ARTIGO


Reflexão crítica da prática psi em relação à educação - perspectivas foucaultianas: criança que não aprende ou escola que não ensina?


Critical reflection on Psychological practices with regard to education - Foucault's perspectives: child that does not learn or school that does not teach?

Luiz Carlos Bandeira do Espírito Santo


RESUMO

Este trabalho tem por proposta analisar A partir da Grécia antiga até os nossos dias a tentativa humana de entender sua própria subjetividade através do olhar e construção do sujeito enquanto ser que aprende, sua atuação neste processo e a maneira como se deu ao longo da história esta construção, além de identificar as possibilidades e limitações que determinadas propostas filosóficas propuseram no tocante a tal relação. Dentro destas perspectivas analisaremos a relação que a infância estabeleceu e estabelece com a instituição escolar, suas práticas e discursos pedagógicos bem como as imbricações deste conceito perante a Educação. Consideramos também o papel da Psicologia com estas práticas pedagógicas, no que concerne a suas explicações sobre a infância e o modo de esta se relacionar com o discurso pedagógico. Esta ciência como veremos teve importante papel na construção e reprodução de determinados discursos que demarcaram, ao longo da história do século XX, a forma como a escola se ocupou da criança e como esta instituição pode se tornar lugar onde a subjetividade é submetida à série, enquadramento e disciplina que muitas das vezes levam os alunos ao abandono, fracasso e/ou a repetência. Foi usado o referencial teórico de Michel Foucault para submeter às práticas pedagógicas do cotidiano a uma revisão crítica, uma vez que tais práticas podem ser uma forma de estabelecer/ reproduzir a submissão e dominação, levando a criança à repetência ou a não-aprendizagem.

Palavras-chave: subjetividade; infância; educação; perspectiva foucaultiana.


ABSTRACT

This work is intended to analyze, from ancient Greece to the present day, the human attempt to understand its own subjectivity through the look and construction of the subject as a being that is passive to learning, its role in this process and the way this construction happened throughout history. It is also intended to identifiying the possibilities and limitations that such philosophycal questions brought up, considering those relations. Through those perspectives, we will analyze the relationship that childhood established and establishes still with the institution of school, its Pedagogical practices and scpeeches, as well as the imbricações of that concept before Education. We also considered Psychology’s role in such Pedagogical practices, when it comes to its explanations about childhood and the way it is related to the Pedagogical speech. As we will see, this science has had an important role in the construction and reproduction of some speeches that, throughout the history of the 20th century, determined the way that school has occupied children and how that institution can become the place where subjectivity is submitted to series, framing and discipline which frequently leads the student to abandonment or failure. Michael Foucault was used as a theoretical reference, in order to putting everyday Pedagogical practices under a critical review, once those could be another way to establish and/or reproduce the submission and the domination, leading the child to either failure or non-learning.

Keywords: subjectivity; childhood; education; Focault’s perspective.



SUBJETIVIDADE E CONSTRUÇÃO HISTÓRICA DO SUJEITO QUE APRENDE

Este capítulo tem como finalidade entender, através da história humana, tanto a origem como a natureza de determinada forma de pensar o saber, qual relação este pensar tem com a subjetividade humana, além de tentar entender como este sujeito pensante se relaciona com a educação e a escola contemporâneas, constatando as diversas influências de diversos filósofos que estabeleceram determinado ponto de vista sobre esta subjetividade. Para isto partiremos de um determinado momento histórico.

O homem grego clássico pensou sua realidade em contraposição ao pensamento mítico até então vigente. Esta contraposição levou os gregos a fundarem a filosofia ocidental de caráter cosmológico, ou seja, centrada numa noção que desse conta do conhecimento racional da ordem do mundo ou da natureza.

No século VI aC na Grécia, começou a ocorrer forte contestação da constituição do mundo vivido, até então, destacando-se duas vertentes de pensamento. Uma primeira perspectiva de característica mitológica que revivia o culto ao deus Dionísio, da seita de Orfeu; que basicamente concebia o mundo pela ruptura da unidade divina. O ser humano carregaria dentro de si a dualidade corpo-alma. O corpo seria a parte desta dualidade de herança titânica que aprisionaria a alma, como um invólucro ou um túmulo. A alma seria a herança dionísica que, pela ascese e pela resistência aos prazeres e atrativos da vida terrena, se libertaria do corpo para usufruir a vida eterna.

A segunda vertente de pensamento deste período encontra lócus na parte mediterrânea oriental grega, numa região denominada Jônia, território na Ásia Menor, que estimulou o nascimento de uma filosofia natural que se propunha a dar uma explicação racional para o universo. Dentre os filósofos jônicos, destacou-se Heráclito de Éfeso (480 aC), que apresentou um pensamento baseado num mobilismo; ou seja, uma concepção segundo a qual a realidade natural se caracterizaria pelo movimento, pelo fluxo incessante, que engendraria a multiplicidade das formas. Estes princípios estariam contidos numa famosa frase atribuída a Heráclito: “Panta rei” [Tudo passa], que sintetizaria o eterno devir, o vir a ser humano, processo de produção do homem que seria imanente ao processo de produção do mundo, corroborando a afirmação da indissociabilidade homem/natureza.


Natureza e origem do pensamento e conhecimento


Estes tipos de pensamentos estenderam-se hegemonicamente por aproximadamente dois séculos – o século V aC e o século IV aC; ambos estimulados pelo apogeu da cidade-estado Atenas. O século V aC destacou-se por apresentar algumas vertentes de pensamento que posteriormente influenciarão sobremaneira o pensamento ocidental.

Um destes tipos de pensamento ligava-se aos sofistas, que foram mestres da retórica e oratória, muita das vezes de forma itinerante. Percorriam cada cidade-estado, fornecendo seus ensinamentos. Dentre estes sofistas, destacou-se Protágoras de Abdera (485 aC – 410 aC) que introduziu um novo conceito de homem, que extrairia a verdade do contato com a realidade. Os Sofistas ressaltaram a incomunicabilidade direta dessa experiência particular, preconizando o caráter convencional das instituições, transformáveis segundo as necessidades humanas, preparando assim os cidadãos para sua participação na vida política da pólis grega.

A segunda vertente presente no século V aC estava ligada aos eleatas e aos atomistas, que foram filósofos da Escola Eleática, localizada na Grécia ao sul da Itália. Basicamente conceberam a matéria una, imóvel e indestrutível. Dentre os eleatas, destacou-se Parmênides de Eléia (fl.c.500 aC), que propôs a identidade como único fundamento da verdade, sendo o introdutor de uma das distinções mais básicas no pensamento filosófico; ou seja, a distinção entre realidade e aparência. Parmênides afirmava que o ser seria esférico, pois a esfera representava para ele o caráter pleno e perfeito do real; sendo assim, a realidade seria única e idêntica a si mesma sendo o devir humano, portanto aparência.

Outra forma de pensamento deste período foi o dos atomistas que tiveram em Demócrito de Mileto (460 aC – 370 aC) seu maior representante, este filósofo propôs a conceituação de que o universo seria formado por partículas indestrutíveis e indivisíveis – os átomos.

A terceira e última escola deste período é representada por Sócrates (469 aC – 399 aC), que propôs um conceito de homem essencialmente moral. A verdade para Sócrates identificava-se com o bem, sendo este sentimento o único ordenador da felicidade humana. Em relação ao método socrático MARCONDES (1997) afirma que:

“...envolve um questionamento do senso comum, das crenças e opiniões que temos, consideradas vagas, imprecisas, derivadas de nossa experiência, e portanto parciais, incompletas “...” É exatamente nesse sentido que a reflexão filosófica vai mostrar que, com freqüência, não sabemos aquilo que pensamos saber. Temos talvez um entendimento prático, intuitivo, imediato, que, contudo se revela inadequado no momento em que deve ser tornado explícito. O método socrático revela a fragilidade desse entendimento e aponta para a necessidade e a possibilidade de aperfeiçoá-lo através da reflexão. Ou seja, partindo de um entendimento já existente, ir além dele em busca de algo mais perfeito, mais completo”. (p. 47).

No século IV aC, a filosofia e a retórica consolidaram-se no período clássico grego. Iniciando-se com o discípulo de Sócrates, Platão (427 aC - 348 aC) que tinha uma concepção de mundo bipartite, ou seja, numa perspectiva dicotômica de idéia-matéria (ou essência-aparência ou modelo-cópia). Segundo JACQUES, e colaboradores (2002) a idéia ou essência ou pura forma seriam o modelo universal, enfim a realidade que não se corromperia pelo devir. Portanto pelo princípio da identidade, ser verdadeiramente, seria permanecer idêntico a si mesmo. A aparência ou matéria (imagem) ou corpo sensível seria cópia em devir e, portanto, ligado à ilusão. Assim de acordo com que nos mostram JACQUES e colaboradores (2002) a preocupação cosmológica pré-socrática estaria mergulhada na preocupação antropológica sofista que, por sua vez, travou um embate com a preocupação normativa socrático-platônica. Sucintamente, poderíamos dizer que era este o mundo grego clássico que, no entanto, possibilitou a passagem de uma interpretação de mundo numa perspectiva mítica a um mundo de explicações racionais dos fenômenos da natureza e do homem.

Relação do pensamento com a subjetividade humana


No início do mundo grego o único homem merecedor de nota e de proteção divina era o herói. Após este longo período inicial da história do pensamento grego mais ligado a uma interpretação mítica, foi possível através destas diversas formas de pensar o homem e a natureza, e através do trabalho de filósofos e pensadores, definir duas vertentes de pensamento que posteriormente se tornarão hegemônicas no mundo ocidental, bem como até hoje presentes com características que ora se afastam, ora se cruzam, ora se aproximam, do modo como o homem encara a própria visão de mundo, o saber e o conhecimento que mantém. Uma destas vertentes de pensamento segundo JACQUES e colaboradores. (2002):

“... afirma duas dicotomias: 1) unidade divina - dualidade humana e 2) corpo -alma”. Todos os homens, semideuses, precisam libertar-se da sua metade humana para conquistar a sua integridade divina. A unidade e indestrutibilidade divinas são deslocadas para a matéria. A identidade e a imobilidade fundamentam a verdade. Agrega-se nova dicotomia: realidade - aparência. A identidade e a permanência da essência introduz o homem no mundo da moralidade, no qual a verdade é identificada com o bem e o belo. A dicotomia idéia - matéria é fundamentada pelos princípios da identidade e da semelhança”. (p. 171)

A outra maneira de se pensar teve em seu germe a afirmação da diferença da diferença. Era, portanto, a forma de pensar o saber segundo JACQUES e colaboradores (2002) como “...A metamorfose, que institui o novo, mesmo que imperceptível, faz repercutir as disparidades de todas as coisas entre si. O homem, indissociável da natureza, é forma composta pelos fluxos mutantes, em devir. A verdade, como construção humana apresenta-se plural e transitória”. (p.171).

São estas duas concepções que motivarão o processo de subjetivação humana que ainda hoje está presente no saber ocidental e que de alguma forma o contamina, influencia ou mesmo o atravessa. Para JACQUES e colaboradores (2002) estas duas formas de pensamento “...desdobram-se, estilhaçam-se, desviam-se, opõem-se, entrelaçam-se, vibram, compõem, deslizam uma sobre a outra. Vão criando caminhos, atalhos, pontes que suportam as escolhas atuais, a reinvenção dos saberes e a construção do mundo” (p. 171).

Em síntese, enfatizamos aqui mesmo que de forma simples, dois princípios de pensamento que se iniciaram no homem grego passando a se desdobrar e orientar paulatinamente o homem através da história do pensamento ocidental. Foram eles: o princípio da identidade e o princípio da diferença [ambos grifos nosso].

Para o princípio da identidade haveria uma imobilidade infinita que garantiria a existência do mesmo como modelo universal. Cabe agora um esclarecimento sobre o significado de mesmo. Este mesmo significa aquilo tomado como idêntico, fundado no conceito determinável originário, que se inicia no sujeito pensante. Pensar pelo princípio da identidade liga-se sempre ao estabelecimento de uma identidade do conceito com o sujeito que pensa. Para JACQUES e col.(2002) “...A realidade é ideal e estática, já que estabelece sempre a ligação entre a unidade originária e a totalidade futura, suprimindo qualquer elemento diferencial” (p.172).

A identidade fundamentou as teorias que foram desenvolvidas pelos eleatas, pelos atomistas, por Sócrates, Platão e Aristóteles na Antiguidade Clássica, até atingirem o início da era moderna, citando dentre vários possíveis o nome de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770 – 1831), estando este princípio também presente, no século XX pelos referenciais teóricos difundidos pelo estruturalismo.

O princípio da identidade citado acima esteve presente em Hegel quando este propôs a realidade como exteriorização da idéia, ou seja, a realidade seria portanto, criada pela razão. A lógica dialética hegeliana se basearia na contradição criadora, no movimento da tese (afirmação), da antítese (negação) e da síntese (negação da negação). Segundo DELEUZE (1988) apud JACQUES e col.(2002) “...Pelo princípio da identidade, Hegel retalha a diferença pelo seu excesso: a contradição se constitui na maior diferença, somente em relação ao idêntico. Subordina, assim, a diferença à identidade.” (p 172).

A Psicologia contemporânea do século XX foi marcada também por este modelo de pensamento; notadamente pelo estruturalismo que agrupou em torno de si estudiosos de diversas áreas além da Psicologia, a saber: antropólogos, historiadores, etnólogos, lingüistas e vários outros pesquisadores. Um destes estruturalistas foi Jacques Lacan (1901-1981), psicanalista que ofereceu um estatuto científico à psicanálise, permitindo que as teorias freudianas fossem além de revistas, redescobertas a partir de novos paradigmas tais como a lingüística de Ferdinand de Saussure, a semiologia, a matemática, a lógica, a antropologia estrutural, a filosofia, a retórica e também a literatura. Definiu, portanto, Lacan o inconsciente freudiano e suas leis pelo modelo da lingüística estrutural.

Para ilustrar o tipo de pensamento estruturalista na apropriação lacaniana através das concepções de Saussure podemos destacar que, para aquele, no tocante ao significante e ao significado, há uma nova estruturação dos papéis humanos que se organizam de acordo com uma lei universal: A lei da ordem simbólica, formalmente idêntica à ordem do significante que se funda sob a primazia estrutural da linguagem. Os princípios da identidade presentes no pensamento dos diversos estruturalistas do século XX têm um eixo comum portanto; qual seja, propor que a realidade é fixada por uma axiomática estrutural, das quais as premissas expressam verdades, que não necessitam de demonstração, pois apresentam caráter tautológico (idênticas a si mesmas). Para GUATTARI (1987) apud JACQUES e colaboradores (2002):

“Pelo princípio da identidade, estabelecem-se a repetição, a previsibilidade e a reversibilidade. A repetição do mesmo se dá porque o modelo, pertencente a um grupo de modelos, funciona como matriz analítico-explicativa de todos os fatos, vistos como homeostáticos. Assim, todos os fenômenos da realidade são esquadrinhados por conjuntos de relações formais. Por identidade, por semelhança, por analogia ou por oposição, os fenômenos são introduzidos na ordem dos códigos universais, atemporais, fundantes e são explicados a partir de determinações. Assim qualquer modificação na realidade é previsível, porque essa mudança só se faz dentro dos limites definidos pela interdependência estrutural das partes em relação ao todo. Do retorno possível aos estados originários resulta a reversibilidade no tempo” (p. 173).

Até aqui nossa intenção foi de explicitar o princípio da identidade. Passaremos agora a tentativa de demonstração de um outro modo de pensamento, centrado no princípio da diferença. Tal princípio, por definição, pressupõe uma mobilidade incessante. Dá-se sempre de um estado para outro numa realidade produzida por fluxos de qualquer natureza, mantendo-se em estado instituinte, mutante. É por definição eterno devir. Não pode, portanto ser capturado por formalizações, enquadramentos, estruturações, pois podemos constatar que tal princípio é avesso à previsibilidade, ocorrendo portanto de forma processual, tendo na composição dos seus elementos, relações de forças fortuitas, ao acaso. Ao acaso também se dá às concatenações de idéias, de códigos, de tempos, de acontecimentos, de velocidades, de trajetórias que se desdobram numa composição imponderável da história, na impossibilidade de repetição das composições, na heterogeneidade das mutações e na irreversibilidade do tempo. De acordo com DELEUZE (1988) apud JACQUES e col.(2002):

“Pensar pelo princípio da diferença é efetuar a relação do diferente com o diferente. É afirmar a diferença. Uma dificuldade aparece: capturado pela representação, o princípio da diferença acaba sendo mediado pelo idêntico, pelo semelhante, pelo oposto, pelo análogo. Torna-se necessário então: 1) desfazer a identidade do conceito e do sujeito pensante, para introduzir a diferença no pensamento; 2) reconhecer as multiplicidades como transformadoras da idéia – feita de elementos e relações diferenciais – para compor a diferença na afirmação (e não na negação); 3) não tornar o diverso como matéria do conceito idêntico, para restaurar a diferença individuante, singularizante”.(p. 173)

Foi este tipo de pensamento que se fundou com Heráclito e os sofistas na Antiguidade grega que passou no pelo século XIX com Friedrich Wilheim Nietzsche (1844 – 1900). Chegando ao século XX com Michel Foucault (1926-1984), Gilles Deleuze (1925-1995) e Félix Guattari (1930-1992), entre outros. Foucault, Deleuze e Guattari propunham a indissociabilidade homem/natureza, afirmando que a produção do mundo se realiza num processo que apresenta diversas e diferentes características. Seria, portanto este processo inclusivo, pois não teria exterioridade possível, seria também mutante, pois se transforma continua e ininterruptamente, é também este processo flexível, pois não há nesta produção determinações prévias; seria fortuita, pois materializaria o acaso e também seria comunicante, pois se daria por passagens, por estados. É assim, um processo segundo FOUCALT (1989) apud JACQUES e col (2002):

“que engendra as multiplicidades pelas quais tudo pode se interpenetrar com tudo – sem hierarquia entre as instâncias individuais, coletivas e institucionais – mudando a natureza do que se vai produzindo. Fluxos de matéria/energia, de relações vazam territórios, aumentam qualitativa e quantitativamente suas conexões, suas disjunções e suas conjunções. Os corpos emergem e se efetuam nesta luta, neste confronto de forças, de velocidades, de composições, neste movimento incessante. Os corpos são, pois, ‘estados’ dos seus movimentos – modos de estar – ‘ superfície de inscrição dos acontecimentos’, ‘volume em perpétua pulverização’, cujos fluxos estão sempre em ‘insuperável conflito”. (p. 173)

Tornar-se humano nesta perspectiva também inclui tornar-se não humano, pois a produção de subjetividade do homem é imanente à produção do mundo. No tocante a subjetividade humana e seu processo, o homem se desfaz em suas multiplicidades, pois estas são heterogêneas dando vários suportes a ele, quer seja no campo físico, biológico, psíquico, verbal, econômico, estético, ético ou mesmo político tendo por proposta que a subjetividade é um produto cultural como qualquer outro. Esta produção cultural humana passa necessariamente também por um embasamento filosófico por parte do psicólogo que deseje atuar ou não na área clínica, pois nosso fazer não pode deixar de buscar a todo o momento o que de humano há em todas as dimensões, e buscar o que de humano há, a nós nos parece, necessitar de um embasamento filosófico não somente enquanto formação acadêmica em psicologia mas também ao longo de nossa atuação profissional, é o que corrobora AUGRAS (2002) ao afirmar:

“...Mas a reflexão sobre o alcance e o limite do nosso exercício profissional dificilmente pode prescindir de um posicionamento filosófico definido. Como tratar o homem, sem questionar o que significa ser homem? Como entender o sentido de nossa compreensão, sem nos interrogarmos primeiro acerca do significado do significado? Como avaliar as peculiaridades de um indivíduo, sem apreender a complexidade da situação do ser no mundo?” (p. 13)

Em decorrência de nosso posicionamento neste capítulo mostramos como a filosofia, desde seu nascimento, tentou dar conta de questões sobre a realidade do sujeito diante de sua subjetividade, e ao realizar tal reflexão, vimos como esta realidade se articulou com a noção de sujeito do conhecimento e o modo que este sujeito apreende e está no mundo, assim como pode a partir de sua reflexão estabelecer novas relações consigo e com o outro.

Ao empreender a tentativa de busca de sentido para o sujeito,vários pensadores propuseram explicações das mais diversas. Destacaremos por hora que, na idade moderna, Jean Jacques Rousseau (1712 – 1778) e René Descartes (1596 –1650) pensaram a subjetividade não como uma condição dada imediatamente ao homem, mas numa situação conquistada pela busca da verdade. Ambos os filósofos entendiam que, para alcançar a instância da subjetividade, feita pela atividade filosófica, seria necessário analisar a própria condição humana. Nesta analise do idealismo cartesiano o homem estaria imerso no erro por uma razão natural; ao nascer criança este homem estaria por algum tempo sem sua razão plena pois esta, estaria no período infantil sob jugo dos seus próprios apetites ou de seus preceptores; ou seja, de seu corpo ou da cultura. Para sair do erro e atingir a verdade Descartes propunha a devoção às meditações que nada mais seria do que fazer com que este homem tentasse se “desfazer” do corpo; ligado à memória/história deste sujeito. Seria, portanto a tentativa de desligamento de seu passado infantil, regido pela imaginação, pelos sentidos ou sonhos deste período de desenvolvimento humano denominado infância.

Descartes via portanto a causa de nossos erros nos preconceitos da infância, sendo necessário à eliminação destes. A saída desta condição que nos leva ao erro necessitaria de uma negação dos juízos que fazemos com base em saberes vindos das sensações, da imaginação ou da própria memória, nos restando, por conseguinte o intelecto. Foi este pensamento a base das Pedagogias intelectualistas que até hoje norteiam a pedagogia tradicional, que nega a participação do corpo, da memória e imaginação das crianças. Esta filosofia cartesiana, portanto basear-se-ia no princípio da realidade, fornecendo por conseguinte as bases da Pedagogia tradicional, que pressupõe um sujeito racional, montando a aprendizagem escolar na figura do professor que detêm o saber. Os procedimentos didáticos correspondentes a essa pedagogia partem do pressuposto de que o ensino depende da organização lógica estabelecida pelo mestre. A educação seria baseada num ser racional e visaria à obtenção do saber por meio da consciência, que comandaria as idéias e os atos dos educandos.

Por outro lado, uma perspectiva que fosse calcada num paradigma da diferença seria a que pensasse a educação que levasse em conta o caráter ontológico do homem; ou seja, este homem que se torna sujeito, situado num tempo e num espaço vivendo em determinada época, em contexto sócio-cultural específico. Um exemplo de uma forma de análise que leva em conta estes princípios é o que apresentado por FREIRE (1987, p, 29-56) em sua obra “Pedagogia do Oprimido”. Neste trabalho a ação educativa, para ser válida, deve ser necessariamente precedida por uma reflexão sobre o homem a quem se deseja educar. Este homem, segundo este autor chega a ser sujeito por meio da reflexão sobre seu ambiente concreto: pois é em decorrência da reflexão sobre sua realidade e sobre sua situação concreta que o sujeito se conscientiza e se compromete a intervir nesta realidade com o intuito de mudá-la.

Por fim cabe salientar que neste trabalho o homem será visto como sendo possuidor de raízes espaços-temporais, ou seja, situado no mundo e com o mundo. É, portanto ser de uma prática, compreendida como ação e reflexão dos próprios homens sobre seu mundo, que com isto podem intencionalmente mudá-lo. Ao longo deste trabalho faremos uma reflexão e análise por viés filosófico que passará pela influência da Psicologia e sua relação ao processo de aprendizagem e a própria aquisição do saber. Neste trabalho também teremos como foco de estudo as práticas de poderes instituídas sobre a criança na escola, mostrando que quando esta porventura deixa de aprender ou sua relação com a aprendizagem sofre alguma perturbação este fato pode estar vinculado a um afastamento deste sujeito da educação com sua própria subjetividade.


RAZÂO E SUBJETIVIDADE E AS POSSIBILIDADES DE CONHECIMENTO

No capítulo anterior, foi possível vislumbrar que de modo geral o pensamento do homem da Antiguidade clássica se desdobrou em várias formas de pensar o saber construído. Neste rápido panorama, analisamos desde o rompimento com o saber mítico iniciado no século VI a.C grego até perspectivas mais “atualizadas”, empreendidas já na segunda metade do século XX. A proposta do presente capítulo é partir do mundo moderno e dentro deste contexto histórico entender quais caminhos percorridos pelo sujeito no tocante sua relação com o objeto sob o viés de algumas perspectivas filosóficas, poderemos assim perceber as possibilidades e desdobramentos nesta relação e entender como esta pode ligar-se a uma determinada prática educacional que pode de acordo com a forma como se pensa esta apreensão do conhecimento pelo homem estabelecer relações de saber-poder que inviabilizem uma educação e uma escola transformadora.

Ao analisar o nascimento da Pedagogia, que surge através das linhas traçadas pela Filosofia Moderna, podemos destacar determinada visão de sujeito relacionada à educação; visão esta vislumbrada por uma Filosofia que em dado momento passa a criticar esta noção de sujeito, bem como a forma como ela percebeu e relacionou-se com esta instância nova oriunda da época moderna: a noção de infância.

Para tentar entender o mundo, o homem grego abandonou os mitos como forma de explicação, inaugurando assim a Filosofia que nasce para responder a seus questionamentos. Através e ao final do capitulo anterior, destacamos que alguns homens da Modernidade, entre eles, Descartes e Rousseau, percebiam a subjetividade não como condição dada de imediato para o homem, mas numa condição de conquista pela busca da verdade. Para ambos os filósofos, para se alcançar à instância desta subjetividade, que se daria pela atividade filosófica, seria necessário a priori, realizar a análise da condição humana. Uma destas análises englobaria também o conhecimento da história das idéias sobre a noção de infância, que passa a ser o elemento central da questão educacional a partir do século XVII.

Inicialmente analisaremos uma tentativa de resposta aos questionamentos da Filosofia moderna sobre o papel do sujeito e sua relação ao conhecimento. Tal empresa teve, em Immanuel Kant (1724-1804), um dos seus idealizadores, tendo este empreendido no campo da Filosofia uma verdadeira revolução, comparável ao que Nicolau Copérnico estabeleceu pelo princípio heliocêntrico, quando defendeu a mudança de paradigma até então vigente que se centrava nas formulações Ptolomaico-aristotélicas, e que constituíam, de maneira geral, os paradigmas que o homem antigo e medievo mantinham em relação consigo e com o mundo.

Estas mudanças, empreendidas por Copérnico buscavam uma nova visão centrada numa perspectiva heliocêntrica, ou seja, o sol seria o centro do universo e os diversos planetas do sistema girariam em torno dele. Kant, portanto, idealizou para esta mudança de paradigma uma metáfora, a saber, de estar realizando no âmbito da Filosofia uma revolução tal qual Copérnico empreendera no âmbito da relação entre os planetas e nosso sistema e o sol. Tal mudança conceitual mudou os pressupostos conceituais sobre a relação sujeito-objeto do conhecimento até então vigentes e marcou para sempre a humanidade através dos grandes avanços tecnológicos possibilitados pela revolução científica que transformou para sempre a humanidade.

Kant acreditava que não seria o sujeito que se orientaria pelo objeto (o real), como afirmava a tradição filosófica que vigorava até então, mas sim que, o objeto seria determinado pelo sujeito. Esta mudança estabelecida por Kant de acordo com MARCONDES (1997) estabelecia novas perspectivas à cerca do conhecimento humana e sua razão:

“A Crítica da razão pura visa, assim, investigar as condições de possibilidades do conhecimento, ou seja, o modo pelo qual, na experiência de conhecimento, sujeito e objeto [ambos grifo do autor] se relacionam e em que condições esta relação pode ser considerada legítima. ‘Sujeito’ e ‘objeto’ são portanto, para Kant, termos relacionais, que só podem ser considerados como parte da relação de conhecimento, e não autonomamente. Só há objeto para o sujeito, só há sujeito se este se dirige ao objeto, visando apreendê-lo”. (p. 209).

A revolução kantiana no pensamento ocidental

A revolução kantiana, empreendida no seio da Filosofia Moderna, alterou de tal forma a direção do pensamento sobre o saber humano, que de acordo com esta perspectiva já não se remeteria a Deus, como para Descartes, mas unicamente se direcionaria a razão humana.

Sua proposta sinteticamente poderia ser descrita como um projeto que objetivava uma substituição da idéia de harmonia entre sujeito e o objeto por um outro princípio, onde haveria a necessidade da submissão do objeto ao sujeito. A faculdade do conhecimento estaria contaminada por uma característica até então nova; ou seja, uma característica legisladora, que apontaria sua seta de potencialidade de conhecimento para o sujeito e não mais para o objeto; em outras palavras, as faculdades mentais convergiriam para o conhecimento/ reconhecimento de um objeto, substituindo uma metafísica do transcendente por uma crítica transcendental que se ocuparia mais dos conceitos do que com os objetos.

A inteligência, portanto, viria assim sempre antes. Destarte a realidade se apresentaria de acordo com tais formulações e que, de acordo com BARROS (1997) “Esta virada não se dá sem importantes conseqüências, já que é a partir das formulações Kantianas [grifo da autora] que a dicotomia sujeito/ objeto se instaura tornando-se o primeiro continente a priori [grifo da autora] de todas as modalidades possíveis de existência” (p. 112).

A primazia do sujeito em relação ao objeto suporia a unidade de cada um dos termos. Uma verdadeira hierarquia entre eles ou ainda o centramento da atividade do conhecimento em torno de um deles. Ainda segundo BARROS (1997):

“Se o sujeito é o que age sobre o objeto para conhecê-lo, ele o faz segundo a crença de que é um ser-em-si, pronto para entrar em contato com seres, também seres-em-si. A relação se estabelece entre dois termos, ficando claro quem [grifo da autora] agiu sobre quem [idem] e a quem cabe fazer as sínteses que organizarão o conhecimento.” (p.112).

Do até aqui exposto, destacaríamos que para Kant, quando se admite a excelência do sujeito sobre o objeto, o que se privilegia na verdade são sistemas hierarquizados, que mantêm canais de transmissão pré-estabelecidos. As mensagens que por ventura são remetidas, o são direcionadas a um centro, ou seja, ao próprio sujeito/ razão, que lhes dará desta forma e significado. A operação kantiana, portanto, quando faz da instância organizadora as experiências, ou seja, o que está “dentro”, configura um sujeito que a priori apresenta uma conformação, no sentido de ter uma forma, sendo, em conseqüência disto, submisso a uma maneira determinada de conhecer que se imporia a qualquer experiência e a qualquer objeto.

O problema do conhecimento, desta forma, passaria a girar em torno do sujeito; ser ativo, centro organizador das coisas do mundo. Sujeito-razão, esta é a origem, portanto da possibilidade do conhecimento para Kant. Para BARROS (1997) “...Os objetos são dados a serem conhecidos pelo sujeito, a serem apreendidos pela razão que, neste processo, avalia o grau de veracidade e atribui legitimidade ao próprio conhecimento adquirido”.(p. 113)

Na perspectiva apresentada por Kant, há uma lógica na apreensão do conhecimento. Poderíamos dizer que inicialmente seria necessário o processamento da descrição do objeto para que, posteriormente, este pudesse ser inserido em determinada categoria definida a priori. Aqui poderíamos vislumbrar uma maneira pela qual o princípio descrito no primeiro capítulo e denominado princípio da identidade estaria sendo utilizado. Este princípio assegura um conjunto de características ou de elementos que passarão a constituir uma categorização instituída logicamente como algo que permanece, que garante, a existência desta determinada categoria, e em conseqüência do próprio objeto.

A partir do momento, que este objeto está inserido numa categorização, passa a estar registrado, conhecido. Mas para que possa permanecer nesta categoria, para que não perca esta identidade, ou seja, para que seja reconhecido quando apresentado ao sujeito, lhe será necessário outro operação: a de exclusão deste objeto. Tudo o que aparece como diferente deve ser retirado ou tratado para que o objeto se enquadre na categoria. É também este processo de categorização um sistema de conhecimento binário, pois para cada categoria, há uma correspondência em plano oposto. Como demonstra BARROS (1997):

“Em cada situação de conhecimento, o objeto é submetido a pares de categorias para que possa ser incluído em uma ou em outra. É como se houvesse uma sentença a ser proferida sobre o objeto:”ou ele é isto ou é aquilo”. Caso o objeto não possa ser categorizado em uma das duas opções, será excluído e ficará à margem, esperando que outra dualidade seja estabelecida para que, novamente, possa ser submetido à prova de identidade garantida pelas categorias. É de se notar que, neste processo, os objetos são submetidos sistematicamente a categorias que se definem pela oposição.” (p. 113)

Como exemplo, poderíamos salientar o caso dos gêneros da espécie humana. Através desta forma de binarização sobre a identificação sexual, parte-se de que ou se é homem ou mulher. Se o ser não puder se incluir em uma ou outra categoria, estaríamos diante de um provável caso de anormalidade, que fugiria da normatização referente à possibilidade de identificação de gênero homem-mulher; ficando por conta disto excluído até que outra categoria se estabeleça; como, por exemplo, um caso de hermafroditismo.

Esta nova categoria é, por conseguinte, estabelecida por derivação do par anterior. Portanto, será a partir de agora, mesmo sendo produto da dualidade homem-mulher apresentado como sendo pertencente à outra categoria. Ainda segundo BARROS (1997) “O que ‘sobra’, o que não consegue ser incluído num primeiro momento, recebe a etiqueta de ‘marginalização’, à espera de uma outra (etiqueta) que seja mais específica para suas características”. (p. 113). Esta lógica de pensamento é denominada de terceiro excluído, pois seu funcionamento é baseado no “ou”, dualidade que divide o mundo em partes contrárias e que lutam a fim de dominar a parte oposta. Nesta relação excluem um terceiro modo de existência.

Dentro desta perspectiva, que ora se apresenta, o objeto seria visto como essencialmente natural, pois é o homem quem possui a faculdade particular da razão, ou seja, atributo essencial e imutável que está repousado sobre os objetos (naturais) do mundo, dando assim possibilidade a este homem de acesso à verdade, ao Bem, à Lei, à Justiça e assim sucessivamente. Segundo BARROS (1997) “...Esta forma de conhecer supõe, portanto um’eu’ definido e assimilado a um outro ser. Ao se pôr o homem no centro do processo do conhecer, cada objeto só é qualificado na apreensão que dele é feita pelo homem”.(p. 114)

Para Kant o par sujeito-objeto estaria, conforme o anteriormente exposto, previamente dado; o sujeito estabeleceria sua primazia e definiria o lugar dos objetos como sendo por ele [sujeito – e concomitantemente por sua razão] legislados. Desta forma não se conheceria o objeto como objetos em-si, tendo outra possibilidade de estabelecimento natural, mas se definiria destarte por apresentar sua legislação estabelecida de forma universal. Ainda segundo BARROS (1997), para Kant a:

“...Subjetividade e objetividade são, portanto, sentidos associados aos termos sujeito e objeto dando a cada um deles lugares hierarquizados e privilégios diferenciados. Ou, ainda, subjetividade e objetividade passam a referir qualidades relativas ao sujeito-sensível, da razão, do desejo - de acesso definido por um conjunto de faculdades, um centro organizador que transcende os objetos. O mundo, cheio de objetos a serem conhecidos, é matéria a ser apreendida. Isto se dará por um processo de construção do sujeito sobre tais objetos. Ao final sempre caberá a ele, á razão, estabelecer a objetividade do mundo.” (p. 114).

A contribuição de Nietzsche

Neste momento, cabe perguntar se somente a razão estabelecida por estes paradigmas kantianos poderia dar conta de toda realidade da relação sujeito-objeto até aqui apresentada ou poderia haver outra concepção do conhecimento humano que escaparia a tais linhas de ação? É em Friedrich Wilheim Nietzsche que encontraremos outra tentativa de resposta formulada sobre o lugar dado à razão no processo de conhecimento. Para este filósofo, o intelecto seria um meio de conservação do indivíduo e a linguagem, na maioria das vezes, seria usada assim como tentativa de expressão adequada de todas as realidades. Em Nietzsche, há a indicação de que a verdade não é uma adequação do intelecto à realidade e que o conceito nasceria da igualação do não-igual. Far-se-ia uma análise extramoral, buscando articular o conhecimento com o nível político-social que o produz, mostrando que a oposição entre o que se denomina falso e verdadeiro teria origem na moral. Contradiz a perspectiva da tentativa de adequação do intelecto à realidade, ou da palavra ao objeto, como se desta relação pudesse advir “a verdade”. Para Nietzsche segundo BARROS (1997):

“...A verdade não vem destas adequações, nem de um sujeito transcendental possuidor de razão, nem de um Deus, transcendente a todos os homens. ‘A verdade’ não existe como dado, ela é construção. Não há, pois, objetos dados e sujeitos construídos a priori [grifo da autora], verdades a serem ‘conhecidas’ ou falsidades a serem reveladas. O que existe, segundo Nietzche, é interpretação dos fatos que, como tal, estará a favor da conservação dos valores (forças reativas), quando estiver afirmando algum tipo de transferência e não a favor da expansão da vida (forças ativas) “ .(p. 115)

A Filosofia representada por Sócrates instaura, segundo Nietzsche, o predomínio da razão, da racionalidade argumentativa, da lógica, do conhecimento científico, da demonstração. A partir de suas argumentações passa a tentar mostrar que o mundo é, portanto, vir-a-ser, e não mundo do ser, como para racionalistas e empiristas [para estes, todos os conteúdos do conhecimento procederiam da experiência, logo, todo o conhecimento humano ficaria encerrado a priori dentro dos limites do mundo empírico], que acreditavam que o sujeito apreende os fatos.

Em contrapartida a esta análise, Nietzsche vê que o Homem e o mundo são partes de um mesmo processo, sujeito e objeto sendo portanto criações deste mundo que se configuraria infinito, encerrando infinitas interpretações. Mediante cada configuração de forças, o mundo se organizaria de acordo com determinada perspectiva. Em Nietzsche, o conhecimento seria efeito, que se daria tanto sobre o objeto quanto sobre o sujeito, ou seja, o conhecimento para este autor não se daria pela soma das diferentes perspectivas, pois o mundo se apresentaria não num sistema integrado, mas em processo. Sujeito e objeto, portanto, estariam numa interação, numa processualidade, com as práticas determinando os objetos.

Por conseguinte, se estas práticas forem determinadas pelos sujeitos, não estaríamos incorrendo no estabelecido pelo princípio da identidade, pela razão ou por uma perspectiva centrada a partir do sujeito? Ou ainda, ao viabilizar a processualidade existente entre Sujeito e Objeto, estaríamos demonstrando que a prática seria uma espécie de instância, de primeiro motor desta relação?

Para tentar responder a tais questões ora apresentadas, partiremos do pressuposto de que estas práticas são viabilizadas por pessoas, seres humanos. Destarte este fazer, segundo BARROS (1997), “...é produto de forças em luta permanente, configurando determinadas condições sócio-histórico-políticas ”(p. 116).

O que determinada crença num objeto natural pode fazer é mascarar o caráter heterogêneo das práticas humanas. Para cada prática haveria seu correlato de certos objetos, ou formas de objetivação bem como para certos sujeitos ou modos de subjetivação. Entraria em cena as práticas em si e seus correlatos que desta forma seriam construídos, historicamente datados. Ainda segundo BARROS (1997):

“A realidade não está, portanto, repleta de objetos para serem conhecidos, decodificados por um sujeito que lhe transcenda. Ela é feita de modos de iluminação e de regimes discursivos. O saber é a combinação dos visíveis e dizíveis de um estrado, não há nada antes dele, nada por baixo dele.” .(p. 116).

Numa perspectiva que leva em conta a exclusão e a individualização entre o Sujeito e o Objeto sem levar em conta a construção do saber através de práticas discursivo-dialógicas, só existiria uma apreensão do conhecimento humano através da dissociação do Sujeito em relação ao Objeto, ou seja, quando estes se tornam séries separadas; que então “entrariam em relação”. Haveria desta forma um tipo de relacionamento construído posteriormente.

Quando pensamos que os objetos não se esgotam naquilo que apresentam, mas que em seu entorno haveria um todo, corroboramos a afirmação de BARROS (1997) sobre esta relação, onde haveria:

“...um campo de virtualidades a ser efetuado, outras formas para se conectarem, que os modos como estão sendo vistos/ apreendidos estão configurados num campo histórico específico, podemos admitir que ao invés de eles serem apreendidos por um sujeito, há uma” apreensão” que os constitui (ao objeto e ao sujeito). Melhor dizendo, é a relação que constitui sujeito e objeto de tal ou qual maneira; eles são determinados a cada relação”.(p. 117)

Em síntese, podemos afirmar que é através desta perspectiva da processualidade, assim como pelo desaparecimento de sujeitos e objetos como seres-em- si, tal como a teoria do conhecimento de modo geral a vê, que nos possibilitaria outra visão a cerca desta relação. Assim estes acontecimentos comporiam uma nova maneira de entendermos como se relacionam sujeito e objeto. Tendo agora como perspectiva a noção acima descrita, podemos a partir do ponto de vista relacional e processual entre sujeitos e objetos, afirmar que não podemos estabelecer qualquer tipo de hierarquia ou de determinação de um sobre o outro.

A perspectiva da compreensão da realidade

Estabelecer como primado o relacional, nos força a pensar num outro plano. Este habitado não por sujeitos e objetos individuados; mas “modos de individuação” que não procedem nem de objetos nem de sujeitos. Passam a ser estas instâncias algo que tem um novo olhar - o olhar da consistência, como perspectiva onde ocorrem linhas de intensidade, corpos informes e objetos incorporais. Este olhar basicamente se daria através e, pelos fluxos, onde não haveria assim extremidades onde se pudesse determinar o “início” ou o “fim” de algo. Para BARROS (1997) “...Quando pensamos os fluxos só vemos o meio, o entre, pois só temos acesso ao efeito do encontro dos corpos, às conexões que os fluxos estabelecem entre si”.(p. 117).

A razão demonstrou através das certezas de que somente ou preferencialmente através da apreensão do objeto por parte do sujeito se consolidaria o conhecimento, e deste processo se poderia ir representando, formando cadeias de signos, hábitos, ou ainda iluminando os objetos para que estes fossem apreendidos através da consciência, ou seja, percorrendo um caminho pelo qual a razão seria aquela que possibilitaria enfim a, e não uma, apreensão do conhecimento.

Através da perspectiva da processualidade estamos assumindo neste trabalho outra posição que passa por outro plano, onde o engendramento tem caráter permanente. De acordo com o mesmo autor (1997) ”...Não há, aí, [segundo a perspectiva da processualidade] um eu-sujeito pré-determinado nem um outro-objeto pré-existente, mas "eus" informes e múltiplos que se constituem em pontos-signos e irrompem no plano da atualidade.” (p. 117) O que anteriormente levava em conta a exclusão e a individualização ente Sujeito e Objeto e apresentava como seu corolário a binarização, anteriormente explicitado, deixa portanto de existir. Não poderemos mais falar de Sujeito ou Objeto, mas sim processo, seqüências de operações que levariam sempre a outras seqüências. Vemos que não mais estaríamos frente a relações onde um termo seria determinado pelo outro, teríamos sim uma rede de conexões que não pararia de se fazer e refazer. O acesso que temos a estas conexões é marcado pelos recortes que fazemos, caracterizando-se também esta nova modalidade de relação sujeito-objeto, sem os anteriores questionamentos do tipo de onde viria ou o que causaria, ou ainda qual seria o fundamento da relação; mas poderíamos agora passar a nos questionar também como se estaria operando esta nova produção de conexões.

A partir deste parágrafo passaremos a diferençar alguns pontos discutidos neste capítulo e que por ora devem ser melhor explicitados. Buscaremos mais uma vez a origem da discussão presente neste capítulo nas concepções estabelecidas por Platão sobre a identidade dos seres, pois este filósofo afirmou uma divisão do mundo em dois modelos: o das essências e o das aparências. O primeiro seria para ele o modelo para o segundo. O mundo das idéias, na perspectiva platônica, seria acessado por poucos, a saber – os filósofos, especialmente. Aos demais homens, que habitariam o mundo das aparências restaria perseguir o destino de “ser” tal qual o mundo das essências, identificando-se com suas características, copiando suas perfeições. Estas tarefas seriam as que estaria submetido o homem comum, sem, no entanto, segundo Platão jamais alcançar êxito. Para BARROS (1997):

“O mundo das aparências – cópias (imperfeitas) dos modelos (originais) presentes no mundo das essências – era um mundo de pretendentes. Identificar-se com os modelos era o almejado, o desejado acima de qualquer coisa. O mundo das aparências era, então, um mundo de máscaras que deveriam ser ‘tiradas’ para se chegar às ‘verdadeiras essências’. Aí se encontraria A Verdade, A Origem, O Bem, A Justiça, etc.” [grifos da autora]. (p. 118).

Gilles Deleuze, um outro filósofo contemporâneo, ao analisar o modelo platônico de explicação do mundo, nos afirma que a divisão empreendida seria necessária para se ordenar o “caos” que habitava o mundo das aparências. Ainda segundo sua proposição afirmou que apesar de Platão traçar de modo bastante singular a divisão entre o que seria o sensível (ou mundo material) e o que seria o inteligível (as essências) esta dualidade não se configuraria como única do modelo platônico. Para Deleuze (1998) apud SCHÖPKE (2004, p. 55) “a motivação mais profunda do pensamento platônico é revelada não na divisão entre o mundo modelar e mundo das cópias, mas na demarcação entre as cópias bem fundadas e as cópias mal fundadas (os ‘simulacros’)”. Destarte o motivo platônico da teoria das idéias deveria ser buscado do lado de uma vontade de seleção, de filtragem destas perspectivas.

As cópias se contraporiam aos simulacros no sentido de que a idéia das primeiras estaria garantida pela sua semelhança aos modelos originais e os segundos estabelecidos como falsos pretendentes, feitos por dissimilitude. Por conseguinte o simulacro seria uma má cópia que não se estabeleceria sob o critério da semelhança. As boas cópias semelhantes aos modelos originais, portanto, assegurariam uma ordem, uma hierarquia. As cópias assim ficariam sob controle, pois almejavam os modelos e com eles procuravam se identificar. Portanto sua identidade seria assegurada por sua semelhança com os originais. Mas poderíamos a partir de agora nos questionar, o que escaparia a esta ordenação e a esta hierarquização? SCHÖPKE (2004) nos traz um esclarecimento sobre isto quando afirma que “...Na verdade o simulacro não é uma cópia de uma cópia, ele é a própria negação da cópia. Ele é a negação do modelo”. (p. 55) É por dizer- se simulacro, ou seja, uma imagem sem semelhança diferenciando-se da cópia, pois esta, é uma imagem que apresenta em sua “estrutura” à vontade de ser como o original.

Pelas apreensões feitas acima o que nos possibilitaria o simulacro e seu mundo de “máscaras”? Pois como vimos, poderíamos dizer que se a cópia é uma imagem dotada de semelhança, o simulacro seria assim uma imagem sem semelhança. De acordo com BARROS (1997) portanto teríamos outra linha de funcionamento pois:

“ ...Que a dualidade entre essência e aparências, como de resto todas as dualidades, só cabe quando acreditamos em valores universais. Os movimentos efetuados pelo simulacro estabelecem uma outra ordem – a que escapa o tempo todo dos modelos, a que faz desabar as hierarquias. O que o simulacro nos indica como modo de funcionamento é a simulação, maquinaria intempestiva que torna impossível a fixidez, que convida a um nomadismo sem fundamentos, sem origens, sem identidades [grifo da autora]”. (p. 119).

Mas será que esta perspectiva nos levaria a pensar uma nova relação com o objeto observado? Para onde nos levaria o simulacro? Tal perspectiva nos aponta para a desnaturalização dos objetos e das práticas, apontando para o fim da crença de que seria possível estabelecer um conhecimento de algo, sem a apreensão dos seus movimentos e proveniências históricas. Tal perspectiva nos aponta também não mais para a criteriosa dualidade sujeito-objeto que privilegia a identidade, abstrata e universal, mas nos mostraria uma desnaturalização, dada pela possibilidade de uma subjetividade que se torna desta forma múltipla e processual. Para BARROS (1997) “A desnaturalização implica, ainda, não apenas a historicização, a contextualização político-social onde se engendram as práticas, mas a geografização, um acompanhar as linhas que se deslocam, se compõem na montagem das subjetividades”.(p. 119)

Vimos até o presente que a identidade (caracterizada por sua qualidade de ser como o original) passa a ter uma tendência a nos fixar na apreensão do conhecimento. Fixando, produz outros efeitos: a inclusão, a exclusão (pela binarização, por exemplo), a categorização e a disciplinarização. Destarte imobiliza e “prende”, de forma unitária, a multiplicidade que caracteriza a subjetividade.

A subjetivação e seu modo de produzir/ acionar determinados processos, possibilitaria a constituição da própria subjetividade. Esta não se confundiria com uma possibilidade já dada, uma possibilidade em-si, uma transcendência. Resultaria na verdade de processos que tanto podem construir certos objetos quanto “conformar” modos de existir. Assim ao nos referirmos a modos de subjetivação, estamos neste trabalho tomando-o em seu sentido intensivo, quer seja pela sua possibilidade, de, a cada momento da história onde prevalecem determinadas relações de poder-saber produzir objetos-sujeitos, necessidades e desejos. É portanto ethos da subjetividade mostrar que o indivíduo é apenas um dentre as diversas e várias formas de subjetividades possíveis. Para BARROS (1997):

“...A noção de subjetividade, portanto, é mais ampla, abarcando conjuntos pré-pessoais (sistemas perceptivos, de sensibilidade etc.) e extrapessoais (sistemas maquínicos econômicos, tecnológicos, ecológicos etc.). Sendo as subjetividades produzidas, a cada momento da história, dadas certas conjugações de forças, alteram-se os desenhos até então configurados.” (p. 120)

Esta subjetividade terá lugar marcante na educação e em sua relação com a infância e a criança, bem como no papel que esta empreende com a escola. Devemos estar atentos as nossas práticas, pois como veremos a seguir a escola, em contrapartida a seu discurso formal de lugar de transformação e crescimento, estabeleceu uma relação de disciplinarização, hierarquização, dominação e docilização efetivando-se muitas das vezes como local que não ensina, tendo como auxiliadora muitas das vezes as práticas e discursos que a Psicologia e a Pedagogia empreenderam em nosso país.

SOBRE A INFÂNCIA E PRÁTICAS EDUCATIVAS NA EDUCAÇÃO.

Ao longo deste trabalho, explicitamos algumas formas de se pensar o conhecimento e suas conseqüências para sua apreensão no pensamento ocidental. Quais foram alguns de seus principais norteadores, seus desdobramentos através da análise das idéias de alguns filósofos, e quais conseqüências destes pressupostos possibilitaram o estabelecimento da relação entre sujeito, objeto e a apreensão do conhecimento.

Destarte neste capítulo faremos uma ligação entre o exposto até o presente e o papel da criança frente à educação (e a escola em nosso país) assim como empreenderemos uma análise da relação da escola com este sujeito do conhecimento em sua subjetividade no tocante ao lugar que ocupa. Partiremos do processo de urbanização e industrialização e do aumento da demanda sobre a escolarização das crianças, fato que acarretou, no que concerne à questão brasileira, uma determinada perspectiva de olhar a escola sobre o fracasso escolar, tema que será mais detalhadamente exposto ao final do capítulo.

Ao Introduzirmos esta temática retornaremos as idéias e pensamento do filósofo francês Descartes sobre como o homem chega à razão. Para este filósofo, o ser humano estaria imerso em erro desde seu nascimento e assim durante longo tempo de sua vida, mais especificamente no período da infância e da adolescência (instância esta recente no pensamento ocidental) poder-se-ia dizer que a razão estaria sob o jugo dos ditames dos pais, ou dos cuidadores; ou seja, sua razão estaria tutelada a um outro corpo e/ou também pela cultura. Para que o homem saísse deste erro, com o fito de atingir a verdade, a proposta cartesiana seria a ascese das meditações, para que pudesse se desfazer desta corporalidade (ligada, segundo ele, a memória e a história) desligando-se assim dos devaneios infantis (imaginação, sonhos, sentidos etc.).

Análise Cartesiana para o nascimento do conceito de Infância.

Descartes analisou os erros humanos provenientes deste período “mais primitivo”. O homem teria de se descartar da sensação, imaginação e memória, instâncias ligadas a esta fase “inferior”, e substituí-la, portanto, pelo intelecto. Curioso é perceber, no entanto, que a partir do momento de criação da noção de infância, aparecem também mecanismos para eliminá-la. Corroboramos o que afirma BOSSA (2005), sobre estes mecanismos na questão do sintoma na prática escolar:

“Ora, o sintoma na aprendizagem escolar, enquanto sintoma cultural, diz respeito ao aniquilamento da infância pela escola, que não é pensada do ponto de vista das necessidades da criança, e tampouco sabe o que é a criança, visto que lida com a criança real, como se fosse a ideal, a desejada, negando suas verdadeiras demandas. Ora, o que de tão assustador o adulto vê na criança que não lhe permite sua existência?” (p.12)

Para o historiador das mentalidades Philippe Ariés que dedicou em suas análises ao estudo da noção de Infância em vários contextos sociais, particularmente, o medieval, é possível entender que, de modo geral, o lugar assumido pela criança e a família foi bastante diverso do papel que a criança ocuparia na sociedade industrial moderna. Na primeira, a criança mal era vista; como nos demonstra ARIÉS (1981): “A duração da infância era reduzida a seu período mais frágil, enquanto o filhote do homem não conseguia bastar-se; a criança, então mal adquiria algum desembaraço físico, era logo misturada aos adultos, e partilhava de seus trabalhos e jogos” (p. 10). Haveria, portanto dentro deste contexto histórico uma lógica familiar bem diferente da atual, pois a socialização infantil no mundo medievo não era controlada pela família. Sua educação era garantida pela aprendizagem que se disponibilizava entre os próprios adultos. Somente por volta do final do século XVII e início do XVIII é que ocorrem mudanças consideráveis na organização familiar e no lugar assumido pelas crianças neste contexto educacional, surgindo à instituição escolar, nos moldes gerais como a conhecemos hoje.

A escola passou portanto a substituir a aprendizagem realizada na convivência com os adultos que caracterizava a relação pedagógica das crianças do mundo medievo. Cabe ressalvar que esta nova formação de organização familiar, surgida no esteio da industrialização e urbanização terá como modelo principal à família nuclear burguesa. No entanto, tal fenômeno não se deu num mesmo tempo, de uma mesma forma, em todos os lugares e em todas as famílias, pois com a organização desta nova sociedade foram instituídos distintos segmentos sociais, e em conseqüência, distintas famílias, infâncias e também diversificados processos educativos. ARIÉS (1981) nos apontam que:

“A criança deixou de ser misturada aos adultos e de aprender a vida diretamente, através do contato com eles.(...) Começou então um longo processo de enclausuramento das crianças (como dos loucos, dos pobres e das prostitutas) que se estenderia até os nossos dias, e ao qual se dá o nome de escolarização.” (p.11)

Ainda segundo ARIÉS (1981) a separação das crianças do mundo dos adultos, apartadas destes com o nítido fito de serem levadas ao conhecimento e as práticas intelectualizantes, além de reduzirem os períodos destinados às brincadeiras, proporcionaram à escola e a seu novo modo de transmissão de conhecimento, de forma geral, um lugar de preparação da criança para a vida adulta. Este enclausuramento foi preconizado por um movimento moralizante que se iniciou com os reformadores católicos e protestantes junto às igrejas, bem como se viabilizou também por diversos reformadores das leis ou do Estado, como no caso português acerca das diversas modificações estabelecidas pelo Marquês de Pombal que se refletiram inclusive no Brasil-Colônia na segunda metade do século XVIII.

A Infância e o mundo moderno.

Preparado o cenário proporcionado pelo advento da Idade Moderna e da “revolução industrial”, iniciava-se uma nova configuração sentimental da família, algo diferente do que até então ocorria naturalmente no mundo medieval: o ambiente familiar passaria a ser o lugar da afeição, marcando através deste sentimento à relação entre pais e filhos que passava a se materializar com a importância que os primeiros deveriam dar a educação dos segundos. A organização nuclear burguesa em seu nascedouro moldar-se-á em torno da criança e de todo um aparato com vistas a realizar uma revolução escolar e sentimental, seguida de uma redução voluntária da natalidade que se observará principalmente a partir do século XVIII.

Percebemos, assim, que a criança nem sempre foi compreendida como ser diferenciado do adulto, pois a partir desta nova organização, e das novas formas de relações produtivas introduzidas pelo capitalismo nascente passa a ocorrer uma distinção da criança no seio familiar, bem como em termos sociais. Antes do advento da família nuclear burguesa havia a falta de separação entre infância, adolescência e vida adulta da forma como conhecemos e reconhecemos hoje; com papéis, direitos e lugares demarcados com certa nitidez, tal como ocorre em relação à criança e ao adolescente em nossos dias, com a garantia de seus direitos legais e constitucionais especificados na forma de leis para sua proteção, como o atual Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

No mundo medieval, a regulação e diferenciação de um lugar com base numa noção de infância ou de adolescência praticamente não existiam. Até mesmo não se acreditava que uma criança pudesse conter dentro de si a personalidade de um homem adulto. A família medieval, em traços gerais, baseava-se em outros pressupostos que se referenciavam mais pela tradição às gerações precedentes com a valorização muito maior aos antepassados, do que às gerações futuras. Inúmeros poderiam ser os desdobramentos desta assertiva, que no entanto, escapariam ao escopo deste capítulo, mas por hora sem dúvida alguma um dos fatores que contribuíram para esta tradição seriam as péssimas condições de higiene que acarretavam altas taxas de mortalidade infantil, por exemplo.

O conceito de criança é um construto histórico, que se modificou ao longo das eras, passando a partir de determinado momento a viabilizar distintos sentimentos no tocante à relação família-infância. Para ARIÉS (1981):

“Com o advento da modernidade, a família burguesa foi, aos poucos, recolhendo-se à vida privada, organizando-se em torno de si própria, retirando as crianças do mundo de aprendizagem com os adultos, na vida pública, e levando-as para dentro de casa. A partir daí, os pequenos passaram a ser alvo de preocupação e a família organizou-se para cuidar de sua educação e saúde. A CRIANÇA, o nome que se lhes deu, representou o surgimento de um novo sentimento: o relativo à infância.”.(p. 56).

A partir dos séculos XVI e XVII há reações cada vez mais exteriores à família no sentido de disciplinar a infância, corrigi-la, dar-lhes uma racionalidade, uma moral e costumes infantis, sempre desencadeados na crença dos pensamentos ligados a religião, as ciências e as leis universais que ora se estabeleciam. Tudo isto objetivava a transformação das crianças, em adultos responsáveis; moralistas e educadores passam a combater a “paparicação” promovida pelas famílias modernas pregando um tratamento baseado na razão, que deveria ser estabelecida e que estaria em consonância com os ideais iluministas e racionais que condenavam severamente este comportamento. A “paparicação” não viabilizaria, de acordo com estes pensadores ligados a lei, ciência ou a religião a superação da fase infantil, mas somente sua permanência neste período de “pré-racionalidade” cartesiana do desenvolvimento humano.

Uma destas proposições calcar-se-ia na interpretação de Descartes sobre a manutenção do comportamento de “paparicação” como uma verdadeira derrota da filosofia. Derrota esta no sentido de ser a infância uma fase de maculação da razão, pois como no início para este filósofo, tal fase da vida humana seria obstáculo à aquisição do verdadeiro conhecimento. Segundo BOSSA (2005):

“O entrelaçamento das expressões ‘criança’ e escola está vinculado a mecanismos de controle e práticas disciplinares, com vistas no exercício do poder e na produção de um saber sobre a criança. Ela é considerada um ser em desenvolvimento, que deve ser escolarizada, disciplinada, preparada para ser eficiente. Nesse sentido, a produção de saberes com vistas no exercício do poder sobre a criança tem função normativa. A Psicologia e a Pedagogia colocam-se como saberes constituídos, autorizados e especializados sobre a infância e contribuem para a disseminação da idéia de uma ‘criança normal”’.(p.18).

A partir desta nova perspectiva, a criança passa por outro “filtro” de olhar; espera-se que sejam e tornem-se a “semente do amanhã”. Portanto serão a partir de então educadas para a obediência a um conjunto de regras de conduta, que terão o intuito, tão somente de transformá-las em um adulto racional e honrado que possa contribuir e responder adequadamente ao solicitado por esta nova sociedade que emerge. Tal solicitação será feita por esta nova ordem social, pelo capitalismo ascendente que se autonomeia libertador de um mundo de diferenças individuais estabelecidas pelo poder monárquico e absoluto que em confronto com o primeiro perdeu seus espaços [e várias cabeças!].

Esta nova ordem social estabelece portanto novas formas de controle, não mais o controle absoluto e geral; mas sim, observando e detalhando cada comportamento. Para BARROS (1997. p.121) tal ordem passa a ...”Prevenir, vigiar, punir, acompanhar cada gesto em sua (im)prudente expressão”, seria o corpo a partir de agora alvo desta observação, é o corpo que passará a ser cada vez mais submetido, regulado, enquadrado, incluído em categorias [através das sistematizações descritas no capítulo anterior], com o fito de tornar-se, produtivo. Este conjunto de regras é o que fundamentalmente se denominará disciplina, que estará indubitavelmente atrelado à noção de educação e de escolarização.

Os estudos que Michel Foucault (1977) empreendeu sobre as práticas disciplinares, entre as relações do poder e o saber, dentre outros, viabilizarão as análises a partir de agora desenvolvidas, pois foi possível a partir de seus estudos entender como na sociedade ocidental do século XVIII, com uma normatização e obediência a um conjunto de regras de conduta já descritas, foi possível a disseminação por toda a estrutura social moderna de uma relação de reciprocidade com a produção de saberes praticados, normatizados e institucionalizados na escola. As análises Foucaultianas possibilitaram um rigoroso e extenso estudo do poder sobre os corpos institucionalizados viabilizando entender quais tipos de saberes se estruturaram sobre estes corpos, bem como nos mostraram de que forma este saber passou a produzir relações de poder.

Análise foucaultiana sobre as práticas disciplinares.

A disciplina é analisada por Michel Foucault (1977) como um tipo específico de poder sobre os indivíduos, o que se constituiria para ele como o “poder disciplinar”, tipo de exercício que se dá mediante métodos e estratégias que efetuam o controle do corpo, realizando a sujeição das forças, impondo uma relação de utilidade e obediência. Destarte para este filósofo quanto mais disciplina, mais obediência, mais eficiência, mais poder, mais saber, mais disciplina...de acordo com FOUCAULT (1977) apud BOSSA (2005), “um corpo disciplinado é à base de um gesto eficiente”. (p. 18) Não é portanto a escola o local precípuo dos gestos eficientes? As análises foucaultianas sobre estas práticas disciplinares sobre os corpos, principalmente, sobre o da criança, será o eixo do presente capítulo. À medida que a modernidade da sociedade capitalista avançou, sem dúvida trazendo enormes avanços tecnológicos, trouxe consigo um saber sobre a criança, além é claro de viabilizar uma forma específica e diferente de lidar com ela, em relação ao período histórico anterior. Foucault, em suas análises, evidencia essas transformações de uma forma crítica e do ponto de vista do poder disciplinar sobre a criança.

A escola surge como espaço reservado à especificidade da construção histórica denominada Infância, para isto utiliza como método o controle disciplinar. Corroboramos mais uma vez o que BOSSA (2005, p. 18) afirma quando diz que “A ‘criança diferenciada do adulto’ emergiu como objeto do saber e como diferença a ser isolada e controlada, e a escola como espaço de exercício de controle disciplinar e de elaboração de um saber sobre a infância”.

Ao nos depararmos com a Modernidade, vai-se tornar necessária à implementação de dispositivos que ora viabilize um novo sujeito; e a escola deverá responder portanto a este chamamento. Tal resposta virá através do estabelecimento de currículos e seriações, na classificação por idades, na implementação de mecanismos avaliatórios que destacarão certa “verdade” pré-concebida. Em contraposição, a estas viabilizações haverá a criança que, não estando de acordo com as tais normatizações será diagnosticada, discriminada pelo seu comportamento diferenciado, ou seja, será então “rotulada” como a criança que fracassa.

No interior da escola ocorrerão procedimentos que visarão ajustar as crianças às regras, lhes serão impostos mecanismos de controle que segundo FOUCAULT (1977) apud BOSSA (2005) se configurarão através da: “micropenalidade do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), da atividade (desatenção, negligência, falta de zelo); da maneira de ser (grosseria, desobediência), dos discursos (tagarelice, insolência), do corpo (atitudes ‘incorretas’, gestos não conformes, sujeira), da sexualidade (imodéstia, indecência)”.(p. 18)

Através de sua falta de razão, assim como para os loucos e os criminosos, a criança terá na escola o lugar de sua transformação em um adulto “são”, “normal” e racional que estará portanto, de acordo com uma perspectiva cartesiana, se transformando em um indivíduo apto e capaz de responder adequadamente ao solicitado, através da obediência e acatamento as regras sociais impostas pelos adultos. Ainda citando BOSSA (2005):

“O poder disciplinar institui a norma: à medida que hierarquiza, regulamenta, padroniza, distribui lugares, normaliza. Assim, leva a uma homogeneização do corpo social, criando regras para impedir os desvios, ajustar as diferenças e produzir as individualizações. A criança, concebida como desprovida de razão, passou a ser mensurada, treinada, classificada e normatizada.” (p 19)

A escola irá portanto empreender um grande esforço no sentido de viabilizar tal intento. Esta empreitada destarte terá a colaboração de várias especialidades, dentre as quais os pedagogos, psicólogos e assistentes sociais, dentre outros, que irão ocupar-se desta criança. Estabelecerão parâmetros comportamentais com rigor dito científico, que possibilitarão o esquadrinhamento do espaço e do tempo; possibilitando que a escola caminhe rumo ao sucesso, a utilidade e a produtividade almejada. Para BARROS (1997):

“...Para que o corpo e o tempo dos indivíduos possa ser integrado ao aparato de produção, foi preciso o desenvolvimento de toda uma tecnologia de poder tendente ao crescimento, à gestão, à saúde e a administração da vida. Requereram-se esses mecanismos de bio-poder tendentes a garantir o aumento das forças e das aptidões.” (p.121)

Os psicólogos, em especial, usarão para isto a observação, o controle e os testes psicológicos. Se a norma como vimos é, a partir de dado momento, o referencial a ser buscado, terá em dado momento na história da Psicologia a busca dos desvios como principais objetos de estudo e controle. O que até agora foi exposto traz como conseqüência deste mecanismo disciplinar dentro da escola outro parâmetro a ser considerado: a exclusão.

As crianças que não se adaptam ou não conseguem uma “formatação” às regras estabelecidas de obediência, disciplina e racionalidade que foram estabelecidas, passam a ser vistas como fora da norma ou do sistema educativo-normatizador. Serão genericamente denominadas de anormais [aqueles que estariam fora ou na contramão da norma]. A homogeneização infantil da organização familiar e escolar da sociedade burguesa retira da criança sua potencialidade de diferenciação, pois se ela é diferente em algum aspecto ocupa o lugar de exclusão e de desviante, caracterizando a produção de uma infância indisciplinada, anormal, delinqüente e deficiente.

Esta idéia de infância desviante que precisa ser assistida, controlada e disciplinada será tema dos estudos da Psicologia e a da Pedagogia que buscarão diversas respostas para o “fracasso escolar”. Destarte a escola através destes dispositivos disciplinares passa a operar numa divisão na instituição infantil, estabelecendo a infância normal (que aprende) e sua antítese, a infância anormal (aquela que fracassa, que não aprende os conteúdos, que poderá estar destinada a repetir e a evadir, deixar a escola sem ter se alfabetizado).

Alguns modelos educacionais brasileiros.

O modelo de política de educação no Brasil iniciou-se com base em paradigmas oriundos de outras sociedades; notadamente, européia e americana, além é claro de estar calcada fundamentalmente pelo viés religioso de cunho católico predominante nos colonizadores portugueses que trouxeram sua religiosidade atrelada à prática educativa.

Somente em fins do século XVIII, puderam os portugueses ampliar sua política educacional para uma lascização do ensino. Mesmo após esta lascização, os jesuítas, principalmente, mantiveram em grande parte os encargos educacionais (que detinham desde o período colonial) em nosso país. Tais práticas pedagógicas eram atreladas prioritariamente ao ensino da leitura, escrita e operações matemáticas elementares, no concernente aos estudos iniciais estes eram realizados na própria colônia em determinados conventos, seminários e etc. Mas no tocante a estudos superiores, as famílias mais abastadas tinham por hábito mandar para o exterior seus filhos com o intuito de que estes completassem seus estudos em universidades (principalmente em Portugal).

Após este panorama destacamos que a educação em nosso país somente muito recentemente toma características de atendimento a todos os cidadãos. Podemos dizer que ao final do século XIX e início do XX as concepções pedagógicas ainda estariam calcadas em preceitos tradicionais oriundos de períodos históricos anteriores, no entanto, agora com a influência do sistema liberal mundial, que preconizava que as aptidões humanas seriam atributos naturais dos indivíduos, e que em conseqüência, as diferenças entre estes se davam de forma“natural”. Tal perspectiva era preconizada tanto entre os indivíduos quanto às classes “superiores” e “inferiores”. Portanto tais diferenças “naturais” se reproduziriam também na forma do ensino-aprendizagem tradicional, cabendo a escola liberal, o “clássico” ofício de ministrar os conteúdos necessários; destarte se isentando, de possíveis fracassos daqueles menos aptos ou “adaptados” as demandas que se faziam necessárias.

Tal linha de pensamento alicerçava as desigualdades individuais bem como as sociais, estabelecendo o que ficou conhecido genericamente como “Darwinismo Social”. A Psicologia também tentava obter, através do embasamento dado por pesquisas empíricas, uma metodologia que contribuísse para as questões que surgiam sobre a inteligência humana e seus desdobramentos na educação, questões voltadas para testes de mensuração de coeficiente de inteligência (QI), entre outros, retratadas, por exemplo na escala Binet-Simon que foi introduzida por médicos brasileiros em nosso país para utilização em criança com dificuldade de aprendizagem já na primeira década do século XX. A partir deste dado, pode-se de certa forma, entender como até mesmo em nossos dias continua sendo grande a influência das explicações organicistas nos meios educacionais brasileiros, no tocante a determinação dos problemas de aprendizagem existentes em crianças.

Com o processo de industrialização em marcha no país iniciada na década de trinta no governo de Getúlio Vargas e especialmente impulsionada durante e pós-guerra, faz-se necessário à formação de uma nova mão-de-obra mais qualificada que aquela que atuava na área agrícola que contava ainda em sua grande maioria com trabalhadores semi ou mesmo analfabetos. Este Brasil recém industrializado exigiria mais e mais um operário especializado e alfabetizado que necessitaria portanto de uma maior escolarização. Tais práticas coadunavam-se com as idéias liberais que evocavam o sonho de uma sociedade igualitária regida pelos princípios de identificação e promoção dos indivíduos mais capazes, independentemente de sua origem étnica ou social. Nesta perspectiva, o indivíduo que obteria maior sucesso seria aquele que estaria mais “apto” e de certa forma mais capaz de responder às novas demandas do sistema liberal.

O avanço do capitalismo mundial como forma hegemônica de modelo econômico se coadunava com o pragmatismo americano, que influenciou fortemente algumas ciências. Dentre elas a Psicologia, que foi chamada também a subsidiar as escolas numa justificativa de acesso desigual dos alunos a graus mais avançados, tendo em vista suas características individuais. Dentro deste contexto no entanto a Psicologia passou a reforçar a ascensão social daqueles julgados mais capazes em detrimento daqueles que, por suas próprias características, apresentavam determinado grau de dificuldade ou ritmo próprio no processo de aprendizagem. Assim, segundo certo tipo de orientação pragmática à época, tal ou qual criança seria mais ou menos capaz de aprender determinado conteúdo tendo em vista sua capacidade cognitiva, demonstrada principalmente através de testes psicológicos padronizados e tendo em vista determinado modelo de Psicologia do desenvolvimento, que também foi chamada a responder a estes questionamentos.

A Escola Nova: Uma nova política de educação para o país?

Pouco a pouco, no entanto, como vimos anteriormente, esta visão tradicional passa a dar lugar a uma nova perspectiva: A Escola Nova, norteou a política da educação no país dos anos vinte aos anos sessenta do século XX, e que segundo SCOZ (2004):

“... Buscava respostas para problemas educacionais brasileiros em experiências educativas já consagradas nos Estados Unidos e em países da Europa, baseadas numa nova concepção de infância, que reconhecia a especificidade psicológica da criança, em contraposição aos pressupostos filosóficos e psicopedagógicos do ensino tradicional”.(p. 21)

A proposta escolanovista enfatizava a necessidade de uma pedagogia coerente com a natureza humana; ou seja, os processos individuais que ocorriam na aprendizagem seriam interessantes somente à proporção que facilitassem a tarefa pedagógica e propunham, em linhas gerais, o desenvolvimento ao máximo das potencialidades humanas.

De certo modo estes novos pressupostos da Escola Nova tiveram o mérito de tentar uma inédita complementaridade entre a Pedagogia e a Psicologia pois estariam “mais atentos” às especificidades do processo de desenvolvimento infantil, passando a buscar as potencialidades dos alunos, diferentemente da perspectiva tradicional que negligenciava a capacidade do indivíduo de aprender.

Os aspectos emocionais e afetivos da aprendizagem passam a ser destacados por sofisticados avanços na área da ciência psicológica que reforçava, cada vez mais, a tônica no individual, em detrimento das implicações do processo social mais amplo e suas correlações em relação à educação.

Junto a estas tentativas de complementaridade, novas práticas psicológicas e psicométricas foram chamadas a atender as estas demandas educacionais, que, no entanto, ainda continuaram, a ser reprodutoras elas mesmas, de estigmas e diferenças entre as classes “superiores” e “inferiores”. Por conseguinte, mesmo com estes “avanços” houve um certo reducionismo psicológico na explicação dos problemas de aprendizagem quando a Psicologia da época deixou de lado o papel relacional entre os indivíduos e a sociedade que estes se inseriam. Apesar de viabilizar alguns avanços a proposta da Escola Nova continuou a reforçar a posição anterior, ou seja, o problema estaria ainda no indivíduo, se deixando ao largo as diferenças de classes regidas pelos determinantes econômicos, políticos e sociais que caracterizam tanto nosso país nas suas diversidades econômicas, sociais e culturais. Além disto trouxe todas as limitações de uma prática pedagógica centrada num modelo único.

A partir da segunda metade do século XX, há uma preocupação cada vez mais crescente com a educação e sua qualidade, o que se demonstra pelos diversos modelos e práticas dos educadores, bem como de pesquisadores e profissionais da área psicológica. É a incorporação cada vez mais crescente de aperfeiçoamentos técnicos e metodológicos de ensino que se aprimoram através de “métodos ativos” ou de “ensino renovado”.

SCOZ (2004) nos alerta que outras teorias sobre as possibilidades educacionais no país suplantaram a visão escolanovista. Foram perspectivas teóricas centradas na deficiência, privação ou na carência cultural apresentada pelas classes mais carente de recursos. Surgia assim, a partir desta visão, uma pedagogia calcada não mais nos ideais liberais democráticos da Escola Nova, mas numa outra concepção que via a sala de aula como lugar de redenção dos pobres; “curando-os” de suas mazelas e deficiências, de que na verdade não teriam culpa, e que na verdade estariam a elas submetidas. Foi uma perspectiva dirigida às classes menos favorecidas, mas com os valores das classes dominantes; tomando para si seus referenciais de desenvolvimento educacional sadio e feliz, Com um ambiente cultural precário, as classes "inferiores” não seriam capazes de fornecer um ambiente de desenvolvimento psicológico infantil “adequado” e por conseguinte ocorreria “naturalmente” uma falha do processo ensino-aprendizagem; “justificando” assim o fracasso escolar destas crianças das classes menos favorecidas.

Privação cultural: Política educacional compensatória.

Através de uma política educacional “compensatória” com programas especiais que deveriam “remediar” estas precariedades calcadas numa “privação cultural” presente no meio, haveria a possibilidade de se oferecer a estas crianças uma educação que de certa forma compensasse suas desvantagens . Tal política, no entanto, não surtiu o efeito esperado, tendo os alunos, apresentado pouco ou nenhuma melhora no desempenho escolar, e mesmo quando o processo se dava de forma satisfatória os resultados apresentavam-se limitados, de curta duração e com baixa amplitude social.

Surge ainda neste período, através da influência da Antropologia e das Ciências Sociais, entre outras ciências, estudos sobre as diferentes culturas que mostravam que, as noções utilizadas em relação a conceitos de superioridade, inferioridade, entre outros não poderiam ser cientificamente aceitos, devido às divergências e diferenças culturais. Neste contexto de diferenças culturais, surge uma nova linha de pensamento que entendia que, por terem uma cultura diferente, as camadas menos favorecidas não seriam portadoras de deficiências agudas; apenas apresentariam padrões de vida e cultura próprias e portanto estes valores e divergências deveriam ser valorizados.

Mesmo sem terem o intento, as teorias das diferenças culturais reforçaram o preconceito de classe. Segundo SCOZ (2004) “...responsabilizaram os lares marginalizados pela interferência negativa na formação de atitudes e de padrões culturais tidos como necessários ao desenvolvimento cognitivo e à capacidade de ajustamento à escola.” (p. 9). A teoria das diferenças culturais partia da suposição de que as diferenças existentes da interação mãe-criança nas classes populares, seria inadequada, sem diálogo ou ineficiente. Partia ainda do pressuposto que tais interações familiares na “classe média” seriam dadas de forma mais carinhosa, atenciosa e dialógica. Logo, ficava estabelecido através destas premissas que o “natural” ou tido como modelo-padrão de relacionamento familiar das classes populares, seria por si só, dificultador de um bom processo de aprendizagem.
Apesar da distorção que ainda centrava sua análise nas diferenças individuais do processo ensino/ aprendizagem, estas teorias avançaram em relação às perspectivas tradicional tanto quanto da Escola Nova e puderam dar a base de novas pesquisas realizadas nos anos setenta e oitenta.

Teorias da Reprodução.

Outra corrente de pensamento que influenciou a educação em nosso país, notadamente depois dos anos setenta, tinha sua base de estudos na perspectiva marxista. Seus expoentes foram o teórico estruturalista marxista Louis Althusser (1918-1990) e o sociólogo Pierre Bourdieu (1931-2002) dentre outros, que viabilizaram pesquisas e trabalhos que buscavam detectar e destacar os problemas educacionais, partindo-se dos condicionantes sociais mais amplos. Por esta perspectiva portanto não haveria neutralidade do processo escolar; mais sim, relações de forças materiais e simbólicas que se reproduziriam nestas práticas. Tais relações estariam encenadas portanto nas contradições mais amplas da sociedade brasileira, legitimando assim o saber das classes “superiores”.

As teorias da reprodução destacaram-se ao denunciar pela primeira vez o profundo grau de divisão de grupos ou classes sociais existentes em nosso país bem como a oposição das relações entre forças produtivas e as relações de produção tão gritantes em nosso país, com seus grandes latifúndios e baixíssima divisão de renda entre a população economicamente ativa. Esta divisão no seio da sociedade inviabilizava para estes estudiosos uma transformação mais profunda; que só se implementaria, quando houvesse uma educação comprometida com os saberes das classes menos favorecidas ou ditas “inferiores”.

Assim o valor de tais pesquisas teve inequívoco papel nos tocante as diferenças entre as classes sociais e sua influência para a educação, bem como sustentou uma nova visão de superação do mito da neutralidade no processo educativo em nosso país, mito este tão difundido pela Escola Nova. Estas teorias de cunho marxista destarte viam a escola como reprodutora, ela mesma das condições mais amplas da sociedade e de suas profundas e discrepantes contradições. Todavia apesar de seus autores terem contribuído imensamente para a mudança do pensamento educacional no país, consideravam a escola como impotente diante das desigualdades que, na verdade, a escola ajudava a manter. Passaram, mesmo que não intencionalmente, a disseminar entre os educadores um clima de desânimo, pessimismo e desesperança em relação a suas próprias práticas. Para SCOZ (2004):

“... o conceito de ‘dominação social’, divulgado pelas teorias da reprodução, resultava na defesa da imposição da cultura das maiorias, ou, ainda, dos valores da classe bem-sucedida, gerando a segregação dos grupos e classes mais pobres, supostamente portadores de padrões culturais inferiores aos padrões da classe média”.(p. 11)

Temos então a tentativa da perspectiva de cunho reprodutivista em afirmar que o professor deveria estar alerta sobre os erros cometidos em seu trabalho cotidiano, pois enquanto portadores de uma cultura de classe média deveriam ter um cuidado redobrado no tocante a diferença de padrões culturais das classes menos favorecidas.

Estudos mais recentes têm mostrado que não houve muita diferenciação quanto a culpabilização dada aos alunos e ou suas famílias, no tocante ao que havia no início do século XX. Esta culpabilização, segundo pesquisas mais atuais, nada mais faz que camuflar a incompetência técnico-profissional existente em nossas escolas, pois como vimos à falta de investimento básico, além de problemas estruturais além dos baixos salários dos professores é ainda o que se apresenta na atualidade. Apesar dos esforços governamentais, especialmente na última década no tocante ao aumento do número de vagas, o que pode se perceber no sistema escolar, dentro deste contexto é ainda pouca ou nenhuma medida política clara e objetiva de intervenção e superação dos impasses apresentados por nossa sociedade que não valoriza a educação e mantém estas práticas de saberes como forma de controle e poder sobre as camadas menos favorecidas da população. Em outras palavras, continua a tendência de atribuir aos alunos as causas do fracasso escolar, e isto infelizmente ainda não foi superado. Em sua grande maioria os diagnósticos feitos sobre a precariedade de nossas escolas, salvo ilhas de excelência, é a regra e não a exceção, sendo que as escolas públicas são as mais atingidas. Nestas continua-se convivendo com a idéia de que as crianças pobres, carentes, sujas, indisciplinadas com uma organização familiar muitas das vezes desarticulada – estão “irremediavelmente” despreparadas para a aprendizagem, lhes cabendo então através desta fatalidade, ou o fracasso ou o abandono escolar.

No entanto, apesar deste quadro de culpabilização, várias outras pesquisas no âmbito educacional passaram a apresentar alternativas de ação no intuito de reverter tal quadro e aumentar as oportunidades tanto de acesso quanto de permanência destas camadas menos favorecidas de nossa população no sistema oficial de ensino; além de algumas medidas governamentais isoladas tanto a nível municipal, estadual ou federal na intervenção das condições adversas e ineficazes da escola pública brasileira principalmente no tocante a preparação e qualificação de seus professores, educadores, e todos aqueles que estão envolvidos no processo de ensino-aprendizagem. No tocante a estes profissionais, fica claro a necessidade de implementação de políticas que minimizem o grave despreparo e insegurança técnica, muita das vezes identificadas na dissimulação ou na já conhecida culpabilização das vítimas deste grave e gigantesco mal que nos afligem enquanto nação. Sem esta capacitação profissional do professor pouco ou quase nada poderá ser feito para reverter tal quadro. Segundo SOCZ (2004) “...seria necessário [para esta reversão] que os educadores adquirissem conhecimentos que lhes possibilitassem compreender sua prática e os meios necessários para suscitar o progresso e sucesso dos alunos” (p. 12).

Cabe ressalvar por fim que a multiplicidade que norteia o trabalho educativo convida-nos a pensar num plano onde a multiplicidade se assimile ao plano da subjetividade, e este com o princípio da diferença. Pois a multiplicidade sustenta BARROS (1997) “...não tem forma , seus elementos estabelecem relações pela diferença, pela heterogeneidade. Elas se fazem por contingência, implicando uma montagem indefinida de composições” (p. 125) Dentro deste contexto, no tocante a prática educativa na escola brasileira, para se escapar a binarização, as culpabilizações e das identificações que pré-fixam seus alunos como incapazes de aprender; devemos todos, que se preocupam com os rumos que este país tomará tanto para as atuais quanto para as futuras gerações, viabilizar a criação de linhas de fugas que contagiem outros pontos desta multiplicidade com uma potencialidade que lute pela desnaturalização da criança que não aprende; montando novas cartografias, cartografias estas que penetrem no plano da subjetividade da educação brasileira, subjetividade que é sempre expressão de um fazer coletivo.

Se na sua realidade cotidiana a escola engendra repetência, abandono, falta de preparação e qualificação profissionais, ela também repete uma manutenção da identidade de uma prática social que desde seus primórdios esteve aliançada na estimulação perversa à individualização-condição de ascensão social, com discurso-atos que presentificariam que realmente a escola, contrariamente ao discurso oficial, não é para todos. Para BARROS (1997):

“Se no seu nascedouro a escola foi fundamental para a ordenação/ preparação de corpos docilizados para a produção em linha, agora a mão-de-obra de reserva é cada vez menos necessária. Menos trabalhadores, mais qualificados em novas tecnologias, competitivos no mercado flutuante e flexível de um capitalismo globalizado, eis a bandeira agitada pelos ventos neoliberais”. (p.127).

As conquistas alcançadas pela escola até o presente, no tocante a viabilização da democratização e socialização não devem ser desprezadas, e são práticas que devem inequivocamente continuar sendo aprendidas. No entanto, bem sabemos que sua história institucional é ligada, no entanto, à família burguesa, à medicina higienista (que inclusive deu base às concepções anti-semitas e racistas nazistas) bem como ao aparelho moderno de Estado de cunho neoliberal. Não percamos também a perspectiva, que a escola tal qual está hoje estruturada, suscita em nós, a tentativa de construção de novas práticas que possam acionar mecanismos de desnaturalização do contexto das crianças que não aprendem, bem como da escola que não ensina, podendo assim fazer com que ela (a escola) ocupe outro lugar.

PERSPECTIVAS FOUCALTIANAS SOBRE A EDUCAÇÃO.

“É na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como processo permanente. Mulheres e homens se tornaram educáveis na medida em que se reconhecem inacabados. Não foi a educação que fez mulheres e homens educáveis, mas a consciência de sua inconclusão é que gerou sua educabilidade. É também na inconclusão de que nos tornamos conscientes e que nos inserta no movimento permanente de procura que se alicerça a esperança. “Não sou esperançoso”, disse certa vez, por pura teimosia, mas por exigência ontológica”. Paulo Freire, Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa, pág 64.

Cabe a partir deste capítulo explicitar de forma mais pontual a contribuição de Michel Foucault no tocante à Educação tendo como referencial seus pressupostos metodológicos. Destaco desde já que, entre outras coisas, será sempre problemático tentar “enquadrar” dentro de alguma escola ou tendência filosófica ou mesmo criar um rótulo para o pensamento desenvolvido por este filósofo. No concernente aos estudos denominados genericamente de pós-modernos, seria inclusive vazia de sentido tal empresa classificatória, no tocante a suas obras. De acordo com VEIGA-NETO (2004) ...”Talvez seja mais prudente, mais correto, entender o pensamento foucaultiano como uma perspectiva; e, se quisermos compreendê-la melhor, será bastante útil marcar sua posição por aproximações e distanciamentos, descrevê-la e estudá-la por contraste com outros pensamentos e outras perspectivas” (p. 27). Será portanto o que faremos em relação entre as considerações apresentadas por Foucault nos estudos sobre o saber-poder, e as apropriações que faremos desta relação no intuito de entender a influência da Psicologia dentro do contexto/ práticas pedagógicas.

Foucault – suas obras e seus métodos

Faremos a partir de agora uma breve exposição da especificidade do pensamento foucaultiano. Inicialmente devemos levar em conta que este autor não desconsiderou todo o modo de construção do saber empreendido pelo pensamento moderno, bem como toda a gama de saberes que vieram em decorrência do pensamento Iluminista. Kant teve inegável valor para os paradigmas construídos a partir da modernidade e foram conseqüentemente inequívocos os avanços alcançados pelo pensamento racional para o desenvolvimento humano; mas no que tange ao pensamento foucaultiano, suas análises se deram sob outro panorama e dentro de um referencial distinto do viés iluminista; segundo VEIGA-NETO, (2004) tal empresa trabalha ...”sobre uma perspectiva que amplia o conceito moderno de Razão, ao pulverizá-la” (p. 27). Faz isto não com o intuito de destruir ou abandonar a própria razão; mais sim, para distribuí-la em lugares múltiplos, mostrando-nos seu caráter contingente, histórico e construído, que por conseguinte pode ter sua aplicação em múltiplas situações, até mesmo deduzido de diferentes circunstâncias. Ainda para VEIGA-NETO (2004) portanto “...à racionalidade moderna não quer jogar fora à própria racionalidade, mas quer, sim, colocar em xeque a idéia iluminista, unificadora e totalitária de Razão – exatamente porque a entende só como uma idéia, isso é, como uma construção idealista”.(p 28)

Ainda no que concerne a aproximação do pensamento foucaultiano ao de Kant, DELEUZE (2005) nos afirma que mesmo ocorrendo tal congruência, há uma diferença fundamental sobre as condições da experiência. No pensamento foucaultiano portanto:

“Falar e ver, ou melhor, os enunciados e as visibilidades, são elementos puros, condições a priori [grifo do autor] sob as quais todas as idéias se formulam num momento e os comportamentos se manifestam. Essa busca das condições constitui uma espécie de neo-kantismo característico de Foucault. Há entretanto, diferenças essenciais em relação a Kant: as condições são as da experiência real, e não as de toda experiência possível (os enunciados, por exemplo, supõem um corpus [grifo do autor] determinado); elas estão do lado do ‘objeto’, do lado da formação histórica, e não de um sujeito universal(o próprio a priori [grifo do autor] é histórico); ambos são formas de exterioridade.” (p. 69)

É contudo incongruente afirmar, como alguns críticos do pensamento foucaultiano fazem, que suas análises mantêm impropriedades pelo centramento na precisão histórica, no rigor metodológico e nas decorrentes conseqüências políticas de suas críticas; ou mesmo de que suas obras só nos legaram pessimismo; ou ainda que suas argumentações não nos deixam com nenhuma saída em relação ao poder disciplinar, etc. Uma possível tentativa de rebate a tais afirmações se daria como explicitado acima quando se estabelece uma outra relação junto à idéia de razão, pois Foucault não buscou eliminá-la mas sim percorrer novos caminhos que pudessem nos levar à liberdade da Filosofia, além é claro de pontuar aqui a tentativa deste autor em realizar na prática, tentativas de contestação a este poder disciplinar para além do próprio discurso pessoal mas também por sua militância política e social. Para VEIGA-NETO (2004) se ...”Foucault quer alguma liberdade, não é como queria Kant, para ‘purificar-se dos erros e avançar mais no caminho do esclarecimento”. (p.26). Para alcançar esta liberdade que se apresenta com caráter homeopático, ainda segundo VEIGA-NETO (2004), a deveríamos buscar na realidade concreta e cotidiana, bem como poderíamos tê-la através de pequeninas revoltas diárias, revoltas estas que nos levassem a pensar e criticar o mundo em que vivemos.

Apesar desta situação de busca incessante à reflexão crítica no pensamento foucaultiano, que atravessa este trabalho, é necessário tecermos determinados cuidados.

O primeiro deles é, que, sem dúvida, a análise foucaultiana não se trata de uma crítica transcendental da realidade; ou seja, ancorada em um mundo que não seja o nosso. Na verdade se trata de críticas com um novo método; de caráter arqueológico e genealógico. Sobre tais métodos de trabalho, segundo FOUCAULT (2000) apud VEIGA-NETO (2004) destaca-se da forma:

“Arqueológica – e não transcendental – no sentido de que ela não procurará depreender as estruturas universais de qualquer conhecimento ou de qualquer ação moral possível; mas de tratar tanto os discursos que articulam o que pensamos, dizemos e fazemos, como os acontecimentos históricos. E essa crítica será genealógica no sentido de que ela não deduzira, da forma do que somos, o que para nós é impossível fazer ou conhecer; mas ela deduzirá, da contingência que nos fez ser o que somos, a possibilidade de não mais ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos ou pensamos”. (p.28).

O pensamento foucaultiano aponta portanto muito mais para uma crítica da crítica; pois além de se fazer enquanto crítica, pode num outro momento voltar-se contra si próprio com o fito de inquirir-se sobre suas reais condições de possibilidade existencial, ou mesmo sobre sua própria racionalidade. Neste sentido mais pergunta que explicita, mesmo que seja sobre si mesmo. Muitas das vezes realiza movimentos que visam constantemente revisitar seus pressupostos, num ciclo permanente de pesquisas e “desconstruções de saberes” ditos “prontos”, “acabados” ou “definitivos”. Tal referencial inovador levou inclusive alguns autores atuais a considerarem tal perspectiva como sendo uma forma de hipercrítica além é claro de manter-me firme na tentativa resolução do questionamento feito no título deste trabalho.

Analisado dentro deste contexto considerado hipercrítico, o social não é tomado por Foucault como lugar onde os sujeitos construiriam ou articulariam conhecimentos oriundos de uma racionalidade intrínseca; fruto de uma capacidade genética humana inata que colocaria a ação social baseada num interacionismo, inscrito por uma suposta condição humana e humanizante. Não se trataria também de entender esta posição hipercrítica como substrato, capaz de moldar a ação humana. Tal contexto hipercrítico parte de uma posição com um referencial em constante fluxo; não buscando pontos de fuga ou núcleos de verdade, com base no qual fosse possível traçar perspectivas sobre perspectivas; mas simplesmente se deslocando sem descanso sobre si mesma, bem como sobre nós, se fazendo e refazendo constantemente. Portanto, dentro de uma forma foucaultiana de se pensar uma crítica da escola, esta se apresenta sendo feita num mundo concreto, cotidiano, de práticas discursivas e não-discursivas. Além disto esta forma de pensar busca as origens destas práticas; analisando as transformações que elas sofrem. Quando se afirma portanto que o pensamento foucaultiano se apóia sempre provisoriamente no acontecimento, podemos usar a metáfora utilizada por VEIGA-NETO (2004) que nos fala que “...a crítica foucaultiana não se amarra senão em suportes, sempre na superfície da história; são suportes provisórios, contingentes, mutáveis, como assim é a própria história”. (p. 30). Destarte tal referencial, bem como outras pesquisas de cunho pós-estruturalistas nos ajudam a percorrer um caminho de desterritorialização, desfamiliarização que constantemente se configura pelo estranhamento. É o que nos motivou a buscar como referencial este autor, pois em suas análises, nenhuma questão tem resposta, pronta, definitiva ou mesmo acabada.

Devemos ressaltar que as questões colocadas nas críticas estabelecidas pelo pensamento foucaultiano, não apresentam nenhum caráter salvacionista ou messiânico, como alguns discursos pedagógicos presentes no século passados em nosso país. Comportamentos ou frases como “esta ou aquela teoria está certa e dará resultados!”, ou ainda, “fazendo desta forma obteremos sucesso pois fulano aplicou tal metodologia X do teórico Y e deu resultados!” dentre tantos outros discursos dentro desta mesma linha fez-nos refletir criticamente sobre tais propostas redentoras, no tocante a educação brasileira. A crítica foucaultiana não deve acusar nem tampouco lastimar o uso de tal e qual método ou teoria; uma vez que isto significaria pressupor, de antemão a posse de uma verdade, uma possibilidade de melhoria sobre o mundo ao qual a análise se deu. Mas no que tange ao desejo de melhorar o mundo em que vivemos, tanto para aqueles que se considerem “foucaultianos” [termo este também passível de críticas] ou não, a nós nos parece primordial inventar e reinventar este mundo a cada instante, pois não podemos perder de vista seu caráter móvel e “fluído” feito no cotidiano das relações que atravessam a questão educacional e a escola hoje. Corroboramos portanto a afirmação de VEIGA-NETO (2004) quando este afirma que “...à medida que nos movemos para o horizonte, novos horizontes vão surgindo, num processo infinito. Mas, ao invés de isso nos desanimar, é justamente isso que tem de nos botar, sem arrogância e o quanto antes, a caminho”. (p. 31).

Antes de continuarmos, cabe explicitar mesmo que sucintamente que ainda hoje causa sérias divergências nos estudiosos das obras foucaultianas a questão da periodização de seus trabalhos. Com o único intuito de contextualizá-lo e não de aprofundar tal temática, destaco que tal explicitação objetiva uma melhor compreensão das argumentações que serão feitas a diante. Destarte todas as formas de sistematização e/ou periodização da obra e pensamento de Foucault como foram feitas tiveram certo caráter inconsistente. Bem cabe assim a assertiva de que no concernente ao pensamento foucaultiano o que se ganha em termos didáticos com tal periodização perde-se em seu rigor metodológico. No entanto, a maioria dos autores que se debruçam sobre este filósofo acabam por afirmar que há ao longo de seus estudos, três etapas ou fases, genericamente denominadas de fase arqueológica, fase genealógica e fase ética que puderam ao longo de suas obras de certa forma se destacar. Na verdade tal sistematização visa combinar os critérios metodológicos e cronológicos destas obras, destacando-se nesta primeira etapa ou fase – denominada arqueológica uma correspondência que vai desde História da Loucura (1978) até A arqueologia do saber (1987) passando pelo livro O nascimento da clínica (2003) até As palavras e as coisas (1992). Numa fase ou etapa genealógica, teremos como principais destaques às obras A ordem do discurso (1971), continuando desde o primeiro volume de sua trilogia sobre a História da sexualidade I – à vontade de saber (1976) passando por Vigiar e Punir (1989). Numa terceira e “última” fase ou etapa seriam destaque as obras 2 e 3 da trilogia anteriormente citada da História da sexualidade, com os volumes o uso dos prazeres (1994) e O cuidado de si (1985) respectivamente, publicados pouco tempo antes de sua morte em 1984.

Apesar das descrições acima a cada fase ou etapa que Foucault percorreu em sua vida através de suas obras, houve por conseguinte correlatas problematizações que tentaram dar conta aos seus questionamentos, assim sendo, o filósofo criou uma metodologia que novamente nos remete a novos e instigantes problemas, principalmente nos concernentes à classificação e nomenclatura. Na etapa ética de seu pensamento, por exemplo, não há como nas anteriores uma correlata metodologia desenvolvida, ou seja, tal fase [ética] se vale um pouco da arqueologia e muito da genealogia; levando alguns autores a afirmarem que o terceiro Foucault teria desenvolvido um método “arquegenealógico”. Outro problema é a referência ao uso coloquial da palavra método [grifo nosso] no pensamento foucaultiano. Tal palavra neste contexto, deve ter suas ressalvas feitas, pois é preciso dar a ela certa peculiaridade menos rígida daquela estipulada na tradição cartesiana do pensamento moderno. Segundo VEIGA-NETO, (2004) :“...muitos consideram discutível tomar a arqueologia e a genealogia como metodologias – pelo menos no ‘sentido forte’ dessa palavra, a ponto de usá-la como critério demarcatório de uma obra tão vasta e tão complexa”.(p 44). Destarte para finalizar esta contextualização vale ressaltar que quanto mais nos aprofundamos nas análises e problematizações foucaultianas, mais difícil fica aceitar uma periodização convencional.
No concernente a este trabalho, faremos a opção de utilizar as periodizações estipuladas por VEIGA-NETO (2004), que descreve em fases ou etapas os métodos de análise de Foucault denominados como domínios foucaultianos [grifo nosso]. São eles: domínio do ser-saber, do ser-poder e do ser-consigo, sendo que estes dois primeiros domínios caracterizados e desenvolvidos pelo que Foucault chamou respectivamente de método arqueológico e genealógico no transcorrer de seu pensamento exposto em suas obras. Neste capítulo exporemos estes domínios separadamente.

O domínio do ser-saber para a Educação

Foi nas obras As palavras e as coisas e em A arqueologia do saber que se detectou maior aproximação com o domínio ser-saber foucaultiano, bem como também foi em História da loucura que a arqueologia apareceu inicialmente menos como denominação, do que uma metodologia rígida, ortodoxa e estável, para na verdade ser uma tentativa sempre renovada de dar conta do discurso científico. Tal perspectiva arqueológica terá viés ainda perceptivo, expressão que segundo VEIGA-NETO (2004) “...é usada por ele não num sentido psicológico ou fenomenológico, mas no sentido de um saber que está aquém de um conhecimento sistematizado” (p.51). Portanto, as percepções não poderiam ser descritas em termos de conhecimento, mas se situariam aquém deste conhecimento; lá onde o saber se aproxima de seus gestos, de suas familiaridades, de suas primeiras palavras. Será no entanto somente a partir da obra As palavras e as coisas que o filósofo se ocupará de uma arqueologia dos saberes. Destarte os usará no seu sentido de teorias sistemáticas, que se manifestariam por meio de discursos científicos tidos como verdadeiros, positivos [tomado em contraposição ao negativo – não científico]. Assim será através dos estudos empreendidos na obra A arqueologia do saber que Foucault explicará detalhadamente como colocou a arqueologia em funcionamento, no intuito de descobrir como nos tornamos, na modernidade o que somos, enquanto sujeitos de conhecimento, e como somos assujeitados a este conhecimento. No tocante a situação exposta por ele sobre a relação sujeito-conhecimento, VEIGA-NETO (2004) nos mostra que em sua obra As palavras e as coisas:

“...o filósofo mostrou de que maneiras diferentes modos de investigação buscaram, ao longo dos últimos três séculos, instituir uma nova entidade – o sujeito moderno – como um novo objeto de discursos, como um objeto que produz ou como um objeto que vive num mundo natural ou biológico. Esses três objetos que se instituem, respectivamente, no mundo da linguagem, no mundo das trocas e do trabalho, e no mundo da vida, rebatem-se num só: o sujeito. Considerando que a cada um desses mundos correspondem, também respectivamente, a Lingüística, a Biologia e a Economia – as três grandes ciências dos séculos XVIII e XIX -, podemos imaginar cada um dos campos de saber que tais ciências encerram como se ocupasse uma face de um triedro, de modo que, aprisionado no interior dessas faces, paira o sujeito moderno. Assim para Foucault, o sujeito moderno não está na origem dos saberes; ele não é o produtor de saberes mas, ao contrário, ele é um produto dos saberes. Ou talvez melhor, o sujeito não é produtor, mas é produzido no interior de saberes”. (p.52).

Em síntese, poderíamos afirmar pelo exposto acima que por ser o discurso para Foucault constituído na prática, presumimos que numa concepção materialista jamais se admite qualquer discurso fora do sistema de relações, pois este sistema de relações o estrutura e o constitui. Assim sendo, o uso da palavra arqueologia no domínio do ser-saber, dentro de uma perspectiva foucaultiana, nos indica que se trata de um procedimento de escavação vertical [da camada mais externa para mais profunda] das camadas dos discursos já pronunciados, muitas vezes de discursos passados, a fim de trazer a superfície quaisquer fragmentos de idéias, conceitos ou mesmos discursos que tenham sido proferidos e que por ventura tenham sido esquecidos. Assim para VEIGA-NETO (2004) “...as práticas discursivas moldam nossas maneiras de constituir o mundo, de compreendê-lo e de falar sobre ele. E ainda que uma prática discursiva dependa da nossa vontade, essa não é suficiente para gerá-la e fazê-la funcionar”. (p.112).

Há, portanto, no funcionamento do discurso dispositivos materiais pelos quais são produzidos estes discursos; quer seja na sua estrutura quer quanto ao funcionamento, em práticas sociais estabelecidas pelo ser humano que fala e se faz falar, bem como através de coisas com o que se diz e com o que se faz dizer. Estas práticas sociais analisadas por Foucault tanto no confessionário, na prisão, no hospital, no quartel ou na escola [instituições de seqüestro – capazes de capturar nossos corpos por tempos variáveis e submetê-los a variadas tecnologias de poder] se destacaram em suas análises como “máquinas óticas” que produzem ao mesmo tempo o sujeito que vê e as “coisas” visíveis. Destarte Foucault ao longo dos seus trabalhos reconstruiu os regimes de enunciabilidade que estão nestas práticas sociais, ocorrendo a partir destas, a estruturação e o funcionamento da dimensão discursiva dos dispositivos sociais (sejam eles escolares, médicos, psiquiátricos, carcerários, etc.). Assim da mesma forma como ocorreu em relação aos procedimentos óticos de visibilidade analisados, por exemplo, em a História da Loucura (1978) que criava ao mesmo tempo o sujeito e o objeto da visão, também os procedimentos discursivos da enunciabilidade criarão ao mesmo tempo o sujeito e o objeto da enunciação. No discurso, portanto, e para a perspectiva foucaultiana sobretudo, tanto o sujeito quanto o objeto são funções do enunciado.

No tocante aos regimes discursivos analisados principalmente no capítulo anterior sobre a relação e criação da infância e a aprendizagem, verificamos agora como estes regimes produziram tanto esta infância como a aprendizagem/ educação como objetos desta enunciação bem como produzem aqueles que se propõem no cotidiano a serem sujeitos desta enunciação. O professor, o pedagogo e o psicólogo, dentre outros sujeitos relacionados com esta construção de regimes de enunciabilidade tão presentes na escola do nosso cotidiano e que estão diretamente ligados às diversas e variadas tecnologias de poder existentes hoje.

Destacamos novamente que no domínio do ser-saber a prática está intrinsecamente relacionada com o discurso, pois é a perspectiva eminentemente prática que deve estar em cena a todo o momento. O problema do método arqueológico, é portanto definir que práticas e que discursos serão especificados, como por exemplo neste trabalho na escola, bem como mostrar em que sentido este jogo e suas regras foram estabelecidos e como serão utilizados. O seu objetivo se dá não pela explicação ou pela interpretação, ou ainda mostrando realmente o que tal texto quer dizer ou mostrar; mas dando conta de como tal texto veio a ser o que é para quem o lê. O domínio ser-saber em Foucault não trata de interpretar o discurso para trazer através dele uma história a que este discurso se refere; pois tal prática é entendida como sendo nada mais que um conjunto de enunciados que se apóiam em um mesmo sistema de formação, sendo que, em tal sistema a arqueologia pergunta sobre, e assim parte sempre de antemão de que este sistema é contingente, situacional; logo variável. Para VEIGA-NETO (2004) sobre este domínio poderíamos ainda dizer que:

“...a análise arqueológica seja, em última instância, uma descrição de discursos – em busca das regularidades que funcionam tal qual leis que governam as dispersões dos enunciados que compõem esses discursos -, ela, a arqueologia, não se limita aos acontecimentos discursivos, não se confina ao próprio discurso. A análise arqueológica busca, também, as articulações entre as práticas discursivas e toda a outra ordem de coisas que se pode chamar de práticas não-discursivas, tais como as condições econômicas, sociais, políticas, culturais, etc.” (p. 57).

Portanto, sobre tais condições não-discursivas poderíamos afirmar que a arqueologia de Foucault procura investigar as condições que possibilitariam o surgimento e a transformação de um saber, ao fazer uma investigação mais profunda do que aquela empreendida na ciência através da epistemologia. Nesta diferenciação perante a epistemologia, a arqueologia busca em seu objeto [o saber] a reivindicação de uma independência em suas análises quando da comparação entre o projeto epistemológico da ciência moderna com seus critérios e pressupostos, como descrevemos no segundo capítulo e que se centram na conquista da objetividade, na constituição histórica de seus conceitos que lhe são peculiares, numa universalidade destes conceitos e pressupostos bem como na instauração de critérios de racionalidade. Todavia não é verdade que a arqueologia se opõe à epistemologia, ao contrário aceita-a naquilo que ela é e só pode ser, uma reflexão elaborada em consonância com o conhecimento científico numa forma própria de fazê-lo. Sobre a distinção entre estas duas instâncias de apreensão do/de conhecimento/saberes, VEIGA-NETO (2004) afirma que:

“...entendendo a epistemologia como um saber filosófico atrelado a representações privilegiadas, circunstanciais, a arqueologia não confere àquela a possibilidade de encontrar a origem, a fundamentação do conhecimento. Mas não conferir à epistemologia essa possibilidade não significa nem que se considere que ela seja insuficiente ou fraca para fazê-lo, nem muito menos, que a própria arqueologia advogue para si essa tarefa. A epistemologia não consegue encontrar a origem ou, talvez melhor dizendo, não consegue fundamentar ultimamente o conhecimento porque, numa perspectiva pós-moderna, simplesmente não existe, ou melhor, desaparece a busca de tal fundamentação”. (p. 59).

Outra diferenciação entre a arqueologia foucaultiana e a epistemologia de fundamentação iluminista é que a primeira não acredita que a segunda possa estabelecer a possibilidade de exame considerado o mais adequado, correto, verdadeiro na relação entre o pensamento e a realidade. Não porque a epistemologia não fosse capaz e hábil para realizar tal intento, ou mesmo numa suposta pretensão da própria arqueologia em se arvorar no estabelecimento de um estatuto de verdade. Tal possibilidade de relação entre o pensamento e a realidade não é possível porque numa perspectiva adotada como pós-moderna [e pós-estruturalista] simplesmente o que chamamos de realidade não se configura como dado externo a ser acessado pela razão, sendo resultado de uma construção interessada, contingente e política, portanto, sendo “impossível” efetivar uma leitura que faça o desvelamento de sua essência de seu significado, ou mesmo de sua estrutura; logo, esta realidade está portanto na superfície. O “sentido” de superfície aqui se aproxima com o termo exterioridade em Foucault, pois para ele tanto quanto para Nietzche segundo DELEUZE (2005) apud SCHÖPKE (2004) “...pensar não depende de uma bela interioridade que reuniria o visível e o enunciável, mas faz-se sob a intrusão de um de-fora [exterior] que cava o intervalo e força, desmembra o interior” (p.177). Portanto constatamos que a realidade para Foucault não se dá como dado externo acessado pela razão, da mesma forma como anteriormente Foucault, assim como Nietzche, rompeu com a razão clássica e com a imagem moral forjada por ela do pensamento, quando fez dele o exercício inato de uma faculdade que tende naturalmente para a verdade. O pensamento não tem nada de ‘natural’; ele não é um prosseguimento, uma decorrência de nossa atividade intelectual.

Uma leitura arqueológica foucaultiana não tem a preocupação de se ocupar diretamente como a interioridade do objeto, pois se fizermos isto seria como se olhássemos para dentro da parte visível de um iceberg; mesmo que isto fosse recoberto de interesse e importância não seria o caso deste domínio do ser-saber, pois este domínio não entraria no objeto [ponta do iceberg] como faz a epistemologia. No entanto, procuraria olhá-lo de fora. Talvez olhá-lo de baixo para cima [à parte de maior volume e conteúdo de um iceberg]. Ainda nesta análise do objeto da arqueologia, VEIGA-NETO (2004). pontua que “...Assim, para tratar de um objetivado, a arqueologia faz do seu objeto as práticas que estão por fora e que principalmente sustentam o objetivado. Seu objeto está submerso, sustentando o visível do iceberg [grifo do autor]”. (p.60). Portanto Foucault procurou tratar o discurso como um monumento que se descreve a si próprio [e não como traço do passado a ser decifrado], podendo descrever suas articulações em termos de suas condições de existência, em vez de leis estruturais de construção, sendo relacionado não a um pensamento, mente ou sujeito que o produziu, mas como vimos anteriormente no campo eminentemente prático no qual este discurso é desdobrado.

O domínio do ser-poder para a Educação.

Passaremos a analisar a partir de agora um outro domínio foucaultiano; o domínio do ser-poder. Apesar do filósofo ter já em sua aula inaugural no Collége de France em dezembro de 1971 de certa forma destacado a relação que ele vislumbrava entre o sujeito e o saber, será somente em na sua obra Vigiar e punir em 1975 que ele se dedicará com toda a sua força e atenção a esta temática. Para VEIGA-NETO (2004) nesta obra Foucault coloca toda a ênfase na busca do entendimento acerca dos processos pelos quais os indivíduos se tornam sujeitos como resultado de um intrincado processo de objetivação que se dá no interior de redes de poderes, [no qual está incluso a escola] que os capturam, dividem, classificam. É o próprio Foucault que denomina a partir da obra citada acima como sendo esta uma segunda parte do trabalho desenvolvido por ele até então [em prosseguimento a uma primeira – a análise arqueológica].

Sem dúvida alguma, foi ele também que mais do qualquer outro, pois foram vários os que o utilizaram, explicitou o seu compromisso para com o método inventado por Nietzche; ou seja, o método genealógico. Numa prática genealógica, há um tipo especial de história; como seu próprio nome sugere esta prática faz-nos sugerir uma história que tenta descrever uma gênese no tempo, e assim aqui considero este o cerne deste domínio, pois, buscando nesta gênese a história genealógica não busca um momento determinado de origem, entendendo este sentido no seu viés mais rígido, mais perfeito, mais puro ou ainda entendido como lugar onde uma “verdade” finalmente seria encontrada. Buscando no próprio filósofo uma melhor definição deste domínio FOUCAULT(1989) apud VEIGA-NETO (2004) nos dizem que ...procurar uma tal origem é tentar reencontrar ‘o que era imediatamente’ o ‘aquilo mesmo’ de uma imagem exatamente adequada a si; [...] é querer tirar todas as máscaras para desvelar enfim uma identidade primeira. (p.67). Portanto a pesquisa empreendida no método genealógico deverá ao invés de acreditar na metafísica, escutar a própria história, pois esta sempre se apresenta através de uma dinâmica própria de funcionamento, bem como através de uma materialidade específica. Se o genealogista assim proceder conseguirá aprender que, como mostra FOUCAULT (1989) apud VEIGA-NETO (2004) ...atrás das coisas há ‘algo inteiramente diferente’: não seu segredo essencial e sem data, mas o segredo que elas são sem essência, ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhe eram estranhas. (p.67).

Constatamos, então, que a genealogia foucaultiana tem um compromisso maior com o a priori histórico, pois na verdade não há nada antes do saber. Para DELEUZE (2005) ...o saber, na nova conceituação de Foucault, define-se por suas combinações do visível e do enunciável próprias para cada estrato, para cada formação histórica. O saber é um agenciamento prático, um ‘dispositivo’ de enunciados e de visibilidades. (p 60). Trabalha portanto a genealogia, além de, sobre os saberes, também com o estudo das tensões das práticas deste poder. É continuando nas análises do discurso, mas agora com este novo dado [poder] que usaremos este domínio foucaultiano, o do ser-poder para tentar entender melhor a influência da obra foucaultiana na educação. Pois é nesta, e nos seus efeitos, que o discurso pedagógico-científico já analisado anteriormente, terá na genealogia um de seus opositores mais árduos. A genealogia age como um conjunto de processos úteis tanto para conhecer o passado, mas também, e principalmente, para nos revoltarmos contra o presente.

É neste sentido pertinente de tal revolta pois que a genealogia se faz de instrumento para mostrar que além de garimparmos em nossas análises através nos estratos discursivos é preciso levar em conta outros tantos aspectos pertinentes; como as condições econômicas, demográficas, políticas, antropológicas, etc. que não podem ser deixadas de lado quando se quer utilizar o referencial foucaultiano de análise da história.

Já descrevemos anteriormente as relações de formas, que constituem o saber, ou seja o domínio da arqueologia; passaremos agora portanto a descrever as relações de forças que constituem o poder. Quero desde já demarcar a definição foucaultiana de poder. Este é uma ação sobre as ações possíveis, ou seja o poder é uma relação de forças, ou ainda, toda a relação é por conseguinte uma relação de poder. Para entendermos melhor o poder do ponto de vista foucaultiano busquemos o ponto de vista de DELEUZE (2005):

“...Compreendamos primeiramente que o poder não é uma forma, por exemplo, a forma-estado; e que a relação de poder não se estabelece entre duas formas, como o saber. Em segundo lugar, a força não está nunca no singular, ela tem como característica essencial estar em relação com outras forças, de forma que toda força já é relação, isto é, poder: a força não tem objeto nem sujeito a não ser a força. Não se deve nisto uma volta ao direito natural, porque o direito, por sua conta, é uma forma de expressão, a Natureza uma forma da visibilidade e a violência um concomitante ou um conseqüente da força, mas não um seu constituinte [grifo do autor]. Foucault está mais perto de Nietzche (e também de Marx) para quem a relação de forças ultrapassa singularmente a violência, e não pode ser definida por ela. É que a violência afeta corpos, objetos ou seres determinados”...”enquanto a força não tem outro objeto além de outras forças, não tem outro ser além da relação “...” é ‘um conjunto de ações sobre ações possíveis”. (p. 78).

Vale ressaltar que mesmo estudando minuciosamente o problema do funcionamento do poder, que como vimos, está sempre em íntima relação com a capacidade de afetar e ser afetado, a rigor, este não é o objeto foucaultiano. Para VEIGA-NETO (2004) “...o poder entra em pauta como operador capaz de explicar como nos subjetivamos imersos em suas redes. Foucault cuida portanto para que suas análises genealógicas nem reifiquem o poder, nem o tomem antecipadamente como algo que emana de um centro – como o Estado, por exemplo”. (p.74). Remetendo-nos agora ao próprio Foucault (1989) ele dirá que a genealogia tenta capturar o poder que trabalha de forma microfísica, microscópica, permanente, insidiosa e saturante. Como cita Roberto Machado na introdução da obra citada acima, a genealogia bem como a arqueologia, não quer fundar uma ciência, ou mesmo construir uma teoria que se constitua por si só como sistema, mas sim buscam viabilizar um programa que realize análises fragmentárias e transformáveis.

Seria possível traçar alguma aproximação entre os dois tipos de domínios foucaultianos até o presente exposto? O registro de ambos os domínios é o mesmo, pois tanto no ser-saber quanto no ser-poder não há o crédito em essências fixas, nem tampouco em leis universais, menos ainda em fundamentações e finalidades julgadas metafísicas, para VEIGA-NETO (2004) ...ambas põem em evidência as rupturas onde se pensava haver continuidades, ambas desconfiam dos discursos unitários, generalizantes e emblemáticos. (p.75).

Seria possível também encontrar entre estes dois domínios contrastes? Encontramos também diferenças, pois poderíamos afirmar que enquanto a arqueologia se detém bem mais em alcançar de certa forma um nível descritivo em suas análises sobre os saberes em domínios determinados e tendo como corte temporal um período relativamente curto a genealogia, em contrapartida, tenta usar a noção de relação de poder no que está presentificado nas práticas discursivas e não-discursivas. Ainda uma outra diferenciação entre elas seria a relação que ambas estabelecem entre as discursividades locais, pois em ambas, existem tais discursividades, no entanto, há na genealogia a tática de colocar os saberes que estão em jogo na própria cena onde estes saberes acontecem, liberando-as portanto das sujeições que surgem de tais práticas. Enquanto a arqueologia examina muito mais o momento histórico, por mais estendido que este possa ser ou ter sido, havendo portanto neste domínio, um corte na teia discursiva de forma mais precisa; enquanto que a genealogia examina este processo histórico no seu sentido mais processual.

Em relação ao corpus de análise, Foucault nos mostra em seus estudos que a partir de certas transformações que ocorreram na passagem do mundo do Antigo Regime [ou seja do período do Renascimento até a Revolução Francesa] para o Novo [período pós-1789] houve profundas transformações em certas práticas institucionais. Segundo VEIGA-NETO (2004. p.77) “...ele nos mostra que principalmente no âmbito de algumas instituições – a que ele chama de instituições de seqüestro [grifo do autor], como a prisão, a escola [grifo nosso], o hospital, o quartel, o asilo – passa-se dos [grifo do autor] suplícios, como castigos e violências corporais, para [grifo do autor] o disciplinamento que cria corpos dóceis”. O objetivo de Foucault com estes estudos não foi de estabelecer uma história dos relatos punitivos institucionais, mas sim conforme demonstra VEIGA-NETO (2004) nos mostrar traços de uma genealogia das relações entre o poder e o saber, para mapear, a ontologia do presente, em termos do ser-poder [grifo do autor]. Podemos dizer em linhas gerais que quando ocorre a transformação da sociedade controlada por um soberano para uma sociedade estatal [inaugurada em 1789] entra em cena o caráter disciplinar que ocorre no seio desta uma sociedade.

É portanto nos estudos Foucaultianos presentes nesta perspectiva que se inauguram a partir da estatização; do poder disciplinar no jogo político sendo realizado pelas tecnologias de vigilância, e como citado acima através da via disciplinar é que será possível fabricar corpos dóceis. Esta fabricação será possibilitada através da objetificação dada nesta rede, que é microscópica, dividida no espaço e no tempo, capaz de fazer com que nos enxerguemos como sujeitos desta rede; que à nossa percepção é invisível, mas que está presente, naturalizando e disciplinando a todos nós.
Cabe agora ressaltar que através do domínio ser-poder é possível a compreensão de todo um aparato e práticas cotidianas que estão presentes na escola, e que combinadas darão vazão a uma tecnologia que alcança os corpos em sua íntima existência além de imprimir sobre determinado estrato social, lugar possível de ocupação de espaço. Mais que qualquer outra instituição, a escola, encarrega-se de operar estes mecanismos disciplinares. Desta forma, é capaz de realizar novas subjetividades e se torna cada vez mais lugar de cumprimento do decisivo papel que lhe cabe na sociedade moderna. É portanto a instituição capaz por excelência de realizar em seu interior a disciplinarização e objetificação destes corpos, tornando-os mais e mais dóceis. Foi, então, para Foucault que a partir desta instituição de seqüestro, mas não só dela [da família, do hospital, do manicômio entre outros] que pela sua intensa e constante atuação no sujeito é que foi possível à criação de uma sociedade adjetivada por Foucault de, sociedade disciplinar. Nesta sociedade há uma necessidade constante e premente por disciplina e esta se torna, sem dúvida, algo não apenas necessário, mas sobretudo natural. No entanto, bem sabemos que nesta sociedade nem todos se configuram como corpos capazes de serem docilizados, devem, não deixar de entender/ compreender o que é/ e como deve ser um corpo disciplinado, e por conseguinte não perder de vista seu lugar.

Dois pontos importantes ainda sobre este referencial foucaultiano devem ser abordados: o conceito de governamentalidade e o de biopoder.

Quanto ao primeiro cabe destacar que Foucault nos apresenta tal construto teórico para designar as práticas de governamento ou de gestão governamental que têm como alvo/ objeto a população, bem como na economia seu saber mais importante e nos dispositivos de segurança os mecanismos mais básicos mais elementares. A partir desta discussão sobre as soluções que o Estado moderno viabilizou para a melhoria da sua gestão sobre estas parcelas da população Foucault tematizou sobre um novo tipo hegemônico de poder que se inaugura no final do século XVIII.

O biopoder, que tem sinteticamente como direção não mais como na governamentalidade e no poder disciplinar uma demarcação anátomo-política do corpo, mas sim uma biopolítica da própria espécie humana. O biopoder fará então esta tentativa de compreensão melhor do próprio corpo humano, agora se fazendo mister além de uma descrição, também uma melhor quantificação deste novo corpo: a população, o corpo, este provido de múltiplas cabeças.Para VEIGA-NETO (2004) “...Trata-se de uma biopolítica porque os novos objetos de saber que se criam ‘a serviço’ do novo poder destinam-se ao controle da própria espécie; e a população é o novo conceito que se cria para dar conta de uma dimensão coletiva que, até então, não havia sido uma problemática no campo dos saberes”.(p. 87)

É a partir destes pressupostos que os Estados modernos e atuais cada vez mais passarão a tentar controlar as populações, prevendo os riscos inerentes a elas [riscos que elas podem impor a nós também], e investindo político e ativamente sobre este “conjunto de corpos” com a força do biopoder. Tal tarefa não mais deve ser feita pela via do detalhamento e disciplinarização do indivíduo, mas agora atuando ao nível coletivo da vida mediante a regulamentação. Citando VEIGA-NETO (2004):

“Estabelecem-se, assim, dois conjuntos de mecanismos complementares e articulados entre si, que ocupam esferas diferentes: na esfera do corpo, o poder disciplinar atuando por meio de mecanismos disciplinares; na esfera da população, o biopoder atuando por intermédio de mecanismos regulamentadores.Tais esferas situam-se em pólos opostos mas não antagônicos: num pólo, a unidade; no outro, o conjunto.” (p. 88).

Dentro deste contexto é que Foucault anuncia sua temática principal nos últimos anos de sua vida: é pois a sexualidade para ele o entrecruzamento do corpo e da população, assim sendo terá “necessidade” de uma disciplinarização, mas sobretudo dependerá de uma regulamentação. Ainda citando VEIGA-NETO (2004):

“E se é a sexualidade que articula o corpo com a população, é a norma [grifo do autor] que articula os mecanismos disciplinares (que atuam sobre o corpo) com os mecanismos regulamentadores (que atuam sobre a população). A norma se aplica tanto ao corpo a ser disciplinado quanto à população que se quer regulamentar, ela efetua a relação entre ambos, a partir deles mesmos, sem qualquer exterioridade, sem apelar para algo que seja externo ao corpo e à população em que está esse corpo”.(p. 89).

Num curso que ministrou no Collége de France, em 1975, Foucault desenvolveu uma genealogia minuciosa sobre um certo tipo de ser humano: o anormal. Partiu de suas análises da construção discursiva deste conceito desde o século XVIII com relação a sua tríplice localização junto ao monstro humano, no incorrigível e no ato masturbatório. Dentro deste processo é que foi possível se instituir, segundo Foucault, um conjunto de saberes e correlatos poderes de normalização que culminou no discurso psiquiátrico bem como num discurso psicologizante sobre a infância, da formação da nuclear burguesa, da delinqüência, do currículo, do exame, do inquérito, todos temas descritos no capítulo anterior. Citando novamente VEIGA-NETO (2004):

“A norma é o elemento que, ao mesmo tempo em que individualiza, remete ao conjunto dos indivíduos; por isso, ela permite a comparação entre os indivíduos. Nesse processo de individualizar e, ao mesmo tempo, remeter ao conjunto, dá-se às comparações horizontais- entre os elementos individuais – e verticais – entre cada elemento e o conjunto. E, ao se fazer isso, chama-se de anormal aqueles cuja diferença em relação à maioria se convencionou ser excessivo, insuportável. Tal diferença passa a ser considerada um desvio, isso é, algo indesejável porque des-via [grifo do autor], tira do rumo, leva à perdição”.(p. 90)

A norma, segundo Foucault, é portanto algo que não admite exterior, ou seja, mesmo se estando dentro da norma ou não, deve-se estar interiorizado perante esta norma. Temos na normalização portanto uma questão mais de polarização/ inversão do que de contradição ou exterioridade, no caso da educação tema deste trabalho, se normaliza um certo tipo de aprendizagem ou de compreensão e aqueles que porventura não estão normalizados quanto ao saber estipulado na escola terão nos representantes da área psi os atores que demarcação esta inversão.

O domínio do ser-consigo para a Educação.


“Homem conhece-te a ti mesmo”
Inscrição na porta do Templo de Delfos – Grécia Antiga

Exporemos de forma sucinta a relação da frase citada acima com este domínio foucaultiano do ser-consigo a partir de agora. A partir dos últimos anos da década de setenta do século XX, Foucault passa a traçar o terceiro eixo ontológico em suas análises, culminando como citado no início do capítulo, com os segundo e terceiro volumes da obra História da sexualidade. Destarte pretendia traçar a genealogia da ética ocidental, investigando como se daria a relação de cada ser consigo próprio, bem como, conforme aponta-nos VEIGA-NETO (2004) “...no caso, com o próprio sexo ou talvez melhor, por intermédio do próprio sexo – e, a partir daí, como se constitui e emerge sua subjetividade” (p. 95)

Para ele não interessava estudar os comportamentos sexuais, suas condutas, práticas em si mesmas [como os sexologistas fazem], mas qual caminho de subjetivação percorremos como seres de desejo. Sua pergunta seria encaminhada para entender como o sexo seria problematizado como parte do campo da moral humana, ou ainda através de quais jogos de verdades o ser humano se reconheceria como ser de desejo.

A ética numa perspectiva foucaultiana, faz parte da moral, junto do comportamento de cada um e dos códigos que determinam o que é correto fazer e pensar e que atribuem valores (positivos e negativos) a diferentes comportamentos. Estaria portanto a Ética relacionada intrinsecamente na maneira como este indivíduo se constitui enquanto sujeito moral e enquanto constitui a si mesmo no bojo de suas próprias ações. Para VEIGA-NETO (2004) portanto:

“Ao falar em jogos de verdade, Foucault nos remete – agora no plano ético- às relações entre falso e o verdadeiro, relações essas que são construídas e que balizam o entendimento que cada um tem do mundo e de si mesmo. As balizas indicam aquilo que pode e que deve ser pensado, ou seja, um regime de verdade em que se dão esses jogos. Mais uma vez em Foucault, então, o que se coloca não é fazer uma história sobre uma prática em si, mas estudar as práticas (discursivas ou não) para, olhando-as de fora, descobrir os regimes que as constituem e são por elas constituídos”. (p.98).

Este domínio foucaultiano é passado portanto pela Ética, ou seja, a relação do ser consigo próprio que só se poderá colocar em movimento, a partir de que outros elementos desta mesma ontologia por sua vez já pressuponham os outros dois domínios: o do ser-saber e o do ser-poder; todos operando simultaneamente. O sujeito se situa neste espaço apoiado nestes três planos; é produto, ao mesmo tempo, dos saberes, dos poderes e da ética. Estes três domínios não devem ser pensados na constituição do sujeito numa produção mecânica causal onde cada um dos eixos operaria separadamente dos outros dois. Para o estabelecimento destas imbricações VEIGA-NETO (2004) afirma que:

“No processo pelo qual nos transformamos de indivíduo em sujeito moral moderno- ou seja, no processo pelo qual cada um aprende e passa a ver a si próprio -, sempre estão atuando também as práticas divisórias que, por sua vez, são elementos constituintes de outro eixo: o do ‘ser-poder’. E, combinadas com essas, estão também determinadas disposições de saberes, que se engendraram para instituir o sujeito como um objeto de que se ocupariam as ciências modernas [dentre elas a Psicologia e a Pedagogia entre outras]. Vê-se, assim, que é nesse terceiro domínio que Foucault amarra coerentemente a subjetivação que deu, como resultado, isso a que denominamos sujeito moderno”.(p. 99).

Em síntese, podemos concluir que as tecnologias do eu são o que alicerçam o domínio do ser-consigo foucaultiano, sendo o sexo, para os estudos feitos nas obras descritas anteriormente, considerado articulador entre o ato sexual a proibição de se fazê-lo e a obrigação de se confessá-lo. Ligamos agora a frase do templo de Delfos com as descrições e problematizações de Foucault acerca das técnicas que se estabelecem, dentre outras, com que cada um se relaciona consigo mesmo. As técnicas de verbalização, por exemplo, tratadas por ele em seus estudos sobre o cristianismo primitivo registraram que este tinha um duplo caráter: o salvacionista e um caráter confessionário. Segundo VEIGA-NETO (2004). “...O que articula salvação e confissão é o princípio cristão segundo o qual, para a purificação da alma, é preciso que cada um tenha conhecimento sobre si mesmo”. (p. 101).

Utilizou-se também em seus estudos sobre estas tecnologias do eu de duas técnicas trazidas da tradição grega antiga e colocadas em funcionamento desde a Idade Média. A exomologesis e a exagouresis [ambos grifo do autor citado logo abaixo]. Na primeira haveria um ritual não-verbal de martírio, com caráter teatral onde o penitente alcançaria a verdade sobre si mesmo por meio espécie de “incorporação dissociativa” [talvez similar àqueles êxtases-incorporações que ocorrem nos terreiros de candomblé no Brasil].
Na segunda técnica haveria uma continua verbalização dos pensamentos trazidos dentro de uma relação de mais completa obediência de um ser em relação a outro, quando se configuraria nesta técnica a renúncia deste sujeito ao seu próprio desejo tanto quanto ao seu próprio eu. Segundo VEIGA-NETO (2004) “...É fácil ver que essa técnica de verbalização foi retomada e ressignificada modernamente pelas Ciências Humanas, principalmente nas chamadas vertentes psi [grifo do autor]. Mas, também no campo da Pedagogia, não é difícil encontrarmos práticas que são herdeiras diretas da exagouresis”.(p. 101).

Ao finalizar este capítulo vale destacar que para fins de análise das relações do ser-consigo e de sua relação com a Educação há grandes possibilidades de avanço; no entanto, diferentemente de como ocorreu com o domínio do ser-poder, onde Foucault pode desenvolver mais detalhadamente tais relações das práticas educacionais e o poder, para o terceiro e último domínio foucaultiano há ainda bastantes considerações a serem feitas no tocante à escola e as diversas tecnologias do eu. Estas são colocadas em movimento neste ambiente permeado por relações de saberes e poderes: o ambiente escolar. Outros autores, com suas produções procuram compensar essas lacunas e levam à frente as discussões em torno desse terceiro domínio, direta ou indiretamente relacionadas à Educação.

A PSICOLOGIA E SUA INFLUÊNCIA EM RELAÇÃO À EDUCAÇÃO NA
CONTEMPORANEIDADE.

Neste quinto capítulo, passamos a descrever mais diretamente a(s) influência(s) que a Psicologia pode ter no tocante as práticas pedagógicas presentes na escola. Destarte podemos dizer que, de modo geral, a escolarização pode ser denominada, como certa tecnologia social onde seu currículo constitui-se como uma ruptura nos sistemas de conhecimento dos quais os indivíduos deveriam regular e disciplinar seus “eus”. No Brasil, a escola, já no início do século XX no Brasil sofria a influência do olhar da Psicologia dentro de um contexto de administração social do Estado que via nela uma forma institucional de resolução de problemas enfrentados por um país de múltiplas transformações engendradas como parte do contexto de recente industrialização, uma urbanização crescente, imigração, novas organizações políticas democráticas pós-guerra, bem como a influência constante de pensamentos intelectuais que combinavam o utilitarismo e o pragmatismo americano. De forma geral, verificamos no capítulo quatro, que dentro deste contexto histórico, o conhecimento pedagógico no Brasil tomou certa visão “religiosa” para salvação da população combinando-a com dispositivos científicos de cunho racional que estabeleciam uma verdade e um determinado saber sobre o ensino e atuação sobre os alunos. Para SILVA (2002):

“...A instrução foi organizada cientificamente para focalizar os processos sociais/ psicológicos pelos quais os indivíduos adquirem disposições, sensibilidades e consciências, assim como a aprendizagem de ‘informação’. As novas psicologias de solução-de-problemas, medição e desenvolvimento infantil, por exemplo, não apenas corporificavam distinções que deveriam regular a forma como a informação sobre a escolarização e os problemas deviam ser descritos, mas os sistemas discursivos eram também internalizados como categorias de competência e realização pessoal [grifo nosso].” (p. 191.)

A Escola contemporânea e a Psicologia

Verificamos que a Psicologia teve enorme influência na regulação e regulamentação do “eu” dentro desta contextualização notadamente na sua atuação junto à escola; pois, os padrões discursivos presentes corporificavam-se por um sistema de regulações e poderes com regras nítidas de expressão e diferenciação além e claro do estabelecimento de uma padronização comportamental.

A escola contemporânea é portanto herdeira destes paradigmas, tendo padrões discursivos de diferentes níveis de regulação, sendo um destes níveis fundamentais o que seleciona qual conhecimento deverá ser exposto bem como qual discurso pedagógico guiará o indivíduo na produção de seu conhecimento sobre o mundo. As psicologias escolares são então esquemas de funcionamento de tecnologias sociais, pois assim como a pedagogia, organizam o ensino através de planejamento e hierarquizam os objetivos a serem alcançados, a Psicologia escolar também atua na tecnologia social através da administração de testes de rendimento/ avaliação do currículo que expõem o sucesso/ fracasso dos alunos considerados “deficientes”, pois como vimos anteriormente como a norma estabelece o que deve ser atingido e como quem de certa forma se afasta desta normatização será categorizado dentro deste contexto como o sujeito que fracassa. Portanto, com a introdução da Psicologia na escolarização das massas, houve uma reestruturação da forma como os indivíduos passariam a ser vistos, definidos e avaliados.

É importante ressaltar que quando a Psicologia nasce como ciência, habilita-se num papel importante como substituta da filosofia moral na definição de princípios de julgamento e organização da ação humana. Assim para SILVA (2002):

“...Com a introdução da Psicologia na escolarização de massas adveio uma reestruturação da forma como os indivíduos deviam ser vistos, definidos e avaliados. As Psicologias forneceram tecnologias para organizar os métodos didáticos, os materiais instrucionais e a organização do tempo das matérias escolares ao redor dos quais as crianças deviam ‘aprender’.” (p. 193).

Portanto as tecnologias implementadas por esta ciência no âmbito da Educação possibilitaram múltiplas tecnologias ainda utilizadas em sala de aula além de práticas de formação de professores, dinamização de currículos, organização do tempo e da rotina escolar, bem como práticas discursivas produzidas dentro do âmbito acadêmico que se relacionam tanto com o ensino, quanto com a administração da escola. Esta conjunção de valores e padrões constitui as práticas regulatórias que guiam e avaliam os comportamentos tanto de professores quanto de alunos no cotidiano pedagógico. Destarte estas escolas se organizam como peças de uma “maquinaria social”, que ao mesmo tempo em que estão ao lado de diferentes outros círculos sociais (igrejas, partidos políticos, clubes, etc..) colocam seus alunos cada um no seu devido lugar e acentuam portanto as hierarquizações desta “maquinaria”.

Faz-se necessário salientar que a Educação longe de ser subordinada à Psicologia é em relação a esta “supra-ordinada”, ou seja, devemos compreender que a Educação em seu poder, demarca inexoravelmente a única maneira de compreender a gênese da disciplinaridade e o crescimento do poder disciplinar em que vivemos hoje. Isto significa dizer, ainda segundo SILVA (2002) que:

“...a disciplinaridade e o poder disciplinar têm, na Educação, a sua gênese e fixação. Portanto, dela emana a calculabilidade do mundo moderno: um mundo no qual todos nós reconhecemos e internalizamos os valores que cada um tem e as posições que cada um ocupa. É daí que decorre a governamentalidade. Assim entendido o papel da Educação, não há como discordar do status [grifo do autor] subordinado que lhe têm a Filosofia moderna e, principalmente, as chamadas Ciências Humanas [incluo neste contexto a Psicologia].É daí também que decorre a idéia de que a prática educacional é o elemento de conexão entre o poder e o saber, ocultado pelo hífen que liga os dois termos”. (p. 238).

Vimos também no capítulo quatro como a prática pedagógica denominada de Escola Nova tanto quanto à pedagogia calcada nos pressupostos críticos de cunho marxista buscaram fundamentar uma prática escolar que funcionasse no sentido de educar as crianças para a liberdade, para a auto-iniciativa, para a independência “transformando-as” em adultos racionais.

Portanto o envolvimento da educação e da pedagogia em mecanismos de poder e controle não foi nenhuma novidade para a teoria educacional crítica, sendo mesmo sua característica principal. O que distingue assim, esta posição de uma análise foucaultiana é a ênfase que esta dá ao caráter necessário e produtivo do poder, enquanto a teoria crítica de inspiração marxista verifica que o poder distorce, mistifica e reprime o sujeito o alijando e excluindo socialmente. Ao contrário desta, quando o poder é constituído, produzido como vimos no capítulo anterior, ele cria identidades, subjetividades que não representa nenhuma distorção em relação a alguma essência humana, que se fosse deixada seguir livre seguiria o seu verdadeiro fluxo. Para SILVA (2002):

“A regulação e o governo dos sujeitos e das populações são mecanismos necessários para ‘canalizar’ suas capacidades para objetivos produtivos, no sentido de utilidade para o poder. Mas essa regulação e governo não estão necessariamente centralizados em qualquer instituição específica, como o Estado, por exemplo. O que caracteriza a sociedade contemporânea é precisamente o caráter difuso desses mecanismos de regulação e controle, dispersos que estão em uma ampla série de instituições e dispositivos da vida cotidiana. A educação é certamente um desses dispositivos, central na tarefa de normalização, disciplinarização, regulação e governo das pessoas de das populações.” (p. 252).

Apesar de seu discurso crítico, tal perspectiva pedagógica não está isenta de envolvimento em relação ao poder, a regulação dos corpos e ao governo das populações. Pois usando uma terminologia vista no capítulo anterior usa também esta perspectiva de “tecnologias do eu” com sua correlata implicação na produção de determinados tipos de personalidades que tem na Psicologia a ciência que se ocupa deste estudo. Quando usa sua operação convencional de examinar os dispositivos e práticas tradicionais ligados aos interesses de determinada classe e ao poder, supostamente a teoria crítica estaria cumprindo seu papel libertário em relação ao sujeito, ou seja, de estabelecer uma relação de não-poder.

Notadamente nos nossos dias, há outros pressupostos genericamente conhecidos como construtivistas, que calcados na psicogenética de Jean Piaget buscam mostrar que a criança em desenvolvimento é um objeto tomado como premissa localizável dentro desta própria criança. Tal perspectiva goza de status científico e fonte de conhecimento seguro sobre a infância e os processos psicológicos que nela ocorrem, sendo portanto campo de domínio da Psicologia enquanto ciência. No entanto, o que cabe aqui ressaltar é que ao moldar as práticas educacionais através destes conceitos, às teorias construtivistas contribuem decisivamente para constituir indivíduos enquanto objetos de seu olhar, logo, produzindo-os também enquanto sujeitos. Sendo assim, na medida em que tal Psicologia cria um regime de verdade sobre esta criança, tomando como pressuposto um indivíduo psicológico, proíbe outras formulações que não repitam este dualismo conceitual que distingue o indivíduo e a sociedade onde este vive.

Os aspectos do que é denominado de domínio social são entendidos como elementos que vêm de fora, passando a influenciar, dirigir, conduzir, afetar o desenvolvimento infantil dentro de uma perspectiva construtivista piagetiana. Portanto neste enfoque, caberia à escola articular e montar, da melhor maneira possível, estas influências, direções e conduções, realizando uma certa polaridade no tocante ao que é interno e o que é externo ao sujeito. Uma concepção, que fugisse desta teorização, nos conduziria a um pensamento de que a Psicologia do desenvolvimento tomaria para si valores de verdade que são, em última instância, como vimos determinados historicamente – e por conseguinte não são, por isto mesmo, os únicos saberes possíveis para a compreensão da inteligência infantil; além disto teríamos que ter bem claro que através das práticas escolares colocadas em funcionamento pelas pedagogias de cunho construtivistas, não haveria meramente simples aplicações de conhecimentos científicos sobre o desenvolvimento cognitivo das crianças, portanto não se perderia de vista que tais práticas estão implicadas na produção e legitimação destes conhecimentos.

Como observamos anteriormente tanto para a concepção teórica crítica de cunho marxista quanto para a pedagogia construtivista, há de acordo com os pressupostos foucaultianos certo equívoco, pois segundo tal análise teria se instalado para estas abordagens um outro regime de regulação e controle não necessariamente mais benéfico, pois ambas teriam a ilusão de transcender ao caráter necessariamente regulativo e de controle da educação e da pedagogia. O que como vimos enquanto há saber há presença de relações de poder. Portanto mesmo que não admitam, estas concepções mantém ainda em seus discursos tais relações que colaboram na manutenção da dominação e controle disciplinar que permeia a educação contemporânea.
É bastante difícil pensar a educação fora do contexto instaurado pelo pensamento Iluminista de razão, pois a história da educação de massas e do pensamento inaugurado com o Iluminismo, de certa forma quase se confunde. Portanto a Educação institucionalizada que herdamos deste tipo de pensamento se difunde nos currículos existentes, além de que é na Razão onde estão montados os objetivos educacionais. Em muitos sentidos portanto a educação passa a ser sinônimo de produção de racionalidade, bem como dentro do contexto deste capítulo podemos dizer que um dos objetivos centrais das Psicologias Desenvolvimentistas é produzir a criança racional. Vivemos numa era em que todos estes pressupostos estão sendo colocados em questão por variadas perspectivas, logo é fundamental repensar estas questões no âmbito da Educação. As visões mais atuais devem levar em conta, portanto, ás condições da época em que se desenvolve esta prática pedagógica e não balizá-la por um viés de essência humana abstrata e universalizante. Sabemos hoje que a noção de Razão é calcada por uma contingência eurocêntrica, masculina, branca, burguesa e setecentistas, logo circunscritas a um local e tempo histórico determinado que não pode ser generalizado. Para SILVA (2002):

“Em termos mais educacionais, o desenvolvimento da criança pensante e racional, como um objetivo abstrato, deixa de lavar em conta exatamente o caráter relacional, contextual e histórico do pensamento. Ao ter como objetivo a produção desse ‘pensador’ descontextualizado, a educação e, sobretudo, as psicologias desenvolvimentistas, tendem precisamente a universalizar e a abstrair a noção de razão, ocultando com isso seu caráter particular e histórico. Esse raciocínio, assim concebido e desenvolvido, separado da consideração de seu objeto, tende a despolitizar o processo de pensamento, na exata medida em que o concebe fora e acima de seu contexto político e histórico.” (p. 256).

Cabe um exemplo eminentemente prático desta questão sobre esta contextualização dentro do processo educacional brasileiro. Destarte hoje podemos destacar que a heterogeneidade etno-racial em nosso país nos leva a pensar constantemente numa redefinição de nossa atuação junto à escola com o objetivo de nos adaptarmos constantemente a nossas próprias e variadas diversidades e peculiaridades enquanto nação. Dentro desta perspectiva é de grande importância à vitória dos grupos ligados à defesa dos direitos dos afro-brasileiros, no tocante à aprovação da lei 10.639 de 2003 que alterou a LDB e institui como obrigatório o ensino da História da cultura africana e afro-brasileira nas escolas de ensino fundamental e médio em todo o Brasil. Tal lei vem de encontro aos anseios destas parcelas de nossa população que foram ao longo de nossa História estigmatizadas pelo preconceito e racismo existentes, e que tem nesta lei uma maneira de se debelar a tão pregada e falsa “democracia racial” de nosso país.

A escola foi à instituição moderna que mais ampla e disseminadamente procedeu a uma íntima articulação entre o poder e o saber, tendo nos saberes a correia transmissora e legitimadora dos poderes que ainda se encontram ativos em nossa sociedade, que instituíram e continuam a instituir o sujeito. Para uma perspectiva foucaultiana de educação portanto mais do que subjetivo, o discurso subjetiva. Este trabalho, em consonância com uma postura foucaultiana, postura esta que se caracterize pela mais completa e permanente desconfiança sobre as verdades que se costumam tomar como dadas, naturais e tranqüilas, procurou analisar a subjetividade, as possibilidades de aprendizagem e as práticas pedagógicas que estão permeadas na escola.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste trabalho tivemos a oportunidade de mostrar o quanto a escola está permeada por relações de saberes e poderes e como estas relações estão no nosso cotidiano. Percebemos também que determinada forma de ser do sujeito pode e deve ser levada em conta de maneira a respeitar não só seus direitos como cidadão mais também sua subjetividade e potencialidades. Concluímos, nesta monografia, que o pensamento e subjetividade do homem se relacionam e que diversos fatores biopsicossociais influenciam neste estar no mundo do sujeito cognoscente, principalmente no cotidiano escolar.

Concluímos com relação à origem do conhecimento que o princípio da diferença permitiu-nos entender o homem como ser que está em constante transformação, permeado pela cultura, bem como atravessado por sua própria subjetividade e historicidade. No entanto, bem sabemos que nossa sociedade ainda se caracteriza pelo primado kantiano de possibilidade de conhecimento legislado pela razão e racionalidade que são ainda os paradigmas vigentes e que visam estabelecer uma pedagogização para as demandas capitalistas de se tornarem o sujeito cognoscente num adulto capaz e produtivo.

Concluímos, ao longo deste trabalho, que várias teorias tentaram estabelecer um primado sobre a atuação junto a esta criança e a escola, inserindo técnicas de controle, métodos disciplinares e normatizações que instaurassem como perspectiva um ideal moderno e racional de conhecimento. Algumas teorias pedagógicas acrescentaram determinado tipo de olhar sobre a infância. No tocante ao nosso país, introduziram diversas práticas pedagógicas de outras sociedades para tentarem entender a realidade e a especificidade brasileira, caracterizada predominantemente por depositar a “culpa” da não apreensão dos conteúdos ministrados na escola ao próprio sujeito, família, ao meio social. Outras perspectivas pedagógicas, alicerçadas em pesquisas e pressupostos difundidos pela Psicologia, tentaram relacionar não só à problemática individual, mas também aos determinantes sócio-culturais “inapropriados” das populações de baixa renda que “naturalmente” por suas “carências” teriam explicado suas dificuldades no tocante ao saber ministrado pela escola, e as conseqüentes dificuldades encontradas na questão da relação ensino-aprendizagem. Teorias críticas marxistas mostraram que estas relações dos alunos nada mais fariam do que encenar as contradições mais amplas da sociedade brasileira, pois conseguiram demonstrar eficazmente, a falácia do mito da neutralidade no processo educativo. Portanto, dentro do contexto histórico brasileiro, todas estas concepções pedagógicas tomavam certo viés “religioso”, tentando “salvar” as populações de baixa renda de suas limitações, combinando dispositivos científicos de cunho racional a práticas reducionistas que distinguem ainda o indivíduo de seu meio biopsicosocial e que estabelecem uma verdade e um determinado saber sobre a escola e suas práticas no tocante a seus alunos.

A proposta de referencial foucaultiano buscou uma tentativa de superação a estas questões por não perder de vista as diversas instâncias que permeiam o sujeito da educação. Michel Foucault e seus pressupostos metodológicos sobre a relação entre os saberes e os poderes bem como seus desdobramentos no tocante a Educação acrescentam a estas críticas o enfoque do saber relacionado ao poder e portanto amplia o conceito moderno de razão e racionalidade, sob o qual as teorias críticas se fundamentaram. No entanto, dentro do escopo deste trabalho buscamos pensar a escola e sua relação com a criança na sua forma concreta de práticas discursivas e não discursivas em constante fluxo que engendram multiplicidades. Tanto o método arqueológico quanto o genealógico foucaultiano portanto nos mostram o que estas teorias críticas sobre as práticas pedagógicas não foram capazes de analisar; o quanto nossas escolas produzem tanto disciplinaridade, normatização e poderes que excluem a possibilidade de subjetivação deste sujeito cognoscente.

Cabe salientar que no tocante as práticas escolares que se aproximem de uma perspectiva foucaultiana é mister que estejam atentas tanto às ações quanto aos discursos, pois enquanto há saber há também presentes correlatas relações de poder que não podem ser mascaradas ou eliminadas da prática pedagógica; muito menos alicerçadas por práticas psicológicas que não levem em conta o questionamento do que significa ser homem ou tornar-se humano, ou mesmo utilize seu cabedal somente para enquadramento e rotulação de uma criança que não aprende.

Concluímos que a temática aqui exposta não se esgota no presente texto, sendo apenas uma possibilidade de leitura que se faz no tocante à atuação da prática psicológica junto à Educação e suas relações e produções de sentido no cotidiano. Pois como foi anteriormente explicitado para uma postura foucaultiana há de se ter em conta o caráter mutável, histórico e contingente destas relações e produções.


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