TL 08: “QUANDO VIVER NÃO É MAIS POSSÍVEL”: ACOMPANHAMENTO DE UM CASO DE SUICÍDIO E OS DESDOBRAMENTOS QUE AFETAM O TERAPEUTA
Resumo
TL 08: “QUANDO VIVER NÃO É MAIS POSSÍVEL”: ACOMPANHAMENTO DE UM CASO DE SUICÍDIO E OS DESDOBRAMENTOS QUE AFETAM O TERAPEUTA Aline Freitas Laura Cristina de Toledo Quadros RESUMO Este trabalho fundamenta-se numa experiência de atendimento da pós-graduação realizado no curso em Terapia de Família no IPUB-UFRJ e trabalhado também na supervisão da especialização em Gestalt-terapia da UCL. Entremeamos o relato do caso com os impactos que ele produziu no grupo de supervisão na abordagem gestáltica, considerando a discussão dos limites do terapeuta em situações onde o sofrimento é experimentado de forma tão incomensurável pelo cliente que ele não suporta vivê-lo. A impotência, a perplexidade, o luto e o respeito à situação formam um peculiar mosaico de sentimentos e sensações que convocam uma reconfiguração dos limites do terapeuta em seu trabalho e em sua própria vida. Palavras chave: Gestalt-Terapia; Suicídio; Limites do terapeuta PROPOSTA Este trabalho fundamenta-se numa experiência de atendimento da pós-graduação realizado no curso em Terapia de Família no IPUB-UFRJ e trabalhado também na supervisão da especialização em Gestalt-terapia da UCL. Entremeamos o relato do caso com os impactos que ele produziu no grupo de supervisão na abordagem gestáltica, considerando a discussão dos limites do terapeuta em situações onde o sofrimento é experimentado de forma tão incomensurável pelo cliente que ele não suporta vivê-lo. A impotência, a perplexidade, o luto e o respeito à situação formam um peculiar mosaico de sentimentos e sensações que convocam uma reconfiguração dos limites do terapeuta em seu trabalho e em sua própria vida. Serão preservadas as identidades dos envolvidos aqui apresentadas em nomes fictícios. Breve relato de uma vida breve... “Vida louca vida, vida breve...Se eu não posso te levar, quero que você me leve...” Cazuza A mãe Paula procura no IPUB, o serviço de atenção a infância e adolescência (CARIN), pois sua filha Marina de 13 anos apresentou características do comportamento suicida ao cortar com uma gilete os membros superiores. Marina recebeu atendimento terapêutico individual e também foi acompanhada por um psiquiatra. Na primeira semana de avaliação, a equipe do CARIN encaminhou a menina e sua família para terapia de família. No primeiro dia de acolhimento, no setor de Terapia de Família, estiveram presentes o pai Paulo, Marina, a mãe Paula, e a avó paterna Olga. Seguindo o protocolo, a família foi convidada a retornar ao setor para mais um encontro com a equipe de acolhimento e posteriormente ser encaminhada a dupla de terapeutas que iriam acompanhar o caso. No mesmo dia, o pai de Marina disse que não pretendia retornar ao setor, pois não tinha disponibilidade de horário devido ao seu trabalho. Assim, mesmo com a indisponibilidade do pai e da avó paterna que também não atendeu nossas ligações, mantivemos o encontro seguinte.. Para nossa surpresa, Paula chega sozinha e atrasada para sessão e diz que a filha Marina estava sendo atendida naquele momento pela psiquiatra que havia adiantado o atendimento dela e que ela só tinha ido ao setor para nos comunicar que elas não poderiam estar presentes.Diante do quadro que tínhamos no momento, resolvemos aproveitar a presença da mãe e acolhe-la em um breve atendimento. Iniciamos a sessão buscando entender como os atendimentos em família poderiam ajuda-las. A primeira frase da mãe foi: “Tenho medo de chegar em casa um dia desses e encontrar minha filha enforcada”(SIC). Exploramos um pouco seu sentimento de fragilidade e impotência frente as dificuldades apresentadas com a filha. Nesse momento percebemos aí o contorno de nossos limites pois, apesar de sua afirmação contundente, a mãe revelava sua impossibilidade que era experimentada por ela como uma verdade imbatível. Diante desse fenômeno, qual é o possível do terapeuta? A mãe diz não saber como abordar conversas com Marina e não sabe ao certo o motivo dela se cortar com uma gilete. Mas observou que sempre quando a filha fala ao telefone com o pai, usuário abusivo de álcool, ou quando ele faz uma visita surpresa, Marina fica triste e que esse pode ser um dos motivos para ela apresentar novos cortes nos braços. Mais uma vez percebemos que a mãe apoiava-se nessa certeza que, talvez, configurasse um lugar a ser ocupado por Marina No encontro seguinte, compareceram a tia Patrícia e Marina. A mãe justificou sua ausência por questões de trabalho e o pai e a avó paterna não atenderam mais as nossas solicitações ao telefone.Nesse atendimento tivemos o primeiro contato com a Marina, pudemos escutar o que ela sentia em relação a sua convivência familiar. Ela diz que entende o fato de sua mãe trabalhar tanto e quase nunca ficar em casa, mas que mesmo assim sente muita falta da mãe e se sente sozinha. Quando Marina fala do seu pai começa a chorar muito e diz “ele não sabe a dor que sinto aqui dentro”(SIC) esfregando a mão na direção do coração. Ela relata que seu pai, com frequência, a envergonha na frente dos amigos e costuma dizer coisas que a machucam muito. Nesse momento a tia de Marina tenta buscar algo pra dar força para a menina dizendo “Marina, você precisa focar na sua vida, porque ele é uma pessoa doente e que precisa de ajuda e compreensão”(SIC). Em resposta à tia, Marina diz não tem como esquecer as ultimas palavras do pai quando ele que ela havia cortado os braços: “ por que você não se matou logo?!”(SIC) Ouvir essa frase me tirou o fôlego na mesma hora que a escutei. Me senti muito pequena diante dessa dor incomensurável. Qual era o possível de Marina? O que ela, de fato conseguia suportar? Que escuta havia neste sistema familiar para o seu sofrimento? Havia espaço para o que ela sentia e expressava? Tais questões nos perturbaram e tendemos a querer acreditar que podíamos intervir por Marina, porém isso não é definido unicamente pelo terapeuta. Esse é um difícil confronto nessa prática do cuidado. Buscamos entender um pouco da dinâmica dessa família. Seria possível uma adolescente ter uma vida independente da ajuda dos pais? Nossa percepção era a de que havia ali muita fragilidade e sensibilidade por parte da Marina e que teríamos de ter muito cuidado para acolher sentimentos tão profundos que ela mesma não conseguia nomear. A despeito desse desamparo, ela demonstrou-se receptiva e interessada no próximo atendimento. A família foi orientada a não deixa-la sozinha. Nesse momento estar acompanhada parecia essencial à ela. Deixamos o encontro agendado. “Navegar é preciso, viver não é preciso”!?... Fernando Pessoa No fim da mesma semana , recebemos a noticia através de uma responsável pelo setor de Terapia de Família que Marina havia cometido suicídio. Um imenso desamparo me atingiu naquele momento, e uma sensação de fracasso.Fui atravessada por pensamentos como “se fosse uma terapeuta melhor talvez pudesse evitar o que aconteceu?”, ou “será que se tivéssemos feito uma intervenção poderosa, suficiente, Marina teria condições de superar suas dificuldades e estar aqui?”Não encontramos nenhuma resposta para essas perguntas e fiquei com elas ecoando em mim, muitas supervisões. Essa é uma situação impossível de ser nomeada e talvez seja um dos maiores temores de um terapeuta: ser confrontado com a finitude de sua intervenção e com a exuberância do desespero humano encarnada diante de nós. Considerando o viés fenomenológico da abordagem gestáltica, Fukumitsu (2005) compreende o suicídio como uma mensagem existencial que expressa o último ato de escolha revelada na ação. Talvez Marina não tenha vislumbrado outra saída para si mesma. Um mês depois do suicídio, a mãe de Marina e a tia Patricia retornaram as sessões de Terapia de Família. E ai? Como fazer para acolher tamanha dor e vazio se nós, terapeutas, ainda estávamos atônitas e perplexas diante dos fatos?. A dor e o sofrimento foram evidentes. Chorei silenciosamente como se pudéssemos conversar apenas com lagrimas.A escolha de Marina mudou sua vida, a vida de seus familiares e a minha enquanto terapeuta para sempre. Percebi que um dos trabalhos mais árduos de um terapeuta manter-se presente sem ter condições de prever, nem saber aonde se vai chegar e mesmo assim ficar ali, arriscar-se sem perder a noção de si e dos limites de sua responsabilidade.A família de Marina segue conosco na terapia de família, estamos juntas há oito meses. Este foi o nosso possível... BIBLIOGRAFIA FUKUMITSU, KARINA OKAJIMA . Suicídio e psicoterapia: uma visão gestáltica.Editora Livro Pleno, 2005. _____________________________ .Uma visão fenomenológica do luto: um estudo sobre as perdas no desenvolvimento humano. Editora Livro Pleno, 2004. GINGER, SERGE E ANNE - Gestalt: Uma Terapia do contato. Summus Editorial, São Paulo, 1995 PERLS, FRITZ - A abordagem Gestáltica e Testemunha Ocular da Terapia. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1981.Publicado
2014-09-18
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