Silva, A. P. - “Para fazer existir o antes: Gestalt-terapia no Brasil Antropófago”
Para fazer existir o antes: Gestalt-terapia no Brasil Antropófago
To make the before exist: Gestalt therapy in Anthropophagous Brazil
Alex Pedro Silva
Instituto Quilombo Gestáltico
Resumo
Este trabalho busca se aproximar da Gestalt-terapia e do Movimento Cultural Antropófago, explorandvés de oficinas vivenciais, foca na integração e transformação no campo psicoterapêutico, promovendo a percepção consciente e a responsabilização do indivíduo no processo terapêutico. Já o Movimento Antropofágico, nascido como uma crítica cultural, valoriza a "devoração" de influências externas em busca de uma síntese autêntica e transformadora da identidade brasileira, rompendo com os padrões coloniais.
Ambas as abordagens propõem como objetivo a emancipação, rompendo com os laços sociais que inibem o desenvolvimento pessoal e cultural. O trabalho destaca a importância de criar um diálogo entre essas correntes, confirmando suas diferenças e explorando como a Antropofagia Cultural pode ter influenciado a forma que a Gestalt-terapia foi integrada no Brasil. Além disso, busca-se refletir como esses campos podem se alimentar mutuamente, contribuindo para uma prática psicoterapêutica autenticamente brasileira.
Palavras chaves: Gestalt-terapia; Gestalt-terapia no Brasil; Antropofagia; gestalt-terapia brasileira; Movimento Antropófago.
Abstract
The work seeks to get closer to Gestalt therapy and the Anthropophagous Cultural Movement, exploring their similarities and convergences. Gestalt therapy, which arrived in Brazil in the 1970s through experiential workshops, focuses on integration and transformation in the psychotherapeutic field, promoting conscious perception and the individual's responsibility in the therapeutic process. The Anthropophagic Movement, born as a cultural critique, values the "devouring" of external influences in search of an authentic and transformative synthesis of Brazilian identity, breaking with colonial standards.
Both approaches address the goal of emancipation, breaking the social ties that inhibit personal and cultural development. The work highlights the importance of creating a dialogue between these currents, confirming their differences and exploring how Cultural Anthropophagy may have influenced the way Gestalt therapy was integrated in Brazil. Furthermore, we seek to reflect on how these fields can feed each other, contributing to an authentically Brazilian psychotherapeutic practice.
Keywords: Gestalt therapy; Gestalt therapy in Brazil; Anthropophagy; Brazilian Gestalt therapy; Anthropophagic Movement.
INTRODUÇÃO
A história é o fundo do qual emergem as noções que temos sobre a nossa identidade e que, portanto, quanto mais elucidada, mais clareza teremos do que somos e o que pretendemos. (RIBEIRO, 2007, p. 255)
Todo pensamento que pressupõe o novo, foi gestado e gerado a partir de ideias circulantes a partir daquilo que se chamaria de velho, do já conhecido. (GERCY, 2002, p.11)
Como duas correntes aparentemente distantes - a Gestalt-terapia, originada na psicologia ocidental, e a Antropofagia, um movimento cultural brasileiro influenciado pelas formas de se relacionar dos povos originários - podem se articular e oferecer novas perspectivas para a atuação e leituras da sociedade brasileira?
Este ensaio-reflexivo propõe um diálogo entre esses dois campos do conhecimento, que à primeira vista, parecem distantes, mas que ao serem analisados, revelam conexões profundas e objetivos similares.
A fim de explicitar o interesse por essa temática optou-se por partilhar com o leitor e leitora o fundo do qual emergiu essa pesquisa.
Em 2019, após assistir à peça Roda Viva, dirigida por José Celso Martinez Corrêa no Teat(r)o Oficina em São Paulo, surgiu uma curiosidade sobre a proposta da companhia. A quebra da quarta parede, a integração total entre atores e público e a ênfase no sentir sobre o pensar provocaram uma investigação que culminou nos escritos de Oswald de Andrade, na Semana de Arte Moderna de 1922 e no Manifesto Antropófago.
Esse processo de imersão levou a um encontro com uma história mais profunda do Brasil e, em paralelo aos estudos em Gestalt-terapia, os conteúdos começaram a se misturar, gerando uma sensação de conexão, confusão e interesse. O Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade clama pela busca de autenticidade, emancipação e originalidade da Cultura Brasileira, sendo o Ritual Antropofágico um veículo potente de uma expressão primária e pura de um povo que em seus primórdios eram regidos pela sabedoria do corpo.
A partir desse encontrou iniciou-se uma busca por trabalhos que falassem
sobre esse aspecto da cultura brasileira, sendo facilmente encontrados textos na psicanálise e esquizoanálise. Diante diante da ausência de produções em Gestalt-terapia que tratassem diretamente dessa temática optou-se por buscar produções, textos, artigos, vídeos e livros, que se descrevessem a história da gestalt-terapia e sua chegada ao Brasil na tentativa de encontrar elementos que pudessem conectar as duas temáticas.
Na tradução para o português do primeiro livro de Fritz Perls, Ego, Fome e Agressão (1942), o psicólogo e tradutor Georges D. J. Bloc Boris enfatiza a importância de retomar o diálogo com as origens da Gestalt-terapia em direção a novas construções (apud PERLS, 2002). Isso corroborou com o nosso interesse de estabelecer um diálogo com a Gestalt-terapia e o Movimento Antropofágico, buscando uma conexão com nossas origens enquanto povo brasileiro, uma vez que o processo colonial no Brasil interrompeu brutalmente a conexão entre o organismo e o ambiente, submetendo os povos originários à catequização, repressão e servidão - dinâmicas que, de certa forma, persistem até hoje.
A Antropofagia era praticada pelos povos originários Tupinambás que habitavam majoritariamente as regiões costeiras do Norte, Nordeste e Sudeste do Brasil. O ritual consistia em devorar a carne do inimigo, fosse ele um invasor ou alguém que ameaçasse o equilíbrio da comunidade. Esse é o registro mais antigo sobre a dinâmica de vida dos Povos Originário e só foi possível ser acessado através do diário de viagem do alemão Hans Staden, que visitou essas terras no século XVI e foi capturado pelos Tupinambás, mas posteriormente libertado. Registro esse de grande importância que possibilitou o desenvolvimento do Manifesto Antropófago e posteriormente reflexões e desenvolvimento de conceitos na psicanálise e esquizoanálise. (ROLNIK, 2000)
Para a psicanalista, filósofa e discípula de Deleuze e Guattari, Suely Rolnik (2000), a Antropofagia é o princípio constitutivo das subjetividades brasileiras. Embora essa história tenha sido amplamente debatida na literatura brasileira, essa discussão foi pouco investigada pela Gestalt-terapia brasileira.
Oswald de Andrade, no Manifesto Antropófago (1928), rompe completamente com as dicotomias civilizado/selvagem, europeu/indígena, propondo uma crítica ao colonialismo por meio da "devoração" ideológica: aproximar-se do que é nutritivo e afastar-se do que for tóxico. A antropofagia, nesse sentido, é um gesto ativo de
assimilação crítica — não uma cópia, mas uma recriação a partir daquilo que nos atravessa. De forma semelhante, a Gestalt-terapia compreende o organismo como inseparável de seu campo, enfatizando que só há existência em interação com o ambiente. O contato é a função fundamental para o crescimento e transformação, permitindo que o sujeito assimile experiências, suporte rupturas e reorganize sua existência (PHG, 1997). Tanto na antropofagia quanto na Gestalt-terapia, o foco está na experiência viva e na capacidade de criar sentidos a partir do encontro, deslocando a lógica da adaptação passiva para uma postura ativa, criadora e crítica diante do mundo..
As duas propostas apresentam esses pontos de similaridade que podem ser analisados no aspecto macro, socialmente como fora realizado por Oswald de Andrade e micro no campo clínico em Gestalt-terapia. E em conjunto pode apresentar novas dinâmicas de compreensão histórica, a partir do resgate da nossa história enquanto Povos Brasileiros e da atuação enquanto Gestalt-terapeutas.
Como é comum no desenvolvimento do conhecimento, o retorno ao passado é essencial para compreender o presente e projetar o futuro. Diante disso, torna-se relevante revisitar nossas origens e explorar as possíveis conexões entre Gestalt-terapia e a antropofagia de Oswald de Andrade.
Uma história pode ser contada sob diversas perspectivas, como fora enfatizado por Walter Ribeiro (2007) ao citar Jean Clark Juliano, que iniciava suas contribuições acerca da história e desenvolvimento da Gestalt-terapia no Brasil mencionando a influência da percepção pessoal daquele que se propõe a contar uma história.
Seguindo essa tradição, optamos por discorrer sobre a Gestalt-terapia através de aspectos históricos e teóricos que permeiam a obra inaugural da abordagem e no livro antecessor escrito por Fritz Perls, com o intuito de organizar nossa percepção rumo ao interesse de realizar uma aproximação entre Gestalt-terapia e Antropofagia.
Para orientar essa reflexão, o texto será dividido em cinco partes:
1. Gestalt-terapia: primórdios, desenvolvimento e transmissão - Uma visão histórica e teórica do desenvolvimento da Gestalt-terapia
2. Gestalt-terapia no Brasil: pioneiros e solo fértil - Levantamento de pontos importantes sobre sua chegada e adaptação ao contexto brasileiro.
3. Antropofagia: do ritual à compreensão – Descrição do Ritual Antropofágico e sua transposição por Oswald de Andrade para um conceito crítico de rompimento com padrões coloniais.
4. Manifesto Antropófago: um prato cheio para os Gestalt-terapeutas
- Reflexão sobre o Manifesto Antropófago à luz dos conceitos da Gestalt-terapia, estabelecendo possíveis diálogos entre Oswald de Andrade e a abordagem.
5. (In)conclusões e caminhos possíveis - Considerações finais sobre as oportunidades de convergência entre a Gestalt-terapia e a Antropofagia, além de questionamentos que podem estimular discussões futuras.
1. Gestalt-terapia: primórdios, desenvolvimento e transmissão
O nascimento da Gestalt-terapia data de 1951 com a publicação do livro “Gestalt-terapia: excitement and growth in the human personality” sob autoria de Fritz Perls, Ralph Hefferline e Paul Goodman, sendo este o segundo livro de Perls publicado quase dez anos depois do primogênito “Ego, hunger and aggression: a revision of Freud's theory and method” na África do Sul em 1942.
Fritz Perls mudou-se para África do Sul em 1934 junto de sua companheira Laura, onde se estabeleceram como psicanalistas bem-sucedidos e inauguraram o Instituto de Psicanálise Sulafricano. No ano de 1936, Perls apresentou suas contribuições acerca das Resistências Orais no XIV Congresso Internacional de Psicanálise, na antiga Tchecoslováquia, onde houve rejeições de suas ideias e desentendimentos pessoais com os colegas psicanalistas (JULIANO, 2004; FADUA, 2013).
Para Juliano (2004), a não aceitação das ideias de Fritz no Congresso de Psicanálise na Tchecoslováquia culminou na publicação do livro “Ego, Fome e Agressão: Uma revisão da teoria e do método de Freud” em 1942, onde de início fica explícito que o objetivo do autor é examinar as reações do organismo humano em seu ambiente, sejam elas psicológicas ou psicopatológicas (PERLS, 2002).
Com o intuito de ampliar o debate em torno das resistências anais defendidas pela comunidade psicanalítica, Perls (2002) apresenta o conceito de agressão como
central em sua discussão, discorrendo também sobre o processo de inserção das pessoas no contexto das leis morais, nos sistemas de valores e na forma pouco flexível de introjetar padrões, muitas vezes sem a possibilidade de mastigação, agressão necessária para deixar o alimento mais pastoso, facilitando a assimilação do que for nutritivo e a rejeição do que for tóxico pelo organismo.
Nesse livro, Perls defende a ideia de que o organismo buscará o equilíbrio que é continuamente alterado pelas necessidades e que a manutenção deste processo é a compreensão central da obra. A ênfase dada pelo autor em relação à existência de uma interdependência do organismo e do ambiente que impossibilitaria analisá-los de forma isolada, marca alguns dos posicionamentos contrários ao método psicanalítico.
Na segunda parte do livro, denominada de "Metabolismo Mental”, é apresentada a ideia de um sistema de processamento mental utilizando a alimentação como exemplo - necessidade básica vital e fundamental para o bem viver - para exemplificar a cadeia que parte de uma dependência total da mãe à independência de morder, triturar e mastigar os alimentos para a digestão de forma autônoma (PERLS, 2002).
Para Perls, a fome de alimento mental se apresenta de maneira semelhante à fome física e também aponta uma série de códigos relacionados à alimentação como o descaso dado à mastigação, o desprezo e o nojo pela última etapa desse processo - a defecação. Quando não levada em consideração a importância desta operação, corre-se o risco de algumas pessoas permanecerem como bebês por toda vida, ou seja, transcender o apoio total para a autonomia, quando não realizado, pode torná-las incapazes de praticar o equilíbrio necessário e fundamental que é trocar com o ambiente (PERLS, 2002).
Transcender o apoio oferecido pelo ambiente, denominado de heterossuporte, é o passo fundamental para o amadurecimento e o desenvolvimento do autossuporte - recursos que o indivíduo adquire ao longo do desenvolvimento que lhe permitem a autonomia, confiança e a espontaneidade que muitas vezes é inibida por exigências sociais reiteradamente a ponto de impedir o desenvolvimento de habilidade fundamentais para o livre fluir (CELANA, 2014).
Perls (2002) pontua que o organismo precisa se satisfazer, o afeto precisa de contato e é através do aprendizado das habilidades de morder e das ferramentas
existentes neste processo que é possível resgatar a agressão harmônica com a personalidade. Aquilo que outrora foi reprimido clama pela espontaneidade, e para Perls, o medo da agressão das classes oprimidas faz com que os governantes busquem desviar esse afeto para um inimigo externo, assim como outras políticas de inibição estabelecidas para reprimir a agressividade e seu potencial transformador.
Quanto mais a atividade de morder é inibida, menos a criança desenvolverá a habilidade de enfrentar um objeto, se e quando a situação exigir. (Perls, 2002, p.167).
Neste sentido, todas as questões que permeiam os conflitos sociais no processo do organismo contatar o meio não podem ser compreendidas sem levarmos em consideração problemas gerados pela inibição da força interna, autodefesa e assertividade do organismo. As imposições sociais sobre os organismos geradoras do autocontrole só são possíveis através da desvitalização e do enfraquecimento de funções da personalidade humana - “à custa da criação da neurose coletiva e individual” (PERLS, 2002, p. 106).
Para Muller e Muller-Granzotto (2007), as reflexões de Perls antes de 1951 se direcionaram a realizar uma profunda reformulação da metapsicologia freudiana que encontrava-se engendrada em um modelo. Os autores salientam o apetite de Perls pelo conceito de pulsão empregado por Freud e que a metapsicologia descreveria como objeto originário de satisfação e que poderia ser um desencadeador de efeito conflituoso frente a sua ausência na atualidade, ou seja, um evento do passado justificaria o conflito na atualidade.
A ênfase empregada na temporalidade é mais uma marca que estabelece a divergência com o método psicanalítico, visto que este método busca dar uma compreensão causal aos conflitos e nesta reformulação é apresentado o presente como o ponto-zero, responsável pela interligação entre o passado e o futuro (PERLS, 2002).
Em 1951, com a publicação do livro que apresenta a Gestalt-terapia “Gestalt Therapy: Excitement and Growth in the Human Personality”, houve uma releitura dos conceitos propostos por Perls em 1941 e uma “fundamental inserção da envergadura fenomenológica” na obra (MULLER e MULLER-GRANZOTTO, 2007, p. 43), contribuição fundamental de Paul Goodman, responsável pela edição das ideias de Perls a partir de uma leitura embasada em seus conhecimentos acerca da fenomenologia, como apontado por Belmino (2020).
Para Perls, Hefferline e Goodman, a terapia gestáltica consiste em “analisar a estrutura interna da experiência concreta" (1997, p. 46), o que direciona a concentração não para o conteúdo e sim para a forma como este conteúdo está sendo transmitido na situação presente. Ainda para os autores, essa forma de trabalhar a estrutura interna da experiência concreta promove o restabelecimento do processo dinâmico de figura-fundo (PHG, 1997).
O processo de formação figura-fundo acontece quando uma necessidade emerge, organizando os recursos disponíveis em busca da satisfação vindoura. Quando ocorre sem interrupções, apresenta-se um movimento vigoroso, interessante e energizado; quando satisfeita essa necessidade, retorna para o fundo e uma nova figura emerge em um fluxo contínuo (PHG, 1997).
Em uma metáfora para pensar o fundo do qual emergem as figuras, Gercy (2016) descreve o mar como sendo o fundo e as ondas que se destacam a figura, assim como as culturas, valores morais, crenças, mitos, histórias pessoais e coletivas o nosso fundo e o que se destacaria disso, a ação no presente, a figura. Sendo assim, podemos pensar que o fundo é composto por todas as experiências vividas, pela bagagem ancestral, histórica, social e cultural implicada no meio ao qual toda pessoa está inserida e que certamente irá orientar o porvir.
A bagagem ancestral dos Povos Originários fora registrado no diário de viagens de Hans Staden em 1557 sob o título: “Hans Staden: Duas Viagens Ao Brasil: Primeiros registros sobre o Brasil”, neste texto fica perceptível o caráter julgador europeu diante da dinâmica estabelecida pelos Povos que habitavam esse território, na qual o corpo era o principal instrumento na tomada de decisão na vida coletiva, que a descrevia como dinâmica selvagem e arcaica.
O encontro entre colonizadores e povos originários do Brasil, retratado no diário de Hans Staden em 1557, oferece um arcabouço histórico relevante, tanto na forma como foi descrito jocosamente a riqueza cultural e o conhecimento dos povos nativos, como na prática de extermínio do fundo histórico da política de relação desse que esse Povo estabeleceu. Para a Gestalt-terapia o contexto histórico e social se faz intrínseco na forma como todo e qualquer problema se apresenta.
Com a publicação do livro inaugural da abordagem em 1951, inaugura-se o
Instituto de Gestalt-terapia de Nova Iorque foi sob a liderança de Laura Perls e Paul Goodman, enquanto Fritz Perls viajou para divulgar a nova abordagem e mais tarde fundou o Instituto de Gestalt de Los Angeles (BELMINO, 2020). Segundo Prestelo (2001) as duas escolas de Gestalt-terapia apresentaram uma diferença na forma de promover a disseminação da teoria, o que gerou duas vertentes dentro da Gestalt-terapia, algo que também refletiu em sua introdução no Brasil.
2. Gestalt-terapia no Brasil: pioneiros e solo fértil
Antes do mundo existir, ele existia! [...] Antes de ser país, éramos árvores! (OFICINA, 2023, p.01)
O processo de importação da Gestalt-terapia no Brasil é frequentemente associado à pessoa de Thèrése Tellegen - como apontado por Juliano (2004), Holanda e Karwowski (2004), Frazão (2004) e Esch e Jacó-Vilela (2019). Por esse motivo, mesmo que brevemente, iremos discorrer sobre esta importante figura para o nascimento disseminação da Gestalt-terapia no Brasil e o contexto social e político da época em que a abordagem chegou no país.
Thèrése Tellegen, holandesa, nasceu em 1927, se formou em História em 1952 e participou do movimento do GRAAL - “uma organização internacional de mulheres comprometidas com a transformação do mundo em uma comunidade de justiça e paz” (GRAAL BRASIL, 2023). Foi convidada por um grupo de brasileiras para coordenar o Centro de Estudos do Graal em São Paulo em 1956 e em solo brasileiro se interessou pela psicologia. Com a regulamentação da profissão, ingressou no curso de Especialização em Psicologia Aplicada ao Trabalho na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, onde se formou em 1964 (FRAZÃO, 2004).
Thèrése trabalhou com Jean Clark Juliano - outra importante figura no desenvolvimento e expansão da Gestalt-terapia no Brasil, no Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo, onde realizavam atividades com grupos de alunos e professores. Segundo Juliano, “tomadas pelo 'espírito da época', nossa preocupação era direcionada a problemas de comunicação na interação entre as pessoas” (2004, p.08).
Nesse período, o Brasil vivia sob forte repressão militar e as graves consequências da Ditadura instalada em 1964, momento esse que surgiram manifestações contraculturais como o Tropicalismo e os Movimentos Estudantis, concomitantemente entre os anos de 1967-1968, e que davam o tom das preocupações e anseios deste momento (ESCH e JACÓ-VILELA, 2019).
Para Silva (2017), a ditadura civil-militar brasileira, que durou de 1964 a 1985, foi um momento de repressão e violações aos direitos humanos, com torturas, prisões ilegais, extermínio de civis e grupos contrários às imposições, marcando um momento triste para a nossa história. A autora também salienta a agressão direcionada à população através da diminuição de verbas para as instituições de saúde, educação e cultura, assim como demissões, imposição de regras e repressão do funcionalismo público. Um dos mecanismos utilizados pelos militares para garantir a manutenção do poder era a tortura e contava com apoio de diversos profissionais da saúde como psicólogos, psiquiatras, médicos e outros, que por meio de seus saberes fortaleciam ações de violência e exclusão (SILVA, 2017).
Ainda para Silva (2017), às pessoas que sofreram esses horrores, foram negados o direito à vida e o de realizar os seus projetos pessoais, além de salientar que a psicologia é marcada por esse contexto ao qual emergiu e passou a ser regulamentada, período em que houve aumento da oferta de formação em instituições privadas com crescente demanda pelo serviço. A autora aponta que a omissão dos profissionais da psicologia foi um mecanismo que garantiu e favoreceu a expansão da profissão, sendo esta considerada pouco ameaçadora para o regime vigente.
Neste sentido, é possível pensarmos o quanto os saberes psis se alinharam ao regime ditatorial e se beneficiaram utilizando-se da omissão legitimada no discurso científico de competência e neutralidade (COIMBRA apud JACÓ VILELA e FERREIRA ESCH, 2019). Segundo os autores:
Neste contexto - em que vigora, por um lado, a psicologização do cotidiano e da vida social, e de outro, um esvaziamento político - verifica-se no Brasil na década de 1970, uma grande expansão da psicologia, e, particularmente, da psicanálise enquanto prática clínica de intervenção na vida sexual e familiar. (ESCH; JACÓ-VILELA, 2019, p. 08).
Apesar do predomínio da psicanálise no contexto da ditadura civil-militar, Gomes, Holanda e Gauer (2004) apontam que já havia uma forte influência da Abordagem Centrada na Pessoa no Brasil desde 1940. Ainda para os autores, o Movimento Humanista uniu-se ao movimento de contracultura (1965-1980) resistindo aos métodos, o intelectualismo e a racionalidade.
Foi neste contexto histórico que a Gestalt-terapia chegou no Brasil, impulsionado pelo entusiasmo de Thèrése Tellegen, contagiando os amigos próximos - Lilian Frazão, Walter Ribeiro, Paulo Barros, Abel Guedes e Jean Clark Juliano - com a novidade e as possibilidades do porvir (JULIANO, 2004).
Sob organização de Thèrés, foi realizado o primeiro workshop para contribuir com a formação em Gestalt-terapia, sendo a primeira convidada a Gestalt-terapeuta Silvia Peters. Em 1973 e em 1976, Thèrése, patrocinada pelo Instituto Sedes, viajou para Califórnia, onde realizou um treinamento vivencial de um mês e estabeleceu contato com os discípulos de Fritz Perls. No mesmo ano, convidou Robert Martin para realizar o segundo workshop no Brasil (FERREIRA ESCH; JACÓ-VILELA, 2019).
Esch e Jacó-Vilela (2019) apontam que as primeiras influências da Gestalt-terapia no Brasil estavam fortemente ligadas à escola Californiana, havendo predomínio das experiências vivenciais, método que estava diretamente associado a Perls e sua forma de transmissão dos saberes e só posteriormente passaram a ser consideradas as ideias de Laura Perls e Paul Goodman. Os autores ainda enfatizam que, de acordo com o método fenomenológico, a Gestalt-terapia foi integrada à nossa sociedade através do vivido e que, de modo intuitivo, foi percorrido o caminho da experiência para atribuição de sentido.
Neste período, observou-se uma crescente popularização das abordagens chamadas “terapias alternativas”, na qual a Gestalt-terapia estava inclusa assim como a esquizoanálise, bioenergética, psicodrama e outras. Segundo Ferreira Esch e Jacó-Vilela (2019) este era um movimento de crítica à psicologia individualizante que não considerava os conflitos de natureza contextual, históricos e social, demandas que eram emergentes naquele período.
Diante disso, Suely Rolnik (2000) indagou sobre um movimento curioso de adesão à Esquizoanálise no território brasileiro em comparação a outros países, mencionando que esta teoria encontrou aqui um solo fecundo que potencializou sua disseminação. A autora foi instigada a questionar o que tornou o Brasil tão abundante para uma teoria considerada anárquica, que vai na contramão do colonialismo tão enraizado em nossa sociedade.
Em suas indagações, Rolnik (2000) encontrou no Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade uma aproximação com a Teoria Clínica da Subjetividade de Deleuze e Guattari. “A concepção de subjetividade de Deleuze e Guattari, implicada em sua teoria clínica - a esquizoanálise, faria eco a um dos princípios constitutivos das subjetividades no Brasil. Para Rolnik (2000, p.10) esse princípio se chama “antropofágico” e, então, a autora analisa esse princípio e reinterpreta aquilo que o Movimento Antropófago apontou no domínio da estética e cultura brasileiras”.
A Autora também aponta que o que possibilitou uma maior abertura para assimilação da Esquizoanálise entre os brasileiros foi o fato de a Antropofagia ser um importante constituinte da subjetividade brasileira. Para Alvim (2022), o processo de produção de subjetividade acontece na relação organismo/ambiente, o que descentraliza a ideia de subjetividade construída internamente, “implicando inexoravelmente o mundo e suas forças” (p. 55).
Quando Ferreira Esch e Jacó-Vilela (2019) apontam um movimento intuitivo dos pioneiros da Gestalt-terapia no Brasil e Rolnik (2000) reflete sobre a antropofagia como princípio constitutivo da subjetividade brasileira e que isso possibilitou uma maior abertura e adesão da Esquizoanálise, ambos apresentam dois fenômenos que acontecem em um mesmo campo. A Gestalt-terapia chegou em solo brasileiro através do corpo dos terapeutas, similaridade intrigante como os Povos Originários que assimilaram as diferenças e transmitiam os conhecimentos pelas forças que atravessam os corpos.
[...] às forças do mundo agem na produção de subjetividades, o que tem uma implicação enorme para a clínica e o olhar que temos para as questões que ali se apresentam. (ALVIM, 2022, p. 55).
O Manifesto Antropófago proposto por Oswald de Andrade estimula uma postura ativa e crítica da sociedade brasileira em um processo contínuo de “devorar” o estrangeiro de uma forma criativa, assimilando o nutritivo e excretando o desnecessário e, assim, criando uma cultura autêntica. Essa proposta foi desenvolvida a partir do resgate da dinâmica de vida dos povos originários que habitavam Pindorama, terra que posteriormente foi nomeada de Brasil pelos invasores.
3. Antropofagia: do ritual à compreensão
O primeiro registro sobre os povos originários que habitavam Pindorama, chamada de Brasil após a invasão, data de 1557 quando da publicação do livro de Hans Staden (1525-1576) em Marburgo na Alemanha com seu extenso título descritivo: “História verídica e descrição de uma terra de selvagens, nus e crueis comedores de seres humanos, situada no Novo Mundo da América desconhecida antes e depois de Jesus Cristo nas terras de Hessen até os dois últimos anos, visto que Hans Staden, de Homberg, em Hessen, a conheceu por experiência própria, e que agora traz a público com essa impressão”.
Este livro tornou-se o mais vendido da época, tendo dez reedições em cinco anos sendo traduzido para cinco idiomas, entre eles o latim, e até o século XVIII contava com mais de 70 edições da obra (BUENO apud STADEN, 2021). Apesar do grande sucesso de vendas, esta obra só foi traduzida para o português em 1892,
publicada pelo Ministro cearense Tristão de Alencar Araripe (1821-1908) na revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em uma versão repleta de imprecisões.
Depois de oito anos, foi realizada uma segunda tradução, desta vez direto da obra original em Alemão, pelo botânico suiço Albert Löfgren e com rica exploração de detalhes do geógrafo baiano Teodoro Sampaio, sendo lançado em 1900 (BUENO apud STADEN, 2021).
Segundo Bueno (apud STADEN, 2021), o exemplar do livro em alemão que deu origem à segunda tradução foi obtido pelo milionário e intelectual Eduardo Prado, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, que também era tio de Paulo Prado, um dos mentores da Semana de Arte Moderna de 1922. Paulo Prado foi o responsável por apresentar esta obra para Oswald de Andrade e sua esposa e pintora Tarsila do Amaral.
Oswald de Andrade nasceu em São Paulo em 1890, filho único de uma família abastada da capital paulista. Foi romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta e jornalista, formou-se bacharel na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco em 1919 e, em 1922, também colaborou com a organização da Semana de Arte Moderna (OSWALD, 2023).
A Semana de Arte Moderna aconteceu em 1922 no Teatro Municipal de São Paulo, território que se encontrava em intensa transformação com o fluxo migratório de europeus e com a industrialização, como discorre Nascimento (2015). Ainda para o autor, fortemente influenciado pelas ideias europeias, os organizadores do evento que ficou conhecido como Semana de 22 realizaram um projeto estético de ruptura com a produção ultrapassada e imitativa, o que desestabilizou o sistema tradicional da cultura brasileira.
Tarsila do Amaral, outra importante figura para o Modernismo brasileiro, encontrava-se em Paris e retornou ao Brasil em junho de 1922. Interessada no Movimento Modernista que ocorria no Brasil, estabeleceu contato com Anita Malfatti, Mário de Andrade, Menotti del Piccha e Oswald de Andrade, e juntos fundaram o Grupo dos Cincos (TARSILA, 2023). Apesar de não ter participado diretamente da Semana de Arte Moderna de 22, Tarsila do Amaral é frequentemente associada a este evento devido a seu pioneirismo em explorar os elementos da cultura popular brasileira em suas obras e, principalmente, por ter sido o lampejo que despertou em Oswald de Andrade o impulso para o desenvolvimento do Manifesto Antropófago de 1928 ao presenteá-lo com a obra Abaporu neste mesmo ano.
Os desdobramentos da Semana de Arte Moderna foram muitos, sendo o mais relevante o que culminou na escrita do “Manifesto Antropófago” de Oswald de Andrade, lançado em 1928, criando uma vertente do Modernismo que ficou conhecida como Antropofagia (NASCIMENTO, 2015). Para a autora, o projeto estético da Semana de 22 resultou na reprodução do que já era um hábito no Brasil: a repetição daquilo que já aconteceu lá fora, levando o Modernismo brasileiro à carência de uma identidade própria, mais autêntica e que pudesse colaborar com o rompimento definitivo das amarras impostas pela importação e reprodução de ideias do branco europeu.
Em 1923, Oswald de Andrade viaja a Paris ciente de que o europeu poderia ler sua obra com estranhamento, uma vez que para este, tudo que é espontâneo e corriqueiro na dinâmica de vida do povo brasileiro é visto como algo exótico e primitivo, enquanto que para tal povo, é apenas um modo de ser e estar conatural, gerado por reminiscências de uma tradição viva no cotidiano. Em 1924, retorna ao Brasil e lança o "Manifesto da Poesia Pau-Brasil", na qual ficam explícitos a dualidade entre o tradicional e o moderno e seu intuito de resgate das riquezas e valorização da cultura brasileira que foram exploradas pelos colonizadores (NASCIMENTO, 2015).
Mas houve um estouro nos aprendimentos. Os homens que sabiam tudo se deformaram como borrachas sopradas. Rebentaram. A volta à especialização. Filósofo fazendo filosofia, críticos crítica, donas de casa tratando da cozinha. A poesia para os poetas. Alegria dos que não sabem e descobrem. (ANDRADE, 2017, p. 22).
O Manifesto da Poesia Pau-Brasil já deixava explícitas as intenções do autor com o rompimento racionalista e o resgate da valorização das raízes brasileiras que foram usurpadas pelos colonizadores, assim como a ênfase dada aos aspectos relacionados ao sentir.
A publicação do Manifesto Antropófago em 1928 trouxe para Oswald a possibilidade de uma redefinição da cultura brasileira a partir daquilo que era considerado exótico, canibalesco e arcaico - mas que dava autenticidade - como a dinâmica de vida dos povos originários que fez o europeu escrever sobre algo que não poderia ter captado com os sentidos “por motivos de etnocentrismo” (NASCIMENTO, 2015, p. 388).
Hans Staden, ao relatar sobre a dinâmica de vida dos povos originários, só pôde se utilizar dos recursos disponíveis em seu escasso repertório de experiências e, ao dar uma leitura cristã para o Ritual Antropofágico realizado pelos Povos Tupinambá quando da sua captura, não conseguiu abarcar a dimensão simbólica que havia naquele rito (STADEN, 2021).
O sucesso de vendas e a repercussão do livro lançado em 1557 que apresentava uma narrativa vitimista, culpabilizadora e selvagem provocou repercussões pejorativas sobre os povos que habitavam esta terra gerando diversos estigmas.
O Ritual Antropófago consistia em comer a carne do inimigo em um ato coletivo, todos da comunidade comiam uma parte do corpo, exceto o responsável pela captura, que ficava em um retiro de algumas semanas, retornando para a aldeia somente após a finalização do ritual que durava alguns dias (STADEN, 2021). Segundo Staden, o responsável pela captura do inimigo ganhava mais um nome, o que lhe concederia mais respeito e admiração entre os seus, e aqueles que tivessem mais nomes teriam maior poder de influência no coletivo.
Para Rolnik (2000) o motivo da libertação de Hans Staden se deu devido à sua covardia e isso afastou o apetite antropofágico, pois sua carne não tinha os requisitos necessários para ser saboreada, não tinha energia guerreira, faltava-lhe coragem.
Em sua tese para o concurso da Cadeira de Filosofia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras na Universidade de São Paulo (1950), Oswald de Andrade descreve que a Antropofagia Ritual foi encontrada na América entre os povos que haviam atingido uma elevada cultura, defendendo que o rito não era feito para saciar a fome, era um modo de pensar, uma visão de mundo. Esse rito também foi encontrado em outras partes do globo, e caracteriza a fase primordial de toda a humanidade (ANDRADE, 2011).
O Manifesto Antropófago propõe uma política de relação com o outro, pautada na resistência e afirmação, estabelecendo uma postura ativa de devoração ou abandono, decisão possível após a avaliação da potência do outro e o quanto aumentaria a nossa própria potência nos fortalecendo, caso contrário, a regra seria se afastar daqueles que debilitam ou não provocam mudanças (ROLNIK, 2021).
Para Rolnik (2021), a proposta do Movimento Antropofágico é uma resposta à
necessidade não só de resistência às imposições colonizadoras, mas de positivar o processo de miscigenação dos diferentes povos que formam o país, eliminando qualquer julgamento de valor intrínseco a cada cultura. A autora também realiza uma avaliação contemporânea atualizando a metáfora de “comer o outro” para ser “fecundado pelo outro”, por essa ideia estar diretamente associada ao patriarcado com a apropriação e aumento de poder social e narcísico, sendo a proposta da fecundação se deixar afetar pelo outro, sustentar as afetações e deixar nascer aquilo que foi fecundado (ECO-PÓS UFRJ, 2022), além de refletir sobre como o capitalismo na atualidade incorpora de forma acrítica essa política de relação e provoca obstrução do acesso a capacidade de sentir as forças que atravessam os corpos e que clamam pelo novo.
4. Manifesto Antropófago: Um Prato Cheio para os Gestalt-terapeutas
Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. (ANDRADE, 2017, p. 49)
O objetivo do Manifesto Antropófago era promover uma mudança radical na cultura brasileira, distanciando-se das cópias inautênticas das influências europeias herdadas do período colonial em direção à valorização do que há de mais singular e original na cultura nativa. A proposta de Oswald de Andrade incentivava a assimilação de tudo que pudesse ser interessante, num processo contínuo de abertura e transformação contra a rigidez das "verdades" estabelecidas.
Contra a verdade dos povos missionários, definida pela sagacidade de um antropofágico, o Visconde de Cairu: - É a mentira muitas vezes repetida. (ANDRADE, 2017, p. 56)
A Gestalt-terapia também surge de um rompimento com o discurso hegemônico. Em vez de aniquilar os conceitos psicanalíticos, ela os amplia, assimilando outras teorias que compõem a vasta rede de influências da abordagem. Assim como no manifesto de Oswald, a Gestalt-terapia valoriza a abertura ao novo. Andrade enfatiza: "Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago" (2017, p.50), destacando a importância do movimento contínuo em busca do contato com a novidade.
Na Gestalt-terapia, o contato com a novidade nutritiva presente no ambiente é o que possibilita o crescimento (PHG, 1997). Quando esse crescimento é interrompido, como aconteceu durante a invasão colonial que impôs um modo único de estar no mundo, se impôs uma obstrução no processo de formação de figura-fundo. Essa barreira interrompeu o contato com os recursos históricos, experiências e formas de contato que sustentavam as pessoas, gerando um "direito sonâmbulo", como descrito por Oswald:
Nunca fomos catequizados. Vivemos através de um direito sonâmbulo. Fizemos Cristo nascer na Bahia. Ou em Belém do Pará. (ANDRADE, 2017, p.52).
O resgate daquilo que nos diferencia, somado à integração de novas influências, pode nos conduzir a novas possibilidades de relação, subvertendo a lógica de quem se autodenomina original e tirando-nos da posição de meros copiadores. Isso reflete o movimento da Gestalt-terapia, que busca integrar outros campos do conhecimento, sempre em contato com o desconhecido e com o novo - elementos essenciais tanto na construção teórica quanto na prática clínica da abordagem.
Oswald reconhece que, mesmo com as políticas coloniais de interrupção, houve resistência e subversão:
Nunca fomos catequizados. Fizemos foi Carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses. (ANDRADE, 2017, p. 54)
Para os Gestalt-terapeutas brasileiros Muller e Muller-Granzotto (2012), a Clínica Gestáltica defende o não normativo, incluindo aquilo que se desvía dos sistemas dogmáticos de normas e valores e pontuam sobre o direito "à ambiguidade, à possibilidade de, em algum momento, fazer carnaval" (p.120). Esse espaço de crítica oferece a possibilidade de resistir ao saber preestabelecido, dando lugar ao que resiste à captura e isso ecoa no Manifesto de Oswald quando o mesmo pontua que "A alegria é a prova dos nove" (p.58), destacando a importância da alegria - tão presente no carnaval brasileiro - como uma afirmação contra a racionalidade cientificista. Esse sentimento é uma expressão de resistência às tentativas de introjeção de normas e padrões impostos, tanto pelos métodos científicos quanto pelo colonialismo.
A Gestalt-terapia, assim como o Manifesto Antropófago, propõe uma forma de relação baseada na abertura ao novo e na rejeição do que não é nutritivo. Assim como Perls (2002) descreve a deglutição como um processo que facilita a assimilação do que é relevante, Oswald apresenta o "comer o outro" como uma metáfora da absorção do que é útil para nosso crescimento.
Perguntei a um homem o que era o Direito. Ele me respondeu que era a garantia do exercício da possibilidade. Esse homem chamava-se Galli Mathias. Comi-o. (ANDRADE, 2017, p. 55).
Assim como Perls argumenta que os conflitos sociais são compreendidos através das repressões, a colonização impôs uma obstrução das formas de vida existentes em Pindorama e Oswald nos relembra da política de relação estabelecida entre os povos:
Tínhamos a justiça codificação da vingança. A ciência codificação da Magia. Antropofagia. A transformação permanente do Tabu em totem. (ANDRADE, 2017, p.53).
Em Gestalt-terapia, o processo de compreensão surge da interação entre o organismo e o ambiente, onde a fronteira de contato é o ponto de relação. Para Oswald, o contato é o meio pelo qual realizamos a devoração ou rejeição, e a colonização estabeleceu barreiras que impediram esse contato genuíno.
O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeável entre o mundo
interior e o mundo exterior. A reação contra o homem vestido. O cinema americano informará. (ANDRADE, 2017, p.50).
O Manifesto Antropófago convoca um movimento de integração, potencialmente subversivo à lógica individualista, tão presente em nossa sociedade. Ele também sugere uma retomada do "sentir" e do direito à autenticidade.
Contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud - a
realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama. (ANDRADE, 2017, p. 60).
Perls (2002) afirma que o organismo busca continuamente restaurar o equilíbrio diante de necessidades insatisfeitas. O Manifesto Antropófago expõe um fundo histórico ocultado pela colonização, cujo objetivo sempre foi explorar os recursos desta terra, assim como a força de trabalho até os dias de hoje.
Em uma entrevista a O Jornal no Rio de Janeiro em 1929, intitulada "A Psicologia Antropofágica", Oswald (1929, p.53) faz uma conexão com a Gestaltheorie, teoria que também influenciou Fritz Perls. Ele sugere que a "transformação do tabu em totem" é uma unificação das partes fragmentadas, o que possibilitaria novas aventuras de conquista e integração.
(IN)CONCLUSÕES E CAMINHOS POSSÍVEIS
As biografias de Fritz Perls e Oswald de Andrade apresentam algumas similaridades para além de suas personalidades autênticas e muitas vezes incompreendidas. Ambos os autores romperam com tradições e modelos dominantes, estabelecendo novas formas de pensar e instituindo novas abordagens teóricas. Suas ideias foram influenciadas por uma vasta rede de conhecimentos que embasam o desenvolvimento de seus pensamentos e teorias, além da contribuição de outros pensadores e pensadoras, tão importantes quanto, no estabelecimento das abordagens. O rompimento com o previsto mostrou-se um ponto de convergência crucial para a construção de novos paradigmas, tanto na Gestalt-terapia quanto no Manisfesto Antropófago.
No entanto, as divergências entre o Movimento Antropofágico e a Gestalt-terapia são evidentes. O Movimento Antropofágico nasceu no campo artístico, buscando uma identidade brasileira autêntica e emancipada das influências eurocêntricas, ampliando a discussão para uma transformação política e cultural, apresentando como proposta integrar e transformar tudo o que fosse relevante no cenário macropolítico.
Por outro lado, a Gestalt-terapia, embora também seja uma abordagem transformadora, seu foco parece ainda estar restrito no restabelecimento da totalidade individual, enfatizando a percepção e a integração no processo de desenvolvimento pessoal, que certamente transformará o meio, mas o setting clínico não alcança essa transformação pela exclusividade da relação dual entre consulente e clínico na proposta tradicional de se fazer a clínica. Ao contrário do Movimento Antropofágico, que busca uma valorização da identidade e raízes nacionais, a Gestalt-terapia valoriza a pluralidade de formas de existir e não propõe uma única forma de identidade, mas sim a possibilidade de múltiplos modos de ser.
A forma como a Gestalt-terapia foi integrada em solo brasileiro está fortemente ligada ao modelo proposto pela escola californiana da qual Fritz Perls era seu principal mentor e aplicava workshops vivenciais como instrumento de disseminação de sua teoria. A integração da Gestalt-terapia brasileira se deu principalmente através do estilo californiano, no qual a experimentação corporal era valorizada em detrimento da absorção de conteúdos pela via da introjeção mental, ponto esse que corrobora com a proposta do Movimento Antropofágico, em que aquilo que desperta interesse no corpo deve ser deglutido e o processo de assimilação e defecação realizado.
Sendo assim, nos parece possível que o fato de termos a Antropofagia como característica fundante de nosso fundo histórico nacional tenha despertado o interesse pela proposta da nova abordagem tão crítica e disruptiva quanto a Gestalt-terapia.
Diante do exposto, é evidente que a relação entre Antropofagia e Gestalt-terapia oferece um campo fértil para novas investigações. O aprofundamento dessa relação pode trazer contribuições importantes tanto para a compreensão da cultura brasileira quanto para a prática clínica. O diálogo entre essas duas correntes que se unem à crítica ao eurocentrismo e à racionalidade opressora pode abrir novas perspectivas de leitura crítica e atuação.
Portanto, é necessário que mais trabalhos acadêmicos explorem a conexão entre esses dois campos, e que as ideias levantadas neste estudo sejam aprofundadas em futuros debates e pesquisas. A partir dessa relação, podemos continuar a construir uma compreensão mais ampla e autêntica das formas de ser brasileiras e brasileiros, bem como criar estratégias de atuação clínica e social que dialoguem com nossa história, cultura e abordagem.
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Alex Pedro Silva
Instituto Quilombo Gestáltico
Correspondência: psicologoalexpedro@gmail.com
Revista IGT na Rede, v. 22, nº 43, 2025, p.1-34 DOI 10.5281/zenodo.16883431
Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526