ARTIGO

A perspectiva de intersubjetividade na abordagem gestáltica.

The intersubjectivity perspective in the gestalt approach.

Elizabeth da Costa Ribeiro


RESUMO

Este artigo visa abordar a questão da intersubjetividade como fundamento da Abordagem Gestáltica. Trataremos da idéia de ser-com de Heidegger e da concepção dialógica de Buber como conceitos que vêm ao encontro da noção gestáltica de fronteira-relacional-de-contato, a fim de ampliar o campo das reflexões em Gestalt-terapia.

Palavras-chave: Gestalt, intersubjetividade, ser-com, dialógica.


ABSTRACT

The present article aims at approaching the intersubjectivity issue as the guide of the Gestalt Approach. In the light of Heidegger’s view of being-with and Buber’s dialogic concept, certain ideas which are related to the Gestalt notion of the relational contact frontier will be discussed as a means of enlarging the reflections on Gestalt therapy.

Keywords: Gestalt, intersubjectivity, being-with, dialogic.


A psicanálise freudiana se caracteriza como uma teoria explicativa da natureza humana baseada num modelo de intrasubjetividade. O enfoque é na vida pulsional, inconscinte, que se dá numa dinâmica de forças. Freud transpõe este modelo para tentar explicar a vida social. Sua idéia é que as relações humanas, a vida social, e até mesmo, os eventos históricos, poderiam ser explicados pela dinâmica id, ego e superego. Assim, o entorno social seria um mero reflexo desta dinâmica de forças psíquicas. Freud aplicou o modelo de uma psicologia individual, intrasubjetiva e cartesiana aos fenômenos sociais. Dissidentes da psicanálise como Sullivan, Adler e Fromm, divergiram deste modelo intrapsíquico aplicado aos fenômenos sociais, daí terem sido considerados culturalistas.

No entanto, Fritz Perls (precurssor da Gestalt-terapia), envolvido com as noções emergentes pós-Freud, distancia-se da tradicional concepção psicanalítica e contribui para o campo da psicoterapia com insights revolucionários. Para Perls, as defesas psíquicas não se caracterizam como mecanismos intrasubjetivos, relacionados as fases do desenvolvimento psicosexual da criança, assim como elaborado por Freud. Já na visão perlsiana, as defesas ocorrem na fronteira de contato, na relação homem-mundo. Por exemplo, como afirma Perls, a introjeção neurótica, ocorre quando nos vemos obrigados a “engolir” valores morais e teorias sem “mastigá-las” e sem “digeri-las”.

Perls critica o modelo cartesiano da psicologia. A abordagem gestáltica desloca-se de uma perspectiva tradicional acerca da subjetividade, a qual concebe o indivíduo como passível de ser entendido em si mesmo (intrasubjetividade), para uma perspectiva que contempla as interações grupais e seus processos (intersubjetividade ou interexistência). Em Gestalt temos uma proposta holística a qual afirma que “o todo não é uma mera soma de partes”, daí a noção de “auto-regulação” ou “campo unificado” como inter-relação pessoa-mundo. Não existimos como um “eu” dentro de um corpo. Experimentamos nosso estar vivo como seres humanos inteiros, sempre numa relação com o outro e numa situação concreta. Afirma Perls (1988, p. 32):

(as psicologias clássicas) dividiram a experiência em interior e exterior e então se defrontaram com a pergunta insolúvel de se o homem é regido por forças de fora ou de dentro. Este tipo de abordagem, esta necessidade de uma causalidade simples, esta omissão do campo total, estabelece problemas de situações que, na realidade, são indivisíveis. (...) posso dividir a frase ‘Eu vejo uma árvore’ em sujeito, verbo e objeto. Mas na experiência o processo não pode ser cindido desta maneira. Não há vista sem algo para ser visto. Nem algo é visto se não há olho para vê-lo.

Esta noção de Perls irá marcar todo o curso da Gestalt-terapia como uma perspectiva holística (no sentido grego da palavra, holos - todo). Por isso é que à luz da Psicologia da Gestalt, da Teoria de Campo de Kurt Lewin e da Gestalt-terapia, quando falamos de “terapia de grupo”, não estamos falando de “terapia em grupo”, porque esta última denominação pressupõe o paradigma da psicologia clássica de atendimento ao indivíduo, porém, numa configuração de grupo. A terapia de grupo contempla e lida com a complexidade das interações grupais e sua dinâmica.

Na perspectiva da ontologia fenomenológica de Heidegger encontramos uma crítica contundente à tradição cartesiana de um indivíduo racional fechado num “eu penso”. Em Heidegger, o conceito de “ser-com” (cuidado) torna-se o eixo de suas reflexões. Para este filósofo o viver humano é uma eclosão que acontece no encontro eu-outro. O fenômeno do ser-com está na raíz do mundo humano, ou seja, é o que constitui ontologicamente a existência humana. Afirma Heidegger (1989, p. 175):

Enquanto ser-com, a pre-sença (o existir humano) ‘é’, essencialmente, em função dos outros. Isto deve ser entendido, em sua essência, como uma proposição existencial. Mesmo quando cada pre-sença de fato não se volta para os outros, quando acredita não precisar deles ou quando os dispensa, ela ainda é no modo de ser-com.

Para Heidegger eu e outro não são sujeitos encapsulados, assim como elementos à parte um do outro, como fatos que possam ser observados isoladamente. O eu não encontra agora o outro e/ou as coisas para depois deixar de encontrá-las. O eu e o outro encontram-se de uma forma peculiar, a qual Heidegger identifica como um fenômeno de totalidade. Mundo em Heidegger é sempre "mundo compartilhado", como uma teia, trama ou rede de relações. O homem se revela nas relações que trava no mundo, tanto naquilo que faz e empreende, quanto no trato com o outro. Viver significa participar de um entrelaçamento, uma rede imbricada que origina o tecido de relações no mundo. Viver é, fundamentalmente, "conviver".

O conviver implica em vários modos e possibilidades. Atração e repulsão, aproximação e afastamento, contato e retraimento, simpatia e antipatia, concordância e discordância, todas essas formas são modalidades ou possibilidades do convívio humano. Entretanto, a convivência cotidiana é guiada por diferentes possibilidades de convivência: aquela que não reconhece o outro em suas possibilidades existenciárias (inautenticidade) e aquela que afirma e observa tal condição (autenticidade).

Também para a Abordagem Gestáltica a concepção de subjetividade implica em abordar a vida humana como “vida-em-relação”, como “viver-em-um-mundo”, daí o conceito gestáltico de “fronteira-relacional-de-contato”. Como afirma Perls (1988, p. 31): “Ninguém é auto-suficiente; o indivíduo só pode existir num campo circundante”. Para a Gestalt ocorre uma interdependência inalienável “eu-outro”, “eu-mundo”, “eu-sociedade”, “eu-cultura”, sendo que este “eu” não pode ser tomado ao modo da Psicologia Clássica, como um “eu” em si mesmo, mas um “eu” aberto sempre referido ao outro e às suas condições. A pessoa é sempre em situação, em relação, portanto, se desvela nas situações concretas da vida, em seus encontros e desencontros existenciais. O Gestalt-terapeuta tenta compreender os modos relacionais nas situações concretas vividas pelo cliente. E, ainda, compreender os vários sistemas relacionais que se formam e, baseado nisto, dialogar com o seu cliente, considerando que entre terapeuta e cliente também se forma um sistema relacional. Desta maneira, o cliente não se transforma num objeto de análise do terapeuta, pois ambos estão implicados. Portanto, compreendendo a subjetividade como um fenômeno de relação, entende-se, da mesma forma, o âmbito psicoterapêutico como um encontro no qual ocorre uma mútua afetação.

Martin Buber (1982) em seu livro “Do diálogo e do dialógico”, aborda o fenômeno do inter-humano. Para ele o terapeuta não é um observador que se preocupa em anotar traços de comportamento, ele é antes, um contemplador, tal como o artista, confia num trabalho orgânico e aguarda livre e despreocupadamente o que lhe virá. Desta maneira trava com seu cliente um conhecimento íntimo.

Atualmente, o Gestalt-terapeuta Richard Hycner (1995), apoiado na filosofia de Buber, propõem uma psicoterapia dialógica, ou seja, uma noção que contemple o fenômeno do “entre” relacional. Diferentemente da dialética, que pretende alcançar uma síntese racional, a dialógica se propõe a ficar com aquilo que é figura na relação terapeuta-cliente. Entretanto, a Gestalt-dialógica não se refere somente ao discurso, mas ao fato de que a existência humana é relacional. A pessoa é um dos pólos numa bipolaridade ou numa multipolaridade. Para Buber (1982, p. 139) o sentido do inter-humano “não se encontra nem em um dos parceiros, nem nos dois em conjunto, mas encontra-se somente neste encarnado jogo entre os dois, neste seu Entre”. Para Buber o fenômeno do “entre” não se limita a um conceito psíquico mas refere-se a um fenômeno ontológico.

O termo “diálogo”, em sua origem grega, significa “movimento-através da palavra”. Portanto, o terapeuta, fundamentado numa perspectiva do ser-em-relação, encontra-se com seu cliente, num movimento interexistencial que pode se dar pelas múltiplas formas de expressão humana, ou seja, pela palavra e suas histórias, pelos gestos e seus movimentos, pelo corpo e sua expressividade, pelo desenho e suas formas...

Heidegger, Buber e Perls, cada um ao seu modo, assinalam que existimos sempre numa relação de alteridade. Para estes autores, o relacionar-se, seja de uma forma autêntica ou inautêntica, fundamenta o existir humano.

Se por volta de 1900, nos primórdios da psicanálise e da psicoterapia, tínhamos uma cultura repressiva, que conforme assinalou Freud, era geradora de mal estar e sofrimento, compreendemos que, as dores do homem pós-moderno, o qual vive numa cultura técnico/consumista, decorrem de seu apartamento do outro, de seu isolamento e solidão. Para viver não podemos prescindir do outro, tal como retrata sensivelmente Tom Hanks no filme O Náufrago. Chuck Noland (personagem de Hanks), sobrevivente de um acidente aéreo e perdido em uma ilha deserta, não sobreviveria sem seu “Wilson”!

Portanto, entendemos que a experiência da convivência autêntica e do diálogo é uma possibilidade de abrir um campo de potências geradoras, de atitudes que produzam diferenças num mundo carente de sentidos dialogais-relacionais. Este é, a nosso ver, o lugar ético do psicoterapeuta na contemporaneidade.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUBER, M. (1982) Do diálogo e do dialógico. São Paulo: Perspectiva.

HEIDEGGER. (1989) Ser e tempo. Petrópolis: Vozes.

HYCNER, R. (1995) De pessoa a pessoa. Rio de Janeiro: Summus.

PERLS, F. (1988) A abordagem gestáltica e a testemunha ocular da terapia. Rio de Janeiro: LTC.

RIBEIRO, Elizabeth da Costa. (2000) Existência humana e responsabilidade: definindo uma ética heideggeriana a partir de Ser e Tempo. Dissertação de mestrado, UGF.