BELMINO, Marcus Cézar de Borba. - “Laura Perls: sua história e a criação da Gestalt-terapia”
Laura Perls: sua história e a criação da Gestalt-terapia
Laura Perls: her story and the creation of Gestalt therapy
Marcus Cézar de Borba Belmino
Centro Universitário Doutor Leão Sampaio (Unileão)
Resumo
Laura Perls foi uma psicóloga, psicanalista e artista que procurou integrar suas experiências clínicas com suas vivenciais pessoais, artísticas e sua construção acadêmica e filosófica, para trazer uma releitura da psicanálise que pudesse promover mais integração, autonomia e reconhecimento da própria potência pela pessoa atendida. O objetivo desse artigo é apresentar a vida de Laura Perls desde sua formação pessoal na Alemanha até sua morte, articulando com a construção de consolidação da gestalt-terapia. Laura foi uma das principais fundadoras da Gestalt-terapia, tendo suas ideias sido cruciais para a construção dos fundamentos, conceitos e prática na clínica gestáltica. Apesar de ser apresentada como fundadora ao lado de seu marido Fritz Perls e de Paul Goodman, a Gestalt-terapia acabou ficando muito mais conhecida a partir das ideias de Fritz Perls, estando as contribuições de Goodman e Laura muito menos debatidas, sendo necessário desenvolver mais publicações sobre sua obra.
Palavras-Chave: Laura Perls; Gestalt-terapia; Abordagem gestáltica
Abstract
Laura Perls was a psychologist, psychoanalyst and artist who sought to integrate her clinical experiences with her personal and artistic experiences and her academic and philosophical construction, to bring a reinterpretation of psychoanalysis that could promote greater integration, autonomy and recognition of the person's own potential. The objective of this article is to present the life of Laura Perls from her personal formation in Germany until her death, articulating with the construction of the consolidation of gestalt therapy. Laura was one of the main founders of Gestalt therapy, and her ideas were crucial for the construction of the foundations, concepts and practice in the Gestalt clinic. Despite being presented as a founder alongside her husband Fritz Perls and Paul Goodman, Gestalt therapy ended up becoming much better known based on the ideas of Fritz Perls, with the contributions of Goodman and Laura being much less debated, making it necessary to develop more publications about her work.
Keywords: Laura Perls; Gestalt therapy; Gestalt approach
Introdução
O objetivo deste artigo é apresentar a história de vida e as contribuições que tornaram possível a formulação da Gestalt-terapia de Lore Posner, mais conhecida como Laura Perls. Mesmo sendo uma das principais fundadoras da Gestalt-terapia, suas contribuições são extremamente invisibilizadas, principalmente em solo brasileiro. Praticamente, nenhum de seus textos foram traduzidos para o português, e a importância de seu papel na história da Gestalt-terapia só começou a ser reconhecida muito recentemente. Costumeiramente, a fundação da abordagem é associada ao pensamento de Fritz Perls e somente nos últimos anos tem sido mais reconhecida a importância das contribuições de Paul Goodman e Laura Perls (Belmino, 2024).
Apesar de ter produzido artigos, palestras e workshops, Laura publicou poucos trabalhos ao longo da sua vida. No entanto, alguns de seus escritos, bem como transcrições de palestras e workshops, foram reunidos e reeditados em dois livros principais. O primeiro é Living at the boundary: The collected works of Laura Perls (Perls, 2012), de 1992, e, mais recentemente, Timeless Experience: Laura Perls's Unpublished Notebooks and Literary Texts 1946-1985 (Perls, 2016), de 2016. Este último é uma coletânea de escritos extraídos de seus diários e entrevistas. Em português, há uma transcrição de uma entrevista publicada no livro Gestalt-terapia: Teoria, Técnica e Aplicação (Fagan E Shepherd, 1980), que atualmente está esgotado. Além dessas publicações, há poucas outras referências sobre ela e seu trabalho, o que evidencia como sua contribuição é pouco reconhecida, especialmente na literatura em português.
Apesar de ter recebido menos reconhecimento em comparação a Fritz Perls, Laura tinha um estilo muito peculiar, mais focado no autossuporte, no comunitarismo e na ideia da dialogicidade. Dos três fundadores principais da Gestalt-terapia, Laura Perls foi quem manteve uma prática clínica mais consistente, acompanhando semanalmente seus pacientes por longos períodos. Ela permaneceu ativa como psicoterapeuta durante sua vida, realizando poucas viagens para apresentações e demonstrações da Gestalt-terapia.
Em contraste a Fritz, Laura esteve por mais tempo como analista na África do Sul e manteve uma presença constante no Instituo de Gestalt-terapia, de Nova Iorque. Fritz, por sua vez, tinha um estilo mais nômade, não conseguindo se fixar em um lugar por muito tempo. Já Paul Goodman, também fundador da Gestalt-terapia, atuou como psicoterapeuta somente na década de 1950, o que limitou sua experiência clínica. Essa continuidade na prática deu a Laura uma compreensão mais profunda e específica do processo terapêutico, permitindo um acompanhamento mais processual do desenvolvimento de seus pacientes.
Dadas as significativas contribuições de Laura Perls, este trabalho busca enfatizar sua trajetória e o papel crucial de sua produção para a construção da Gestalt-terapia e seus desdobramentos contemporâneos.
Juventude e formação acadêmica de Laura Perls: o período na Alemanha
Laura nasceu em 1905 e morreu em 1990, vivendo 85 anos. Em comparação, Fritz Perls faleceu em 1969, e Paul Goodman em 1972, o que faz de Laura a fundadora da Gestalt terapia que viveu mais tempo. Isso permitiu que ela acompanhasse de perto muitas transformações importantes no movimento gestáltico.
Apesar de ser amplamente conhecida como Laura Perls, seu nome de nascimento era Lore Posner, adotando o sobrenome Perls ao se casar com Fritz. Quando migrou para os Estados Unidos, por questões de pronúncia, começou a usar o nome Laura. Ela nasceu em Pforzheim, uma pequena cidade na Alemanha, em 15 de agosto de 1905, e veio de uma família de judeus reformados, já estabelecida no país, porém, eram extremamente discretos e seus contatos bem reduzidos. Ela se dizia que era vista como:
Uma garota de cidade pequena, vinda do contexto de classe média alta e judia, de judeus reformados, o que significa que eram socialmente discretos e as pessoas que tínhamos em volta eram escolhidos cuidadosamente (Perls, L. 2016, s/p Tradução Nossa)
Laura relatava que, desde a infância, percebia os efeitos do antissemitismo. Embora o antisemitismo na Europa já fosse evidente, na Alemanha ele se intensificava cada vez mais. As famílias judaicas, especialmente aquelas com maior poder aquisitivo, adotavam uma postura mais discretas e reservada, o que impactava diretamente nas suas relações sociais.
Além desse contexto familiar, Laura teve uma formação fortemente vinculada ao campo das artes. Ela estudou dança, poesia, literatura e foi uma grande pianista. A vinculação com as diferentes formas de expressão artística sempre foi muito importante para ela, e, desde muito cedo, demonstrava-se encantada com a pluralidade e as diversas maneiras como a expressão humana podia se manifestar. Em sua obra, ela diz: “Eu me lembro da exaltação que experimentei quando descobri que poderia tocar mais de uma nota ao mesmo tempo e fazer acordes no piano, eu ainda tenho essa sensação presente em mim” (Perls, L. 2016, s/p Tradução Nossa[1]).
Além da vinculação com o piano, Laura também era uma grande apreciadora da poesia e literatura, afirmando que começou a escrever esses gêneros desde cedo. Em uma entrevista de 1972, ela relatou um trauma relacionado à sua escrita. Laura contou que mostrou uma de suas poesias a uma pessoa que trabalhava em sua casa, e essa pessoa compartilhou com sua mãe. Foi uma das poucas vezes que Laura viu sua mãe extremamente exaltada, pois a poesia tratava de relacionamentos, temática que sua mãe considerava inaceitável para uma criança. Esse episódio gerou um bloqueio criativo em Laura, que parou de escrever e só retornou a prática da escrita quando começou a treinar o inglês, já morando na África do Sul:
Eu retomei minha imaginação quando eu aprendi a funcionar em outra língua. Quando eu passei a falar inglês na África do Sul por 8 ou 10 anos, eu não só passei a usá-la cotidianamente como também passei a me compreender a partir de toda a literatura inglesa, então voltei a escrever (idem).
Não é incomum que pessoas que fugiram da Alemanha em função do nazismo desenvolvam uma nova relação com a língua e cultura em seu processo de adaptação como refugiados (Bocian, 2015). No caso de Laura, ela passa a ter um apego muito forte ao inglês, fazendo-a voltar a escrever, inclusive poesias. Sua relação com a mudança de língua era tão intensa que ela escrevia em inglês e depois traduzia para o alemão, mesmo o alemão sendo a sua língua materna.
Em sua trajetória de vida, apesar de todas as mudanças que precisou viver e de todas as funções que precisou assumir, Laura se percebia como escritora. Porém, mais do que textos teóricos, ela se encantava em escrever contos e poesias, a grande maioria não publicada (Perls, L. 2016, s/p T. N):
Quando fundamos o instituto de Gestalt-terapia de Nova York, meus
interesses e atividades profissionais eram apenas uma faceta da minha
vida. Muito antes de me tornar estudante de psicologia e terapeuta, já
era músico profissionalmente e dançarina. Estive envolvido em
questões sociais e políticas. Casei-me e tive filhos. Morei em
diferentes comunidades e adquiri um novo idioma. E apesar de ter
escrito cada vez menos e de não ter publicado nada além de alguns
artigos profissionais, ainda me considero uma escritora
Além da escrita e do piano, Laura também tinha uma vinculação muito intensa com a dança. Na dança, atravessou o balé, a dança moderna e a euritmia —um modelo de trabalho corporal que vem da antroposofia, dos trabalhos de Rudolf Steiner —, que foram influências relevantes na sua compreensão estética e importância do corpo no processo terapêutico:
Foi Laura que teve uma experiência mais direta nesse período através das aulas de dança moderna baseadas nos princípios de movimento de Rudolf Laban e da prática corporal com Elsa Gindler, de quem foi aluna (Severo Junior, 2019, p.131).
Laura chega a dizer que as descobertas que teve em relação ao corpo, dentro dos trabalhos com a dança e expressão corporal, foram muito mais potentes, muito mais importantes, do que os anos de processo analítico. Isso foi de suma valia para Laura, porque, em sua maioria, ela dedicava-se ao trabalho de investigação do próprio processo:
Eu vim da dança moderna e estava focada no movimento e comecei muito cedo, aos oito anos, e realmente sério a partir dos quatorze, quinze anos e depois sem parar. Eu tive uma espécie de consciência e educação corporal desenvolvidas e usei isso em terapia muito antes de a Bioenergética se desenvolver por aqui (Perls, L. 2016, s/p T.N.).
Laura percebia o quanto a experiência e expressão corporal lhe rendiam percepções sobre si, uma autoconsciência valiosa, experiência que, no pensamento gestálico, será conhecida como awareness. Não por acaso, a noção de awareness, presente na compreensão de Laura, estava profundamente atrelada ao campo da consciência corporal, da respiração, do movimento e do suporte para a ação. Esses elementos eram muita mais relevantes do que o tradicional ato de deitar no divã e falar sobre os processos internos. Laura acreditava que sua formação no contexto analítico havia sido excessivamente racionalista, e a experiência corpórea trazia um rompimento com essa abordagem. Para ela, esse campo sensorial e estético representava a experimentação, e, por conseguinte, a afirmação da vida.
Tanto na infância quanto na adolescência, Laura tinha um excelente rendimento escolar. Em função disso, ela é orientada por alguns professores a ingressar no Gymnasium. Na cidade onde vivia, não era comum que meninas prosseguissem com estudos mais avançados, então Laura foi para a única instituição que existia em sua região, que era Gymnasium, de atendimento exclusivo a meninos. Ela se tornou a única aluna da escola, e somente nos anos depois outras meninas também ingressaram.
Durante esse período, Laura enfrentou uma pressão enorme, o que resultou em um intenso sofrimento emocional. Em função disso, ela passou por uma crise que a levou a ser internada em um sanatório. Ela conta:
Estive por alguns meses no sanatório do Dr. Bauer, em Freudenstadt, e ele era um Adleriano. E aí fiz meu primeiro contato com a psicanálise lá, na verdade. Eu tinha quinze e dezesseis anos na época. Lembro-me de ter lido A Psicopatologia da Vida Cotidiana e a Interpretação dos Sonhos (Perls, L. 2016 s/p T.N.).
É importante ressaltar que Alfred Adler foi um importante psicanalista do ciclo mais próximo de Freud, mas também foi um dos primeiros a romper com o pensamento freudiano, formando a Psicologia Individual, uma escola muito importante no contexto de Viena. Por mais que hoje a psicologia individual não seja muito difundida, a teoria de Adler trouxe importantes contribuições para o campo da psicologia clínica e educacional, influenciando outros dissidentes da psicanálise, como Viktor Frankl, criador da Logoterapia.
Durante sua internação, Laura tem seu primeiro contato com o pensamento psicanalítico e seus desdobramentos. Após sair, conclui seus estudos básicos, apesar de ter perdido boa parte do seu rendimento escolar. Com receio de ser vista ou destacada, Laura deliberadamente errava nas provas para não ser a melhor aluna. Esses receios a acompanharam durante toda a sua vida, impactando sua confiança em falar em público e ministrar conferências.
Ao concluir o estudo básico, Laura inicia seus estudos universitários na área de direito, mudando-se para Frankfurt, o berço de uma série de debates políticos importantes na Alemanha, o que reacendia o interesse que Laura tinha, desde a infância, em discussões socialistas. Laura sempre foi vinculada aos movimentos de trabalhadores, de esquerda, e aos movimentos sociais, tendo um especial interesse pela juventude, de um modo geral. E dizia que isso provavelmente estava muito vinculado ao seu próprio processo.
Laura estudou movimentos juvenis e sociais, além de frequentar aulas de psicologia da Gestalt, com Adhemar Gelb e fazer um curso sobre psiquiatria forense. É quando ela decide migrar do Direito para a Psicologia, no ano de 1925. Nesse período, ela também assiste a aulas de Martin Buber e Paul Tillich, dois importantes teóricos do existencialismo e das discussões sobre alteridade e ética. Ela afirma: “Eu acredito que Buber e Tillich foram muito mais influentes para mim do que minha análise e a psicologia da gestalt, porque era uma abordagem mais direta e existencial sobre a vida” (Perls, L. 2016, s/p T.N.)
É importante destacar a influência buberiana e tillichiana na construção do pensamento de Laura Perls. Antes mesmo de consolidar sua prática como psicanalista, Laura já estava profundamente influenciada por leituras que enfatizavam a dialogicidade e uma escuta que reconhecesse o lugar radical da alteridade. A leitura dialógica adotada por Laura antecede, inclusive, as interpretações norte-americanas de Buber nas práticas psicoterapêuticas e educacionais, como exemplificado nos trabalhos de Friedman e de outros teóricos da corrente humanista, assim como na Gestalt-terapia, com autores como Richard Hycner (1995). Além disso, Laura também frequentou as aulas de Max Scheler, importante fenomenólogo seguidor do Husserl, o que lhe proporcionou uma base importante do pensamento tanto fenomenológico quanto existencial (Amendt-Lyon, 2016).
Em 1926, Laura conhece Frederick (Fritz) Perls, que era médico voluntário na clínica de Kurt Goldstein. Goldstein era um importante neurologista que buscava reinterpretar as teses da psicologia da Gestalt para o campo da biologia e dos estudos sobre o funcionamento holístico do comportamento e do cérebro (Bocian, 2015).
Nesse período, Laura era orientanda de doutorado de um psicólogo da Gestalt chamado Adhemar Gelb, que também atuava nas pesquisas de Goldstein, inclusive ministrando aulas junto a ele. Laura se interessou em seu doutoramento pelos estudos da psicologia da Gestalt, buscando compreender o fenômeno da luminosidade no processo perceptivo. Nesse caminho, Laura desenvolveu sua tese intitulada “O fenômeno do contraste simultâneo e a percepção da iluminação do campo”. (Perls, L. 2016)
Em sua pesquisa de doutorado, Laura experimentou efeitos de contraste figura-fundo e confirmou a posição de Gelb – orientador dela– ‘de que o efeito de campo da iluminação geral é o fator mais influente que afeta a percepção visual do contraste de cores’ (shane, “An Illegitimate Child”, 41). Ao concluir que as condições gerais de iluminação do campo eram mais importantes do que outros fatores, tais como a força e o tipo de estimulação da retina, ela confirmou a posição da Gestalt sobre como as condições do campo afetam a percepção sensorial. Em sua dissertação, sua tese, Laura defendeu claramente a perspectiva do campo psicológico da Gestalt adotada por Lewin, Koffka e Kohler. Seu projeto experimental combinou medidas quantitativas e qualitativas de percepção visual subjetiva. Shane afirma que esse ‘método qualitativo deriva da tradição fenomenológica de Brentano e Stumpf, e foi denominado por Koffka como observação experiencial. (Koffka, 1916/1925; 1924)’ (ibid. 40-41). Laura foi a única psicologia da gestalt entre os fundadores da Gestalt terapia. ela era bem treinada na teoria da Gestalt e na experimentação científica.” (Amendt-Lyon; Nancy, 2016, s/p T.N.).
Laura foi treinada por meio de metodologias que remontam ao pensamento de Brentano e ao desenvolvimento fenomenológico de Husserl. Vale lembrar que o gestaltismo, antes de tudo, nasce dessa tradição fenomenológica, buscando realizar pesquisas, tanto qualitativas quanto quantitativas em laboratório, utilizando métodos fenomenológicos e baseando-se também nas ideias de Carl Stumpf e Brentano.
Laura foi a única entre os fundadores da Gestalt-terapia com formação formal em gestaltismo, inclusive nos estudos laboratoriais de pesquisa empírica sobre os fenômenos perceptivos. É fundamental lembrar dessa particularidade.
Embora Fritz também atuasse diretamente nos estudos perceptivos e colaborasse com Goldstein nas pesquisas sobre os efeitos comportamentais das lesões cerebrais, ele dizia não ter aproveitado suficientemente o aprendizado desenvolvido naquele período (Perls, 1979)
Pouco tempo depois de conhecer Fritz, Laura começa a namorá-lo, apesar da desaprovação de sua família. Ela tinha um irmão e uma irmã; o irmão foi especialmente incisivo em sua oposição, e os pais também não apoiavam o relacionamento. Laura conta que Fritz, naquela época, exibia um certo cinismo, uma postura que, segundo ela, talvez estivesse relacionada aos traumas da Primeira Guerra Mundial, na qual esteve como soldado e médico. Essa posição niilista e cínica, que tanto incomodava sua família, a encantava profundamente. Em 1930, eles se casam e se mudam, deixando Frankfurt para retornar a Berlim. Lá, têm sua primeira filha, Renate Perls, que nasce em 1931. Todo esse processo formativo da Laura em Frankfurt, foi em uma cidade que estava tendo uma explosão cultural muito forte. Frankfurt ocorre em uma cidade muito mais progressista do que Berlim, promovendo o desenvolvimento de importantes teóricos do pensamento crítico e das releituras progressistas da psicanálise (Bocian, 2015).
O Instituto de Psicanálise de Frankfurt, onde Laura estuda psicanálise, estava muito mais vinculado ao pensamento marxista, em contraste ao movimento mais tradicional ligado à Associação Internacional de Psicanálise, em Berlim, que mantinha um discurso apolítico (Chemouni, 1991). A efervescência cultural de Frankfurt é explícita no próprio processo formativo de Laura, que lá estudou gestaltismo, política, psicanálise, existencialismo, fenomenologia e tantos outros temas fundamentais para a construção de seu pensamento.
Foi simplesmente assim que as coisas aconteceram e surgiram em
nosso caminho e foram gradualmente integradas em tudo o que
fizemos. No começo fiquei muito confusa em Frankfurt entre a
psicologia da Gestalt e a psicanálise de lá. Filosofia aristotélica
tradicional e existencialismo (Perls, L. 2016 s/p T.N.).
Em Berlim, Laura inicia sua carreira dividida entre sua atuação como analista e os cuidados com a filha. Ela realiza sessões de análise com Clara Happel, uma psiquiatra austríaca que foi fundamental na disseminação das ideias de Alfred Adler; e Karl Landauer, outro importante psicanalista vinculado aos movimentos socialistas e anarquistas. Sua formação foi supervisionada por Otto Fenichel, renomado psicanalista da época. No entanto, Laura nunca concluiu completamente a formação como analista, atendendo, durante esse período em Frankfurt, sob a supervisão de Fenichel.
Durante esse período em Berlim, Fritz começa a atuar como psicanalista, enquanto Laura continua sob supervisão, atendendo alguns raros clientes. Em 1931, pouco antes do nascimento da primeira filha, Fritz e Laura tentam se unir ao Partido Comunista, mas são negados. Naquela época, havia uma crise relacionada à aceitação de intelectuais psicanalistas dentro dos movimentos mais operários do partido. Assim, mesmo havendo muitos psicanalistas de esquerda, existia uma rixa significativa entre esses dois movimentos (Bocian, 2015).
Dessa forma, os psicanalistas, principalmente os mais conservadores de Berlim, eram contra a vinculação de analistas aos partidos comunistas. Os comunistas, por sua vez, não gostavam dos psicanalistas. Wilhelm Reich, por exemplo, enfrentou crises com ambos os movimentos: foi expulso da Associação Internacional de Psicanálise (IPA) e do partido comunista. Laura e Fritz acreditavam que, em razão da sua vinculação com a psicanálise, não foram aceitos no partido comunista. Durante esse período, a Alemanha enfrentava uma crise econômica muito forte e o antissemitismo estava cada vez mais intenso. Por isso, eles começaram a pensar na possibilidade de migrar para a Espanha ou para a Rússia, aprendendo até espanhol, como parte dos preparativos para uma possível mudança.
Em 1933, com a ascensão de Hitler, Fritz e Laura perceberam que a situação ia ficar muito complicada para eles, tanto por sua vinculação com os movimentos comunistas (mesmo que não fossem diretamente ligados ao partido) quanto por serem judeus. Logo após a ascensão de Hitler, houve um movimento intenso de perseguição a todos aqueles
compreendidos como inimigos do regime. Diante desse cenário, eles decidiram sair de Berlim. Laura foi com a filha para sua cidade natal, no sul da Alemanha, buscando se distanciar do que estava acontecendo em Berlim; Fritz, por sua vez, se mudou para a Holanda.
Cinco meses depois, Laura percebeu que a situação piorava e não havia sinais de melhora. Por isso, decidiu se mudar para a Holanda. Em Amsterdã, eles enfrentaram um período de muitas dificuldades. Fritz começou morando em um porão alugado, com recursos escassos e ambos tiveram muita dificuldade para encontrar trabalho. Vivendo em situação de pobreza e sem poder trabalhar devido à condição de imigrantes ilegais, Laura considerou esse período um dos mais desafiadores de suas vidas (Perls, L. 2016).
Devido a essa dificuldade, Fritz decide ir para a Inglaterra, onde consegue, com o apoio de Ernest Jones — o principal biógrafo do Freud e grande articulador da IPA (Associação Psicanalítica Internacional) no acolhimento para encaminhar psicanalistas que fugiam das guerras na Europa — uma indicação para que ele e Laura fundassem um instituto de psicanálise em Joanesburgo, na África do Sul. A IPA buscou aproveitar o contexto de migração dos psicanalistas que fugiam dos regimes totalitários na Europa para disseminar o pensamento psicanalítico pelo mundo, e ninguém queria ir para a África do Sul, que era uma colônia inglesa, na época.
A fundação do Instituto Psicanalítico de Joanesburgo e o período na África do Sul
Assim, eles decidem migrar: Fritz vai para Joanesburgo um ano antes, seguido depois por Laura. Lá, eles têm a chance de entrar em contato com muitos outros intelectuais, envolvendo-se em debates sobre arte, política, semântica, psicanálise e filosofia. Eles já mantinham contato, por exemplo, com a obra "Holismo e Evolução", de Jan Smuts, um texto trabalhado por Adhemar Gelb, orientador de Laura, quanto por Kurt Goldstein. Jan Smuts, primeiro-ministro da África do Sul nessa época, permitiu uma maior aproximação do casal com o seu pensamento holístico. Além disso, tanto Laura quanto Fritz vão ter acesso a várias revistas de movimentos políticos de esquerda, e é nesse contexto que têm acesso aos trabalhos de Paul Goodman. Laura buscou conhecer o trabalho literário, de forma mais profunda, bem como a poesia de Goodman, para além dos seus escritos sobre política e psicanálise.
Em 1935, na África do Sul, nasce o segundo filho de Laura e Fritz, de nome Steven Perls. É nesse período que começam também a produzir suas principais releituras do pensamento psicanalítico:
O que abordamos primeiro foram realmente as resistências musculares e o primeiro artigo que o Fritz fez nesse sentido foi sobre as resistências orais, que ele leu numa conferência da Associação Psicanalítica Internacional em Marienbad, em 1936. Ele voltou por alguns meses para Europa. E a maioria das pessoas não entendia nada. Mas o artigo, na verdade, desenvolveu-se a partir de um estudo que eu já tinha iniciado em Berlim sobre as atitudes de alimentação e desmame dos bebês. Na época eu tinha um bebê recém-nascido e tomei conhecimento das técnicas no hospital (Idem).
Nesse percurso, é importante perceber que os debates sobre a formação da dentição, o ato de sugar, a importância da alimentação e o instinto de fome são intuições que surgem a
partir das observações de Laura sobre seus filhos. Laura começa a perceber que, para além dos debates específicos sobre a fase oral que já era discutida pelos psicanalistas da época, era necessário aprofundar o papel da fome, da alimentação e da mastigação na construção da personalidade humana. Isso faz com que se ponha em pauta a mastigação como um movimento primário e constituinte, dado que ele é a nossa forma mais primeva de desestruturar e integrar o mundo. O metabolismo organísmico é um modo de compreender a maneira como podemos construir nossa interlocução com o mundo: é necessário mastigar, desestruturar, integrar o que é interessante e expelir o que não é, como forma de nos tornarmos mais autônomos e críticos. Essa função já existe no bebê, e por isso, Fritz e Laura passam a dar uma importante atenção a esse processo. Essa capacidade intrínseca de ação sobre o mundo será chamada de agressão, e, por isso, eles vão procurar dar uma atenção especial a esse conceito:
Nosso primeiro passo deve ser revisar nossa concepção de “agressão”. A agressão não é apenas uma energia destrutiva, mas a força que está por trás de todas as nossas atividades, sem a qual não poderíamos fazer nada. A agressão não só nos faz atacar, mas também nos faz enfrentar as coisas: não só destrói, mas também constrói: não só nos faz roubar, mas também está por trás dos nossos esforços para tomar posse e dominar o que temos direito de (Perls, L. 2012, p. 42-43, T.N.)
Conforme aponta Pinheiro (2021), a perspectiva de Laura sobre a agressão muda radicalmente a forma de se pensar a relação da formação da criança e os processos de desenvolvimento e de educação. Em um texto de 1939, que foi republicado na coletânea de textos de Laura de 1992 (Perls,L. 2012) chamado “How to educate children for peace” Laura já apresenta sua forma de compreensão do problema da agressão e já ensaia seu modo de compreensão acerca da importância da criança ser estimulada o questionamento e à criticidade. Mais do que pensar como a criança pode ser educada para manter-se pacífica e obediente, a nova teoria da agressão permite pensar a importância da criança desenvolver sua capacidade de ação crítica, criativa e potente no mundo. Agredir não é somente bater, morder ou ser desobediente, mas é aprender a se implicar de modo integrado reconhecendo o mundo como algo que precisa ser mastigado, para além de introjetado. Isso exige uma educação que permita apreender essa forma agressiva:
A agressividade é então aspecto central na discussão de Laura sobre educação. (...) Desde muito cedo, temos dificuldade de lidar com esse instinto de agressão que aparece, afinal de contas, ele irrita, incomoda, pertuba a ordem e parece muito diferente do que muitos entendem como boa educação. (Pinheiro, 2021 p. 90-91)
Apesar do contato com novas ideias e a possibilidade de construção de novas teorias e perspectivas, assim como o contato com pessoas que permitiram a abertura de muitas outras formas de pensamento científico e cultural, Laura também relata que esse período foi marcado por muito isolamento, o que acarretou reformulações radicais de sua vida e sua prática:
Na África do Sul, senti-me encurralada pela tensa atmosfera provinciana, pelo número diminuto de pessoas simpáticas, pela situação política tensa e ameaçadora. Mas sem saída, gradualmente percebi que mesmo que tivesse que ficar no meu único quarto, tinha paredes de livros, um piano de cauda e toda a literatura clássica para piano, que mesmo três vidas não seriam suficientes para trabalhar. Através de tudo. Isso mudou profundamente minha vida. Na minha prática comecei a utilizar o diálogo presencial e a consciência corporal: escrevia histórias e poemas, E Fritz e eu começamos a trabalhar no que se tornou Ego, Fome e Agressão. Foram apenas o isolamento e o confinamento social e profissional que nos obrigaram a concentrar o nosso interesse nos nossos próprios recursos e a mobilizar o nosso próprio potencial criativo, que estava em grande parte adormecido dentro das limitações da psicanálise (Perls, 2012, p. 223-224).
Durante esse período, o casal retomou os estudos acerca do pensamento psicanalítico. Laura observa que ambos foram se afastando da ênfase focada no passado, característica da psicanálise de Freud, mas também não adotaram as correntes adlerianas que se concentram no futuro (essa ideia de que o futuro orienta a experiência presente proposta por Adler acabará ficando mais conhecida a partir de Viktor Frankl, um dos seus principais alunos). Para Fritz e Laura era mais interessante desenvolver uma abordagem terapêutica centrada no presente. Essa mudança radical no foco do processo terapêutico surgiu da observação do que eles chamaram de contato assim como a atenção cuidadosa ao processo de mastigação e do metabolismo, bem como da referência da consciência corporal e das práticas artísticas. Suas referências existencialistas e dialógicas, somadas à prática clínica, sustentaram essa nova orientação:
Acho que foi principalmente através da leitura de Martin Buber e, antes disso, da leitura de Heidegger, e com um sentimento e uma consciência muito maiores da importância do existencialismo como um todo. Ele se desenvolveu. Não posso nem dizer que experimentamos conscientemente ou trabalhamos teoricamente, mas tiramos mais da experiência (Perls, L. 2016, s/p).
Laura, já nessa época, abandona o uso do divã e adota uma abordagem de psicoterapia cara a cara, valorizando o contato direto entre terapeuta e cliente e a observação do corpo para o desenvolvimento da consciência corporal. Essa perspectiva estava fortemente inspirada em suas referências da dança contemporânea, da arte, da contemplação, da euritmia e de estratégias corporais de autoconsciência. Laura era muito intuitiva, experiencial, e integrava os conhecimentos corpóreos aprendidos no contexto da dança e das práticas de consciência corporal. Diferente de Fritz, Laura não tinha ligação com o pensamento de Wilhelm Reich; embora conhecesse o seu trabalho, sua forma de observação do corpo, de trabalho com a respiração e de compreensão do movimento não vieram dele (Perls, L. 2016). Suas bases eram essencialmente experimentais e práticas, e frequentemente enfrentaram críticas naquela época.
Na África do Sul fiquei, já durante os primeiros anos, muito consciente das dificuldades respiratórias que as pessoas têm, e da sua atitude e postura, e na verdade penso que a partir do final dos anos 30 e início dos anos 40, comecei a ter as pessoas primeiro deitado à minha frente e depois sentado à minha frente e fazendo algumas coisas de consciência corporal com eles. Desenvolvi então um pouco da teoria da respiração e dos tipos neuróticos, e senti que provavelmente um certo tipo neurótico poderia sempre estar associado a um certo tipo de corpo e a um certo tipo de respiração. isso foi no início dos anos 40. Eu expressei isso para algumas pessoas que conheci, algumas pessoas que conheci da Universidade de Pieter Maritzburg, alguns psicólogos na casa de um amigo nosso que era escritor, e eles ficaram absolutamente horrorizados e disseram que estava provado que isso não existia, mas não sei quem o provou; mas estou convencida mais do que nunca de que agora é simplesmente uma coisa experiencial (Perls, L. s/p T.N.).
Apesar dessas referências e de todas as inovações, nessa época, Laura não compreendia que o trabalho que desenvolvia rompia completamente com o pensamento psicanalítico. Ela ainda percebia sua atividade como uma revisão ou uma extensão da psicanálise. Em um texto publicado em 1950 na revista complex de Paul Goodman, e que foi republicado em sua coletânea de textos de 1992 (Perls, L. 2012) chamada “ The Psychoanalytic and the Critic”, Laura compreendia a importância de fazer uma interlocução entre a arte e à psicanálise. Para ala a atividade analítica é uma atividade artística: “Laura compara o papel da artista com o da psicanalista: ambas têm em comum o objetivo de criação de novas formas, capazes de provocar autoconsciência, instigar o movimento e a novidade.”
(Melo; Barbalho; Moura; Sales, p.168) Por mais que houvesse uma mudança nos aspectos teóricos e técnicos, ainda havia uma intuição originária que era referenciada à psicanálise, ao saber, ao buscar compreender o funcionamento inconsciente e como as formas de repressão desse processo produzem neurose e sofrimento (Belmino, 2020).
Laura buscava experimentar novas formas de relação terapêutica, integrar novas perspectivas, mesmo ainda entendendo que ali ocorria um processo de pesquisas inovadoras da ampliação do pensamento psicanalítico. Afinal de contas, Laura e Fritz estavam construindo suas práticas muito ligados a todo o processo de releitura e transformação da prática psicanalítica. Em sua formação, Laura teve como base vários analistas que vinham das perspectivas adlerianas, Fritz vinha das ideias reichianas. Logo, pensar em leituras e práticas diferentes dos conceitos psicanalíticos tradicionais não era algo incomum, o que os fazia se sentirem muito mais livres para o desenvolvimento dessas ideias.
Bem, eu senti que era tão limitado ficar deitado [no divã], e que certas questões simplesmente nunca eram confrontadas dessa forma. Apenas o contato imediato nunca foi confrontado. Nunca saiu. E as pessoas estavam falando sobre coisas. Foi assim que as coisas se desenvolveram em uma técnica diferente e, para aplicar a teoria da Gestalt a isso, isso veio muito mais tarde. Desenvolveu-se simplesmente como uma espécie de extensão ou revisão da psicanálise. Na verdade, Ego, Fome e Agressão inicialmente era chamado de Uma Revisão da Análise Freudiana (Perls, L. s/p T.N.).
Laura traz todas essas referências para promover mudanças na forma como ela e Fritz concebem a psicanálise, tanto em aspectos metodológicos quanto teóricos. Na versão traduzida para o português, o livro Ego, Fome e Agressão manteve seu subtítulo original que diz: uma revisão da teoria e método de Freud (Perls, 2002), porém, as reedições norte americanas suprimiram esse subtítulo para tentar integra-lo melhor ao pensamento gestáltico.
É importante ressaltar o uso do “nós” quando Laura fala da escrita do livro Ego, Fome e Agressão. Embora o livro seja assinado por Fritz Perls, Laura contribuiu intensamente em sua elaboração, apesar desse reconhecimento não aparecer. Laura foi responsável pela escrita dos capítulos "O Complexo de Fantoche" e o "Significado da Insônia", além de redigir, entre outras discussões, as seções sobre situações inacabadas (Perls, L. 2016). Ainda assim, ela não aparece como coautora e, enquanto a primeira edição foi dedicada a ela, nas outras edições subsequentes, a dedicatória foi substituída pelo nome de Max Wertheimer.
O livro começa a ser escrito entre 1940 e 1941, sendo publicado em 1942. Nele, os autores apresentam uma leitura ensaística de todas as mudanças que estavam acontecendo. No entanto, para Laura, essas novas ideias só serão maturadas uma década depois:
Em Ego, Fome e Agressão, mudamos do ponto de vista histórico-arqueológico freudiano para o existencialismo-experiencial, da psicologia de associação fragmentada para uma abordagem holística, do puramente verbal para o organísmico, da interpretação para a consciência direta no Aqui e Agora, da transferência ao contato real, do conceito de Ego como uma substância com limites até um conceito dele como o próprio fenômeno limite, sendo a função do contato real de identificação e alienação. Todos esses conceitos, então ainda provisórios, muitas vezes confusos e geradores de confusão, desenvolveram-se durante os dez anos seguintes em uma teoria coerente mais organizada que foi publicada como Gestalt Therapy: Excitement and Growth in the Human Personality (Perls, Goodman & Hefferline, 1951). Este é o livro básico que ainda considero indispensável para uma compreensão plena da Gestalt-terapia (Perls, L. 2012, pp. 151-152 T.N.).
Para Laura, por mais que o livro Ego, Fome e Agressão fosse um ensaio psicanalítico ainda de maneira introdutória à novas compreensões, é lá onde estão rascunhados conceitos que serão fundamentais para a construção do pensamento gestáltico desenvolvido no livro Gestalt Therapy de 1951. É perceptível como Laura era uma defensora do livro Gestalt Therapy, tal como veremos adiante. Ela fazia referência a esse livro, muitas vezes, como aquele que deveria ser a base fundamental do pensamento gestáltico; diferente do Fritz, que nunca acolheu diretamente a obra. Na verdade, Fritz nunca teve muito interesse teórico no livro Gestalt Therapy, tal como já foi mostrado em outros trabalhos (Belmino, 2020; 2024).
Percebe-se com isso um aspecto importante da prática analítica da Laura. Em Amsterdã, ainda antes de ir para a África do Sul, Fritz tinha conseguido uma carta de recomendação de Karl Landauer para que se tornasse analista do instituto de Amsterdã, o que o fez ser membro da IPA. As pessoas da IPA tinham muitas ressalvas com o Fritz, justamente porque ele era um ávido aluno de Reich, o qual, neste período (por volta de 1931/32), tinha sido expulso da IPA. Por isso, foi solicitado a ele que complementasse sua formação para que pudesse ser considerado um analista vinculado à IPA. Porém, Laura não tinha concluído todo o seu processo formativo, mas ela consegue, nesse período, também em Amsterdã, uma autorização parcial para que ambos fundassem o instituto da África do Sul (Bocian, 2015). Em função disso, conforme Bocian (2015), surge uma situação polêmica. Fritz e Laura receberam autorizações parciais e passaram por processos de complementação de formação em meio ao caos que se instaurava na comunidade psicanalítica devido à ascensão nazista e fuga em massa dessa comunidade para outros países. Muitos analistas estavam migrando da Alemanha por serem judeus, o que acelerou esse processo. O instituto que fundaram em Joanesburgo nunca foi reconhecido oficialmente pela IPA, que o considerava uma instituição particular e não vinculada à associação. Em 1936, no ano que Fritz apresentou seu trabalho sobre as resistências orais, em um seminário internacional de psicanálise, a IPA emitiu uma nota revogando o direito de vários analistas formarem novos analistas. Assim, além de o instituto não ser reconhecido, a formação de Fritz e Laura também não estava completamente alinhada às regras da instituição, e ambos foram proibidos de atuar como formadores de novos psicanalistas.
Ainda segundo Bocian (2015), no mesmo ano, o casal recebe uma carta do chefe do comitê de educação da IPA, informando que o instituto não seria reconhecido, uma vez que na África do Sul não havia formadores qualificados. Esse episódio foi crucial para a saída deles dessa localidade. Isso deixa Fritz Perls profundamente decepcionado com o movimento, o que o levou a tomar a decisão de se mudar para os Estados Unidos. Laura, embora inicialmente reticente em relação à mudança, acaba sendo convencida pela perspectiva de estabilidade e decide acompanhá-lo pouco depois.
A Chegada nos EUA e o início da Gestalt-terapia
Em 1945, Fritz Perls deixa sua atuação no Instituto e sua função como médico do exército em Joanesburgo e segue para o Canadá, onde permanece por um curto período, antes de entrar nos Estados Unidos. Laura, por sua vez, chega 18 meses depois, acompanhada dos filhos, em 1947, e começa a atuar como psicanalista. Fritz havia se aproximado do Instituto para o Avanço da Psicanálise, um instituto em Nova Iorque onde trabalhavam Karen Horney, Erich Fromm, Clara Thompson, entre outros que Fritz e Laura já conheciam da Alemanha. Foi assim que esses profissionais começaram a encaminhar pacientes para eles.
Eles não podiam participar diretamente do Instituto devido aos problemas com a IPA, mas havia outros analistas na mesma situação que também recebiam encaminhamentos desse instituto. Além disso, Fritz não queria reconhecer seu título de médico nos EUA e passar por todos os exames necessários. Por isso, ambos iniciam sua atuação em um consultório
particular, embora logo passassem a receber uma boa procura de pacientes. Nesse período, Fritz e Laura decidem dar mais um passo em relação à sedimentação do seu trabalho, que era construir um livro que apontasse o rompimento definitivo com o pensamento psicanalítico e a formação de uma nova corrente de pensamento. O desgaste com a comunidade psicanalítica e o rechaço de suas ideias fizeram com que eles decidissem começar uma nova abordagem psicoterapêutica. No entanto, era necessário sistematizar as ideias dessa nova proposta, e, por isso, decidiram publicar uma obra que integrasse todas essas novas perspectivas. Contudo, até aquele momento, o único trabalho disponível era o livro Ego, Fome e Agressão, além de uma série de ensaios e resumos, porém, sem muita sistematização. Diante disso, o casal Perls decide procurar um editor para essa nova empreitada. Tal como dito anteriormente, Fritz e Laura já conheciam o trabalho de Paul Goodman, desde a África do Sul, e, por isso, escolheram-no pela grande admiração com seus trabalhos sobre política, psicanálise e o pensamento reichiano (Stoehr, 1994).
Paul Goodman era um escritor, anarquista e crítico social de relevância, inicialmente reconhecido em Nova Iorque, embora seu verdadeiro destaque só acontecesse depois da década de 1960, com a publicação de seu livro Growing Up Absurd. Seu trabalho se tornou notório especialmente pela articulação entre psicanálise e política (Belmino, 2017). Nesse contexto, Goodman passa a colaborar com o manuscrito que Fritz tinha produzido, o qual continha algumas ideias ensaiadas, mas também se baseava nas ideias de Ego, Fome e Agressão. Goodman teve pouquíssimos encontros com Fritz Perls, pois ambos tiveram impressões negativas um do outro. Por isso, ele acaba produzindo muito mais interlocuções com Laura. Inicialmente, Goodman se torna paciente, depois faz seu treinamento como psicoterapeuta sob orientação de Laura, desenvolvendo uma amizade duradoura que perduraria pelo resto da vida (Stoehr, 1994).
Durante esse período, ocorriam os encontros semanais no apartamento de Fritz e Laura, em Nova Iorque, com o objetivo de debater a nova teoria em desenvolvimento. Diversas pessoas participavam, mas havia um núcleo comum chamado de Grupo dos Sete, composto por Fritz Perls, Laura Perls, Paul Goodman, Isadore From, Paul Weisz, Elliot Shapiro e Sylvester Eastman. Esses encontros não tinham um caráter conclusivo; eram momentos de discussão intensa sobre psicanálise, política, artes, educação e uma variedade de outros temas. Os debates, frequentemente acalorados, geravam mais pluralidade de ideias do que uma definição clara sobre o que se tornaria a Gestalt-terapia
Não havia, que eu me recorde, discussões sobre o que era a Gestalt-Terapia. Havia, eu acho, para começar, grupos de encontro. Goodman era provavelmente o mais ativo. Havia discussões, mas certamente eu não me lembro de existir um tópico sobre “o que era a Gestalt-Terapia”. Havia frequentes mudanças- diferenças - eu não diria problemas- mas diferenças. Mas a coisa mais importante que eu gostaria de enfatizar é - ninguém era tratado como “O Maioral”. Nenhum deles. Frederich Perls, Laura Perls […] (From, 1988, p. 33-34 T.N.).
A partir da formação desse grupo, a abordagem começou a se estruturar. Surgiu uma série de discussões sobre qual nome deveria ser dado a essa nova proposta. Refletir sobre ela à luz da psicanálise já não era mais suficiente para abarcar os novos caminhos práticos e teóricos que estavam sendo trabalhados. Vários nomes foram propostos para a nova abordagem, como “terapia da concentração” e “terapia existencial”, mas ambos não foram aceitos pelo grupo:
Ainda nos chamávamos de psicanalistas quando viemos para cá. Na verdade, foi apenas com o tempo que realmente nos recompomos e fizermos dela uma terapia realmente existencial a partir da escrita do manuscrito do livro Gestalt-Terapia, para a qual ainda não tínhamos nome na época. Na verdade, naquela época consideramos o título Terapia Existencial e o rejeitamos. Achei que deveria se chamar Terapia Existencial. Mas então optamos por Gestalt-Terapia porque o existencialismo da época estava principalmente associado a Sartre e a uma certa abordagem niilista. E, claro, na Europa o modelo de Frankl foi chamado de Análise Existencial o assim como, pelo povo suíço, a proposta de Medard Boss (Perls, L. 2016, s/p T.N.).
Nessa época, a logoterapia de Viktor Frankl também estava ganhando destaque, e ela também era chamada de Análise Existencial. Medard Boss, um importante psiquiatra europeu que buscou integrar o pensamento psicanalítico à fenomenologia heideggeriana criou a chamada Daseinsanalyse, que, em solo norte-americano, também será conhecida como Análise Existencial. Então, Laura e Fritz abdicam de utilizar o termo "terapia existencial", que era o interesse da Laura, e assumem então o termo "Gestalt-Terapia". Sobre isso, ela diz:
E então chamamos isso de mais uma espécie de substituição da associação livre pela concentração, e então pensamos em chamá-la de terapia existencial, porque tomamos o presente muito mais como orientação do que o passado como Freud ou o futuro como Adler. E pensamos então em gestalt, porque esse era realmente para nós, ou para mim, o termo mais adequado para descrever o processo que ocorre na Gestalt-terapia ou que pretendemos facilitar, ou seja, uma formação contínua de Gestalt na qual o que é da maior importância para a pessoa, ou para o organismo, ou para o grupo, ou para a família, vem para o primeiro plano, onde pode ser enfrentado, tratado, para que então possa ficar em segundo plano, ser assimilado ou descartado como o caso pode ser, de modo que o primeiro plano fique novamente livre para uma nova Gestalt (Perls,1972, s/p).
É importante ressaltar que Laura era a única que tinha uma formação consistente dentro do gestaltismo. Assim, por mais que inicialmente não quisesse atrelar a nova abordagem ao movimento gestaltista, ela compreendia que a noção de Gestalt permitia uma nova compreensão sobre o objetivo da psicoterapia, que é a de buscar reconhecer as gestalten fixadas ou rígidas, para que se pudesse tomar consciência delas e reestabelecer o fluxo contínuo entre figura e fundo. A ideia de reestabelecer a dinâmica de abertura e fechamento das gestalten se mostrava uma maneira eficaz de descrever os propósitos fundamentais da psicoterapia.
Após a publicação do livro que estabeleceu a abordagem, surge o interesse de Fritz Perls e Paul Goodman em fundar um instituto. No entanto, Laura não era a favor desse empreendimento, uma vez que ela já tinha muitas ocupações. Ela destacava que os cuidados com os aspectos do lar eram essencialmente dela. Embora Fritz contribuísse com o pagamento do aluguel e de outras despesas, Laura afirmava que todos os outros cuidados — alimentação, educação, saúde e dinâmica do cotidiano — eram de responsabilidade dela. Por essa razão, não queria assumir a responsabilidade de algo adicional, como a fundação de um instituto (Perls, L. 2016)
Ainda assim, Fritz propôs a realização de um primeiro seminário para divulgar as novas ideias. Esse momento atraiu 40 participantes. Eles dividiram os presentes em dois grupos: um ficaria sob a responsabilidade de Fritz, e o outro sob a de Laura. Nessa mesma época, Fritz iniciou uma série de viagens pelos Estados Unidos, buscando expandir a difusão da nova abordagem proposta por eles. Apesar da resistência de Laura, em 1952, Fritz, Laura e Paul Goodman fundaram o Instituto de Nova Iorque, com Laura e Goodman assumindo a liderança do instituto, embora a criação tenha sido uma iniciativa conjunta entre os três. Laura diz:
Fritz sempre foi uma espécie de cigano, e Fritz não podia ficar na família, e não podia ser incomodado, e na época ele também estava interessado em todos os tipos de outras mulheres, e as coisas ficaram um pouco azedas entre nós. e você sabe, eu fiz uma histerectomia e ele não pode me levar quando eu estava enferma. Ele não podia cuidar de mim ou realmente estar disponível. (...) eu não pedia nada para ele, mas ele sentia assim, e ao mesmo tempo não conseguia aceitar. Então ele vagava por onde quer que as pessoas estivessem interessadas, e então ele começou a ir para Cleveland indo e voltando o tempo todo (Perls, L. 2016, s/p T.N.)
É curioso notar que não há registros de Laura mencionando qualquer tipo de divórcio com Fritz, apesar de o relacionamento deles ter se distanciado ao longo do tempo. Em suas entrevistas, ela sempre afirma que foi casada com Fritz por 40 anos, o que configura uma relação que durou, aproximadamente, desde o início do namoro até o falecimento dele. Contudo, Laura tinha muita independência em relação à sua vida; ela criou um estilo de vida que não dependia de Fritz. Ele viajava frequentemente pelos Estados Unidos e pelo mundo, ministrando palestras e cursos, enquanto ela continuava construindo sua vida com muito menos exposição que o estilo de Fritz.
Nesse período, Laura assume a presidência do Instituto de Gestalt Terapia em Nova Iorque. Nesse sentido, ela comenta:
Bom, na época, você sabe, nós sempre mantivemos o instituto realmente funcionando no mínimo como Instituto, porque não queríamos nos organizar e acabar fechando como a maioria dos outros institutos de formação (...) Mas ele cresceu sozinho. E é claro que todos que realmente passaram pela Gestalt-terapia e pela terapia de grupo têm uma espécie de experiência que lhes permite trabalhar muito mais com outras pessoas do que os analistas tradicionais. Eles também trabalham melhor na comunidade, porque eles estão muito mais conscientes do que realmente está acontecendo e não tomam isso como transferência, o que é sempre uma desculpa muito conveniente para colocar a responsabilidade em algum outro lugar no passado e, de preferência, no passado do paciente (Perls, 2012 s/p T.N.).
Apesar de sua formação analítica, Laura tinha fortes críticas ao conceito de transferência, especialmente quando ele era utilizado para justificar uma certa fantasia sobre a relação real. Para ela, era muito importante o contato real, aquilo que ela tinha aprendido com Buber sobre uma relação genuína com o outro de atravessamento mútuo, e de uma relação que antecede as individualidades na condição experiencial do EU-TU (Buber, 2001). O conceito de transferência, muitas vezes, tinha falta de nitidez para as relações ou era usado para justificar essa desresponsabilização daquilo que se mostrava como atualidade da relação. Esse conceito também apresentava, na leitura dialógica de Laura, uma descrição de uma certa patologia da relação, ou seja, como se a transferência falasse de uma relação que não pode ser vivida em sua integralidade, dialogicidade e transparência (Perls, 2016). Em 1951 o livro Gestalt Therapy: excitement and growth in the human personality (Perls; Hefferline; Goodman, 1997) foi publicado assinado de Frederick Perls, Paul Goodman e Ralph Hefferline. O livro foi dividido em duas partes: uma parte teórica, escrita prioritariamente por Paul Goodman, que buscou trazer uma nova compreensão acerca da experiência humana e uma crítica social baseada em uma antropologia da neurose; e uma parte de experimentos práticos, escritos por Fritz Perls, os quais foram aplicados e discutidos por Ralph Hefferline (Belmino, 2017).
Apesar do livro sobre Gestalt Terapia ser considerado a obra que funda a abordagem, o resultado final não agradou a Fritz, o qual não abraça o escrito como referência. Em razão dessa não concordância com a obra fundante da abordagem, Fritz passa o resto da vida tentando sistematizar novos caminhos que pudessem fundamentar sua prática. Por esse motivo, Fritz se dedica a escrever um livro que pudesse ser a referência básica para a sua forma de compreensão da Gestalt-terapia. O resultado dessa empreitada foi a obra A Abordagem Getáltica e a Testemunha Ocular da Terapia, uma tentativa de sistematização desenvolvida por Fritz no final de sua vida. No entanto, o livro permaneceu inacabado em função da sua morte, motivo pelo qual a publicação inclui uma segunda parte de transcrição de workshops desenvolvidos por Fritz (Perls, 1973).
Os desdobramentos da Gestalt-terapia e o legado de Laura Perls
No ano posterior a publicação do supracitado livro, o Instituto de Nova Iorque foi fundado, e Laura se torna a presidente. Em 1954, ocorre a fundação do Instituto Gestalt, de Cleveland, e ela também se torna uma das principais formadoras. Laura assume um estilo de funcionamento em ambos institutos muito voltado à auto gestão e a construção grupal de processos formativos. Por isso, cada instituto acaba assumindo um cara muito própria.
Um dado muito relevante sobre o Instituto de Gestalt de Nova Iorque, em 1952, é que ele “foi a primeira organização de psicologia nos Estados Unidos que não considerava a homossexualidade uma patologia e, desde o seu início, na década de 1950, atraiu pessoas da comunidade LGBT+” (Mikolásek, 2023, pp. 2-3). Isso ocorre devido à influência que Goodman terá sobre Laura sobre a importância do movimento gay e bissexual e a violência sofrida por esses grupos. Laura reconhece sua forma mais conservadora sobre esse tema, mas acaba assumindo uma postura muito mais aberta no contato e amizade com Goodman. Nesse contexto, a atitude de Godman e Laura foi de não patologização da experiência homossexual e bissexual. É importante ressaltar que a homossexualidade só foi retirada como categoria diagnóstica do DSM em 1973, e do CID, em 1992. Assim, a despatologização das experiências homossexuais e bissexuais ainda era um debate raro no campo psiquiátrico e psicológico.
Na época, o movimento queer estava ainda se iniciando, e era principalmente focado em gays, lésbicas e bissexuais. Paul Goodman, em particular, contribuiu fortemente para dar visibilidade ao movimento bissexual, enfatizando a importância de reconhecer e validar essa identidade. Essa postura progressista fez com que muitas pessoas procurassem o Instituto
como um espaço importante de escuta e não patologizadas, e onde suas experiências sexuais não eram vistas como algo doentio.
Segundo Mikolásek (2023), no início do instituto, Laura ainda tinha posições homofóbicas advindas da formação de seu pensamento no conservadorismo alemão. Por mais que Laura tenha se formado em ambientes de debates progressistas, os debates sobre a sexualidade e suas múltiplas identidades ainda era tabu no contexto alemão. Porém, ao chegar aos EUA, provavelmente muito pelo contato com Goodman e com todo esse novo ciclo intelectual que estava em volta dela, Laura muda radicalmente de posição e começa a endossar essa mesma posição no Instituto, contribuindo para que a instituição se tornasse um importante ponto de engajamento político nos debates norte-americanos. Essa mudança de perspectiva esteve profundamente ligada à sua implicação na coordenação do Instituto. De acordo com Amendt-Lyon (2016, s/p, T.N.), “durante décadas, Laura foi o centro do Instituto de Gestalt-Terapia de Nova Iorque, que representa uma tradição clínica orientada para a teoria e manteve viva a chama da Gestalt-terapia”.
Laura se manteve no Instituto de Nova Iorque atendendo, supervisionando novos terapeutas e trabalhando com grupos ao longo da sua vida. Ainda nesse período, Laura começou a experimentar trabalhos de grupo. Não era comum a prática de psicanalistas com grupos, mas, seguindo sua abordagem extremamente experimentalista, Laura defendeu essa proposta, formando seu primeiro grupo de supervisão com Paul Goodman, Paul Weisz, Elliot Shapiro e outros intelectuais da época que estavam no ciclo inicial de formulação da Gestalt-terapia (Stoehr, 1994). Ela afirma:
Na época, acho que Moreno estava fazendo psicodrama e algumas outras pessoas como Wolf e Slavson haviam começado a terapia de grupo e isso estava chegando. Eu também estava interessado em uma terapia que pudesse economizar tempo e dinheiro para muitas pessoas (Perls,2016, s/p T.N.).
Laura inicia esse trabalho no referido grupo com o propósito de formar os participantes como psicoterapeutas. Porém, de um modo profundamente intuitivo, Laura mescla práticas de psicoterapia de grupo e supervisão como instrumento de formação e treinamento do seu primeiro grupo nesse estilo. Laura chega a dizer que sentia medo inicialmente de trabalhar dessa forma com esses membros iniciais, mas que aos poucos aprendeu a lidar com o que ela dizia ser seus “tigres” (Stoehr, 1994, p. 139 T.N.). Essa prática começa a ser ampliada para outros contextos, e Laura passa a atuar tanto no contexto da psicoterapia individual como em grupos psicoterapêuticos e formativos.
A partir da década de 1970, ela vai parar de atuar no consultório e focar exclusivamente em workshops, conferências e grupos de formação de gestalt-terapeutas. É importante salientar que foram 20 anos de atuação como Gestalt terapeuta em consultório semanalmente, o que faz de Laura Perls a Gestalt-terapeuta da primeira geração que mais trabalhou diretamente com pacientes de modo semanal, ou seja, acompanhando os processos desses pacientes de maneira mais extensa e mais aprofundada.
Goodman atuava principalmente com grupos, os quais tinham um formato mais anarquista, com um caráter semelhante ao seu modelo crítico educacional e sua forma comunitarista de empoderamento social (Belmino, 2017). Goodman atua como terapeuta durante a década de 50, mas, com a publicação do Growing Up Absurd (Goodman, 1960), este se desliga da prática psicoterapêutica devido a repercussão e reconhecimento que ele tem com esse livro. Esse desligamento da prática clínica também acontece em razão de ele não ser psicólogo ou psiquiatra, o que a partir da década de 1960 faz com que ele seja exigido de realizar uma série de exames que ele se recusa a fazer. Por isso, Goodman abandona a prática e se torna reconhecido como uma figura importante na política, na educação e nos movimentos de juventude e contracultura nos EUA.
Ele abandona a prática psicoterapêutica, mas continua dando suporte a aulas e cursos no Instituto de Nova Iorque. Inclusive, o Growing Up Absurd foi dedicado a Laura, com quem manteve uma amizade muito forte até o final de sua vida. Já Fritz trabalhou prioritariamente em contexto de workshops, atendendo seus pacientes em formato grupal, mas um de cada vez, dentro do grupo (Stevens, 1977).
Essa migração de Laura para estar mais presente em conferências e workshops tinha a ver também com um maior reconhecimento de seu trabalho e da sua importância na construção da Gestalt-terapia. Na década de 1970, Fritz já tinha morrido, então Laura começa a se tornar mais reconhecida como formadora e fundadora.
Com o crescente reconhecimento de Fritz Perls, na década de 1960, a Gestalt terapia ganha mais visibilidade, impulsionada pelo estilo inovador e expansivo de Fritz. Ele foi visto como o "rei dos hippies", promovendo um modelo muito mais ateórico e intuitivo, com técnicas que atraíam muitas pessoas. Em contraste, Laura se preocupava mais com uma formação teórica consistente, buscando uma percepção mais rebuscada no processo terapêutico, olhando para as micromudanças que vão ocorrendo a cada sessão..
Assim, o Instituto de Nova Iorque, coordenado por Laura, manteve uma abordagem mais formativa, processual e teórica, enquanto os trabalhos desenvolvidos na costa oeste, coordenados por Fritz, possui uma leitura mais ateórica e experimental, com intervenções mais frustradoras e catárticas, a partir do uso de técnicas, como a cadeira vazia ou a cadeira quente, entre outras técnicas que ele desenvolveu.
Nesse período da década de 1960, Fritz já estava praticamente morando em muitos lugares diferentes, tendo uma vida, principalmente nos EUA, de muita mudança. No entanto, ele vai se "fixar" em Los Angeles, na costa oeste dos Estados Unidos. O estilo de Fritz acabou ganhando muita notoriedade e reconhecimento, obscurecendo as contribuições da costa Leste, principalmente as ideias de Laura e Goodman no instituto de Nova Iorque. O lugar e importância de Laura só foi reconhecido no final da década de 1970 e nas décadas seguintes, apesar de ela ainda ter um lugar extremamente secundário em relação ao trabalho de Fritz Perls. Ainda assim, Laura ganha maior notoriedade após a morte de Fritz, e começa a participar mais ativamente de conferências pelos EUA e outros locais, onde apresentou suas contribuições para a Gestalt-terapia (Kogan, 1972).
Por exemplo, na década de 1970, Kogan escreve uma tese sobre a Gestalt terapia que reconhece a importância de Laura como fundadora, sendo um dos pouquíssimos trabalhos dessa época que tinha esse reconhecimento mais explícito de Laura. Ele diz: Em 1972, as contribuições de Laura foram obscurecidas pela
popularidade de Fritz e pela aparente má vontade dela em tomar posse da sua parte na Gestalt-terapia. Ela me escreveu para agradecer, dizendo que ninguém havia escrito a respeito de suas contribuições ou do seu papel de co-fundadora. Ela acrescentou que Paul Goodman foi também um co-fundador e que sem ele “não haveria nenhuma teria de Gestalt-terapia”. A inclusão de Goodman mostrou suas qualidades de lealdade e honestidade (Kogan, 1992, p. 26).
Há uma questão polêmica e importante se ser mencionada sobre o porquê de Laura ter de submetido a tantas questões de invisibilidade. Sabe-se que ela não tinha essa luta por visibilidade a que tinha Fritz. Evidentemente, não se pode desconsiderar toda a lógica patriarcal que até hoje contribui para a invisibilidade do trabalho de Laura. Consciente ou inconscientemente, os trabalhos das mulheres dentro da psicologia, da psicanálise, da psiquiatria e da ciência, de modo geral, sempre sofreram muitos ataques, assim como demasiada invisibilidade e silenciamento, e com Laura não seria diferente. Logo, historicamente, é necessário considerar essa percepção a fim de entender o apagamento de Laura, que perdura até a contemporaneidade, especialmente no Brasil. Um exemplo disso é o fato de que, até hoje, nenhuma de suas obras foi traduzida para o português. Porém, Laura mencionada que tinha um estilo mais reservado e se dizia muito tímida. Ela evitava entrar em embates públicos, principalmente porque as pessoas comparavam muito o estilo dela com o de Fritz. Em workshops, chegava a ser confrontada sobre isso, e repetia, várias vezes, que a necessidade de reconhecimento era muito mais do Fritz do que dela. Kogan continua dizendo que:
Laura abdicou do reconhecimento e crédito, dizendo, muitos anos depois, que ‘fritz tinha mais necessidade de reconhecimento, então era importante que eu desse suporte a essa necessidade’. Ela seguiu esse padrão quase que através de toda a sua vida, ao menos enquanto Fritz estava vivo. Quando jovem, seu lugar na família era garantido. Ela era adorada, e sempre teve um forte sentido de pertencer. Isto não acontecia com Fritz, que sempre teve que lutar por um lugar na familia, e cujo o pai repetidamente dizia que ele era ‘um pedaço de merda’. Nos anos que ficaram juntos, Laura dizia que ela queria protegê-lo e ganhar o reconhecimento que ele nunca havia tido (Kogan, 1992, p. 28).
Laura dizia que Fritz precisava desse reconhecimento, enquanto ela não (Perls, L. 2016). Com isso, percebe-se que ela simplesmente não reclamava da ausência de seu nome,
ou seja, não buscava reconhecimento por suas contribuições, apesar de sempre falar da sua participação na formação da abordagem e na construção de suas ideias. Em suas entrevistas, Laura aponta sua participação na escrita do livro Ego, Fome e Agressão, da qual foi responsável pela escrita de dois capítulos e pela formulação das ideias acerca da agressão e da alimentação como constituintes da organização experiencial do organismo (Perls, 2016).
No livro Gestalt Terapia, Laura participou dos debates que formularam as ideias da abordagem, por mais que ela não tenha participado da escrita, como ocorreu em Ego, Fome e Agressão. Todavia, ela esteve envolvida nos debates do livro, principalmente por ter muito mais contato com Goodman, que foi quem escreveu o tomo teórico. Fritz e Goodman nunca se deram bem e, por isso, tiveram pouquíssimo contato, sendo necessária uma articulação de Laura com Goodman (Stoehr, 1994).
Em 1981, Laura foi homenageada pelos 50 anos de sua tese de doutorado na Universidade de Frankfurt. Era para ter sido um evento modesto, esperando-se cerca de 40 pessoas, porém, aparecem 500 pessoas interessadas em seu trabalho. No entanto, quando Laura faz uma demonstração do seu trabalho, ela é hostilizada, pois as pessoas esperavam ver o estilo mais característico de Fritz Perls e criticaram ela pela forma distinta como ela conduzia a terapia. Segundo Kogan (1992, p. 26), "Laura foi atingida pela hostilidade, mas permaneceu digna e persistente”.
As pessoas questionavam por que ela não usava a cadeira quente, por que não empregava as técnicas que ficaram tão caricaturizadas da forma de trabalho gestáltico. Laura não se utilizava muito desses modelos; era raro, na verdade. Seu estilo era muito mais minucioso, sobre o qual ainda será falado um pouco mais. Laura retorna a Pforzheim no final da sua vida, quando estava com o estado de saúde bem debilitado.
No início de 1989 Laura começa a reclamar de dores, mas a origem da dor não foi encontrada. Embora o diagnóstico não fosse claro, ficou evidente que ela estava gravemente doente. A medida que a sua condição se deteriorava e ela enfraquecia, foi tomada a decisão juntamente com os seus filhos e Harvey Platt, o executor dos bens da família Perls, de que ela se mudasse com Renate para a Alemanha, onde, com os devidos cuidados, Laura esperava recuperar. Infelizmente, o estado de Laura piorou e ela morreu em Pforzheim em 1990. Renate estava com ela quando faleceu (Amendt-Lyon, 2016 s/p T.N.).
Laura deixou um legado muito importante e consistente, que tornou a Gestalt-terapia uma prática muito mais existencial e coerente, baseada em fundamentos explícitos e com uma clínica que busca acompanhar genuinamente o movimento do paciente e suas formas de interrupção.
Considerações Finais
Laura Perls é, sem dúvidas, uma das mais importantes figuras para a criação da Gestalt-terapia. Sua vida, obra e contribuições foram constantemente escondidas pela fama adquirida por Fritz Perls. O modelo de trabalho e forma sedutora de apresentação de seus workshops e cursos, fez com que ele se tornasse uma das figuras mais conhecidas da psicoterapia norte-americana na década de 1960. Laura tinha um estilo mais recatado, sem
buscar muito os holofotes. Dizia que preferia deixar a fama para Fritz, pois ele precisava muito mais disso do que ela.
Porém, atrelar a invisibilidade de Laura a características pessoais dela e de Fritz é um erro grotesco. A invisibilidade de Laura se deu, principalmente, devido a uma característica social e política de invisibilizadade das vozes femininas. Laura é mais uma das grandes mulheres que construíram a psicologia, a filosofia, a sociologia e a educação, mas foram silenciadas e destituídas pela lógica patriarcal. A história da Gestalt-terapia é contada por homens, e os personagens que são reconhecidos nesse campo são, historicamente, masculinos. Negar a dimensão patriarcal que destitui Laura é fechar os olhos para como esse modo se repete em todas as áreas do conhecimento e em todas as áreas humanas.
Reconhecer a importância de Laura para a Gestalt-terapia não é somente uma reparação histórica com a abordagem, é também uma reparação histórica com tantas outras mulheres que tiveram suas contribuições desvalorizadas em seus diferentes campos do conhecimento. Laura não é só necessária por ser uma das bases mais consistentes da Gestalt-terapia, ela é necessária para que se possa rever a lógica patriarcal que perpassa a ciência. Além disso, Laura produziu um estilo particular e integrava os diferentes caminhos propostos no nascimento da clinica gestáltica. Em outro trabalho (Belmino, 2017) procurei mostrar como a Gestalt-terapia já nasce cindida a partir de uma referência epistemológica produzida por Fritz Perls e outra por Paul Goodman. Dizer que Laura transitava nas duas perspectivas é pouco e injusto com a forma peculiar que ela produziu e sistematizou essas ideias. Porém, Laura foi fundamental na criação das ideias de ambas as correntes. Laura construiu muitas das ideias desenvolvidas no livro Ego, Fome e Agressão, atrelado à Fritz Perls. Laura participou da construção das ideias teóricas do livro Gestalt Therapy nos debates com Paul Goodman. Infelizmente, Laura escreveu poucos trabalhos teóricos e os registros de suas ideias não são muitos. Esse artigo procurou descrever a sua história, a importância de suas ideias e a construção de seu modo único de ler e interpretar a prática clínica. Isso abre a necessidade de se produzir mais trabalhos que possam buscar sistematizar sua forma de construção conceitual e o seu estilo clínico, para que possamos ampliar ainda mais a compreensão da perspectiva de Laura Perls para a Gestalt-terapia.
Referências
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Marcus Cézar de Borba Belmino
Universidade Federal de Santa Catarina
Correspondência: marcuscezar@gmail.com
Revista IGT na Rede, v. 22, nº 43, 2025, p.1-53 DOI 10.5281/zenodo.15799611 Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526
[1] Usou-se a sigla T.N. para designar “tradução nossa”. As traduções foram feitas diretamente dos textos originais e a responsabilidade pela tradução ou qualquer equívoco interpretativo é exclusivamente do autor do artigo.