA TEM A DIZER SOBRE ISSO? Ao estudarmos a situação de J., é importante iniciarmos esclarecendo que não trazemos o olhar voltado apenas para o transtorno alimentar em si, restringindo à aparência física a única possibilidade de mudança – recorte este que, acreditamos, até poder ser conseguido através da intervenção cirúrgica. Pensamos que, enquanto a cliente somente deseja se nomear passivamente "ser emagrecido" (GASPAR, 2007), nós, gestalt-terapeutas, temos a proposta de atentar para a totalidade "ser humano" que, no caso em questão, se expressa ativamente de muitas outras maneiras: através de seu corpo composto por muitas camadas de alimento reserva, estabelecendo contato com o mundo por meio de sua compulsão em comer alimento como substituição dos vínculos afetivos (companhias), sentindo-se impotente em garantir que as pessoas não se separarão dela, e caracterizando sua fome não somente como sinal fisiológico de necessidade a ser suprida, mas também como sintoma de fome de amor não saciada, de raiva não expressa, de medo da rejeição e do abandono (TEIXEIRA, 2007). A não consciência da obesidade como um ajustamento criativo, como a forma possível de funcionamento em um determinado momento - mas que ficou cristalizada como a única forma – (PERLS, 2002), aliada aos ideais e padrões de corpo e beleza midiáticos da sociedade atual, contribuíram para que J. tenha escolhido a cirurgia Bariátrica como salvação do corpo que lhe trazia vergonha. Contudo, ficou de fora de suas fronteiras a percepção de que o ato cirúrgico traria a possibilidade de mudança na configuração corporal, mas não do significado existencial do corpo obeso e da compulsão al imentar. Nesse sentido, o processo psicoterapêutico faz-se fundamental no auxílio do “nascimento” e amadurecimento desse novo ser prenhe de possibilidades e em constante transformação (PERLS, HEFFERLINE & GOODMAN, 1997). Procurando relacionar esse processo “pós-cirúrgico de desenvolvimento existencial” com o ciclo de contato da Gestalt-terapia (POLSTER & POLSTER, 2001), formulamos algumas proposições de acordo com importantes autores da abordagem. Nos primeiros meses após a operação, ainda não se é possível observar mudanças significativas na estética corporal, ocorrendo, porém, uma grande transformação na forma de alimentar-se (até então calórico e voraz, passando a líquido e em pequenas quantidades). Consideramos este como o estágio de pré-contato, onde o corpo é o fundo e a preocupação com a comida e estímulos ambientais são figura. Ao iniciar o contato propriamente dito, o excitamento torna-se fundo e um conjunto de possibilidades emerge. A significativa mudança no peso corporal traz a diminuição das camadas protetoras e a impossibilidade de recorrer à comida para saciar a fome dos afetos, surgindo a necessidade de rejeitar o modelo antigo e escolher outras formas de satisfazer a alimentação emocional. O trabalho terapêutico procura oferecer o suporte necessário ao longo do processo de conscientização, de mudança da identidade corporal, de ressignificação do papel da comida e da descoberta de um novo repertório para J. lidar com sua fome afetiva que não seja recorrendo à alimentação fisiológica. Vislumbramos que, ao alcançar o contato final, ela poderá experimentar uma maior integração ação-sentimentos, culminando, no pós-contato, com o novo corpo e a nova forma de se alimentar assimilados, podendo, assim, deixar de vivê-los apenas como fontes de conflito e sofrimento.Publicado
2014-09-18
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