GAVIORNO, Gabriela. – “Corpo e Gestalt-terapia: uma perspectiva sobre saúde e adoecimento na sociedade contemporânea

ARTIGO

Corpo e gestalt-terapia: uma perspectiva sobre saúde e adoecimento na sociedade contemporânea

Body and gestalt therapy: a perspective on health and illness in contemporary society

Gabriela Gaviorno

RESUMO

O presente artigo é uma revisão da literatura, que tem como objetivo compreender e discutir, de forma não sistemática, a diferença da perspectiva do corpo para a Gestalt-terapia e para a sociedade brasileira contemporânea, apresentando o seu papel no processo de psicoterapia e sua influência sobre a saúde e adoecimento do organismo. Ao olhar da Gestalt-terapia, o ser humano é interligado ao ambiente em que vive, formando assim, um campo organismo/meio e o corpo é o visível dessa relação, ele mostra sinais do que acontece nesse entre. Na psicoterapia, os Gestalt-terapeutas dão visibilidade a esse corpo, possibilitando ao organismo entrar em contato com suas necessidades e potencialidades. Concluiu-se que, perceber o corpo a partir do referencial da sociedade capitalista pode ser um gerador de adoecimento e, dar lugar ao seu caráter sensível e às expressões únicas de cada corpo, ao invés de subjugá-lo, é o que possibilita ao organismo encontrar sua forma única de ser saudável e de viver.

Palavras-chave: Corpo; Gestalt-terapia; Saúde; Consumismo.

ABSTRACT

This article is a literature review aimed at understanding and discussing, in a non-systematic way, the difference in the perspective of the body for Gestalt therapy and for contemporary Brazilian society, presenting its role in the psychotherapeutic process and its influence on health and the illness of the organism. From the perspective of Gestalt therapy, the human being is interconnected with the environment in which they live, thus forming an organism/environment field, and the body is the visible aspect of this relationship, showing signs of what happens in between. In psychotherapy, Gestalt therapists give visibility to this body, allowing the organism to connect with its needs and potentialities. It was concluded that perceiving the body from the perspective of capitalist society can generate illness, and giving space to its sensitive nature and the unique expressions of each body, instead of subjugating it, is what allows the organism to find its unique way of being healthy and living.

Key words: Body; Gestalt therapy; Health; Consumerism.

INTRODUÇÃO

O ser humano, para a Gestalt-terapia, possui um aspecto inter-relacionado de todas as dimensões (mentais, corporais, sociais, espirituais, etc), compondo assim, um sistema complexo e amplo. Para compreender esse organismo múltiplo, é necessário olhar para todos os seus aspectos, sem que se perca de vista um olhar do conjunto. Ou seja, olhar para o ser humano como um todo e não pelas suas partes separadamente, pois, “o todo é diferente da soma de suas partes” (Ginger, 1995, p. 13).

A partir dessa visão holística da Gestalt-terapia, o corpo pode ser compreendido como uma expressão do ser, ou seja, uma representação que revela sinais e pistas sobre o indivíduo no seu contexto. De acordo com Perls, Hefferline & Goodman (1997) o corpo funciona entre o organismo e o meio ambiente, mostrando como o indivíduo está se relacionando com o que o rodeia (essa relação é chamada de campo e será abordada mais adiante). O corpo é mais do que algo físico, ele é manifestação, é a comunicação de necessidades, bloqueios, potenciais.

Dar lugar para essas expressões e percebê-las, é uma ferramenta potente para a terapia. Perceber o corpo dessa forma possibilita entrar em contato com o campo, com as potencialidades e os bloqueios do organismo (Ginger, 1995).

Como abordagem da psicologia que se diferencia por conceber o eu (self) como contato, movimento criador diante da experiência da novidade do mundo e do outro, a Gestalt-terapia compreende a existência como um fluxo contínuo de transformação e crescimento, dado a partir do contato no campo organismo/ambiente (Alvim, 2014).

O contato é mudança e criação, é sinônimo de saúde do organismo. Para Perls, Hefferline & Goodman (1997) “é justamente na saúde e na espontaneidade que os homens parecem mais diferentes, mais imprevisíveis, mais ‘excêntricos’.” (p. 93), pois, saúde é quando o organismo é criativo para lidar com as intercorrências do meio, com espontaneidade. Caso contrário, ele se enquadra nas normas e aliena o que é seu organicamente, e essa rigidez acaba gerando adoecimento.

Os sintomas do corpo são, portanto, tentativas do organismo de se autorregular diante de situações do ambiente. São essas reações que expõem o campo, expõem a tentativa do organismo de se equilibrar diante das suas necessidades para/com o meio (Lima, 2013). Dar voz a esse corpo e percebê-lo enquanto expressão do que é funcional ou não ao organismo, é fundamental para a transformação e adaptação criativa dos organismos, ou seja, para a preservação de sua saúde.

No entanto, essa perspectiva de corpo, como aponta a Gestalt-terapia, vai de encontro com a perspectiva de corpo divulgado pela mídia, visto pelos canais de divulgação, como TV e internet, que exaltam sua forma física. Segundo Moreira (2010), estudos mostram como essa mídia influencia na subjetividade. Mas vale lembrar que essa mídia não é a causadora dessa perspectiva, mas sim uma impulsionadora de valores, e que valores são esses que estão sendo passados?

De acordo com Carreteiro (2005), a sociedade brasileira contemporânea divulga e venera o corpo como um produto que tem como objetivo gerar prazer na vida das pessoas, um corpo “perfeito” ao olhar de todos. A forma em que eles são expostos normalmente é com base em suas características físicas e objetivas, olhando para eles com julgamento e os modificando de acordo com as padronizações sociais. Essa ideia de valorização física do corpo e sua influência na subjetividade, também é apontada por Castro (2007, p 44) em seu livro sobre o culto ao corpo e sociedade, “Essa verdadeira obsessão com a aparência pode ser explicada como estratégia de construção de identidade, numa sociedade em que a fragmentação e a efemeridade tomaram lugar de referência um pouco mais estáveis”.

Bauman (apud Rodrigues, 2015) “expõe uma trágica realidade sobre a sociedade líquido-moderna, até então ofuscada pelo mercado de consumo: a da transformação dos indivíduos em mercadorias.” (p. 80). Atualmente os valores sociais são pautados na necessidade de consumo desenfreado, como se fosse um caminho que levasse à satisfação e ao prazer, objetivo esse que é uma ilusão, pois essa felicidade final nunca chegará. Propositalmente, como diz ele, pois esse desejo desenfreado é o que faz movimentar a economia do país e gerar lucro. Sendo assim, “as pessoas são, simultaneamente, os ‘fregueses’ e as próprias mercadorias” (Rodrigues, 2015, p. 80). O corpo e até a subjetividade são bombardeados com esses valores de que para ser aceito e feliz é necessário seguir o padrão (ser belo, ter sucesso profissional, ser feliz, inteligente...), e tudo que fugir a isso é um caminho errado.

As doenças do século como ansiedade, depressão, estresse, dizem de um corpo que está em busca de mudança, tentando se adaptar a um sistema que não é acolhedor de singularidades. Como o corpo não é dissociável do seu ambiente é plausível se perguntar, que ambiente é esse que tem influenciado no adoecimento do organismo?

METODOLOGIA

A presente pesquisa possui um caráter qualitativo e será realizada a partir da revisão de literatura narrativa. Serão utilizados artigos científicos na língua portuguesa que tenham sido produzidos a partir do ano 2000 que abordam o tema corpo, psicologia, sua relação na atualidade e seu papel na Gestalt-terapia. Além do diálogo com esses trabalhos online, esse artigo utilizará livros de teóricos influentes da área da Gestalt-terapia.

A Revisão narrativa, segundo Rother (2007) busca descrever e discutir um assunto de forma não sistemática e não tem como objetivo esgotar o banco de dados. Neste formato, o material pesquisado é interpretado e analisado criticamente pela autora e tem como benefício a possibilidade de atualizar o conhecimento sobre a temática em questão.

  1. CORPO E CAMPO: UM OLHAR CONTEMPORÂNEO

Estudos mostram como a vida contemporânea está marcada pelo imediatismo, individualismo e materialismo (Alegria, 2019; Mendes & Silva, 2014; Carreteiro, 2005). A vida social e coletiva tem dado lugar a uma necessidade individual, de ser e ter, necessidades essas que têm como objetivo o indivíduo mostrar sua importância em detrimento dos outros, o seu sucesso enquanto pessoa. Se o indivíduo não obtém esse status o peso recai apenas sobre ele próprio, pois ele não soube utilizar suas oportunidades para se tornar o melhor, clarificando assim, a responsabilização individual de não atender às expectativas sociais.

Um trabalho influente, ao investigar o tema da vida na sociedade atual, é o estudo de Bauman. Seus estudos abordam temas como a “vida para consumo” e a “cultura consumista”, que trazem a ideia de corpo como mercadoria e objeto de consumo (Rodrigues, C. 2015; Silva 2011; Carreteiro, 2005). Segundo Bauman (apud Rodrigues, C. 2015, p 81) A sociedade passou a ser líquida, “(sociedade de consumidores), cujos valores estão focados nos desejos crescentes e no tempo ‘pontilhista’ (não dimensional, descontínuo)”. Líquida no sentido de que para consumir, os indivíduos precisam estar sempre desejando e, cada vez que alcançam uma coisa, já existe outra nova a ser alcançada. Essa busca desenfreada pela novidade é pautada na ideia de que para ser reconhecido e ter valor é preciso fazer parte da sociedade, e que sociedade é essa que buscam se incluir? A sociedade do consumo, que precisa dos consumidores para a movimentação do sistema capitalista.

O consumo, do celular novo, da roupa da moda, da casa e carro novo, não se finda nos objetos (“produção de lixo”), o consumo adquire uma sede pelo próprio corpo e vida subjetiva dos indivíduos. Alvim (2006) discutiu sobre como o corpo se torna um produto, um capital humano para o mercado de trabalho e como as organizações disciplinam esses corpos para serem comprometidos à geração de lucro. Essa cultura organizacional “aciona os sistemas cognitivo, afetivo e motor, para promover uma aprendizagem coletiva acerca de como pensar a organização, sentir a organização e viver a organização” (Alvim, 2006, p.126). Os sentimentos, pensamentos, a vida dos trabalhadores são o tempo todo bombardeados pela tentativa de homogeneização de indivíduos que valorizam a instituição e introjetam o que é esperado para eles. Admitir isso que é imposto é um risco que se assume, pois a vida baseada apenas nesses princípios é uma vida de inautenticidade.

O corpo como produto e consumo é observado também na busca do próprio organismo para se tornar aquilo que ditam ser o ideal. A “cultura do narcisismo”, segundo Carreteiro (2005), rege uma sociedade em que os corpos são territórios, são imagens, “quase coisa” que buscam transmitir uma mensagem de corpos fortes e belos, tão belos que buscam se remodelar a todo custo, realizando procedimentos cirúrgicos e movimentando o mercado estético. Corpos que estão em busca constante de satisfação através do consumo em excesso. O corpo se transforma em um meio para atingir um status, ele assume a imagem de produto, o qual também pode ser comercializado.

O corpo é consumido e consumidor, uma espiral. Ele é consumido pelo desejo de ser valorizado e desejado e, para isso, ele precisa ser consumidor, pois quem é valorizado é aquele que consome, então ele está o tempo todo consumindo.

Não é à toa que existem tantos indivíduos adoentados, ansiosos, depressivos, estressados, e por aí vai. No entanto, como aponta Alvim, essa pressão social gera uma necessidade no sujeito e “É a angústia que tira o homem do cotidiano e o reconduz ao encontro de si mesmo.” (2006, p. 127). Portanto, existe uma potência de autorregulação organísmica que está apresentada para esses indivíduos como angústia, os empurrando até que sejam criativos e se reconfigurem de acordo com sua autenticidade e não mais pela pressão social do que é ideal.

Esse sujeito, o homem atual ao qual baseia-se o presente trabalho é o “homem organismo”, concebido por Goldstein (apud Lima, 2013) como um ser interrelacionado e indissociável do meio “contexto geográfico, sociocultural e físico”. Perls (apud D’acri, 2014) toma como base essa teoria e a traz como um princípio para a Gestalt-terapia. O organismo e o ambiente/meio não são isolados.

Nós e o nosso meio somos uma só coisa. Não podemos olhar sem ter algo para onde olhar. Não podemos respirar sem ar. Não podemos viver sem ser parte da sociedade. Portanto, não podemos, certamente, observar um organismo como se ela fosse capaz de funcionar em isolamento. (Perls apud D’acri, 2014, p.33)

Essa interação do organismo com o meio é chamada de “campo” na teoria de Lewin (apud Rodrigues, H. 2013). Campo é o que acontece no entre, as reações, os acontecimentos, comportamentos, sentimentos, emoções e todas as funções. Sendo assim, para investigar uma pessoa é necessário prestar atenção também no seu contexto, pois nada possui um significado inerente, nem pode ser compreendido de forma isolada.

A partir da abordagem Gestáltica, só tem sentido falar de corpo quando se reconhece a sua interação com o meio. Merleau-Ponty (1991 apud Alvim, 2016, p.39) “sublinha a dimensão habitual do corpo como uma zona quase impessoal que incorpora, ainda que mantendo um estilo próprio, o que está sedimentado na cultura.” O organismo e o meio estão, portanto, sempre em relação, sendo influenciados um pelo outro.

Diante desse campo e das novidades que surgem dele, o organismo pode entrar em contato e aceitar se abrir para o novo de uma forma sensível. Esse processo é chamado de awareness, o qual envolve o sentir e a experiência. Se abrir para o novo é perceber e sentir a necessidade do momento. A partir do momento em que o organismo aceita esse sentimento, ele cria um interesse e excitamento, direcionando sua energia para lidar com essa necessidade, formando assim, uma figura que se destaca do fundo, ou seja, essa figura adquire um patamar de destaque para esse sujeito. Essa figura, uma vez encarada e assimilada, é reintegrada no todo, a qual se torna novamente parte do fundo. Essa destruição de figuras abre espaço para criação de novas figuras, configurando assim a dinâmica de Gestalten (Alvim, 2014)

Como vem sendo dito, esse processo está para além da consciência egóica do saber, para além da concepção de causa e efeito do corpo/ambiente, do sujeito que sabe sobre o mundo. Essas criações não são do indivíduo para o meio, mas do organismo com o campo. Implica em um “saber da experiência” através do corpo e do campo e não de dois polos separadamente. (Alvim, 2014)

Estar aware é estar em contato. D’acri (2014) reitera que contato é o processo pelo qual o organismo assimila a novidade e busca satisfazer uma necessidade. Objeto de contato é, portanto, tudo que é novo e gera criatividade e espontaneidade. Estar consciente dessa necessidade (figura) possibilita que o sujeito entre em contato e vá em busca da satisfação e, por sua vez, do fechamento de ciclos de contato.

Esse processo, como já foi dito, não ocorre na consciência do sujeito, mas sim na interação da fronteira. Existem os sentimentos, pensamentos e suportes do sujeito, mas também existem as diferentes condições e suportes do meio. Joyce e Sills (2016, p.58) apontam que a “decisão sobre que figura priorizar e à qual dar energia é complexo, e será parte de uma reação integrada e dependente das condições específicas do campo a qualquer momento.”

É importante frisar essa ideia de consciência não egóica, pois o presente trabalho busca abordar essa concepção de corpo em relação, o que vai de encontro com o pensamento tradicional, onde pressupõe um homem que pensa e age individualmente e um ambiente que é apenas o resultado das ações do homem. Salomão, Frazão & Fukumitsu (2014, p. 58) traz o pensamento de Husserl, ao afirmar que “toda consciência é sempre consciência de algo”. Portanto, não existe meio sem homem, nem homem sem meio, pois todo pensamento é sempre uma “consciência intencional”, estando assim intrinsecamente ligados um ao outro.

É através da fronteira de contato que o corpo e o meio se tocam. O limite entre o eu/não eu, que permite o organismo se abrir ou se fechar diante de uma novidade. A fronteira delimita o que é ou não aceito para o organismo. Caso a novidade seja nutritiva, ela é assimilada e se for danosa é rejeitada, tendo como objetivo um ajustamento criativo, de aproximação ou afastamento. Segundo Pinto (2015, p. 50)

Só quando o indivíduo alcança a sua fronteira de contato e experiencia ao mesmo tempo está ligado ao meio e estar separado dele – estando aberto ao novo, exposto a coisas ameaçadoras – ocorrem contato e possibilidade de modificação. É nos limites, nos pontos de contato, que a awareness se dá e determina os limites do campo pessoa.

Os pontos de contato são definidos pela literatura da Gestalt-terapia como “ciclo de contato”. Não é objetivo deste trabalho se aprofundar nesse tema, sendo necessário um estudo aprofundado caso o leitor tenha interesse no assunto, mas vale contextualizar a ideia para que seja possível visualizar o processo de saúde e adoecimento a partir dessa perspectiva.

A partir do momento que o sujeito está aberto à experiência, ele poderá passar por mais oito etapas do ciclo de contato, de acordo com Pinto (2015, p.52)

a sensação, ou percepção corporal de alguma necessidade; a conscientização dessa necessidade; a mobilização para atender a essa necessidade; a ação proveniente dessa mobilização; a interação que essa interação provoca; o contato final movido pela necessidade; o fechamento proveniente desse contato final; e, por fim, a retirada, para que um novo ciclo se inicie, num processo ao longo da vida.

Em cada uma dessas etapas, caso não tenha um fluxo e uma fluidez, pode haver uma interrupção/bloqueio de contato. Ainda segundo Pinto (2015), essa descontinuação não é sinônimo de adoecimento, pois pode ser que essa descontinuação seja uma defesa do organismo para sua preservação. A forma de se defender varia de pessoa para pessoa, dependendo do estilo de personalidade de cada um, ou seja, a forma que cada um dá conta de reagir.

No entanto, pode ser considerada patológica “quando cristalizada ou repetidamente de amplitude desproporcional ao exigido pela situação” (Pinto, 2015, p.54). Quando ela não é expressa e satisfeita (fechar a Gestalt), ela também não é esquecida, e poderá voltar como uma fixação, impedindo que outras Gestalten sejam criadas.

  1. SAÚDE E ADOECIMENTO EM GESTALT-TERAPIA

O organismo saudável, a partir do ponto de vista da Gestalt-terapia, não é moldado ou determinado pelo meio, ele interage com ele e busca a autorregulação, ele é criativo. A lei da autorregulação organísmica implica que todo organismo possui, em sua natureza, um princípio de autorregulação e autoatualização (Goldstein apud Lima, 2013). Portanto, os indivíduos, apesar de serem bombardeados por regras morais e sociais que ditam o que devem ser, são capazes de, a partir do contato, se transformar e se equilibrar, cada um à sua forma e criatividade, à instabilidade que é a vida.

Cada organismo terá uma maneira de lidar com esse meio. O mesmo meio pode ser difícil de interagir para uns que acabam se reprimindo, já para outros, pode ser apenas uma realidade desagradável, mas que é passível de interação, conseguindo usar sua criatividade e inovações. “Um pintor pode se entusiasmar com a harmonia de luz e sombra se movendo lentamente, mas para o piloto, prestes a fazer um pouso forçado, o movimento do milho serve apenas como um indicador do vento.” (Perls, 2002, p. 77).

Perls, ao falar sobre a resposta do organismo sobre o meio, traz a ideia de que “Podemos reagir a uma situação com todo tipo de emoção — com ansiedade, medo, entusiasmo, nojo, atividade, choro, fuga, ataque ou muitas outras reações.” (2002, p. 83). A resposta não é regrada ou homogênea, não é uma consequência do meio, ela é resultado da interação organismo/meio. A reação é uma resposta do campo e é particular de cada um.

Quando esse corpo necessita se equilibrar diante do meio, diante da novidade, ele apresenta expressões e reações que são como pistas para onde o indivíduo necessita ir. E essa é a forma que o organismo encontra para mostrar sua necessidade. Estresse, ansiedade, depressão, são expressões do corpo que explicitam uma necessidade que a tempos não é percebida e sentida em sua totalidade.

O que é feito diante dessas pistas? Ao invés de observá-las e ouvi-las a fim de buscar sua forma particular de ser saudável, elas são abafadas por excesso de medicamentos, são ignoradas (ou ao menos tentam) e desvalorizadas, pois todo sentimento que causa incômodo é visto como negativo, algo a ser extirpado. Mantendo assim o organismo fixado em uma forma regrada e adoecida de viver. Uma vida com o contato enfraquecido.

Como foi dito anteriormente, o que já está dado, o que é a regra, não gera contato pleno, pois não movimenta o corpo para a criatividade, pois se tudo já está dado o que se tem mais a acrescentar? Por isso o contato é com o que é novo, diferente, o que não se encaixa, que é o que está entre o corpo e o campo, e é daí que surgem novas figuras, novas formas de ver, lidar e viver a vida. Se o sujeito não se permitir entrar em contato e perceber o que quer/necessita, como seria possível ir em busca da satisfação?

As normas sociais, a moral instituída, segundo Perls (2002) pode desencadear esse adoecimento, um excesso de situações inacabadas com gestalten incompletas, pois não se é dada atenção ao contato, causando uma “contração muscular” e a “produção de anestesia”. O organismo acaba paralisando sua capacidade criativa e adoece, ele não se adapta ao ambiente, mas sim se submete a ele. Ao buscar se ajustar a esse ambiente se baseando no autocontrole, os indivíduos se tornam disfuncionais para si (apesar de, às vezes, parecer funcional aos olhos dos outros), pois não entram em contato e não usam sua criatividade, sua autenticidade, eles não são o que poderiam ser dentro de suas capacidades e potencialidades.

Perls, Hefferline e Goodman retratam essa realidade ao fazer uma crítica ao self que é influenciado por esse meio: “As pessoas consultam manuais, autoridades, colunistas de jornal e a opinião pública. Que imagem do self obteríamos então? Não uma imagem assimilativa e tampouco criativa; é introjetiva, aditiva e regurgitada.” (1997, p. 200).

Os indivíduos estão vislumbrando a felicidade e, até ela assume esse papel de produto a ser consumido e desejado desenfreadamente. Ela é exibida como o único sentimento válido e tudo que for contra ele é desvalorizado e suprimido. “Referindo-se à tendência da nossa sociedade de ser dedicada à luz e à felicidade, sugere que existe uma rejeição generalizada a tudo que é sombrio e cinzento. Estamos sempre nos defendendo do lado trágico da vida”. (Alegria, 2019, p. 968). No entanto tudo isso que é encoberto retorna no próprio corpo, às vezes como um sintoma ainda mais forte, como por exemplo a depressão.

A busca pela terapia, assim como medicamentos, acaba se tornando um recurso utilizado para acabar com esses sintomas, com esses sentimentos sofridos. Os indivíduos olham para seus corpos com um olhar de produto a ser melhorado, desconsiderando tudo o mais que ele apresenta como reação/resposta. O psicólogo então, corre o risco de assumir essa posição de “curar” o paciente, no entanto não é esse o objetivo do Gestalt-terapeuta.

  1. O CORPO NO PROCESSO TERAPÊUTICO: SENTIDO E SENTINDO

Na abordagem gestáltica, o corpo é sensível, pois é por onde o organismo sente, interage, expressa, afeta e é afetado. É por ele que se faz contato com o meio (Alvim, 2016). Como já foi dito, o contato é um ciclo, um movimento de ajustamento criativo que envolve sentir e excitamento.

O sentir implica ser afetado aqui e agora no campo, ou seja, na interação com o outro ou a novidade, mobilizando um excitamento rumo a formação de uma figura no campo. O excitamento mobiliza os movimentos do corpo, que gesticula, se orienta e manipula a situação, exercendo uma ação motora que visa integrar e assimilar a diferença, restaurando o equilíbrio. (Alvim, 2016 p. 32)

Para a Gestalt-terapia, estar totalmente presente e em contato com seus sentimentos, emoções e comportamentos é estar aware (awareness), é perceber como é ser o que se é, sem julgamentos e fuga, mas sim com aceitação e responsabilização (Yontef, 1998). É, portanto, olhar para si sem esse olhar de autocontrole, de “deveria”, de objetificação, mas sim com uma percepção de corpo sensível, vivo e expressivo, um corpo que está presente no aqui e agora mostrando quem ele é e o que necessita.

O corpo em contato é fluido e espontâneo, ele se movimenta e percebe sua necessidade. Essa percepção se esbarra na concepção de corporeidade da fenomenologia de Merleau-Ponty (apud Alvim (2016), o qual o corpo como um todo (físico e sensível) está em movimento diante de uma necessidade surgida no campo.

Segundo Merleau-Ponty, o que é sentido, vivido e experienciado pelo corpo é o que faz sentido para o organismo. A percepção toma, portanto, um outro rumo, que não o de um pensamento subjetivo diante de estímulos do meio, mas sim um “saber corpóreo” do campo. Ela “reflete a estrutura do nosso corpo frente ao entorno, em contextos sociais, culturais e afetivos múltiplos” (Nóbrega, 2008, p. 144). Ou seja, as expressões do corpo são criações do campo que têm um estilo individual e singular de cada sujeito.

A corporeidade diz então de um corpo em relação, que sente, percebe e se movimenta no campo. Esse pensamento supera, portanto, a ideia de consciência individual, de um corpo que sabe sobre o meio, pois não existe uma verdade inata, o sentido existe a partir dessa relação no campo, da percepção. Nóbrega (2008, p. 142), enfatiza “a experiência do corpo como campo criador de sentidos, isto porque a percepção não é uma representação mentalista, mas um acontecimento da corporeidade e, como tal, da existência.”

As expressões da arte são exemplos dados por Merleau-Ponty (apud Nóbrega, 2008) do vislumbre desse entre, do que acontece no campo sensível do corpo/meio. É a livre expressão, sem regras, sem normas, sem expectativas do que deveria ser. A arte, em quadros, músicas, poesia, possui essa característica, e o corpo também pode ser uma expressão artística, quando esse corpo se livra das amarras e se torna fluido e livre, ele apenas está sendo, existindo.

É prestando atenção nisso que se pode compreender o que o mundo representa para a pessoa. Alvim (2016) corrobora com essa ideia ao falar que o sentido da experiência “se expressa em nossos gestos corporais” (p 31). O corpo e suas expressões é por onde pode-se explorar o campo do invisível, o que está no entre das relações.

O que acontece que faz com que os sujeitos procurem terapia, muitas vezes, é que eles não possuem o suporte para lidar com as demandas do campo. Quando a terapia é realizada por Gestalt-terapeutas, busca-se perceber as descontinuações no contato a partir das expressões do corpo e, também, formas para lidar com esse meio considerado adoecedor. Pois, segundo Laura Perls (apud Salomão, Frazão & Fukumitsu, 2014, p. 61) “contato é possível desde que haja suporte disponível. Suporte é o fundo global do qual a experiência presente emerge (existe) e forma uma Gestalt significativa. Pois o significado está na relação entre a figura e seu fundo.”

Quando há pouco uso e percepção das potencialidades e recursos do organismo, a permeabilidade e a plasticidade da fronteira são afetadas, o que acaba gerando adoecimento. Sendo assim, fortalecer esses recursos de apoio é uma forma de equilibrar o eu/não eu.

Um autoprocesso saudável, figuras energéticas claras e um contato satisfatório só são possíveis com autoapoio e um campo que também forneça apoio. A força do apoio em qualquer situação depende do uso e do relacionamento entre esses recursos. (Joyce & Sills, 2016, p.111)

Para que se busque esses recursos e potencialidades, é necessário também, que o Gestalt-terapeuta esteja com o cliente, com aquele corpo em relação e sensível, de uma forma genuína. Como aponta Hycner (1995) uma relação EU-TU, o aceitando como ele é. Essa psicoterapia dialógica abre espaço para que o estilo único e singular do cliente surja, pois o psicólogo valoriza, aceita e aprecia “verdadeiramente a alteridade da outra pessoa.” (Hycner, 1995, p. 25). Ou seja, não pretende ter uma relação dialética, de EU-ISSO, onde os indivíduos são separados e objetificados, um que sabe e outro que pretende aprender, uma relação, mais uma vez, de produto a ser melhorado.

CONCLUSÃO

Este trabalho buscou explicitar um pouco do mundo em que o organismo está vivendo, lembrando que este recorte é apenas uma parte do todo que é o meio de cada um. Esse ambiente possui particularidades, assim como cada um dos sujeitos, mas quando se olha para o panorama geral o que se vê são organismos adoecidos por tentarem interagir com esse meio que é rígido e regrado, sem usar suas autenticidades e potencialidades para fluir.

Ao lidar com o indivíduo no consultório, cada um possui uma família, uma rede de amigos, uma história de antepassados, uma cultura. A forma de vivenciar e interagir com tudo isso é individual, mas uma coisa é comum, quando aceita-se enquanto produto do meio e não busca ser quem se quer ser, o organismo adoece. Por adoecer entende-se paralisar, ficar em desequilíbrio com suas próprias necessidades.

O corpo enquanto processo, mostra “pistas”, sintomas desse adoecimento, pois como foi apresentado, o organismo busca a autorregulação e o corpo representa isso. Representa também que existe a possibilidade de ser livre e criativo para ser o que se quer ser.

O sujeito, a partir dessa perspectiva, não é estático e muito menos determinado pelo meio. O corpo aqui apresentado, é criativo e está sempre em movimento e em relação. Ele coexiste e produz sentidos. Ele é um todo, que é mais do que a soma de suas partes.

O Gestalt-terapeuta olhará para esse indivíduo como um organismo e buscará, no processo terapêutico, auxilia-lo a ampliar a percepção de si, do seu sintoma, do seu estilo pessoal. Isso só é possível a partir do contato com esses sentimentos e expressões. É estando aware que se consegue olhar para si de forma ampla, percebendo a interação no campo, se aceitando e aprendendo consigo mesmo.

REFERÊNCIAS

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Disponível em
http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526