ARTIGO

Terapia de família e equipe reflexiva: da dissonância à consonância em busca de um tom.

Family therapy and reflexive team: of the dissonance to the consonance in search of a tone.

Este trabalho foi originalmente escrito para apresentação no VII Congresso Brasileiro de Terapia Familiar, realizado em São Paulo, em julho de 2006.

Cintia Simões Pires; Heloísa Costa; Eliane Messina; Ludmila Azambuja; Vera Mendes.


RESUMO

Este artigo abordará, a partir de nossa experiência prática, as possibilidades e os limites da manutenção da equipe reflexiva nos consultórios particulares propondo, também, novas adaptações que mantenham a potência dessa técnica. Nosso trabalho com o recurso da equipe reflexiva no atendimento a famílias em situação de violência levou-nos a aprofundar o entendimento que até então tínhamos dessa técnica. Durante o percurso deste trabalho várias inquietações nos moveram no sentido de redimensionar a técnica buscando um tom ao mesmo tempo confortável e fértil tanto para a equipe quanto para a família. Até que ponto a mediação por circuito de TV ou por meio de espelho unidirecional atenua uma série de diferenças que a equipe reflexiva presencial evidencia? Qual é o tipo de linguagem não verbal que se estabelece quando equipes com papéis diferenciados partilham do mesmo espaço ao longo do processo terapêutico? Acreditamos, enfim, que é importante repensar os impasses como pausas a partir das quais podemos ter mais consciência e manejo do processo enquanto ele se dá.

Palavras-chave: terapia de família, atendimento em equipe, equipe reflexiva.


ABSTRACT

This article will draw from our practice some of the possibilities and the limits of bringing the reflective team to our private offices. We will suggest, as well, new forms of adapting it and keeping the power of this technique. Our work using this resource with families living in violent contexts has led us to a deeper understanding of this technique. During the course of this work some reservations have arisen forcing us to give a new dimension to the technique, searching for a tone which would, at the same time, be more comfortable and fertile for the family. Up to which extent the mediation of a TV circuit or a unidirectional mirror minimize a series of differences that the presencial reflecting team enhances? We believe that it is important to rethink these impasses as pauses from which we can develop consciousness andmanagement of this process while in the make.

Keywords: family therapy, clinical practice team, reflexive team.


INTRODUÇÃO

A participação em um grupo de atendimento a famílias em situação de violência levou-nos a repensar e desejar rever e readequar a equipe reflexiva.

Por tratar-se de uma clínica social os atendimentos não podem prolongar-se por demais na instituição visto que a demanda é sempre crescente. Assim, após algum tempo de atendimento pela equipe como um todo, avaliamos os casos que podiam ser transferidos para nossos consultórios particulares. Nesse momento, tivemos a intenção de manter a equipe reflexiva no mesmo formato já que pela nossa experiência ela tem se mostrado uma técnica de grande eficiência no atendimento a famílias em situação de violência.

As famílias, em geral, se beneficiam muito do momento em que a equipe reflexiva participa ampliando o espectro das discussões e contribuindo com a sua visão pessoal a respeito do que observou e sentiu no decorrer da sessão. De fato, a equipe reflexiva permite alterar o ritmo da sessão oferecendo uma nova leitura para uma situação já revisitada muitas vezes pela família. Nesse momento pode surgir a oportunidade para que se vislumbre uma possibilidade de mudança.

Trataremos neste artigo das reflexões que surgiram na nossa prática e das adaptações que implementamos ao longo do tempo. A equipe reflexiva resiste à importação para outros contextos? Isso se dá sem perda? Deve-se manter a mesma freqüência? Os participantes devem ser os mesmos?

Responder a essas perguntas foi um desafio ao qual nos lançamos guardando o imenso respeito que essa técnica conquistou, mas entendendo que não há verdades absolutas e monolíticas e que as reflexões inspiradas na prática podem e devem trazer novas perspectivas que alimentem esse processo recursivo que une teoria e prática.

1. Histórico da nossa experiência como equipe reflexiva: da instituição para o consultório

Nosso grupo de atendimento é formado por sete terapeutas de família que, desde 2001, absorve os casos de famílias que vivem em situação de violência e que procuram a Clínica Social do Instituto de Terapia de Família do Rio de Janeiro. O atendimento na instituição ocorre com a equipe terapêutica dividindo-se em duas funções básicas: dois terapeutas de campo que mantêm contato direto com a família na sala de atendimento, o restante da equipe permanecendo em uma outra sala acompanhando o atendimento por meio de um circuito de TV. Esta equipe pode intervir a qualquer momento da sessão, interfonando aos terapeutas de campo, oferecendo sugestões ou entrando na sala de atendimento e atuando como um grupo reflexivo.

Após algum tempo de atendimento pela equipe como um todo, avaliamos os casos que em função de sua evolução, poderiam ser transferidos para nossos consultórios particulares. Nesta transição, mantivemos a equipe reflexiva no mesmo formato, já que pela nossa experiência ela tem se mostrado uma técnica de grande eficiência no atendimento a famílias em situação de violência.

No entanto, em nossos consultórios particulares a equipe reflexiva não podia mais contar com a intermediação do circuito de TV, partilhávamos todos o mesmo espaço, às vezes bastante restrito, para três ou quatro terapeutas, mais a família. A esta forma de funcionamento demos o nome de equipe reflexiva presencial.

2. Equipe reflexiva: o método e suas vantagens

Embora muitas vezes a equipe reflexiva seja considerada um método, para Tom Andersen (2001), talvez a equipe reflexiva seja melhor definida como uma “maneira de pensar e não como um método, essa/sua maneira de pensar leva inevitavelmente a esse tipo de prática, que é justamente uma forma de colocar em ação as idéias sistêmicas” (p.13).

A equipe reflexiva é formada pelos terapeutas que acompanham a sessão pelo circuito de TV ou espelho unidirecional, que ao entrarem na sala de atendimento:

“Falam, então, entre si, sobre suas idéias e perguntas a respeito do(s) assunto(s) apresentado(s), estando os membros do sistema entrevistador os escutando. Em outras palavras, cada membro da equipe dá a sua versão sobre os assuntos problemáticos que foram definidos. [...] esse procedimento dá aos membros do sistema entrevistador (o sistema imobilizado mais o entrevistador) uma possibilidade de ter um diálogo interno enquanto escuta as versões que a equipe apresenta. Depois que a equipe termina suas reflexões, os membros do sistema entrevistador conversam entre si sobre as idéias que tiveram enquanto escutavam as reflexões. De certa forma, conversam sobre a conversa que a equipe reflexiva teve sobre a primeira conversa do sistema entrevistador” (Andersen, 2001, p. 66).

Esta técnica, descrita no livro Processos Reflexivos (Andersen, 2002, p. 65), absorvida com modificações na sua “importação” pelo ITF-RJ (Monte, 2006), vem se mostrando eficiente e criativa nos atendimentos e na formação de terapeutas de família.

A experiência acumulada ao longo dos anos com a utilização da equipe reflexiva nos permite avaliar suas vantagens a partir das respostas positivas que obtivemos por parte das famílias, do processo do atendimento terapêutico e da própria equipe de profissionais (1).

A equipe reflexiva cria, pelo seu funcionamento e pelo próprio limite espacial que estabelece (terapeutas atrás do espelho, ou em outra sala com circuito de TV sem ter contato visual direto com a família), espaços diferenciados de escuta e fala. Entre as duas equipes não se estabelece um diálogo: enquanto o sistema entrevistador está falando a equipe reflexiva escuta e depois, quando a equipe reflexiva atua só ela fala e o sistema entrevistador limita-se a escutar. Este movimento tende a quebrar o ritmo da sessão abrindo a possibilidade de surgirem novas idéias e reflexões não só para a família como também para os terapeutas.

Rosana Rapizo (2001) diz que a “ritualização” do espaço de escuta e fala, cria uma solenidade para a situação que tira a família do lugar onde estava. Poder ouvir sua própria fala na voz de outra pessoa, assim como a repercussão que esta teve para o outro, é um elemento que facilita este deslocamento, criando espaço para novas reflexões e conversas. Também a família que escuta, escuta de um lugar mais distanciado: não tem uma relação direta com quem está falando, não precisa responder, não precisa olhar para quem fala, etc. Acreditamos que esses fatores permitem uma escuta mais distanciada do que a que acontece durante as sessões somente com os terapeutas de campo.

Por outro lado, enquanto os terapeutas de campo mantêm uma atenção e conexão direta com a família durante a sessão, tendo sua escuta uma direção clara - facilitar o fluxo da conversa que está acontecendo na família naquele momento – os terapeutas da equipe reflexiva acabam tendo um lugar de escuta privilegiado, podendo priorizar certos aspectos da conversa em detrimento de outros, dedicando-se exclusivamente a uma conversa interna. Não precisam dialogar, só precisam ouvir e refletir.

As reflexões dos terapeutas da equipe reflexiva não têm uma direção especifica na medida que não se destinam a nenhum dos membros da família em particular. A fala dos terapeutas se despersonaliza em função da própria dinâmica do método. Desta maneira, aos ouvidos dos clientes a fala ganha um aspecto de quase anonimato. Por outro lado, o processo reflexivo é bastante personalizado pela obrigatoriedade de se conectar com as vozes internas, garantindo ao terapeuta um grande grau de autonomia. Em função do pouco contato direto que mantém com a família acaba tendo maior facilidade de não se envolver em certas tramas familiares, o que lhe dá maior liberdade de ação. Estes aspectos também deixam a família bastante livre sobre o que priorizar nas reflexões feitas pela equipe reflexiva. Enfim, por não estar atuando diretamente com a família, a equipe reflexiva acaba tendo mais liberdade do que os terapeutas de campo para refletir sobre determinados aspectos assim como para expressar suas idéias, consonâncias e dissonâncias diante da família.

Estes espaços diferenciados de escuta e fala que acontecem em função da presença da equipe reflexiva também promovem mudanças significativas para os terapeutas de campo - mudam de um lugar de fala e ação para um lugar de escuta e observação; no ritmo da sessão, tira-os da função e do lugar no qual estavam, promovendo mudanças na sua escuta e na sua fala.

A equipe reflexiva, com seu frescor e liberdade, permite que os terapeutas de campo evitem ficar encapsulados nos dilemas e impasses vivenciados pelas famílias. Traz, então, o novo, o inusitado para o espaço terapêutico.

Por todas essas vantagens, somadas a nossa experiência satisfatória na utilização da equipe reflexiva em nosso trabalho na instituição, resolvemos manter o mesmo modelo de atendimento. Parecia-nos essencial poder dar continuidade ao atendimento sem perder as possibilidades que a equipe reflexiva nos oferecia.

3. Diferenças que fazem diferença

“A unidade elementar da informação
é uma diferença que faz uma diferença”.
(Bateson, 1972. p. 453)


A equipe reflexiva, na sua essência, possibilita a co-existência de diferentes vozes; metacomunica uma idéia muito valiosa para a construção do processo de mudança que, para nós, inclui o respeito às diferenças e o abandono de uma hierarquização valorativa tão arraigada no pensamento ocidental.

Segundo Andersen (2002), “existem dois sentidos distintos no uso que Bateson faz da palavra diferença: primeiro, alguma coisa é distinta sendo diferente do seu background, e segundo, uma mudança é uma diferença ao longo do tempo causada por uma diferença. (...) essas idéias tornaram-se fundamentos importantes para o trabalho clínico. (...) Perguntas que buscam diferenças que fazem diferença são aquelas que focalizam as mudanças” (p. 39-40).

As famílias que encontramos têm, via de regra, um padrão de comunicação cristalizado, muito pouco aberto à diferença. Neste sentido, as mudanças ficam difíceis de acontecer, pois toda diferença é vivida como uma ameaça ao sistema que se tornou seguro, mesmo que desconfortável, porque é a forma de funcionamento conhecida (comum) para elas.

Para Andersen (2001), “mudando a palavra ‘diferença’ para uma linguagem cotidiana, escolhi o termo ‘incomum’, se as pessoas ficam expostas ao comum, tendem a permanecer as mesmas. Se encontram alguma coisa fora-do-comum, este fora-do-comum pode induzir a uma mudança. Se o novo que encontram é muito (demais) fora-do-comum, fecham-se para não serem influenciados. Portanto, o que nós, seus supostos ajudantes, deveríamos fazer é nos esforçar para, durante as conversas com essas pessoas, oferecer alguma coisa incomum, mas não incomum demais” (p.42).

3.1 Diferenças que fizeram diferença

A mudança das famílias atendidas na instituição para os consultórios particulares apesar de, à primeira vista, ter-nos parecido uma pequena diferença, surpreendeu-nos sob vários aspectos sobre os quais só pudemos refletir posteriormente. Avaliamos hoje que as diferenças de contexto geraram diferenças significativas as quais não pudemos antecipar.

Com a ida para os consultórios percebemos que mudaram também as fronteiras previamente estabelecidas que impunham contornos diferentes. O espaço físico sempre menor, se comparado ao institucional; a ausência de infra-estrutura, quando anteriormente contávamos com secretária, espaços distintos para espera, café, etc; a diminuição do número de integrantes da equipe, reduzida a, no máximo quatro; e a ausência da figura do supervisor, que marca uma diferença funcional dentro da equipe.

Nos consultórios atendíamos com a equipe reflexiva presente na mesma sala do atendimento, sem o circuito interno de TV. De qualquer maneira tentávamos manter um espaço diferenciado, ficando a equipe reflexiva mais afastada do sistema entrevistador. Tentávamos, com isso, funcionar como se houvesse um espelho virtual formando assim uma equipe reflexiva presencial.

O espaço físico restrito, comum nos consultórios particulares, propiciou uma série de interações favorecidas pela redução do espaço, tais como trocas de olhares, sorrisos cúmplices, ou não, gravidade dos semblantes, eventuais participações extemporâneas da equipe reflexiva, e demais interações não verbais.

Diferentemente da equipe reflexiva na instituição (cuja intervenção é voluntária e tem integrantes variados em função de ressonâncias, familiaridade com o tema do dia e presença), no consultório a equipe é permanente, está sempre presente, não podendo entrar ou sair, o que, muitas vezes, contribui para uma maior uniformidade no ritmo da sessão.

Por fim, o prolongamento do atendimento no tempo, natural nos consultórios, gera intimidade entre a equipe reflexiva, a família e os terapeutas de campo, perdendo-se assim parte da autonomia e do anonimato da fala reflexiva.

4. Novas perguntas

· Até que ponto a mediação através do espelho unidirecional ou circuito de vídeo exponencia uma série de diferenças da equipe reflexiva as quais potencializam sua função de contribuir com um olhar estrangeiro, inesperado e particular? Não estaremos perdendo algo muito precioso quando a equipe reflexiva se torna presencial?

· Qual é o tipo de linguagem não-verbal que se estabelece quando equipes com papéis diferenciados partilham do mesmo espaço ao longo do processo terapêutico? (a linguagem não-verbal do terapeuta da equipe reflexiva fica visível para a família, a intervenção fica enfraquecida frente às outras reações presenciadas ao longo da sessão).

· Quais são os ganhos em manter um atendimento com vários terapeutas sem que seja possível manter a diferenciação clara de papéis entre terapeutas de campo e equipe reflexiva?

Considerações Finais

Apesar de termos sempre buscado manter diferenças que pudessem contribuir na geração de mudanças úteis para as famílias, parece-nos que ao longo do caminho nos percebemos, muitas vezes, numa situação de indiferenciação entre os terapeutas de campo e os terapeutas da equipe reflexiva. O resultado final era uma grande equipe de campo com atuações muito homogêneas.

A equipe reflexiva perdeu o seu caráter “estrangeiro” para a família, cuja função deveria ser a de entrar, contribuir com novas idéias e sair... Passou a fazer parte da equipe terapêutica perdendo a possibilidade de “arejar” a conversa com diferentes versões. Embora tenha sido mantida a sua forma de atuação, a sua função foi, aos poucos, se perdendo.

As conversas entre as equipes, terminadas as sessões, se estabeleciam de forma semelhante a qualquer outra equipe terapêutica na qual não houvesse funções distintas entre terapeutas de campo e equipe reflexiva. Quando decidimos atender nos consultórios particulares nos mesmos moldes da instituição, não podíamos antecipar que as diferenças de contexto seriam tão significativas a ponto de fazer-nos funcionar como uma grande equipe terapêutica, e não como uma equipe que poderia usufruir das vantagens e peculiaridades que proporciona a equipe reflexiva.

Percebemos uma necessidade de calibrar o formato do atendimento no momento da migração para os consultórios, avaliando o perfil da família, para adequá-lo ao formato e periodicidade das visitas da equipe reflexiva. Não abandonamos, contudo, o propósito de trabalhar em nossos consultórios com a equipe reflexiva. Uma das idéias seria a de que a dupla de campo, esta fixa e permanente, poderia requisitar à equipe de atendimento (que já acompanhou o caso quando de sua passagem pela instituição) visitas eventuais. Essas visitas poderiam ocorrer em situações diversas: estagnação do processo, momentos de maior mobilização afetiva do terapeuta, crises vividas pela família, mudanças no ciclo vital, etc.

Hoje avaliamos que podemos e queremos continuar fazendo uso da equipe reflexiva, mas de uma forma que mantenha o compromisso de preservar suas características e potencialidades.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


ANDERSEN, Tom (2002). Processos reflexivos. Rio de janeiro: Instituto Noos.

BATESON, G. (1972). Steps to an ecology of mind. New York: Ballantine.

MONTE, Helena Júlia (2006). “Entrevista”. In: SILVA, Marcelo Pinheiro da. Equipe reflexiva, quais são as diferenças que criam diferenças? Disponível em: www.igt.psc.br/ArtigosIGT/Equipe_Reflexiva/Pagina%20pessoal%20da%20Web.htm, acesso em: 12 jul. 2006.

RAPIZO, R. (2006). "Entrevista". In: SILVA, Marcelo Pinheiro da. Equipe reflexiva, quais são as diferenças que criam diferenças? Disponível em: www.igt.psc.br/ArtigosIGT/Equipe_Reflexiva/Pagina%20pessoal%20da%20Web.htm, acesso em: 12 jul. 2006.

SILVA, Marcelo Pinheiro da (2006). Equipe reflexiva, quais são as diferenças que criam diferenças? Disponível em: www.igt.psc.br/ArtigosIGT/Equipe_Reflexiva/Pagina%20pessoal%20da%20Web.htm, acesso em: 12 jul. 2006.


(1) Utilizamos, também, como fonte inspiradora para destacar as vantagens da técnica, entrevistas com terapeutas de família reconhecidos pela sua experiência na utilização dessa prática. Cf. Silva (2006).