Corrêa, A. P. A - “Diálogos da alquimia ocidental com a Gestalt-terapia.”
Diálogos da alquimia ocidental com a Gestalt-terapia
Dialogues of western alchemy with Gestalt-therapy
Diálogos de la alquimia occidental con la terapia Gestalt
Ana Paula Amaral Corrêa
Universidade FUMEC
RESUMO
A alquimia ocidental remonta à época de Alexandria, no Egito, e foi trazida à compreensão da modernidade pelo psiquiatra suíço e fundador da psicologia analítica, Carl Gustav Jung, após pesquisa de mais de 30 anos sobre o assunto. Jung concluiu que as imagens da alquimia ocidental concretizam experiências de transformação nas pessoas em trabalhos psicoterápicos. A alquimia também propõe acelerar processos que poderiam demorar bastante a se concretizarem em condições normais. Sendo assim, proponho, neste artigo, um breve diálogo entre a alquimia ocidental e a Gestalt-terapia – uma das abordagens psicoterapêuticas de inspiração humanista –, refletindo sobre os principais fundamentos da alquimia e sua aplicabilidade à Gestalt-terapia, sobretudo, a partir da concepção das relações humanas, e da noção de laços da gestalt-terapeuta Beatriz Cardella.
Palavras-chave: Alquimia ocidental; Gestalt-terapia; Contato; Nós e laços.
ABSTRACT
Western alchemy dates back to the time of Alexandria, in Egypt, and was brought to the understanding of modernity by the Swiss psychiatrist and founder of analytical psychology, Carl Gustav Jung, after more than 30 years of research on the subject. Jung concluded that the images of Western alchemy embody experiences of transformation in people in psychotherapeutic work. Alchemy also proposes to accelerate processes that could take a long time to materialize under normal conditions. Therefore, in this article, I propose a brief dialogue between Western alchemy and Gestalt therapy – one of the humanist-inspired psychotherapeutic approaches –, reflecting on the main foundations of alchemy and its applicability to Gestalt therapy, especially from the conception of relationships, bonds and nodes brought by this approach to Psychology.
Keywords: Western alchemy; Gestalt therapy; Contact; Knots and ties.
RESUMEN
La alquimia occidental se remonta a la época de Alejandría, Egipto, y fue llevada a la comprensión moderna por el psiquiatra suizo y fundador de la psicología analítica, Carl Gustav Jung, después de más de 30 años de investigación sobre el tema. Jung concluyó que las imágenes de la alquimia occidental encarnan experiencias de transformación de las personas en el trabajo psicoterapéutico. La alquimia también propone acelerar procesos que podrían tardar mucho en materializarse en condiciones normales. Por ello, en este artículo propongo un breve diálogo entre la alquimia occidental y la terapia Gestalt –uno de los enfoques psicoterapéuticos de inspiración humanista–, reflexionando sobre los principales fundamentos de la alquimia y su aplicabilidad a la terapia Gestalt, especialmente desde la concepción de las relaciones, los vínculos y nodos que trae este enfoque de la Psicología.
Palabras clave: Alquimia occidental; Terapia Gestalt; Contacto; Nudos y ataduras.
1 INTRODUÇÃO
A tradição antiga denominada “alquimia ocidental” originou-se da conjunção entre a filosofia racional grega (uma filosofia da natureza) e uma técnica químico-mágica[1] existente na civilização egípcia (FRANZ, 2022). Inclusive, acredita-se que a etimologia da palavra “alquimia” derive do árabe al kimiya, que significa “arte mágica da Terra Negra” em referência ao Egito (GAETA, 2022).
Na Europa, a alquimia teve um período florescente, na Grécia, durante os séculos II e III, seguido por um declínio gradual que durou até o século X. Depois deste período, uniu-se à filosofia escolástica e assim prosseguiu em seu desenvolvimento ulterior (FRANZ, 2022). Com a criação das universidades, surgiu a figura do médico alquimista, sendo Paracelso um dos mais reconhecidos. Para os alquimistas europeus, a vontade (e sua manifestação em imagens) deveria unir-se ao processo imaginativo para nortear a pessoa em seu caminho de transformação e do encontro consigo mesma (GAETA, 2022).
Alquimistas como Zózimo, um grego egípcio considerado o maior alquimista do século III, acreditavam que o mistério da estrutura do universo estava neles mesmos, de modo que a pessoa poderia examiná-lo diretamente e o faria pedindo à matéria o mistério do qual ela consiste[2], para que a matéria lhe dissesse o que a pessoa é, ou seja, para que a pessoa pudesse ter a essência de seu próprio mistério revelada a si (FRANZ, 2022).
Os antigos alquimistas, ao trabalhar a matéria em seu laboratório, tinham percebido haver uma relação de correspondência desse trabalho em nível psíquico e material, de modo que ambos poderiam transformar-se. E, com isso, foi possível concluir pela projeção de conteúdos psíquicos na matéria, o que, em termos clínicos, o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung[3] notou se referir à ideia de transferência na relação do terapeuta com o paciente.
O suíço C. G. Jung possuía a maior coleção de livros de alquimia de todo o mundo em sua época. Ele coletou e então fez um registro sinóptico com referências através de toda a literatura alquímica (FRANZ, 2022).
O psiquiatra suíço passou grande parte de sua vida trabalhando uma base alquímica teórica e prática para a abordagem da psicologia que ele criou. Jung percebeu que, sendo a linguagem alquímica toda metafórica, ela tem, como efeito, levar o paciente à reflexão da metáfora de si mesmo. Logo, o que ele propôs não foi um retorno literal para a alquimia, mas uma restauração do modo alquímico de imaginar (HILLMAN, 2011).
A partir da proposta dele, portanto, a psicologia passou a ser pensada conjuntamente com a alquimia, sendo Jung a referência até hoje no assunto. Um dos alquimistas mais citados pelo suíço é Gérard Dorn, médico alemão do século XVI, que foi discípulo de Paracelso (GAETA, 2022).
Os diálogos com minha orientadora, que deram origem a este artigo, também demonstraram ser possível haver uma conversa entre a alquimia ocidental e a Gestalt-terapia, como será demonstrado.
2 OBJETIVOS
O objetivo geral consiste em demonstrar as principais possibilidades de encontro dos aspectos fundamentais da alquimia ocidental com a Gestalt-terapia – uma proposta inovadora na literatura.
Os objetivos específicos são:
Considerando que a alquimia é bastante complexa, a linguagem a ser utilizada deve ser clara e objetiva, a fim de possibilitar que a compreensão do leitor seja a mais proveitosa possível.
Ademais, distintamente da teoria do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, que pensou a alquimia ocidental a partir da Psicanálise por ele proposta, o presente estudo precisará partir de noções da teria de campo, sem recurso a explicações tão imagéticas quanto as apresentadas pelo suíço. Para compreensão dos principais pontos de toque da alquimia ocidental com a Gestalt-terapia é mais relevante a compreensão de como os sujeitos atuam em suas relações e do que pode potencializar seus encontros ou causar seus desencontros, ou seja, de como as transformações podem ser possíveis no campo relacional para que este se desenvolva com harmonia e sem obstáculos.
3 METODOLOGIA
A pesquisa consiste em uma revisão bibliográfica que visa esmiuçar teoricamente, em um modelo sintético de artigo, a questão da origem da alquimia, de suas noções fundamentais e de seu valor terapêutico, a partir dos ensinamentos do psiquiatra suíço Carl Gustav Jung e de seus discípulos e seguidores Marie-Louise von Franz e James Hillman.
Serão utilizados os conceitos de Gestalt-terapia apresentados por Lilian Meyer Frazão e Karina Okajima Fukumitsu, apresentados pela coleção “Gestalt-terapia: fundamentos e práticas”.
No tocante ao relacionamento terapêutico de abordagem humanista, serão considerados os ensinamentos de José Paulo Giovanetti relativamente à fenomenologia, assim como as considerações de Phill Joyce e Charlotte Sills sobre o relacionamento terapêutico na clínica de abordagem da Gestalt-terapia.
O aspecto unificador da narrativa será dado pelas considerações de Beatriz Helena Paranhos Cardella, que trata dos laços e nós nas relações humanas.
4 RESULTADOS
A relevância temática do artigo está na inovação que apresentou ao relacionar noções da alquimia ocidental à Gestalt-terapia, uma vez que, após vasta pesquisa, não foi encontrado na literatura acadêmica um cotejamento destas duas formas de linguagem.
A partir dessa proposta de perscrutar uma relação como esta, pouco investigada no âmbito acadêmico, mostrou-se ser possível trazer à luz com este estudo contribuições para que o terapeuta tenha uma compreensão mais profunda do seu paciente, com reflexos na melhoria da qualidade dos contatos a serem estabelecidos por este profissional. Com o sistema self do paciente mais desenvolvido, mais ajustamentos criativos podem ocorrer nas fronteiras de contato por ele experienciadas.
5 DESENVOLVIMENTO
5.1 O setting da Gestalt-terapia pensado sob a perspectiva da alquimia
O setting terapêutico é considerado um espaço seguro e adequado para que a transformação do paciente aconteça diante da presença do terapeuta, assim como acontece a transformação da matéria psíquica no vaso do alquimista.
Pressupõe-se que o terapeuta seja um profissional capacitado para a escuta empática do paciente e para a condução do processo, sendo igualmente relevante que o terapeuta esteja, de fato, disponível para que o encontro com o paciente seja genuíno, proveitoso.
Trabalhar com o sofrimento do paciente e com o restabelecimento da fluidez do processo de formação de figura/fundo dá trabalho e demanda tempo. O desafio do alquimista também é contínuo e busca o equilíbrio para que as operações deem certo e o chumbo seja transformado em ouro (vida realizada).
Segundo a psicóloga analítica Renata Whitaker, no processo alquímico, é necessário utilizar os quatro elementos: o ar, dos pensamentos, da reflexão, do discernimento, das associações; a água, dos sentimentos, das emoções que nos movem; o fogo, da transformação e da depuração; e a terra, do enraizamento, da espera, da concretização. Esses elementos precisarão estar em equilíbrio durante o processo (GAETA, 2022).
Por essa razão, a alquimia também é equiparada à metáfora do cozinhar, uma vez que devem ser escolhidos os ingredientes certos, a quantidade adequada, os melhores temperos e a panela correta, além da temperatura e do tempo corretos para que o resultado seja uma comida saborosa. E foi por isso que, ao longo de nossos diálogos, eu e minha orientadora também nos lembramos da poesia de Adélia Prado, já que cozinhar com amor também alimenta a alma: “Minha mãe cozinhava exatamente: arroz, feijão-roxinho, molho de batatinhas. Mas cantava” (PRADO, 1987).
5.2 O conceito de mundo em Gestalt-terapia e a teoria holística
Segundo Jorge Ponciano, o conceito de mundo para a Gestalt-terapia nasceu primeiramente do holismo de Jam Fleming Smuts,
que considera o mundo como um grande todo, funcionando através de todos e se constituindo por meio de uma interminável evolução de todos em todos. Dessa forma, o mundo equivaleria a um holograma em que cada parte contém todas as outras, sendo cada parte ou subtodos, miniaturas do todo maior (PONCIANO, 2011).
A teoria holística é, contudo, apenas uma das teorias que explicam o conceito de mundo para a Gestalt-terapia, mas essa concepção está diretamente relacionada ao postulado alquímico de que “o que está em cima é como o que está embaixo” – princípio hermético da “correspondência”, que é uma das sete leis herméticas universais derivadas dos escritos de Hermes Trismegisto[4].
Esse princípio explica a razão de os antigos alquimistas ter notado haver uma correspondência do trabalho deles em nível psíquico e material.
5.3 A relação terapêutica: o humano como terra fértil
Um dos pilares da Gestalt-terapia é a fenomenologia, sendo o grande objetivo do trabalho fenomenológico o de compreender o sentido do fenômeno, ou seja, a busca pela essência do ser enquanto se manifesta. Assim sendo, captar o plano profundo da pessoa equivale a captar a sua dinâmica existencial. (GIOVANETTI, 2018)
Segundo Beatriz Cardella, o ser humano tem uma dimensão ôntica e ontológica:
a dimensão ôntica do ser humano refere-se à situação concreta da pessoa; é dimensão espaço-temporal, biográfica, e a acolhemos quando trabalhamos os conflitos, as vicissitudes relacionais, as dificuldades, os recursos, os limites, os projetos de nossos pacientes. A dimensão ontológica é contemplada quando o terapeuta busca a compreensão do paciente como pessoa; as condições que compartilha com os seus semelhantes: a precariedade, a finitude, a liberdade, a criatividade, a transcendência, a singularidade, a responsabilidade, a abertura ao outro, o pertencimento, a hospitalidade, o cuidado, a amizade, a comunidade, a poesia etc. A dimensão ontológica encaminha o paciente para sustentar-se na condição humana, alcançando a serenidade. É a recordação dos fundamentos (CARDELLA, 2009).
Nessa perspectiva, o sofrimento é memória do fundamental; o sofrimento de um é sempre de muitos, o que significa também que há nele uma dimensão singular e outra universal (FRAZÃO, 2020).
Ainda segundo essa perspectiva antropológica da Gestalt-terapia, o ser humano é um vazio fértil, é uma totalidade que jamais pode ser preenchida, nomeada, mas, ao mesmo tempo, é um ser pleno de potencialidades singulares, é transformação ambulante na direção da realização, é o artista da vida – como nos recorda Perls (1979) –, engajado na obra de ser si mesmo, sempre diante do outro (FRAZÃO, 2020).
A comparação do ser humano a um vazio fértil nos lembra da fertilidade das terras negras do rio Nilo, que deram origem à palavra “alquimia”. Na alquimia, o termo “negro” diz respeito à nigredo[5], isto é, à confusão inicial que também pode ser pensada como o sofrimento humano; e todo sofrimento traz em si inúmeras possibilidades para a transformação, assim como a metáfora da ostra que produz uma preciosidade a partir de um grão de areia que a incomoda/fere[6]. Logo, a terapia pode devolver ao paciente a esperança que emerge do sofrimento.
O sofrimento é um fenômeno do campo, é relacional e decorre tanto dos desencontros vividos quanto dos encontros não acontecidos. O sofrimento é um apelo ao outro, uma ausência que anseia por presença. Logo, quando acontece o encontro genuíno entre o paciente e o terapeuta, o sofrimento pode ser sustentado ou atravessado. Assim, o sofrimento torna-se passagem; e quando o paciente integra em si a experiência, ele pode ressignificá-la, de modo a reencontrar sua inteireza e ofertar sentido ao sofrimento que tinha (FRAZÃO, 2020).
Além disso, quando o terapeuta se faz presente[7] e se permite ser tocado pelo encontro com o paciente, ele também se transforma, sendo que o principal eixo da alquimia é justamente a transformação. Então, esse encontro entre terapeuta e paciente pode acontecer como duas substâncias que se unem e saem transformadas.
Porém, para ser afetado pelo outro, é necessário que haja abertura, entrega e aceitação. Quando isso acontece, para a abordagem humanista da Psicologia, o paciente pode encontrar morada no terapeuta e transformar seu sofrimento, o que é equiparável à superação da fase de nigredo na alquimia.
5.4 A existência humana saudável na concepção da Gestalt-terapia
Para a Gestalt-terapia, a existência humana saudável pressupõe a manutenção livre do fluxo de awareness[8], de modo que possa haver uma contínua configuração de formas, para o equilíbrio dinâmico da totalidade (FRAZÃO, 2014).
O surgimento das figuras de interesse no campo surge a partir de um excitamento na dimensão sentir da awareness, que envolve uma abertura sensível para ser afetado na travessia, pois quando surge uma necessidade, algo se delineia como figura no campo e o fundo indiferenciado começa um processo de diferenciação para atender tal necessidade. A capacidade plástica do campo e a completude do processo precisarão ser restabelecidas se ocorrer qualquer conflito quando da formação da gestalten – a qual consiste em uma unificação que dá sentido e integra o todo (FRAZÃO, 2014).
Um dos mais importantes princípios da alquimia está expresso na expressão solve et coagula, ou seja, dissolve e coagula. Os ciclos de contato que compreendem a vida da pessoa podem ser entendidos a partir dela, ou seja, o self se transforma a partir desse movimento de se diluir para abranger a nova experiência e se adaptar a ela, consolidando-se novamente no momento seguinte como integração do todo. Podemos traçar, assim, um paralelo entre essas questões.
Os ciclos de contato que compreendem a vida da pessoa podem ser entendidos a partir dela, ou seja, o self se transforma a partir desse movimento de se diluir para abranger a nova experiência e se adaptar a ela, consolidando-se novamente no momento seguinte para integração do todo. Esse processo, inclusive, pressupõe a capacidade de ajustamento criativo[9].
A função do terapeuta na análise é possibilitar que tanto a solutio quanto a coagulatio aconteçam sem obstáculos. O paciente deve encontrar morada no terapeuta para conseguir que seu sofrimento se transforme em abertura e passagem para novos significados.
Segundo Jorge Ponciano Ribeiro (2021),
(t)odos os ciclos (de contato) têm, no centro, o self, propriedade estrutural e estruturante existencial do sistema de contatos de pessoa humana. Self é uma força holística, integrada e integradora na e da pessoa humana. Ele é um subtodo, um subsistema, força sintética que promove, no ser humano, seu constante desenvolvimento e evolução através de sua estrutura, forma, funções e organização – e é por isso que nos é possível visualizar a pessoa como indivíduo único e singular (RIBEIRO, 2021).
Para a Gestalt-terapia, o ser humano vive em campos e é um ser relacional, não obstante o contato se dá no campo, que inclui fronteiras e contornos. Considerando isso, Ribeiro (2021) ensina que
existem vários níveis de contato: consigo mesmo, com o outro, com o mundo, do mundo conosco. Esses níveis de contato são fruto, primeiro, da percepção subjetiva que a pessoa tem de como se relaciona com o outro e, segundo, de como a realidade objetiva é captada pela nossa subjetividade (RIBEIRO, 2021).
Retomando a ideia alquímica da solutio, lembramos que a analista junguiana Irene Gaeta afirma que o amor e suas expressões também são símbolo da solutio, e são experiências que proporcionam desenvolvimento e criatividade (GAETA, 2022). O amor também pode ser pensado a partir da noção da conjunctio alquímica.
Logo, como o amor e a criatividade também são considerados elementos dos ciclos de contato no trabalho gestalt-terapêutico, esse é outro aspecto que identificamos em comum dessa abordagem com a alquimia.
Segundo a fenomenologia, todos nós compartilhamos a condição humana e necessitamos uns dos outros para viver, sendo que o livre-arbítrio e a capacidade criativa são as grandes dádivas da existência (CARDELLA, 2009).
5.5 Laços e nós: transformações alquímicas nos relacionamentos humanos
Pensar nos relacionamentos humanos nos leva a refletir sobre a intimidade nas relações humanas. A existência da intimidade entre duas pessoas pressupõe que seja estabelecida uma relação na qual a humanidade de ambos tenha lugar e seja honrada. A intimidade é morada, ou seja, um lugar aconchegante e seguro onde é possível ser e existir como se é, onde é possível repousar. O próprio acolhimento é uma espécie de silêncio que permite a escuta do outro (CARDELLA, 2009). Essa concepção do relacionamento amoroso está em sintonia com o entendimento do amor a partir da noção de conjunctio, onde aspectos masculino e feminino podem se unir de forma harmoniosa.
É impossível pensar em terapia sem considerar o acolhimento e a escuta do outro. Neste sentido, a Gestalt-terapeuta Beatriz Cardella (2009) trata das relações humanas a partir da ideia de laços e nós: “laços unem, valorizam, enriquecem”. Ao criar laços, criamos uma nova forma com base no encontro com outra pessoa. Já os nós são sofrimentos que revelam laços ausentes e almejados que podem ser desembaraçados para se transformarem nos laços de amanhã. Além disso, uma relação, de fato, requer diferença e união (CARDELLA, 2009).
Para os alquimistas, a conjunção (conjuctio) se trata da união, da junção do eu e do não eu; e o verdadeiro significado da conjunção é trazer o conhecimento de alguma coisa única e unida (GAETA, 2022). Sendo assim, também encontramos esse paralelo entre a alquimia e a Gestalt-terapia, ao pensarmos na formação de laços nos relacionamentos.
Ao pensar em união, em integração, não há como nos esquecermos do amor. O amor, em suas formas e facetas, é a possibilidade de realizar um projeto de integração, de unidade, de ligação primordial; e a dimensão transcendente do amor, ou seja, a experiência de abertura, de esvaziamento, de transformação e de mistério, que nos leva para além de nós mesmos. O amor tem várias facetas e não é apenas um sentimento, mas uma atitude diante da existência, como ressalta Cardella (2009).
O amor também está relacionado à existência de uma relação significativa, a qual permite que se alcance a vivência do sagrado, colocando ambos face a face com o mistério da existência e permitindo a abertura para o existir [no encontro da dimensão ontológica do ser humano]. Para que se estabeleça relações significativas, é preciso que haja, além de abertura para o outro, enraizamento, o que permite que a relação possa resistir às frustrações e ao sofrimento (CARDELLA, 2009).
Lembramos também que amor e intimidade só acontecem se a relação amadureceu[10], ou seja, como fruto de um processo, de uma entrega ao nós (CARDELLA, 2009).
Essa conjunção é pura alquimia que pressupõe tempo e dedicação, ao permitir às pessoas transformarem-se sem se perderem na relação. O processo terapêutico também se assemelha a isso: sem entrega, tempo e dedicação, não há uma transformação significativa no paciente.
Na psicologia analítica, Jung tratou o processo de contínua transformação da pessoa como o individuar-se, o tornar-se quem se é, na obra da vida.
Os alquimistas também buscavam sua transformação, sua aproximação do sagrado com seu trabalho e oração.
É preciso lembrar, ainda, que toda relação é viva, é um constante transformar-se, com a criação de imagens e vivências, sendo necessário superar as estagnações[11] e passar por várias etapas, ciclos. Neste sentido, Cardella aponta que:
todos nós carregamos aspectos cristalizados em nosso psiquismo, nos quais temos uma dificuldade maior de fluir e para nos abrir a novas experiências. Diante dessas situações tendemos a desenvolver o que chamamos de defesas. Inicialmente elas são criativas, pois são a melhor forma que encontramos para nos preservar diante de ameaças físicas e psíquicas. O problema surge quando as defesas nos impedem de viver o novo, de nos transformar, de criar novas posições e experiências. De realizar nosso potencial criativo, de encontrar, inclusive, maneiras mais refinadas de nos preservar (CARDELLA, 2009).
Além disso, ela complementa que sintomas tanto físicos quanto psíquicos que apresentamos na vida “revelam quase sempre ausências, estagnações ou obstruções em nosso processo de crescimento. Os sintomas podem expressar necessidades psíquicas não percebidas ou atendidas” (CARDELLA, 2009).
Destarte, o espaço do criativo e do singular é fundamental para que uma relação seja viva. Logo, o relacionamento permite experimentar quem somos ao longo do fluxo da vida (CARDELLA, 2009).
6 CONCLUSÃO
Conclui-se que, tal como em um processo alquímico bem-sucedido, na Gestalt-terapia todos os envolvidos na relação terapêutica podem se transformar: podem desatar obstruções, de modo a transformar nós em laços nos relacionamentos, sendo essa a poética alquímica do processo Gestalt-terapêutico aqui apresentado.
Foi esclarecido que o setting terapêutico pode funcionar como lugar seguro e adequado para a transformação da matéria psíquica, assim como o vaso alquímico, e que o ser humano também pode ser concebido como vazio fértil e relacional pleno de possibilidades, como as terras negras e férteis do rio Nilo.
Também foi possível concluir que a superação do sofrimento a partir do processo gestalt-terapêutico é equiparável à superação da nigredo, a qual é caracterizada por momentos de escuridão, conflito e desconforto emocional.
Além disso, foi mencionado que a expressão solve et coagula é fundamental na compreensão da transformação alquímica. À semelhança dela, os ciclos de contato que compreendem a vida da pessoa podem ser entendidos, ou seja, o self pessoal se transforma a partir desse movimento de se diluir para abranger a nova experiência e se adaptar ao novo, consolidando-se novamente no momento seguinte para integração do todo.
Por fim, considerando que o principal eixo da alquimia é a transformação, foi possível concluir que, quando há abertura, entrega e aceitação, tanto o terapeuta quanto o paciente podem sair transformados da relação terapêutica.
REFERÊNCIAS
Cardella, B. H. P. (2009). Laços e nós: Amor e intimidade nas relações humanas. Ágora.
Conceito de alquimia dentro da Psicologia Analítica Junguiana. (2023, 10 maio). USCS Pós-Graduação. https://www.posuscs.com.br/conceito-de-alquimia-dentro-da-psicologia-analitica-junguiana/noticia/2668
Edinger, E. F. (2006). Anatomia da psique: O simbolismo alquímico na psicoterapia (A. U. Sobral & M. S. Gonçalves, Trads.). Cultrix.
Franz, M.-L. von. (2022). Alquimia e a imaginação ativa: Estudos integrativos sobre a imagem do inconsciente, sua personificação e cura (P. S. Dantas Jr., Trad.; 2ª ed.). Editora Cultrix.
Frazão, L. M., Fukumitsu, K. O., & Pinheiro, T. L. (Orgs.). (2014). Gestalt-terapia: Conceitos fundamentais (Vol. 2, Coleção Gestalt-terapia: Fundamentos e práticas). Summus.
Frazão, L. M., & Fukumitsu, K. O. (Orgs.). (2020). Enfrentando crises e fechando gestalten (Vol. 7, Coleção Gestalt-terapia: Fundamentos e práticas). Summus.
Gaeta, I., et al. (2022). Alquimia na clínica [eBook Kindle]. X Simpósio de Psicologia Analítica da Universidade Paulista (UNIP).
Giovanetti, J. P., et al. (2018). Fenomenologia e psicologia clínica. Ed. Artesã.
Hillman, J. (2011). Psicologia alquímica (G. Barcellos, Trad.). Vozes.
Jung, C. G. (2011). Psicologia e alquimia (M. L. Appy, M. Makray, & D. M. R. F. da Silva, Trads.; 5ª ed.; Vol. 12, Obra completa). Vozes.
Prado, A. (1987). O coração disparado. Guanabara.
Ribeiro, J. P. (2011). Conceito de mundo e de pessoa em Gestalt-terapia: Revisitando o caminho. Summus.
Ribeiro, J. P. (2021). O ciclo do contato: Temas básicos na abordagem gestáltica. Summus.
Ana Paula Amaral Corrêa
Universidade FUMEC
Correspondência: am-ana@hotmail.com
Revista IGT na Rede, v. 22, nº 43, 2025, p.1-20 DOI 10.5281/zenodo.16883571
Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526
[1] O ritual mortuário dos egípcios utilizava-se de um procedimento químico e religioso para eternizar o morto, transformando-o na divindade. Posteriormente, eles também se apropriaram de uma técnica altamente desenvolvida dos sumérios e dos babilônios utilizadas para obter ligas de diferentes metais, e essa técnica também era sempre realizada como uma cerimônia religiosa (FRANZ, 2022). Os babilônios trouxeram a conexão da alquimia com a astrologia, acreditando que a transformação do metal só poderia acontecer se a conjunção astrológica fosse favorável (GAETA, 2022).
[2] Um dos conceitos fundamentais da alquimia é o conceito de prima materia, a matéria-prima, a matéria básica, a substância única da qual tudo é feito (FRANZ, 2022).
[3] Carl Gustav Jung (1875-1961) foi um psiquiatra suíço que fundou a Psicologia Analítica, também conhecida como psicologia profunda. Segundo Arnaldo Bassoli, “a alquimia proveu Jung de uma visão de mundo em que as noções de totalidade, de self, de inconsciente, de individuação podiam incluir-se em um todo muito mais amplo, coerente e relacionado tanto com a tradição, com o conhecimento do passado, quanto com a visão atual do homem do século XX e para o futuro. Uma visão em que a descrição do processo não é alheia ao próprio processo; em que o discurso é necessariamente simbólico por referir-se a dimensões da experiência muitas vezes inomináveis e além de qualquer compreensão racional” (GAETA, 2022).
[4] Hermes Trismegisto (em latim: Hermes Trismegistus; em grego Ἑρμῆς ὁ Τρισμέγιστος, "Hermes, o três vezes grande") é uma figura mítica de origem sincrética. Essa figura mítica indica o deus Thoth dos antigos egípcios, considerado o inventor das letras do alfabeto e da escritura, escrita dos deuses, e, portanto, revelador, profeta e intérprete da divina sapiência e do divino logos. Quando os gregos tiveram conhecimento desse deus egípcio, descobriram que apresentava muitas analogias com seu deus Hermes, intérprete e mensageiro dos deuses, e o qualificaram com o adjetivo “Trismegisto” que significa “três vezes grandíssimo”.
[5] A fase da nigredo é marcada por momentos de escuridão, conflito e desconforto emocional. É nesse momento que precisamos enfrentar medos e angústias para podermos evoluir emocionalmente.
[6] “Para atravessar o sofrimento, é preciso vivenciá-lo e elaborá-lo, o que requer discriminação e aceitação suficiente por ele” (CARDELLA, 2009).
[7] Segundo Beatriz Cardella (2009), a “presença implica concentração no aqui e agora, esvaziar-se de nossa habitual tagarelice mental e abrir-se para a experiência, para ouvir e ver o outro, para ser tocado e tocar”.
[8] Awareness considerado como o saber da experiência, ou como conhecimento implícito e imediato do campo.
[9] Ajustamento criativo é a capacidade de adaptação às circunstâncias e de criar ao mesmo tempo uma nova forma de fazê-lo (CARDELLA, 2009).
[10] O processo de amadurecimento é também de conscientização, de exercício da própria liberdade e responsabilidade (CARDELLA, 2009).
[11] “Muitos dos sintomas que apresentamos, físicos e/ou psíquicos, revelam quase sempre ausências, estagnações ou obstruções em nosso processo de crescimento. Os sintomas podem expressar necessidades psíquicas não percebidas ou atendidas” (CARDELLA, 2009).