MC 14: SOFRIMENTO ÉTICO-POLITICO E ANTROPOLÓGICO E A CLINICA DA INCLUSÃO

Authors

  • Rosane Müller Granzotto

Abstract

MC 14: SOFRIMENTO ÉTICO-POLITICO E ANTROPOLÓGICO E A CLINICA DA INCLUSÃO Rosane L. Müller-Granzotto RESUMO Trata este curso da clínica psicossocial do sofrimento (aflição) concebida por Perls, Hefferline y Goodman (1951) e desenvolvida por Müller-Granzotto (2010) como uma das modalidades da atenção gestáltica aos sujeitos acometidos de alguma vulnerabilidade. Privados das representações que constituem suas identidades psicossociais, os sujeitos não podem estabelecer relações vinculares com outros sujeitos; o que implica a fragmentação da dimensão antropológica de suas vidas. Nestas situações os sujeitos não deixam de criar ajustamentos de inclusão social, genuínos pedidos de ajuda solidária. Acolher os pedidos de reinserção (ético-política e antropológica) dos sujeitos em sofrimento é a tarefa clínica que, neste curso, queremos apresentar. Palavras-chave: sofrimento; inclusão; psicossocial REDAÇÃO A experiência do contato envolve, em tese, e conforme podemos ler na obra Gestalt Terapia (PHG, 1951, p. 48), três elementos principais: a preocupação atual (que inclui nossas necessidades fisiológicas e as demandas por inteligência social formuladas na linguagem), os excitamentos (que, uma vez demandados, retornam de um fundo impessoal de hábitos assimilados) e as soluções vindouras (que mais não são que nossos desejos formulados a partir da expectativa de nossos semelhantes). E é na forma da ação criadora que esses três elementos são enovelados como um só fenômeno de campo: “contato é ‘achar e fazer’ a solução vindoura. A preocupação é sentida por um problema atual, e o excitamento cresce em direção à solução vindoura mas ainda desconhecida” (PHG, 1951, p. 48). Qual o “resultado” dessa experiência? Cometeríamos um equívoco se pensássemos que a experiência do contato implica apenas um tipo de resultado. Afinal, os elementos antes mencionados descortinam três dimensões diferentes da experiência de contato. Os excitamentos que emergem a partir das demandas afetivas de nossos semelhantes são “assimilados” como forma impessoal, resíduo que escapa ao nosso saber, às nossas tentativas de elaboração intelectual (awareness reflexiva), permanecendo como fundo impessoal de hábitos motores e linguageiros impossível de ser significado: passado operativo. Os desejos são “produzidos” como aquilo que empurramos à frente, qual horizonte, domínio presuntivo do que queremos ser ou alcançar junto às expectativas de nossos semelhantes: futuro de virtualidades. Mas as demandas por inteligência social, nossa participação no sistema de valores, pensamentos e instituições que compartilhamos com os semelhantes, tais vivências acarretam algum tipo de resultado? Sim. E eis aqui a base daquilo que se apresenta no campo social como função personalidade. Conforme PHG (1951, p. 277), um dos mais importantes resultados do “contato social criativo é a formação da personalidade: as identificações de grupo e as atitudes retóricas e morais viáveis”. A função personalidade não é aqui uma espécie de síntese entre o que retorna como excitamento (awareness sensorial) e o que surge como horizonte virtual ou, simplesmente, desejo (awareness deliberada). Ela é, sim, uma terceira dimensão de nossa existência, na qual, em grande parte das vezes, alienamos a angústia advinda do fato de nunca conseguirmos fazer coincidir, nas experiências de contato, o passado e o futuro ou, o que é a mesma coisa, os excitamentos e os desejos. Formada a partir da assimilação presente das virtualidades formuladas no passado (e que agora são para nós uma espécie de futuro do pretérito que nossos atos, na atualidade da situação, transformam em representações sociais), a função personalidade é o sistema de pensamentos, valores e instituições às quais recorremos no intuito de lograrmos uma identidade, um “ser social”. Assim compreendida, a função personalidade é uma espécie de espelho social que experimentamos em meio aos grupos que integramos, aos valores que assumimos e aos expedientes linguísticos de que nos servimos como “réplica verbal” de nossas vivências de campo (PHG, 1951, p. 188). Junto a esse espelho – a que também podemos denominar de outro social – sentimo-nos amparados, inteiros, reconhecidos e, ao mesmo tempo, incumbidos de responsabilidade. O amor-próprio, o reconhecimento de nosso valor para nós mesmos e para alguém é sempre uma vivência da função personalidade, é sempre um tipo de prazer/desprazer que alcançamos em decorrência de nossa participação na vida desse outro social no qual nos espelhamos – e que por essa razão funda para nós uma dimensão antropológica. Ademais, a acolhida ética aos nossos excitamentos e o espaço político para que possamos desempenhar nossos desejos são sempre tributários da presença de alguns representantes do outro social, como são os amigos, os terapeutas e, inclusive, os inimigos. O que nos permite concluir, a partir de PHG, que é apenas nos termos da função personalidade que a experiência do contato adquire um “sentido” ético-político e antropológico, já que, para PHG (1951, p. 187), a função personalidade é “o sistema de atitudes adotadas nas relações interpessoais; é a admissão do que somos, que serve de fundamento pelo qual poderíamos explicar nosso comportamento, se nos pedissem uma explicação”. Ora, como sabemos, as experiências de contato podem malograr. Isso significa dizer: uma determinada produção pode não acontecer. Os excitamentos, por exemplo, podem não se apresentar (como no caso dos autismos e das esquizofrenias) ou, ainda, irromper de maneira desarticulada (como no caso das paranoias e dos comportamentos maníaco-depressivos). A inibição sistemática de um fundo de excitamentos, a sua vez, pode inviabilizar ações criadoras em direção a um horizonte de futuro (tal como ocorre nos comportamentos neuróticos). Da mesma forma, pode ocorrer de as experiências de contato não resultarem como função personalidade, ou, em outros termos, como identificação social a um grupo, a um valor ou a uma conduta. É nesse momento, então, que vamos nos deparar com uma situação para a qual a Gestalt-terapia brasileira e mundial cada vez mais tem voltado sua atenção, o sentimento de aflição decorrente do fato de não encontrarmos um lugar ético em que possamos estabelecer relações políticas e antropológicas. Pensemos no que sentem as pessoas vítimas da violência gratuita praticada nos grandes centros urbanos; ou no que sentem aquelas excluídas da cadeia produtiva ou que tiveram de se submeter a um regime paralelo de produção na condição de escravos. Pensemos ainda no sentimento de quem foi atingido por uma tragédia natural, ou acometido de uma doença. Ou, talvez, como não se sentem as pessoas excluídas das relações sociais por conta da violência de gênero, dos preconceitos e conflitos ideológicos. O que se passa com quem foi identificado a representações sociais indesejáveis, como a loucura, a criminalidade, o abjeto? PHG têm uma expressão que pode nos ajudar a pensar esses sentimentos. Trata-se do significante “misery”, traduzido ao português como aflição, mas que propomos tomar como estado de sofrimento (ético-político e antropológico). Nas palavras dos autores (PHG, 1951, p. 235): “como distúrbio da função de self, a neurose encontra-se a meio caminho entre o distúrbio do self espontâneo, que é a aflição, e o distúrbio das funções de id, que é a psicose”. Ora, o que aqui se passa? Ante a impossibilidade de vivermos relações ético-políticas e antropológicas, o que acontece conosco, o que acontece com o sistema self no qual estamos inseridos? Podemos, nessa condição, produzir ajustamentos criadores? É o que pretendemos discutir neste curso, tendo como base nossa trajetória de intervenção no campo do sofrimento ético-político e antropológico, bem como os rudimentos teóricos fornecidos pela teoria do self. Apoiados nesta teoria formulada por PHG (1951), acreditamos que o sofrimento (ético-político e antropológico) possa ser definido como a falência social das experiências de contato, uma vez que os dados de realidade tornam-se inacessíveis ao agente do contato, ou seja, à função de ato. Nessas situações, o sistema self perde sua espontaneidade e a função de ato acaba não encontrando uma representação (do outro social) à qual possa se identificar, tal como ocorre no luto, nos acidentes, no adoecimento somático, na crise reativa, no surto psicótico e na exclusão social. Ainda assim, nessas situações, a função de ato não deixa de funcionar. Não obstante a aflição em que se encontra, ela produz um ajustamento criador, por nós denominando de ajustamento de inclusão. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS MÜLLER-GRANZOTTO, M.J; MÜLLER-GRANZOTTO, R. L. Psicose e Sofrimento. São Paulo: Summus, 2012. MÜLLER-GRANZOTTO, R. L. (ou GRANZOTTO, R. L.) La clínica gestáltica de la aflicción y los ajustes ético-políticos. Revista de Terapia Gestalt de la Asociación Española de Terapia Gestalt. Nº 30, enero de 2010, p. 98-105. [PHG] PERLS, F.; HEFFERLINE, R.; GOODMAN, P. 1951. Gestalt Terapia. Trad. Fernando Rosa Ribeiro. São Paulo: Summus, 1997.

Published

2014-07-29