Santos, W. H. S. dos - “Evolução e fundamentos da Gestalt-terapia: história, teoria e prática”
Evolução e fundamentos da Gestalt-terapia: história, teoria e prática
Evolution and fundamentals of Gestalt Therapy: history, theory, and practice
Willian Henrique Silva dos Santos
Centro Universitário - UNIFATECIE
Resumo
Este estudo investigou a trajetória histórica e os fundamentos da Gestalt-terapia para determinar suas influências filosóficas e teóricas. A pesquisa utilizou uma revisão bibliográfica narrativa para apresentar concepções básicas sobre desenvolvimento, adoecimento, psicodiagnóstico, psicoterapia e contato pleno. Na determinação das influências que possibilitaram a estruturação da abordagem, identificou-se que a abordagem foi estruturada a partir de influências filosóficas como humanismo, fenomenologia e existencialismo, além de teorias como Psicologia da Gestalt e Teoria de Campo. Por sua vez, na elucidação das principais características da abordagem, identificou-se um psicodiagnóstico que compreende o cliente em sua totalidade e contexto, rompendo dualismos e focando nas relações entre sintomas, indivíduo e ambiente. Identificou-se também uma psicoterapia que tem como objetivos confirmar e fortalecer o autossuporte do cliente, ampliar a awareness e instigar novos ajustamentos criativos, de modo a promover a dissolução de gestalten inacabadas. Concluiu-se que essa abordagem surgiu como resposta à rigidez da Psicanálise, estabelecendo-se como uma psicoterapia holística e flexível que, através do contato pleno, promove autoconhecimento, autorregulação e desenvolvimento pessoal.
Palavras-chave: Gestalt-terapia, História, Desenvolvimento humano, Psicodiagnóstico, Psicoterapia.
Abstract
This study investigated the historical trajectory and foundations of Gestalt therapy to determine its philosophical and theoretical influences. The research utilized a narrative bibliographic review to present basic conceptions about development, illness, psychodiagnosis, psychotherapy, and full contact. In identifying the influences that enabled the structuring of the approach, it was found that it was structured based on philosophical influences such as humanism, phenomenology, and existentialism, in addition to theories such as Gestalt Psychology and Field Theory. Furthermore, in elucidating the main characteristics of the approach, a psychodiagnosis was identified that comprehends the client in their entirety and context, breaking dualisms and focusing on the relationships between symptoms, the individual, and the environment. A psychotherapy was also identified that aims to confirm and strengthen the client's self-support, enhance awareness, and stimulate new creative adjustments, promoting the dissolution of unfinished gestalts. It was concluded that this approach emerged as a response to the rigidity of Psychoanalysis, establishing itself as a holistic and flexible psychotherapy that, through full contact, promotes self-knowledge, self-regulation, and personal development.
Keywords: Gestalt Therapy, History, Human Development, Psychodiagnosis, Psychotherapy.
Introdução
A Abordagem Gestáltica (AG), concebida por pensadores notáveis como Frederick Salomon Perls (1893-1970), também conhecido como “Fritz”, Laura Perls (1905-1990) e Paul Goodman (1911-1972), emergiu no período pós-guerra, um contexto marcado por profundas transformações sociais e culturais. Este artigo explora a trajetória histórica dessa metodologia terapêutica, delineando suas bases filosóficas e teóricas, bem como sua evolução ao longo do tempo.
No campo da psicoterapia, a Gestalt-terapia (GT) se distingue por sua perspectiva humanista, fenomenológica e existencial, enfatizando o aqui-agora, a responsabilidade existencial e a visão do indivíduo como uma totalidade integrada.
Estudos anteriores sobre a AG investigaram seus fundamentos, conceitos e métodos clínicos, porém, frequentemente de forma isolada. Este estudo propõe apresentar essas investigações de maneira integrada e coerente, unindo história, teoria e prática.
A metodologia deste estudo se baseia em uma pesquisa bibliográfica básica, oriunda de uma revisão narrativa de literatura em artigos e livros. A obra de Helou (2015) foi fundamental para fornecer o “esqueleto” histórico do texto, complementada por outros autores como Belmino (2018, 2021) e Juliano (2004). Já a estrutura teórica teve como pilares principais as obras de Fritz Perls e de Jorge Ponciano Ribeiro.
Embora Fritz não tenha desempenhado um papel exclusivo na formação da AG, sua influência foi central (Ribeiro, 2011). Veras (2005) aponta que a vida de Fritz foi marcada por encontros, desencontros e superações, que deixaram marcas profundas na AG. Ribeiro (2018) enfatiza que as teorias de um indivíduo são moldadas por suas experiências de vida, refletindo suas múltiplas vivências e contextos. Assim, assume-se que para compreender plenamente a essência e o desenvolvimento da AG, é essencial examinar também a trajetória biografia de Fritz, destacando as experiências que mais impactaram a abordagem. Contudo, essa análise não parará por aí, prosseguindo essa trajetória até os dias atuais em solo brasileiro.
Este artigo está organizado em quatro seções. A primeira aborda a história de Fritz, destacando como suas influências pessoais se conectam à construção da GT. A segunda explora o processo de estruturação da abordagem. Na terceira, são discutidas as concepções basilares identificadas a partir da pesquisa. Finalmente, a quarta seção apresenta as conclusões e reflexões finais. Deste modo, busca-se proporcionar uma compreensão abrangente do tema, inspirando uma apreciação mais profunda das riquezas da AG.
Fritz era um indivíduo que não passava despercebido, colecionando inúmeros adjetivos: polêmico (Lacerda, 2016), debochado, exibicionista (Belmino, 2020), inteligente, intuitivo, carismático, criativo, impaciente (Helou, 2015), gentil e brutal (Stevens, 1988). Laura, sua esposa, descrevia-o como uma combinação de profeta e vagabundo. Além disso, foi um homem de interesses variados, aproveitando ao máximo tudo o que o mundo podia lhe oferecer – fosse tocar viola, patinar, pilotar, namorar, fazer amigos ou inimigos (Perls, 2002).
Talvez a melhor forma de o sintetizar seja como um experiencialista anti-intelectual, pois ele valorizava a experiência como fonte primária do conhecimento e da mudança. Em vez de pensar ou planejar, preferia sentir e agir. Isso se aplicava tanto à sua proposta psicoterapêutica quanto à sua própria vida – se é que havia alguma diferença entre as duas. De acordo com Ribeiro (2022):
Se Perls era pervertido, polimorfo, narcisista, irreverente, histérico, paranoico, esquizofrênico, ousado ou maluco, como era às vezes chamado, não sei. Sei, sim, que tentou esgotar nele as possibilidades de ser pessoa. Ele fez o que pensou e desejou, escreveu e contou para todo mundo. Não quis ficar inacabado com seus desejos. Realizou-os, não mentiu nem para si nem para os outros. E nisso ele é admirável (pp. 20 e 21).
A seguir, percorreremos a história desta figura icônica. Por questão de organização, o texto estará dividido em dezenove partes, cada qual sublinhando uma influência ou um momento pertinente para a construção da AG.
Fritz nasceu em Berlim em 8 de julho de 1893, em uma família judia alemã (Frazão, 1997; Helou, 2015). Em sua autobiografia, Perls (1979) descreve um cenário familiar complexo e tumultuado, onde “os filhos não eram a resposta profundamente desejada de duas pessoas que se amam” (p. 284). Ele revela que suas experiências familiares iniciais foram marcadas por conflitos severos, incluindo agressões físicas e verbais entre seus pais. Seu pai frequentemente depreciava sua mãe, chegando a referir-se a ela de maneiras extremamente desrespeitosas, como “pedaço de mobília ou pedaço de merda” (Ibid., p. 320). Essa dinâmica hostil contribuiu para que Fritz crescesse com sentimentos de ódio em relação ao pai, embora, ao final de sua vida, ele questionasse a influência dos ressentimentos de sua mãe nesse sentimento. Em suas palavras: “Não sei dizer o quanto da minha atitude era influenciada pelo ódio que a minha mãe nutria contra ele, o quanto ela envenenou nós, os filhos” (Ibid., p. 288).
Além disso, Fritz descreve uma desconexão com a religião logo em sua juventude. Enquanto seus avós maternos eram judaicos praticantes ortodoxos, seus pais adotaram uma postura distanciada, participando de rituais religiosos esporadicamente e apenas em grandes festividades. Assim, diante da ausência de um referencial e desprezando a hipocrisia percebida em seus pais, desde cedo se identificou como ateu (Ibid.).
Essa falta de referências familiares e religiosas levou Fritz a explorar as inúmeras possibilidades que o mundo de sua época tinha a lhe oferecer, enriquecendo sua vida com diversas experiências que influenciaram profundamente o desenvolvimento da AG. Essas vivências e a forma como ele lidou com seus desafios pessoais são fundamentais para entender sua proposta psicoterapêutica (Veras, 2005).
Desde cedo, Fritz foi introduzido ao mundo das artes por sua mãe, Amalie Rund. Ela fazia questão de levá-lo a museus, teatros e óperas (Alvim, 2007; Mendes; Baratieri, 2011), especialmente ao Kroll Theater, onde, mesmo com recursos limitados, conseguia ingressos para que ambos assistissem às peças em pé (Perls, 1979). Alvim (2007) relata que, além da influência materna, um vizinho ator e diretor também desempenhou um papel significativo em sua formação, proporcionando a Fritz a oportunidade de se envolver em pequenos trabalhos teatrais e eventualmente viajar com a trupe para atuações em cidades menores.
A escolaridade de Fritz foi marcada por desafios; ele era um aluno exemplar na escola primária, mas enfrentou professores cruéis e antissemitas no ginásio, o que o levou a desenvolver um profundo desgosto pela escola. Essa adversidade foi um catalisador para sua rebeldia, resultando em três repetências na sétima série e, finalmente, em uma expulsão (Perls, 1979; Helou, 2015). Contudo, essa fase tumultuada encontrou resolução quando em sua nova escola ele começou a participar das aulas de teatro – um ambiente no qual encontrou a possibilidade de expressividade espontânea, libertando-o do autoritarismo que lhe afligia (Alvim, 2007).
A paixão de Fritz pela dramaturgia lhe levou a trabalhar no Teatro Real de Berlim e a estudar na escola de Max Reinhardt (1873-1943), um pioneiro do expressionismo alemão no teatro, que valorizava a autenticidade e o ritmo na atuação, além de promover apresentações que buscavam superar as fronteiras entre artista e público. Posteriormente, esta ênfase sobre a conexão entre artista e público mais tarde se refletiria na GT, na qual a relação terapêutica é caracterizada por uma interação horizontal entre psicólogo e cliente (Ibid.).
Em seguida, o encanto pela dramaturgia lhe levou a participar (fazendo “bicos”) do Teatro Real de Berlim e a estudar teatro na escola de Max Reinhardt (1873-1943), que enfatizava a harmonia, autenticidade e o ritmo na interpretação (Ibid.). Perls (1979) descreveu Reinhardt como o primeiro gênio criativo que conheceu, ressaltando a intensidade das apresentações: “vida em sua máxima intensidade, e não ‘simples peças’” (p. 323).
Mendes e Baratieri (2011) expõem que, com Reinhardt, Fritz aprendeu “a identificar e associar expressão facial, corporal, postura, tonalidade e entonação de voz, sensibilizando-se para a comunicação global do indivíduo” (p. 1). Assim, podemos identificar em Reinhardt uma influência sobre Fritz que, posteriormente, desembocará na importância dada por este autor a comunicação não-verbal dentro da GT, discriminando a sua desarmonia em relação ao conteúdo verbalizado.
Em sua juventude, Fritz participou ativamente dos movimentos culturais e artísticos da Alemanha no final do século XIX e início do século XX. Ele se envolveu com teatro, poesia, pintura e filosofia, tendo contato com o expressionismo, que valorizava a experiência individual e singular em oposição à mera observação da realidade; com o dadaísmo, que buscava romper com a lógica tradicional, desnaturalizando a percepção; e com filosofias de afirmação da vida, como as ideias de Henri Bergson (1859-1941), que enfatizava a importância da intuição e da experiência imediata para compreender a realidade (Helou, 2015; Belmino, 2020). Fritz também se envolveu com o movimento anarquista alemão da década de 1920, que lutava por uma sociedade sem hierarquias opressivas (Veras, 2005).
Neste período, Fritz teve contato com o pensamento de Friedrich Nietzsche (1844-1900) (Belmino, 2020), filósofo que questionava a submissão a valores externos e universais, defendendo a importância de se assumir a existência tal como se manifesta, escolhendo de forma engajada e criativa, de modo a tornar a vida mais potente e interessante (Belmino, 2021).
Essas experiências moldaram sua visão de mundo e revitalizaram sua motivação acadêmica, levando-o a concluir o ensino secundário, ingressar na faculdade de Medicina em 1913 e especializar-se em Neurologia em 1921 (Perls, 1979; Helou, 2015). Além disso, tais influências também cultivaram em Fritz uma apreciação pela experiência estética, que permeia sua abordagem terapêutica, enfatizando a importância dos aspectos sensoriais, harmônicos, rítmicos, intuitivos, criativos etc. (Alvim, 2007).
Entre 1916 e 1918, Fritz serviu na linha de frente da Primeira Guerra Mundial, experiência que o expôs aos horrores do combate nas trincheiras – nas quais a luta pela conquista de pequenos territórios era lenta e sofrida, marcada pela fome e por doenças. Após este período, ele relatou ter voltado para casa confuso e profundamente impactado, mergulhando na vida boêmia de Berlim e nos eventos da escola de arte vanguardista Bauhaus – onde buscou referências em grupos políticos, filosóficos e artísticos (Perls, 1979; Helou, 2015).
A Bauhaus era uma escola que defendia a arte como elemento vital, propondo uma educação estética para as massas com a premissa de que a sociedade estava doente e necessitada da arte para se reintegrar ao mundo social. Essa visão ressoa com os ideais da AG, que defende a espontaneidade e a criatividade como vias para a melhoria da sociedade (Alvim, 2007).
Foi através da Bauhaus que, em 1922, Fritz conheceu Salomon Friedlaender (1871-1946) – também conhecido pelo pseudônimo de “Mynona”, que é o inverso de “anonym”, que em inglês significa “anônimo” (Perls, 1979). Eles se tornaram amigos e Fritz participou dos encontros onde Friedlaender debatia suas ideias (Müller-Granzotto; Müller-Granzotto, 2007; Helou, 2015). Em sua autobiografia, Perls (1979) descreve Friedlaender como a primeira pessoa em cuja presença ele se sentiu humilde e cheio de veneração.
Friedlaender formulou uma teoria denominada como “Indiferença Criativa”, segundo a qual qualquer convicção ou definição pode ser compreendida através de um pensamento dialético de opostos, no qual as posições extremas (matematicamente “-1” e “+1”) se diferenciam a partir do deslocamento de um ponto central de indiferença (o “ponto zero”), de modo que, apesar de possuírem nítidas discrepâncias, possuem grande afinidade entre si. A partir deste entendimento, discorreu que quando assumimos precipitadamente uma opinião predefina, deixamo-nos ser capturados por um desses opostos e perdemos o acesso a polaridade antagônica, o que nos torna incompletos, desequilibrados e limitados em nossa perspectiva, agindo de uma maneira que não considera o contexto atual. Assim, defendeu a importância de inicialmente ocuparmos este ponto de indiferença (que não tem a ver com desinteresse, mas com a abertura de um interesse imparcial e criativo para ambas as direções possíveis), e somente depois deliberarmos de uma maneira específica na situação (Perls, 2002; Veras, 2005). Ou seja, defendeu o uso de uma discriminação feita na situação, a partir de um saber da experiência.
Fritz adotou essa esta abordagem de Friedlaender, afirmando que em psicologia, o observador e o observado são inseparáveis, de modo que alcançar uma perspectiva abrangente e imparcial é crucial para uma compreensão mais precisa (Perls, 2002).
Em 1925, motivado por conflitos familiares e um envolvimento amoroso com uma mulher casada (Perls, 1979; Belmino, 2020), Fritz iniciou uma análise pessoal com a psicanalista Karen Horney (1885-1952). Influenciado por esta experiência, decidiu seguir a carreira de psicanalista. Sob a orientação de Horney, ele começou sua formação no renomado Instituto de Berlim, que na época era o maior centro de psicanálise da Europa e, posteriormente, aprofundou seus estudos em Frankfurt sob a tutela de Kurt Goldstein (1878-1965), que na época representava o maior polo universitário da Alemanha (Helou, 2015).
Nas sociedades ocidentais, qualquer desvio dos padrões de racionalidade era tradicionalmente visto como uma falha ou doença na natureza humana. Aqueles considerados irracionais, ou “desrazoados” como se referiam no século XVII, eram vistos como pessoas dominadas por seus afetos ou paixões. Esse estigma evoluiu ao longo do tempo, mantendo a ideia de que emoções fortes poderiam ser perigosas. Na visão medieval, afetos intensos eram considerados pecaminosos, com os sete pecados capitais exemplificando essa crença. Na era moderna, a "inteligência emocional" passou a ser entendida como o controle dessas emoções, em vez de uma integração saudável delas. Nesse contexto, a Psicanálise surgiu como uma perspectiva revolucionária, questionando a primazia da racionalidade. Freud destacou a importância dos aspectos irracionais da mente, como impulsos inconscientes e desejos reprimidos, e sua influência na psique e no comportamento. Ao reconhecer a complexidade emocional e irracional como parte integral da experiência humana, Freud propôs que essas características não são defeitos a serem corrigidos, mas manifestações essenciais da complexidade humana (Belmino, 2020).
Apesar de psicanalista, Horney defendeu concepções não ortodoxas que se tornarão valiosas para a AG. Suas ideias propõem que os indivíduos não são prisioneiros de seus passados ou impulsos biológicos. Pelo contrário, ela acreditava na capacidade das pessoas de transcenderem suas estruturas neuróticas, realizando escolhas que refletem seus valores autênticos e descobrindo, assim, seu próprio “centro de gravidade”. Esse processo de autoconhecimento e autogestão é essencial para a saúde mental e a autenticidade pessoal (Helou, 2015; Belmino, 2021).
Horney também enfatizou o papel significativo das condições socioculturais no desenvolvimento da personalidade e da saúde. Segundo ela, sentir-se aceito, amado e protegido são aspectos cruciais que permitem às pessoas liberarem seu potencial para autorregulação e crescimento pessoal. Além disso, ela abordou as origens da neurose, que muitas vezes podem ser rastreadas até as relações primárias na infância, onde uma criança pode se sentir inadequada e desenvolver um sentimento crônico de culpa por não atender às expectativas idealizadas (Helou, 2015; Belmino, 2021).
Um dos pontos mais inovadores em suas teorias é a utilização dos sentimentos do psicoterapeuta como ferramentas terapêuticas. Horney sugere que os terapeutas devem usar suas próprias emoções durante as sessões como guias para suas intervenções, adaptando-as às necessidades individuais do cliente. Essa abordagem personalizada enfatiza a importância da empatia e do entendimento profundo na relação terapêutica (Helou, 2015; Belmino, 2021).
Fritz absorveu essas lições e as expandiu em seu próprio trabalho, aprendendo com ela a valorizar o envolvimento humano de maneira mais profunda e significativa, além das meras terminologias (Perls, 1979).
Em 1926, sob a recomendação de Karen Horney, Fritz se mudou para Frankfurt, onde trabalhou como assistente no Hospital Geral de Soldados Lesionados, sob a direção de Goldstein – pioneiro da Teoria Organísmica. Essa influência foi decisiva para a formação intelectual de Fritz, que também teve a oportunidade de se envolver com a Psicologia da Gestalt, a Teoria de Campo e a Teoria Holística durante esse período (Helou, 2015).
A Psicologia da Gestalt, surgida no início do século XX, foi fundada por Max Wertheimer (1880-1943) e seus discípulos Wolfgang Köhler (1887-1967) e Kurt Koffka (1886-1941) (Ribeiro, 1985; Bock; Teixeira; Furtado, 1999). Contrapondo-se à abordagem atomista de Wilhelm Wundt, que via a percepção como soma de sensações isoladas, a Psicologia da Gestalt propõe que a percepção é ativa e integrativa, organizando os elementos sensoriais em uma configuração total, a “gestalt” (Belmino, 2021). Observaram que a percepção não é passiva, mas seletiva e individualizada (Perls, 1977a), possuindo uma tendência de organizar os elementos sensoriais da forma mais harmoniosa e completa possível, resultando em uma configuração subjetiva deles – denominada como “meio comportamental”. Exemplos clássicos, como a figura ambígua do cálice e dos rostos, ilustram como a percepção pode alternar entre diferentes configurações ou “gestalten” (Bock; Teixeira; Furtado, 1999).
A Psicologia da Gestalt se expandiu além da percepção, aplicando-se também nas artes, na arquitetura, na biologia e na física, demonstrando que a organização das partes dentro de um todo é universal (Perls, 2002; Belmino, 2021). Desafiando o mecanicismo, que focava na análise isolada dos elementos, os gestaltistas defenderam a importância de uma visão abrangente do conjunto (Perls, 2002; Perls; Hefferline; Goodman, 1997), postulando que “o todo é diferente da soma das partes” (Ribeiro, 2007/2021). Esse enfoque permitiu a compreensão funções relacionais que fornecem sentido integrador aos conjuntos analisados, culminando no conceito de “insight”, uma reorganização intuitiva da gestalt que desbloqueia novos significados e facilita a solução de problemas (Bock; Teixeira; Furtado, 1999).
Kurt Lewin, um dos principais colaboradores de Wertheimer, Köhler e Koffka, desempenhou um papel essencial na evolução da Psicologia da Gestalt ao desenvolver a Teoria de Campo. Esta teoria, influenciada pelos conceitos da Psicologia da Gestalt, foi adaptada por Lewin para analisar mais profundamente o comportamento humano, possibilitando a descrição do campo e a análise da íntima relação entre comportamentos e contextos específicos. O termo “campo” foi inspirado nas propriedades dos campos elétricos e magnéticos, sugerindo que os fenômenos devem ser observados como parte de uma totalidade dinâmica de forças em interação (Parlet, 1991). Assim, ele enfatizou que cada situação deve ser vista como única e transitória, focando nas forças atuantes no momento presente (Rodrigues, 2013), que moldam o comportamento do indivíduo dentro de seu campo, o que inclui variáveis psicológicas e não-psicológicas, como necessidades pessoais, expectativas sociais, pressões ambientais etc. (Ribeiro, 1985).
Por fim, a Teoria Organísmica de Goldstein destaca que o organismo humano funciona como uma totalidade integrada, onde alterações em uma parte afetam o todo (Holanda; Moreira, 2017). Observando soldados com lesões cerebrais na Primeira Guerra Mundial, Goldstein percebeu que uma lesão em uma área do cérebro poderia impactar diversas outras partes do corpo, não apenas as diretamente conectadas. Ele desenvolveu a teoria da “centragem”, que descreve a dinâmica energética do corpo e do cérebro em resposta à atividade funcional. Isto é, que quando uma área específica é acionada para executar uma função, ela se torna a “figura”, enquanto as outras áreas assumem o papel de “fundo”, fornecendo suporte estrutural e energético. Esta reorganização de energia é adaptativa e visa manter o equilíbrio interno do organismo (Ribeiro, 1985).
Goldstein definiu a pessoa como um “organismo”, uma totalidade organizada e indissociável, em íntima articulação com seu meio circundante, compondo um sistema organismo-ambiente. Ele descreveu a autorregulação como um processo pelo qual o organismo interage com o ambiente em busca de manter sua integridade e homeostase, respondendo às necessidades que perturbam seu equilíbrio (Lima, 2013). A autorregulação é vista como uma capacidade primitiva e autônoma, refletindo o princípio holístico presente em todos os seres vivos (Müller-Granzotto; Müller-Granzotto, 2007).
Goldstein também observou que, condições normais, o organismo foca na autoatualização, aprimorando seus potenciais, enquanto, em condições anormais, prioriza a autopreservação imediata (Holanda; Moreira, 2017). Ele também declarou que a autorregulação conduz à autorrealização, que é a atualização e expressão do ser no mundo (Lima, 2013) – conceito que serviu de inspiração para os principais exponentes da Psicologia Humanista (Belmino, 2021).
Durante sua estadia em Frankfurt, Fritz participou ativamente dos seminários de Goldstein e dos cursos oferecidos por Adhémar Gelb, um importante psicólogo da Gestalt e colaborador de pesquisa de Goldstein (Müller-Granzotto; Müller-Granzotto, 2007). Foi nesse contexto enriquecedor que Fritz conheceu Lore Posner (mais tarde conhecida como Laura Perls), que na época era aluna de Gelb e trabalhava com Goldstein (Frazão, 2013).
Após seu período em Frankfurt, Fritz Perls mudou-se para Viena em 1927, onde continuou seu treinamento psicanalítico. Durante este tempo, ele passou por experiências de análise e supervisão com as quais não encontrou afinidade, até que foi apresentado a Wilhelm Reich (1897-1957) sob indicação de Horney. Reich, conhecido por seu estilo rebelde, tornou-se uma figura significativa na jornada profissional de Fritz, atuando como seu professor, supervisor e posteriormente como analista (Perls, 1979; Veras, 2005; Helou, 2015). Em sua autobiografia, Fritz descreveu o nítido contraste entre as sessões realizadas com Reich, marcadas por ousadia e intensidade, em comparação as sessões realizadas com o seu analista anterior, marcadas por passividade e frieza (Perls, 1979).
Destaco três concepções de Reich que trouxeram influências para a AG. Primeiramente, ele enfatizou a importância do contexto social e político na formação das neuroses, assinalando que estas surgem a partir dos conflitos entre o indivíduo e as demandas socioculturais. Esse entendimento levou Reich a encorajar seus pacientes a confrontarem essas forças externas e a se expressarem autenticamente, um ensinamento que Fritz abraçaria em sua prática clínica (Helou, 2015). Além disso, Reich valorizava a interconexão dos aspectos físicos e mentais da saúde, uma ideia que reforçava a importância de entender o corpo como uma via de acesso aos processos psíquicos – pois quando uma pessoa se reprime, não faz isso apenas psicologicamente, mas corporalmente, tensionando os dentes, segurando a respiração, travando os ombros etc. (Perls, 2002; Helou, 2015).
A terceira influência de Reich foi a ênfase na observação detalhada do comportamento não verbal durante a terapia, como o tom de voz, a postura e as expressões faciais, que muitas vezes revelam mais sobre os estados emocionais do paciente do que as palavras ditas (Veras, 2005; Helou, 2015; Belmino, 2018).
A relação entre Fritz e Laura se desenvolveu rapidamente, culminando em casamento em 23 de agosto de 1930 (Helou, 2015). O casamento ocorreu em um contexto de rebeldia por parte de Lore, que decidiu se unir a Fritz contra os desejos de sua família (Perls, 1979). Ela tinha 24 anos e ele 36. No ano seguinte, nasceu Renate, a primeira filha do casal. Naquela época, Fritz já possuía diversos clientes em análise, e sua carreira como neurologista também prosperava. Essa união marcou o início de uma parceria tanto pessoal quanto profissional que viria a ter um impacto significativo no desenvolvimento da AG (Frazão, 2013; Helou, 2015).
Na década de 1930, com a ascensão do nazismo, Fritz e Laura Perls enfrentaram um período tumultuado que os forçou a abruptamente abandonar a vibrante cultura europeia (Helou, 2015). Devido à sua ascendência judaica e seu envolvimento ativo no movimento de resistência ao nazismo, Fritz encontrava-se em grande perigo, constando inclusive na lista negra nazista (Perls, 1979).
O dia 10 de maio de 1933 marca um capítulo sombrio na história da Alemanha, exemplificando a censura e a perseguição intelectual sob o regime nazista. Naquele dia, diversas cidades universitárias testemunharam queimas públicas de livros, onde obras de eminentes escritores foram incineradas em praças públicas, simbolizando o ódio do regime à diversidade de pensamento e à liberdade intelectual. Esse ato não foi meramente simbólico; foi uma manifestação palpável do controle autoritário. A queima de livros deu início a uma perseguição sistemática contra opositores do regime, resultando na prisão de muitos e forçando outros a fugir do país para salvar suas vidas. Até 1938, cerca de 150 mil judeus alemães, representando um quarto da população judaica na época, já haviam emigrado, buscando refúgio da crescente opressão e violência antissemita. Este evento serve como um lembrete perturbador da vulnerabilidade da liberdade diante do autoritarismo (Helou, 2015).
Este contexto alarmante levou Fritz e Laura a tomar a difícil decisão de fugir para a Holanda – aonde Fritz chegou com apenas vinte e cinco dólares escondidos em seu isqueiro. Na Holanda, ele inicialmente se abrigou em uma casa para refugiados oferecida pela comunidade judaica e, após a chegada de Laura e da primeira filha do casal, Renata, se mudaram para um pequeno sótão, enfrentando condições de extrema miséria (Perls, 1979; Helou, 2015).
Apesar desses desafios iniciais, Fritz conseguiu concluir sua formação psicanalítica na Holanda e se associar à Sociedade Psicanalítica Holandesa. Essa conquista permitiu que, quando se mudassem para Johannesburgo, na África do Sul, ele já possuísse a certificação de analista didata. Na África do Sul, a vida da família Perls tomou um rumo drasticamente diferente, de modo que desfrutaram de uma vida próspera e luxuosa (Helou, 2015). Habitaram uma mansão equipada com piscina e quadra de tênis, contando com vários funcionários e até mesmo um pequeno avião (Perls, 1979). Durante este período eles tiveram o segundo filho, Steven (Juliano, 2004; Helou, 2015), e conheceram pessoalmente Jan Smuts, criador do Holismo e então Primeiro-Ministro do país (Helou, 2015).
A Teoria Holística de Jan Smuts propõe que o mundo é uma totalidade indivisível (Perls, 2002), onde todas as partes estão intrinsecamente conectadas em uma estrutura organizada (Ribeiro, 2011). Smuts enfatiza que não existem processos isolados, de modo que destacou a buscou pela compreensão abrangente da totalidade em detrimento da investigação extensiva de partes isoladas (Ribeiro, 1999). Nesse sentido, apontou que cada parte modifica as propriedades das outras, resultando em uma entidade nova e distinta, cujas qualidades emergentes não podem ser plenamente compreendidas pelo exame de seus componentes isolados (Ribeiro, 2011). Essa perspectiva desafia o mecanicismo e rompe com dualismos como mente-corpo ou pessoa-mundo, entendendo tudo como indissociável e em constante relação (Ribeiro, 2009).
Os três princípios do Holismo são: tudo deve ser analisado como uma totalidade, tudo está em relação e tudo muda. Esses princípios se complementam ao enfatizar uma visão ampla, revelando a íntima conexão entre todas as coisas e como qualquer alteração impacta a totalidade, exigindo reconfigurações constantes (Ribeiro, 2011). Smuts argumenta que essas interações holísticas são naturais e orgânicas, presentes desde o átomo até a personalidade (Lima, 2008), conduzindo o universo à transcendência de suas partes em direção a uma unidade absoluta e harmoniosa (Ribeiro, 2011). A matéria, a vida e a mente são vistas como fases progressivas de uma evolução cósmica, onde cada estágio transforma o anterior, criando estruturas cada vez mais complexas e integradas. Dessa forma, a mente humana, com sua autoconsciência e liberdade, é considerada o ápice desse processo evolutivo, capaz de reinterpretar e influenciar o ambiente, expressando uma personalidade criativa (Ribeiro, 2005; Lima, 2008).
Essa mudança radical de circunstâncias reflete a resiliência e a capacidade de adaptação de Fritz e Laura, que não apenas sobreviveram a um dos períodos mais sombrios da história europeia, mas também prosperaram em um novo contexto, contribuindo significativamente para o desenvolvimento da psicanálise na África do Sul através da fundação do Instituto Sul-Africano de Psicanálise (Helou, 2015).
Importante mencionar que Fritz não teve uma formação psicanalítica tradicionalista, uma vez que os seus dois grandes mentores, Horney e Reich, defenderam convicções contrastantes as posições de Freud (Ribeiro, 2022). As concepções de Horney, que enfatizavam aspectos culturalistas e organísmicos, eventualmente a distanciaram do modelo mais biologicamente determinista da psicanálise ortodoxa, levando a sua saída do Instituto de Psicanálise de Nova Iorque. Por sua vez, as concepções de Reich, somadas também a algumas divergências políticas, resultaram na sua expulsão da API (Associação Psicanalítica Internacional) (Helou, 2015).
Não à toa, Oliveira (2011) afirma que “as proposições de Perls, ainda como psicanalista, não se enquadravam no arcabouço psicanalítico” (p. 281). Contudo, apesar destas peculiaridades de sua formação profissional e de posteriormente ter se tornado um ferrenho crítico de Freud, ele não escondia a sua gratidão e admiração pelas descobertas daquele (Perls, 1979), reconhecendo a sua genialidade em ter aberto caminho para a compreensão da irracionalidade e em ter inserido na clínica médica a escuta ao paciente – afinal, até então o paciente era entendido como aquele que menos sabia sobre a sua doença, de modo que os seus pensamentos eram em grande parte desconsiderados (Belmino, 2020). Inclusive, Fritz menciona que durante uma parte de sua vida foi encantado pela Psicanálise, tratando-a como uma espécie de “religião” ou “lar espiritual” (Perls, 1979); ao todo, vivenciou seis anos de análise pessoal e atuou durante vinte e três anos como psicanalista (Ribeiro, 2022).
Durante os doze anos em que residiram na África do Sul, Fritz e Laura progressivamente se afastaram das práticas ortodoxas da psicanálise (Helou, 2015; Belmino, 2018), marcando uma fase de inovação e mudança em suas condutas terapêuticas (Belmino, 2018). Laura, por exemplo, adotou uma prática mais direta, abandonando o tradicional uso do divã para conduzir sessões de psicoterapia frente a frente com seus pacientes. Essa mudança refletia uma postura mais interativa e pessoal na terapia, propiciando um ambiente onde a comunicação se tornava mais dinâmica e acessível.
Um exemplo significativo dessa nova perspectiva pode ser visto na palestra Resistências Orais de Fritz. Inspirado pelas observações de Laura sobre maternidade (Frazão, 2013), Fritz desenvolveu uma teoria segundo a qual mesmo em tenra idade, durante a formação da dentição, as crianças já seriam providas de uma orientação primitiva voltada para a saúde. Ele argumenta que as crianças não são meramente passivas em relação ao que assimilam, podendo discriminar o que lhe nutre em meio ao que lhe intoxica, aceitando e rejeitando alimentos, assim como modificando (através da mastigação) o que ingerem em prol da assimilação efetiva. Fritz estendia essa analogia ao desenvolvimento psicológico, relacionando a “assimilação de alimentos” ao processo de “assimilação mental”, sugerindo que as crianças também poderiam utilizar esta orientação espontânea para discriminar os valores e regras impostos pelos pais, assim como as suas capacidades de ação em prol de transformar o mundo em algo que lhe seja mais palatável (Müller-Granzotto; Müller-Granzotto, 2007).
Ele defendia que, assim como as crianças desenvolvem um paladar próprio, identificando o que gostam ou desgostam, elas também são capazes de discriminar psicologicamente o que absorvem do ambiente, tornando-se críticas de sua experiência e formadoras de uma personalidade singular e autônoma (From; Miller, 1997). Assim, em vez de serem obrigadas a incorporar passivamente tais imperativos, sugeriu de serem encorajadas a gradativamente fazer escolhas adequadas as suas capacidades de compreensão, de modo a respeitar e preservar as suas capacidades de discriminação e ação – ou seja, de autorregulação (Müller-Granzotto; Müller-Granzotto, 2007).
Essas ideias representam uma clara ruptura com os métodos tradicionais da psicanálise e destacam o movimento contínuo dos Perls em direção a uma terapia que valoriza a espontaneidade, a interação ativa e o crescimento pessoal do indivíduo. Esta abordagem, que mais tarde viria a ser conhecida como Gestalt-terapia, é fundamentada na crença de que o ser humano é capaz de autorregulação e crescimento pessoal quando livre para explorar e entender suas próprias experiências.
Esta palestra foi apresentada no XIV Congresso Internacional de Psicanálise, ocorrido na Tchecoslováquia no ano de 1936. O congresso em questão teve características singulares, ocorrendo em meio a uma Europa tumultuada por invasões e perseguições intensificadas. Durante esse período de conflito, a psicanálise enfrentava uma crise significativa, ameaçada de extinção pela ausência de Freud, que estava debilitado por problemas de saúde. O cenário de desintegração foi ainda mais agravado por intensos embates ideológicos entre os seguidores de Anna Freud e os defensores das ideias de Melanie Klein. Além disso, outros conflitos contribuíram para o clima tenso, como a interrupção abrupta da palestra de Lacan por Jones (Helou, 2015).
Em sua autobiografia, Fritz descreve que este período foi marcado por quatro grandes frustrações. Primeiramente, após anos afastado da Europa, ele tinha o desejo de fazer uma chegada triunfal no evento, pilotando seu próprio avião da África até lá. No entanto, problemas logísticos o obrigaram a mudar seus planos e viajar de navio. Em segundo lugar, a mencionada palestra desafiou diretamente alguns dos princípios fundamentais da psicanálise tradicional, como a noção estabelecida de que todas as resistências são de natureza anal e que o aprendizado infantil se dá principalmente por meio da introjeção. Deste modo, foi recebida com críticas pelos demais participantes. Em terceiro lugar, o reencontro com Wilhelm Reich, seu antigo mentor, não ocorreu como esperado. Reich mal o reconheceu, adicionando uma camada de desapontamento pessoal ao evento para Fritz. Por fim, a quarta e última frustração ocorreu em seu encontro com Sigmund Freud. Fritz tinha a expectativa de ter como ele um produtivo debate de ideias, mas ao invés disso encontrou um Freud amargurado e debilitado (Perls, 1979; Helou, 2015) – Freud estava com oitenta anos de idade, e só naquele ano realizou quatro das trinta e três cirurgias referentes ao seu câncer bucal (Helou, 2015). Fritz descreveu que foi recebido de maneira fria e breve, muito aquém de suas expectativas; que, ao chegar para a reunião agendada, relatou a Freud “Vim da África do Sul para dar uma palestra e para vê-lo”, e que este, parado à porta, perguntou-lhe “Bem, e quando você volta?” – uma atitude que deixou Fritz chocado e desapontado (Perls, 1979).
Após estas múltiplas frustrações, Fritz retornou à África do Sul desolado e sem clareza sobre as suas referências teóricas (Helou, 2015). Na viagem de volta, Perls (1979) relata que se percebeu como “um cigano solitário lamentando não pertencer a nada” (p. 76), e desabafou que “Nem ciência nem natureza, nem filosofia nem marxismo conseguiram preencher o vazio de um lar espiritual. Hoje sei que esperava que a psicanálise fizesse isso por mim” (p. 77).
Dedicou-se então à escrita de Ego, Hunger and Aggression – em português foi nomeado como Ego, Fome e Agressão. A obra foi originalmente publicada em 1942 com o subtítulo “Uma revisão da teoria e método de Freud”, e posteriormente, em 1969, republicada sob o título “O início da Gestalt-Terapia”. Importante mencionar que, apesar de ter sido assinada por Fritz, esta obra foi resultado da reflexão do casal – inclusive, dois dos seus capítulos foram escritos por Laura (Helou, 2015).
Tratou-se de uma obra escrita apressadamente e publicada sem revisão, que apesar de ter ampliado o trabalho apresentado no congresso de Psicanálise, apresentou seus conceitos de maneira desorganizada e rudimentar – contudo, ainda assim, pode ser considerada valiosa em sentido histórico (pois registrou o período uterino da AG), teórico (pois trouxe contraposições paradigmáticas) e editorial (pois foi sucesso de vendas, principalmente com o público leigo) (Ibid.).
Nesta obra, Fritz afirmou ter aplicado sobre a Psicanálise a mesma proposta que postulou como característica de saúde: mastigar e discriminar – sendo assim, buscou assimilar as partes que identificou como valiosas e descartar os seus constructos que considerou errôneos ou limitados. Apesar de enfatizar o valor das contribuições de Freud, declarou que este construiu a sua abordagem através de ferramentas precárias, resultando em incompletudes e deficiências. Assim, buscou revisar as teorias e métodos naquilo que observou como cientificamente “desatualizados” (Perls, 2002; Helou, 2015).
Fritz e Laura propuseram uma abordagem que inicialmente chamaram de “psicanálise holístico-gestáltica”, tentando integrar os aportes descobertos pelo casal até aquele momento (Helou, 2015). Trata-se de uma jornada intelectual iniciou com a crítica ao dogmatismo freudiano que absorveram de Horney e Reich, e posteriormente se enriqueceu através das interações com gestaltistas pioneiros e pela exposição às ideias holísticas de Smuts, à noção de indiferença criativa de Friedlander e à abordagem organísmica de Goldstein (Belmino, 2018). Diante disto, eles criticaram a visão isolacionista da psicanálise em relação aos fenômenos psíquicos, propondo uma perspectiva mais integrada e organísmica que inclui o corpo no processo terapêutico. Também argumentaram contra a psicologia linear da associação, substituindo-a pela visão de totalidade da Psicologia da Gestalt e do Holismo. Além disso, rejeitaram o método freudiano de associação livre, focado no inconsciente, em favor de um método de concentração que visa aumentar a consciência e a autocompreensão do cliente (Perls, 2002).
Por fim, a obra apresentou uma visão demasiadamente diferente sobre a natureza humana, de modo que obviamente não foi admitida como uma revisão válida para a Psicanálise. Iniciou-se então um afastamento teórico que se provou sem volta (Perls, 2002; Helou, 2015).
Em seu desenvolvimento teórico, Fritz e Laura propuseram uma nova interpretação da agressividade. Contrariando Freud, que via a agressão primariamente como uma força destrutiva a ser controlada pela cultura, os Perls a viam como um impulso vital para a autorregulação do organismo em seu meio ambiente – pois, a partir daquilo que lhe acomete, incita-o a ação, instigando-lhe a se posicionar no mundo em prol de suas necessidades, assim como a afetar o ambiente no intuito de incorporar o que precisa para a sua preservação e crescimento (From; Miller, 1997; Perls, 2002). Helou (2015) elucida de maneira magistral essa diferença de olhares:
Quando Freud começou suas investigações, tínhamos uma sociedade patriarcal, solidamente estabelecida com padrões morais rígidos, voltados principalmente ao controle da sexualidade, em especial das mulheres. Perls é da geração seguinte, que passou por duas guerras inimagináveis, um judeu alemão que viu sua raça e sua pátria serem destruídas numa escala impensável. Embora contemporâneos, viveram culturas e tempos diferentes, e seus olhares foram dirigidos para o sofrimento clínico de sua época – um estudará a sexualidade, sua complexa organização, seus tabus, as vicissitudes de seus caminhos; o outro estudará a agressão como força natural e como força patológica a serviço da vida ou da aniquilação. Ambos tentavam decifrar as forças que atuavam de forma desconcertante no ser humano em um mundo enigmático e cheio de contradições. Os temas sexualidade e agressão revelam diferentes aspectos do eterno conflito entre indivíduo e sociedade. Parafraseando Bauman, em Freud o indivíduo abria mão do seu quinhão de felicidade por um pouco de segurança; em Perls, o indivíduo abria mão da sua segurança por seu quinhão de excitamento (p. 183).
Fritz considerava a submissão às demandas externas como o principal ingrediente para uma vida neurótica – i.e., uma vida recheada de conflitos internos que prejudicam a percepção e a interação com o meio ambiente, resultando em adoecimento e apatia. Então, em resposta, defendeu a importância da agressividade (Perls, 2002). Sobre esta perspectiva da agressividade, Moreira (2010) explica:
[...] a agressão será fundamental no processo de assimilação a ser desenvolvido pelo individuo no campo organismo-meio. O processo de desenvolvimento humano implica necessariamente em um processo de destruição: tal como os molares destroem o alimento para que o organismo o absorva, no contato com o meio o indivíduo necessita destruir para assimilar este contato com o meio de uma forma nutritiva, que leve ao crescimento (p. 36).
Eles argumentavam que a agressividade é uma manifestação da força holística que rege o mundo, acarretando movimento e mudança. Essa visão sugere que, somente quando a pessoa deixa de “mastigar” a sua experiência do mundo, prejudicando o seu processo de autorregulação, que as sensações e intuições deixam de ser um referencial confiável de orientação. Também aponta que, somente quando a pessoa reprime a própria agressividade, desviando-a de sua função original, que esta se acumula e posteriormente desemboca em descargas de violência e nocividade (Perls, 2002). Nas palavras do autor: “O reestabelecimento das funções biológicas da agressão é, e permanece, a solução do problema da agressão” (Ibid., p. 176 – grifo do autor).
“De 1942 a 1945, Perls novamente esteve em guerra, desta vez como voluntário, lutando ao lado do exército inglês contra os alemães” (Veras, 2005, p. 20). Serviu como médico psiquiatra e neurologista no exército da África do Sul. Tratou-se de mais uma experiência perturbadora, além de confusa, afinal, na Primeira Guerra Mundial ele lutou como alemão, enquanto na Segunda Guerra Mundial lutou contra os alemães (Helou, 2015).
Quando voltou para sua casa percebeu um ambiente de crise social causado pelo pós-guerra e de perigo causado pelo fascismo sul-africano que anunciava o que posteriormente seria o apartheid (Veras, 2005). Diante disto, em 1947, após doze anos na África do Sul, Fritz e sua família se mudaram para Nova Iorque (Frazão, 1997), experienciando a denominada “era de ouro” dos Estados Unidos – que saiu fortalecido após os dois conflitos mundiais, tanto no sentido econômico, emergindo como uma superpotência capitalista, quanto no sentido intelectual, acolhendo muitos estudiosos exilados e se tornando um polo de vanguarda do conhecimento. Assim, em Nova Iorque Fritz encontrou um ambiente muito similar ao de Berlim dos anos 1920 e, tal como havia feito lá em sua juventude, passou a frequentar locais artísticos, boêmios e intelectuais (Helou, 2015).
Nesta efervescente metrópole americana, exploraram profundamente as correntes de pensamento fenomenológico e existencialista que começavam a ganhar destaque – influências que lhes impulsionaram ao rompimento definitivo com as doutrinas ortodoxas da Psicanálise (Ibid.).
A Fenomenologia de Edmund Husserl surgiu no início do século XX, tratando-se de um método de investigação destinado a estabelecer uma base sólida para o conhecimento (Holanda, 2014). Influenciado por Brentano e Dilthey, Husserl argumentava que a consciência é sempre intencional, ou seja, está sempre direcionada a um objeto (Belmino, 2021). Ele criticou a separação analítica entre observador e objeto, propondo, em vez disso, a atitude fenomenológica, que inclui a epoché e a redução fenomenológica. Essa abordagem visava romper com a atitude natural para permitir um contato direto com os fenômenos, descrevendo-os em suas particularidades. O objetivo era alcançar uma compreensão intersubjetiva, centrada na essência das experiências (Holanda, 2014).
O Existencialismo, um movimento filosófico do século XX, impactou profundamente a filosofia e a prática clínica, oferecendo uma visão única da experiência humana ao destacar a íntima ligação da pessoa com o mundo ao seu redor (Ribeiro, 1985). Jean-Paul Sartre, o primeiro a se identificar como existencialista, enfatizou a responsabilidade individual e a liberdade humana na construção do próprio projeto existencial (Póvoas, 2005). Søren Kierkegaard, precursor do Existencialismo, valorizou os aspectos subjetivos da existência, convocando as pessoas a se desprenderem dos estereótipos e a entrarem em contato com suas próprias emoções para escolherem um sentido para suas vidas. Martin Heidegger argumentou que as pessoas fogem da angústia através da inautenticidade, perdendo a conexão com o próprio ser e se submetendo a vidas banalizadas (Sá, 2006). Reflexões como essas nos mostram a tendência humana de evitar a angústia frente ao desconhecido, ao impermanente e ao arriscado, recorrendo ao autoengano e à alienação de nossas próprias possibilidades, comprometendo a autenticidade e a vitalidade da nossa existência. Diante disso, o Existencialismo busca oferecer um caminho de resgate do afeto, da singularidade, da responsabilidade e da liberdade (Belmino, 2021).
Neste período, Fritz e Laura também se envolveram com grupos de intelectuais e artistas dissidentes que buscavam relações e expressões genuínas, na contramão da banalidade e da hipocrisia das relações sociais. Além disso, Fritz reacendeu seu interesse pelo teatro através do seu envolvimento com o Living Theatre (Helou, 2015.)
O Living Theatre foi uma companhia teatral fundada em 1947 por Judith Malina e Julian Beck. Destacava-se como uma forma radical de expressão artística, propondo um teatro imersivo que se entrelaçava com a vida real e o público, privilegiando a improvisação. Na década de 1960 e 1970, o grupo passou a viajar pelo mundo, utilizando-se do teatro para desafiar normas sociais e políticas através de temas como liberdade, justiça social, igualdade e antiautoritarismo (Alvim, 2007).
Em Nova Iorque, Fritz retomou o contato com Karen Horney, uma figura central na cidade que liderava um grupo ativo de psicanalistas neofreudianos, ao lado de Erich Fromm e Harry Sullivan. A chegada maciça de imigrantes europeus, muitos dos quais fugiam das perseguições nazistas, transformou a paisagem psicanalítica nos Estados Unidos. Esses imigrantes trouxeram ideias inovadoras que desafiavam as concepções estabelecidas por Freud sobre sexualidade, pulsões, recalque e transferência. Este período de intensa discussão e revisão conceitual, conhecido como “neofreudismo”, caracterizou-se pela rejeição de vários conceitos freudianos fundamentais e pela crítica ao dogmatismo que marcaram os primeiros anos da psicanálise (Helou, 2015).
A história da psicanálise é marcada por tensões intensas, divergências e diferentes interpretações, evidenciando-se como um campo em constante evolução, longe de uma trajetória linear. Após a morte de Sigmund Freud em 1939, surgiu uma necessidade palpável dentro do movimento psicanalítico de continuar e expandir suas teorias, um impulso que alguns podem considerar como o desenvolvimento de uma “terceira tópica” para a psicanálise. Em Nova York, a concentração de psicanalistas europeus criou um caldeirão de ideias e debates. Foi nesse cenário efervescente que Fritz Perls chegou à cidade em 1946 (Ibid).
Essas discussões não apenas enriqueceram o ambiente intelectual em que Fritz e Laura estavam imersos, mas também refletiram em transformações pessoais e teóricas que consolidaram a decisão do casal de explorar novos caminhos na psicoterapia. O grupo ao qual Fritz se juntou estava profundamente envolvido em revisões críticas das teorias psicanalíticas tradicionais, especialmente no que diz respeito ao conflito entre as forças ambientais e o desenvolvimento pessoal, um debate que estava causando profundas cisões dentro da comunidade psicanalítica. Fritz identificou-se com muitas dessas postulações e tentou se inscrever no Instituto Psicanalítico Alanson White, onde apresentou uma palestra intitulada Planned Psychotherapy (Ibid).
Nesta palestra proferida por Fritz, ele colocou em destaque a integração como um pilar central de sua abordagem clínica, propondo uma visão inovadora sobre como tratar a neurose. Fritz sugeriu que os indivíduos em tratamento tendem a se identificar de maneira prematura com determinados aspectos de suas experiências, como a necessidade compulsória de agradar aos outros, ao mesmo tempo em que rejeitam completamente as possibilidades contrárias, como a capacidade de desagradar. Essa identificação precoce leva à formação de dicotomias rígidas dentro da personalidade, onde a pessoa se encontra repetindo continuamente a mesma polaridade enquanto evita a sua oposta, criando uma dinâmica que pode perturbar profundamente o funcionamento integrado do organismo (Perls, 1977b; Helou, 2015).
Fritz argumentou que essas dicotomias não apenas desestabilizam a capacidade de orientação e interação do indivíduo no seu ambiente, mas também obstruem o caminho para a verdadeira espontaneidade criativa. Ele acreditava que, para auxiliar alguém a superar seus conflitos neuróticos, é necessário mais do que simplesmente tornar esses conflitos conscientes. É essencial apoiar a pessoa na integração desses aspectos alienados de sua personalidade, transformando resistências em elementos assistentes na construção de um eu mais coeso (Perls, 1977b; Helou, 2015).
Ele destacou que a identificação do paciente com várias de suas ideias, emoções e ações, e a rejeição veemente de outras, forma um padrão de identificação-alienação que precisa ser entendido e tratado. Durante o processo de integração de polaridades alienadas, frequentemente surgem resistências, como o medo intenso ou a preocupação de que algo terrível possa acontecer. Essas resistências, segundo Fritz, têm um papel protetivo significativo e indicam áreas onde a personalidade está bloqueada. Declarou também que a integração bem-sucedida requer que o indivíduo se reconecte com todas as funções vitais, trazendo as resistências ao primeiro plano para serem transformadas em assistências (Perls, 1977b).
Então apontou que este processo de transformação é crucial, pois cada resistência que é modificada e convertida em uma força assistente representa uma “dupla vitória”, liberando tanto o aspecto da personalidade que estava reprimindo (o “carcereiro”) quanto o aspecto que estava sendo reprimido (o “prisioneiro”) (Ibid.). Este entendimento oferece uma nova maneira de abordar a psicoterapia, movendo-se além da interpretação do conteúdo inconsciente em prol da promoção de uma existência mais integrada e flexível.
Também foi em Nova Iorque que Fritz e Laura conheceram Paul Goodman, uma figura proeminente no movimento anarquista e um pensador multifacetado que tinha se destacado por suas críticas contundentes à sociedade, abordando temas variados que incluíam literatura, política e educação (Frazão, 2013; Belmino, 2018). Goodman, que possuía um PhD em Literatura pela Universidade de Chicago (Alvim, 2007), também se dedicava ao estudo da filosofia e da psicanálise (Belmino, 2020), desenvolvendo uma rica base de conhecimento que o tornava um interlocutor valioso (Ribeiro, 2007/2021).
A posição anarquista defendida por Paul Goodman focava na valorização da liberdade social e na crítica às coerções sociais, especialmente nos modos como a educação e a política reprimem a expressão individual e afetiva (Belmino, 2018).
Foi por conta dos escritos de Goodman sobre os desdobramentos políticos do pensamento psicanalítico (no qual mencionou Reich) que o casal Perls se interessou em lhe conhecer – um encontro que também foi do interesse de Goodman, que havia lido Ego, Hunger and Aggression e ficado curioso sobre essa nova perspectiva de se compreender o ser humano (Belmino, 2020). Além disso, Goodman havia sido professor de inglês de Goldstein quando este emigrou para os Estados Unidos e traduziu algumas de suas ideias para o inglês, de modo que ele já estava familiarizado com boa parte do pensamento do casal Perls (Frazão, 2013; Belmino, 2018).
Após este encontro, Goodman começou a fazer psicoterapia com Laura, assim como integrou o seu grupo informal de treinamento – no qual Laura forneceu um estudo sistematizado das ideias que ela defendia juntamente com o marido (Veras, 2005). O grupo era composto por algumas pessoas atendidas por Laura – sua “coligação de gênios”, como ela chamava (Helou, 2015).
Fritz, após passar aproximadamente um ano na Califórnia, onde recebeu um título de “Doutor Honorário” pela Escola Oeste de Psicanálise em reconhecimento por sua contribuição teórica, retornou a Nova Iorque e assumiu junto com Laura a liderança desse grupo – período no qual este chegou a incluir oito estudiosos de diferentes campos do conhecimento (médicos, filósofos, psicólogos, educadores etc.) que se reuniam semanalmente para debater sobre o pensamento gestáltico (Belmino, 2020). Eram estes: Fritz e Laura Perls, Paul Goodman, Isadore From, Paul Weisz, Sylvester Eastman, Shapiro e Richard Kitzler – considerados os fundadores da Abordagem Gestáltica (Frazão, 2013).
From foi um dos primeiros pacientes de Fritz Perls em Nova York. Apesar de não deixar escritos, ele teve um papel crucial na formação da primeira geração de gestalt-terapeutas (Frazão, 2013). Weisz foi um psicoterapeuta zen-budista e grande amigo de Fritz Perls, reconhecido por sua sabedoria e capacidade de escuta. Dedicou-se ao atendimento de pacientes com câncer e integrou conceitos da filosofia oriental à AG (Veras, 2005). Shapiro foi um psicólogo e educador que se destacou por combater a miséria e superlotação nas escolas públicas americanas e a burocracia educacional nos anos 1960. Além disso, ensinou GT nas universidades do Brooklyn, Columbia e Califórnia.
Logo em seguida surgiu a obra Gestalt Therapy – nomeada em português como Gestalt-terapia. Conta-se que a decisão sobre este nome gerou discussões no grupo de fundadores; inclusive que Laura, que entre eles era a mais conhecia a Psicologia da Gestalt, não considerava que o nome “Gestalt-terapia” pertinente. Outros nomes sugeridos foram Psicanálise Existencial”, “Terapia Integrativa” e “Terapia Experiencial” (Juliano, 2004; Belmino, 2020). Sobre o questionamento do nome “Gestalt-terapia”, considero válido um esclarecimento feito por Belmino (2021), segundo o qual “não podemos dizer que a Gestalt-terapia é uma aplicação do gestaltismo, mas sim que o gestaltismo é uma das influências que tornaram possível a Gestalt-terapia” (p. 47).
O Gestalt Therapy foi assinado por Perls, Hefferline e Goodman. Ralph Franklin Hefferline foi um professor de Psicologia e pesquisador na Columbia University, notável por aplicar exercícios de GT em suas aulas. Embora coautor do livro Gestalt Therapy, era um behaviorista skinneriano. Aliás, exponho três considerações pertinentes sobre as coautorias desta obra. A primeira consideração é a superestimação da coautoria de Hefferline, que foi incluído por questão publicitária (considerou-se que a sua titulação acadêmica valorizaria a obra), mas não se manteve esteve efetivamente engajado com o desenvolvimento da abordagem (Frazão, 2013). A segunda consideração é a subestimação da coautoria de Goodman, que na prática foi mais do que um mero editor, transpondo sobre o manuscrito basilar a sua própria leitura crítica, o que resultando tanto em um enriquecimento fenomenológico, político-social e educacional (áreas de seu domínio), quanto na apresentação de uma teoria do self que exprimiu o seu ponto de vista ao invés do de Fritz (Belmino, 2018). A terceira consideração é a ocultação da coautoria de Laura, que apesar de não creditada, foi uma participante fundamental no desenvolvimento das propostas apresentadas (Yontef, 1998).
Gestalt Therapy foi a primeira publicação que apresentou o termo “Gestalt-terapia”, motivo pelo qual essa obra é considerada o marco inaugural da abordagem. Foi publicada em 1951 com o subtítulo “excitement and growth in the human personality” – em português: “excitamento e crescimento na personalidade humana” (Helou, 2015). A obra foi dividida em duas partes. Na primeira parte, encontramos a aplicação de exercícios propostos por Fritz; os exercícios foram aplicados em alunos de Psicologia da Columbia University sob docência de seu paciente Ralph Hefferline (1910-1974) e alunos de Psicopatologia do Brooklyn College sob docência de Elliot Shapiro (1911-2003). Já na segunda parte, encontramos uma fundamentação teórica editada por Goodman; conta-se que Fritz pagou quinhentos dólares para que Goodman editasse e transcrevesse um manuscrito teórico trazido e atualizado desde a África do Sul (Helou, 2015).
Esta obra propôs alguns avanços paradigmáticos em relação a primeira obra do casal Perls – o principal destes foi que, enquanto em Ego, Hunger and Agression se discursou sobre um organismo que interage com o meio ambiente em prol de suas necessidades, em Gestalt Therapy se discursou um self que integra organismo e ambiente. Isto é, enfatizou-se que até mesmo a própria manifestação de quem a pessoa está sendo não é um evento meramente intrapsíquico, mas fenômeno de campo (Perls; Hefferline; Goodman, 1997).
Como consequência desta mudança paradigmática, a Abordagem Gestáltica, embasada em uma psicopatologia fenomenológica, distanciou-se de uma perspectiva médica, focalizada em diagnosticar e tratar um “doente”, e se aproximou de uma perspectiva político-social, focalizado em compreender e intervir sobre a função relacional daquele adoecimento (Belmino, 2020). Enquanto a psicopatologia hegemônica se dedica à checagem de sinais e sintomas em prol de uma classificação que norteasse o uso de determinados protocolos de tratamento, a psicopatologia fenomenológica se dedica ao entendimento da experiência imediata da pessoa, visando compreender como a pessoa faz para criar (e recriar) a vivência adoecida, assim como o sentido existencial deste ajustamento.
Perls, Hefferline e Goodman (1997) defendem que “a perspectiva gestáltica é a abordagem original, não derrubada e natural da vida; i.e., do pensar, agir e sentir do homem” (p. 32). Com isto, reconhecem que no funcionamento saudável a pessoa consegue espontaneamente integrar sentir, agir e pensar, apresentando respostas coerentes e criativas diante das necessidades, demandas e recursos vigentes no aqui-agora. Por sua vez, no funcionamento adoecido, a pessoa se enrijece em um aspecto, alienando o seu oposto, o que prejudica a sua capacidade de flexibilidade e diminui a efetividade de seus ajustamentos.
Na obra, em sintonia com as ideias já apresentadas por Fritz na palestra Planned Psychoterapy, é delineado como objetivo psicoterapêutico a recuperação do excitamento e do crescimento da pessoa através da identificação e integração dos aspectos alienados de sua personalidade. Deste modo, seria possível a dissolução das dicotomias cristalizadas e a recuperação da espontaneidade criativa essencial para se responder de maneira personalizada frente as demandas do campo organismo/ambiente. Sendo mais abrangente, nesta obra são apontadas dez formas de dicotomias neuróticas que a abordagem visa reintegrar à personalidade: (1) a corpo-mente; (2) a self-mundo; (3) a subjetivo-objetivo; (4) a infantil-maduro; (5) a biológico-cultural; (6) a poesia-prosa; (7) a espontaneidade-deliberação; (8) a pessoal-social; (9) a amor-agressão; (10) a consciente-inconsciente (Ibid.).
Apesar do livro Gestalt Therapy ser considerado de leitura difícil, tanto por sua estrutura de escrita quanto por sua linguagem fenomenológica, e ter enfrentado fracasso comercial, sendo deixado de lado por muitas escolas de GT (Belmino, 2018), ele apresentou as bases teóricas da abordagem, despertando o interesse por seu estudo. Esse interesse resultou na fundação dos primeiros institutos em Nova Iorque e Cleveland (Helou, 2015). Contudo, divergências teóricas e pessoais levaram Fritz Perls a se afastar desses institutos e a desenvolver a abordagem com base em suas próprias ideias, marcando o início de uma divisão na GT (Belmino, 2020). Sua ação foi o estopim de um duplo distanciamento, tanto afetivo quanto teórico (Juliano, 2004).
Sobre o distanciamento afetivo, Fritz afirma que ele e Laura já viviam dificuldades no casamento desse a África do Sul, principalmente após o nascimento de seu segundo filho – que não foi de seu interesse (Perls, 1979). De acordo com Laura, Fritz só amava os seus filhos quando não precisava ter responsabilidades com eles, demonstrando uma dificuldade na manutenção de compromissos e na vivência de intimidades relacionais que permeou toda a sua vida (Helou, 2015). Contudo, apesar deste distanciamento afetivo (e geográfico), o laço entre Fritz e Laura nunca se desfez totalmente, caracterizando o casamento deles com um misto de conflito e cumplicidade (Belmino, 2020). A este respeito, pouco antes de sua morte, Fritz declarou: “Com Lore tive períodos de altos e baixos no amor, mas, basicamente, nós somos colegas de viagem que possuem uma série de interesses em comum” (Perls, 1979, p. 236).
Sobre o distanciamento teórico, em sua autobiografia Fritz relata discordâncias com Laura, afirmando que ela julgava estar sempre certa e que não lhe escutava (Perls, 1979) – aspectos que ele visivelmente coconstruída na relação através de sua competitividade e exibicionismo. Essa tensão também se estendia ao seu relacionamento profissional com Goodman, com quem a colaboração foi particularmente difícil. Desde o início, eles apresentaram uma hostilidade recíproca e enfrentaram desafios significativos para trabalhar juntos, chegando a se tornarem antagonistas após a publicação de Gestalt Therapy (Belmino, 2018).
Apesar de sua capacidade profissional e do impacto que teve no campo da Psicologia, Fritz escolheu viver sua vida à sua própria maneira, priorizando sua liberdade e experiências pessoais acima dos papéis tradicionais de pai e esposo. Esta escolha se refletiu na forma como ele se relacionava com sua família. Seu filho, Stephen Perls, revelou em uma conferência da abordagem que suas interações com o pai durante a infância foram limitadas e distantes. Até os dez anos, sua imagem do pai foi construída mais através dos livros e das histórias sobre ele do que através de experiências compartilhadas. Stephen apontou que a ausência do pai em sua vida era uma escolha deliberada de Fritz, que estava focado em seu próprio caminho existencial (Ribeiro, 2022).
Na mesma conferência, Stephen enfatizou que Fritz não deveria ser lembrado como um herói sem falhas, mas sim homenageado por seus notáveis dons profissionais. Ele sublinhou que, mais do que qualquer outra pessoa que conheceu, seu pai seria o primeiro a rejeitar qualquer idealização sobre sua grandeza pessoal (Ibid.). Fritz demonstrou que estava consciente de suas renúncias e omissões, conforme expressou em sua autobiografia: “Nesta vida não se ganha nada sem ter que dar algo em troca. Tive de pagar caro pela minha felicidade” (Perls, 1979, p. 170).
Após deixar Nova Iorque, Fritz Perls embarcou numa jornada por diversas cidades americanas, trabalhando em hospitais psiquiátricos, palestrando e fundando institutos de GT em Chicago, Detroit, Toronto, Miami e Los Angeles. Em 1956 se instalou em Miami, onde viveu um período de abuso de sexo e drogas psicodélicas (LSD e psicocibina). Em 1957, já com 63 anos, Fritz se relacionou Marty From, de 32 anos, que se tornou, segundo ele próprio, a pessoa mais importante de sua vida (Helou, 2015; Ribeiro, 2022).
Neste período, participou de cursos regulares com Charlotte Selver sobre “sensorial awareness” – ampliando ainda mais a sua percepção da sobre a importância da consciência das sensorial (Helou, 2015). Este curso explorava o contato profundo do corpo e a ampliação dos sentidos através de exercícios psicofísicos; visava que os participantes aprendessem a se conectar consigo mesmos, superando resistências corporais e percebendo seu corpo de forma expandida, incluindo peso, calor, respiração e demais sentidos alternativos a visão (Kuschel, 1990).
Durante esta fase de sua vida, Fritz adotou um estilo de vida errante, que incluiu períodos de abuso de substâncias e experiências sexuais livres, vivendo como um vagabundo sem um endereço fixo e perambulando incessantemente. Por fim, James Simkin (um de seus primeiros clientes), desempenhou um papel crucial ao lhe convencer a abandonar o uso de drogas (Ribeiro, 2022).
Em 1962, Fritz atravessou um período de intensa reflexão pessoal e profissional, o que o levou a empreender uma viagem de navio ao redor do mundo que durou 18 meses. Durante suas andanças, ele buscou imergir em diferentes culturas, explorando expressões artísticas e modos de vida comunitários. Em meio a esta viagem visitou Israel, onde viajou pelo deserto, encantando-se pelos pintores beatniks, e passou um tempo no kibbutz Ein Hod (uma comunidade artística dadaísta) (Helou, 2015).
Durante sua vida, Fritz nutriu um fascínio pelos marginalizados, frequentando grupos anarquistas e movimentos contraculturais (Veras, 2005). Não à toa, ele encontrou nos chamados “vagabundos de praia” nos Estados Unidos — que mais tarde seriam conhecidos como hippies — uma inspiração na simplicidade de apenas “ser”, sem grandes metas ou conquistas (Perls, 1979), uma noção que contrastava fortemente com o ambiente ambicioso de seu círculo boêmio em Berlim (Helou, 2015). Na mesma linha, Fritz também se identificou com a Contracultura, um movimento cultural e social dos anos 1960, que incluía grupos diversos como estudantes, hippies, minorias raciais, feministas e ativistas contrários à Guerra do Vietnã. Esses grupos estavam unidos pelo questionamento das normas tradicionais e pela luta por uma sociedade menos coercitiva. Assim, a Contracultura se caracterizou por um clamor por mudanças profundas nas estruturas sociais, buscando maior liberdade e autenticidade (Helou, 2015).
Nesta viagem pelo mundo, Fritz também passou um tempo no Japão, onde frequentou um mosteiro Zen (Helou, 2015). As razões de seu interesse pelo Zen e pela filosofia oriental incluem o seu fascínio pela teoria de Friedlaender, que com o tempo ele veio descobrir possuir aproximações com o taoísmo, assim como o contato com o seu amigo Weisz, que era zen-budista (Perls, 1979).
O Zen (também chamado de “Zen-budismo”) é um ramo da tradição budista mahayana que surgiu por volta do século VII como resultado da interação do Budismo com influências das diversas culturas dos países por onde passou, assimilando inclusive conceitos do hinduísmo e do taoísmo. Alternativamente aos sistemas religiosos que visam o religare (a etiologia da palavra religião é o verbo latino “religare” que significa “religar”, referente a intenção de religar novamente o ser humano a Deus) como aspecto central, o Zen focaliza na lida com o sofrimento, categorizando-se deste modo como uma proposta tanto religiosa quanto filosófica, engajada principalmente na busca da transformação da consciência como resposta aos infortúnios da vida (Veras, 2005).
Já o taoísmo é uma tradição filosófico-religiosa chinesa que propõe uma visão da realidade como um campo de opostos complementares – por exemplo, Yin e Yang, luz e trevas, masculino e feminino – que, ao invés de se excluírem, compõem-se reciprocamente, condicionando-se um ao outro de modo a constituir um equilíbrio harmônico. Para o taoísmo a pessoa saudável ou sábia não se enrijeceria em uma autodefinição em detrimento da polaridade antagônica, mas integraria ambas as possibilidades de modo a, a partir disto, fluir conforme a situação. No taoísmo, o sábio é visto como alguém que deixa de agir a partir de uma perspectiva individual e limitada em prol de fluir de acordo com o “Tao” – entendido como o mistério transcendental que escapa à lógica convencional e só é acessível através da intuição mística (Ibid.). Agir segundo o “Tao” seria o equivalente a “fluir” em uma visão gestáltica, ajustando-se criativamente de acordo com as demandas da situação ao invés de estar de estar cristalizado em atitudes obsoletas.
Identifica-se três momentos de aproximação de Fritz ao Zen. O primeiro momento ocorreu quando ele estava na África do Sul, possivelmente influenciada por sua crise existencial advinda de suas frustrações profissionais após o congresso de psicanálise e suas dúvidas sobre o sistema freudiano. O segundo momento ocorreu na década de 1950, no qual ele teve um maior aprofundamento ao pensamento oriental através de seu amigo e cofundador da GT, Paul Weisz. Por fim, o terceiro momento foi o período no mosteiro zen, ocorrido na década de 1960 (Ibid.).
A seguir, cito oito entendimentos do Zen que – ora em maior, ora em menor medida – foram significativos para a compreensão gestáltica de Fritz: (1) de que a vida está em constante movimento e impermanência, de modo que nada para ou permanece, pois no fluxo da experiência tudo o que existe em algum momento deixará de existir; (2) de que a resistência à impermanência da vida, denominada de apego, é a responsável pelo agravamento do sofrimento (entendido como inerente a existência) – pois aprisiona a pessoa em uma tentativa frustrada de reter o fluxo da vida, prejudicando a sua capacidade de assumir a situação vigente, abrindo-se para a novidade; (3) de que o “eu” é transitório, de modo que o seu engessamento em uma autodefinição estática conduz a um fechamento ao porvir e, consecutivamente, ao adoecimento; (4) de que o aprendizado efetivo é possível através da vivência de um “olhar de principiante” – uma atitude de intencional ingenuidade através da qual a pessoa abandona os seus conhecimentos prévios das coisas em prol de uma mente vazia que não obstrui a receptividade de novos sentidos; (5) de que a vida é para ser vivida e não explicada, enfatizando a importância da percepção corporal, do resgate do intuitivo e da experiência direta com a realidade; (6) de que através da meditação ou da realização de qualquer tarefa cotidiana com atenção e inteireza se é possível acalmar a nossa mente superficial e agitada, despertando-nos de um estado mental disperso (quase como um “sonambulismo acordado”) e acessando um estado mental mais profundo e tranquilo, possibilitando a ampliação da conexão com a experiência presente e o alcance da iluminação; (7) de que a iluminação é a aquisição de um olhar intuitivo que conecta a pessoa a uma natureza transcendente (a “natureza búdica”) que habita todos os seres, possibilitando um elevado estado de consciência que rompe qualquer compreensão individualista (cristalizada em uma perspectiva pessoal), dualista (fixada em convicções do tipo “eu gosto” ou “eu não gosto”) ou meramente racional (amarrada em alguma lógica teórica e explicativa); (8) de que o karma são elementos desafiadores que atravessam a nossa existência, convidando-nos à fluidez e à transformação, mas que se repetem até que sejam enfrentados e que uma determinada sabedoria seja aprendida (Ibid.).
Após a mencionada viagem, Fritz se desiludiu com o Zen. Inicialmente, ele estava particularmente atraído pela ideia de uma “religião sem Deus” oferecida pelo Zen, mas ficou desapontado com a ritualística que observou, incluindo a necessidade de invocar e se curvar diante de uma estátua de Buda, o que percebeu como uma forma de reificação. Ele também criticou a meditação, comparando-a a uma forma de catatonia, e viu paralelos entre os longos anos de prática do Zen e os da psicanálise, queixando-se que ambos se apresentam sem resultados práticos imediatos (Perls, 1979). Apesar desta desilusão, a influência do pensamento oriental continuou permanente nas obras de Fritz, enriquecendo os seus conceitos e fornecendo à sua proposta gestáltica um teor não apenas clínico, mas também de filosofia de vida (Veras, 2005). Não à toa, a AG é reconhecida por incorporar elementos da filosofia oriental em sua base teórica e filosófica (Nascimento; Holanda, 2018). Essa integração reflete-se em conceitos gestálticos como a fluidez entre figura e fundo, a gestalt emergente, o vazio fértil e a awareness (Veras, 2005).
As viagens de Fritz também lhe levaram a conhecer, na década de 1960, Jacob Levy Moreno (1889-1974), criador do Psicodrama (Helou, 2015; Vieira; Vandenberghe, 2015), encantando-se com a sua proposta psicodramática de integração entre psicoterapia e teatro, o que ampliou ainda mais o escopo de sua proposta psicoterapêutica (Helou, 2015).
Moreno foi influenciado pelo pensamento fenomenológico-existencial, consolidando-se como um dos pioneiros da psicoterapia de grupo. Sua trajetória foi marcada por diversas pesquisas importantes nesse campo, nas quais ele desenvolveu a metodologia psicodramática. Nesta abordagem, Moreno promovia sessões de improvisação em um palco montado, permitindo que as pessoas encenassem seus dramas pessoais. Através dessa técnica, buscava-se explorar e compreender os conflitos internos e as dinâmicas relacionais dos participantes, proporcionando um espaço seguro para a expressão e a resolução de suas questões emocionais (Belmino, 2021).
Destaco quatro postulações do Psicodrama que foram significativas para a AG: (1) de que a pessoa é capaz de superar a si mesma e de se modificar, enfrentando criativamente cada nova situação através do uso pleno de seus recursos; (2) de que a espontaneidade é um estado em que os sentimentos fluem livremente, permitindo que as ações estejam em harmonia com os pensamentos e emoções do indivíduo; (3) de que esse fluxo espontâneo muitas vezes é suprimido durante a socialização, conforme a criança troca a sua espontaneidade por “reservas culturais”, adotando comportamentos estereotipados em vez de criar respostas para as situações inéditas vivenciadas; (4) de que a psicoterapia é possível de ser realizada para além da metodologia individualizada e verbal, incluindo-se também o atendimento em grupos e o uso de exercícios dramáticos (como a representação de aspectos subjetivos da pessoa) que ampliam o envolvimento da pessoa; (5) que a partir da concretude experiencial, a pessoa seria capaz de instigar a emergência de respostas mais flexíveis e criativas (Vieira; Vandenberghe, 2011).
A partir do seu contato com Moreno, Fritz Perls passou a utilizar experimentos com seus clientes e criou a famosa técnica da “cadeira vazia” (Helou, 2015). Dessa maneira, ele reiterou a importância do “aqui e agora”, valorizando a exploração dos sentimentos e pensamentos emergentes durante a terapia como um meio de acessar e reorganizar as experiências internas. Os experimentos gestálticos têm como objetivo reconstituir situações, permitindo que o cliente não apenas as relate, mas as vivencie e atue sobre elas, ampliando assim a percepção e a integração de aspectos psicológicos significativos (Vieira; Vandenberghe, 2011).
As andanças de Fritz encontraram uma pausa em 1964, quando, após insistentes convites de Michael Murphy, ele passou um tempo em sua propriedade conhecida como Esalen, localizada em Big Sur, Califórnia (Veras, 2005; Helou, 2015). Trata-se de um centro de desenvolvimento do potencial humano que surgiu na década de 1960, fortemente influenciado pela Contracultura.
Fritz, que já tinha 70 anos e uma rica experiência clínica e pessoal, encontrou em Esalen a receptividade para demonstrar as suas habilidades psicoterapêuticas, assim como ensinar e expandir a sua metodologia (Juliano, 2004). Fritz relatou descreve que enfim havia encontrado um lar, sentindo melhoras até mesmo nas dores em seu coração (Perls, 1979). Tratou-se de uma das experiências mais significativas de sua vida; nadando na onda de ascensão da Contracultura e da Psicologia Humanista, ele viveu como um guru, sendo admirado por um público receptivo as suas ideias e experimentações (Helou, 2015).
Em Esalen, segundo o próprio Fritz, “O cigano encontrou um lar, e em pouco tempo, uma casa” (Perls, 1979, p. 171). Ele também comentou sentir que, até mesmo o seu coração, sobre o qual ele já havia se queixado em vários momentos, “melhorou tremendamente” (p. 195). Segundo Ginger e Ginger (1995, p. 5 apud Ribeiro, 2022, p. 37 – grifo do autor), “em grande parte, foi Perls que despertou Esalen para a celebridade – e Esalen retribuiu-lhe, transformando o ‘velho crocodilo que esperava a morte’ num brilhante e badalado terapeuta”. Frente a esse momento, Fritz também declarou: “Interessante, nos últimos anos já não sinto que estou condenado à vida, e sim que sou abençoado com ela” (Perls, 1979, p. 104).
A fase em Esalen foi decisiva na carreira de Perls, consolidando a sua reputação. Conta-se que centenas de pessoas se aglomeravam para ver o seu trabalho (Veras, 2005) e que foi ovacionado de pé na convenção da AAP (Associação Americana de Psicologia) (Perls, 1979). Nesta época, ele não se tornou apenas um dos maiores nomes da psicoterapia dos EUA, mas também uma celebridade (Helou, 2015; Belmino, 2020). Foi capa da revista Life, sendo considerado “rei dos hippies”, participou de programas de televisão e entrevistas (Belmino, 2021), assim como teve encontros com pessoas famosas como Albert Einstein (Física), Gregory Bateson (Programação Neurolinguística), Alexander Lowen (Análise Bioenergética), entre outros. (Helou, 2015).
Durante este período, ele realizou uma série de workshops (para públicos de até 15 pessoas) e seminários (para grandes públicos), visando divulgar e formar pessoas em GT. Inclusive, é deste período o vídeo The Esalen Years, no qual podemos assistir Fritz desenvolvendo atendimentos individuais e em grupo (Veras, 2005).
Todos os fins de semana ele apresentava o que chamou de “seu circo”. Várias centenas de pessoas se aglomeravam para ver seu “número”: ele chamava alguns voluntários na multidão e os fazia sentar, pela ordem, no “lugar quente”, diante de uma “cadeira vazia” e, em alguns minutos, acabava com seus problemas existenciais latentes, por intermédio de suas atitudes ou de seus sonhos. Problemas que tinham resistido a anos de psicanálise desapareciam, ao que parece, para sempre, como por encanto... Mas não se trata de terapias profundas, mas de demonstrações espetaculares! (Ginger; Ginger apud Ribeiro, 2022, pp. 37 e 38 – grifo do autor).
Neste interim, Fritz teve contato com a “dianética” de Ron Hubbard, que enfatiza a catarse emocional para reviver e resolver memórias dolorosas reprimidas, de modo a reduzir a carga emocional associada a elas e, consecutivamente, o impacto negativo que geram na pessoa. Apesar de rejeitar o conceito geral da abordagem, adaptou algumas de suas técnicas. Ele também incorporou insights da “semântica geral” de Alfred Korzybski, que estuda o impacto das palavras no comportamento humano, sublinhando que o modo como usamos a linguagem influencia diretamente nossa percepção e compreensão do mundo (Helou, 2015). A semântica geral também propõe uma análise crítica da linguagem e suas limitações, por exemplo através de sua ideia de que “o mapa não é o território”. Isso significa que as palavras (o mapa) não são as coisas às quais se referem (o território). As palavras são apenas representações da realidade, e não a realidade em si. Portanto, aponta que há sempre uma distinção (e consecutivamente contaminação) entre as nossas descrições e a realidade concreta.
Durante a sua estadia em Esalen, Fritz teve momentos de profunda reflexão, preocupando-se com a forma banalizada como muitos praticantes adotavam as suas técnicas ou reproduziam as suas falas – tornando-as algo similar a afirmações de autoajuda (Perls, 1979). Em suas palavras: “Uma técnica é um truque. Um truque deve ser usado apenas em casos extremos. Existem muitas pessoas colecionando truques e mais truques [...] se torna uma perigosa atividade substitutiva, uma outra falsa terapia que impede o crescimento” (Perls, 1977a, p. 14). Ele também observou que as pessoas buscavam “curas instantâneas”, o que contradizia os seus princípios de desenvolvimento pessoal através da conscientização contínua – o que requer tempo e engajamento (Perls, 1979). Em suas palavras: “Diz-se que nós produzimos cura instantânea, alegria instantânea, e percepção sensorial instantânea. Merda, de que jeito foi que entramos nessa?” (Ibid., p. 124). Por fim, descreveu-se descontente com a modalidade dos workshops, considerando-os muito forçados (Ibid.). Contudo, é valido mencionar que as atitudes que ele criticava em grande parte eram reforçadas pela sua própria postura, que apresentava a abordagem de maneira exibicionista e simplificada – ele demonstrava aversão à linguagem rebuscada e aos jargões psiquiátricos (Belmino, 2018; Belmino, 2020)
Apesar da fama, percebendo que a essência de seu trabalho estava se perdendo em meio ao sucesso comercial, Fritz decidiu deixar Esalen e os Estados Unidos. Movido por novos sonhos e pela busca de um ambiente que refletisse suas verdadeiras aspirações terapêuticas, em 1969 se mudou para o Canáda (Helou, 2015).
Lá, em Vancouver, especificamente na cidade de Lake Cowichan, ele adquiriu um antigo hotel de pescadores. Este lugar pitoresco, às margens do lago, tornou-se o epicentro de uma visão muito especial: um centro de treinamento em GT combinado com uma comunidade gestáltica (Veras, 2005; Helou, 2015; Belmino, 2018; Ribeiro, 2022).
O conceito era ousado e inovador: não apenas ensinar a GT, mas viver e respirar seus princípios em todos os aspectos da vida cotidiana. Fritz acreditava que a verdadeira compreensão e aplicação da GT exigiam mais do que simplesmente participar de sessões terapêuticas; demandava um compromisso total com um estilo de vida colaborativo e coletivo (Veras, 2005; Helou, 2015; Belmino, 2018).
Neste refúgio idílico, Fritz e cerca de trinta seguidores fundaram o Instituto de Cowichan, ou Instituto de Gestalt do Canadá, como ficou conhecido. Aqui, não havia distinção entre membros da equipe e participantes – todos contribuíam igualmente para o trabalho coletivo, as sessões terapêuticas e os programas de formação. Essa abordagem integrada e holística da vida comunitária trouxe a Fritz um sentimento de paz e contentamento que ele nunca havia experimentado antes (Perls, 1979; Veras, 2005; Helou, 2015; Ribeiro, 2022).
Ao longo de sua trajetória, Fritz passou por uma notável evolução em sua abordagem terapêutica. Inicialmente focado na psicoterapia individual, com o tempo ele passou a questionar a eficácia desta modalidade, movendo-se progressivamente em direção à terapia de grupo, a qual ele considerava mais eficaz. Para Fritz, a terapia de grupo oferecia uma oportunidade genuína para o indivíduo interagir com o ambiente de maneira autêntica, sem as máscaras usuais, dentro de um contexto protegido que facilitava o confronto e a exposição emocional verdadeira (Belmino, 2018). Este pensamento era apoiado pela teoria de campo de Kurt Lewin e outros fundamentos da Psicologia da Gestalt, que enfatizam a interconexão entre os indivíduos e seu ambiente. Segundo essas teorias, qualquer intervenção em uma parte do sistema afeta todo o conjunto, reforçando a noção de que mesmo a psicoterapia individual possui uma dimensão social intrínseca (Veras, 2005).
No entanto, Perls não se deteve na terapia de grupo. Em uma busca por formas ainda mais integrativas e comunitárias de terapia, ele propôs, no final de sua vida, a criação do mencionado “kibutz gestáltico”. Esse conceito radical visava transcender as limitações que ele percebia tanto na terapia individual quanto de grupo. Fritz acreditava que a verdadeira transformação poderia ocorrer em um ambiente onde a vida em comunidade permitisse uma vivência contínua e coletiva dos princípios gestálticos (Veras, 2005).
Helou (2015) analisa que no ano de 1969 Fritz foi muito produtivo, possivelmente motivado pela sua profunda preocupação com a falta de sistematização da GT; ao todo, publicou duas obras inéditas, republicou outras duas, e trabalhou em outras duas.
Fritz publicou duas obras importantes: Gestalt Therapy Verbatim (em português: “Gestalt-Terapia Explicada”) e sua autobiografia In and Out the Garbage Pail (em português: “Escarafunchando Fritz: dentro e fora da lata de lixo”). Enquanto o primeiro fornece alguns relatos detalhados de seus workshops em Esalen, o segundo oferece uma exploração intimista de seus pensamentos, ideias e experiências de vida, expressa através de prosa, verso e desenhos. Essas publicações não apenas apresentam a perspectiva gestáltica de Fritz, mas também revelam sua personalidade vibrante (Helou, 2015). Segundo Ribeiro (2022), em sua autobiografia, “Fritz fala sem reservar de todas as suas experiências. Chega, assim, ao extremo de sua coragem. [...] Não esconde nada [...] enfim, ele se despe completamente numa área em que, normalmente, muitos de nós têm medo dos próprios pensamentos” (p. 20).
Na obra Gestalt Therapy Verbatim, Fritz enfatiza que somos organismos, i.e., totalidades complexas e coordenadas em prol da autorregulação através de uma relação íntima com o ambiente circundante. Ele aponta que a insatisfação é a base de qualquer mudança, pois ela promove a formação de gestalt, instigando o organismo a manipular o mundo em busca de satisfação, “fechando” a gestalt. Também declara que é através das descobertas que fazemos ao explorar o mundo para atender as nossas necessidades que aprendemos e nos desenvolvemos (Perls, 1977a).
Fritz também declara que é através das descobertas que fazemos ao explorar o mundo para atender as nossas necessidades que aprendemos e nos desenvolvemos. Então sugere como o objetivo psicoterapêutico da GT a promoção do desenvolvimento humano, entendido por ele como o fortalecimento progressivo do autossuporte – o qual, por sua vez, implica que a pessoa se torne cada vez menos dependente do suporte ambiental (Ibid). Esclarecendo os termos autossuporte e heterossuporte, cito Santos et al. (2023):
[...] o suporte se trata de uma confiança básica em prol do sentir, agir e pensar necessários para a realização de uma experiência plena de contato – podendo este suporte advir tanto da própria pessoa (como fruto de suas experiências existenciais prévias), o que se denomina em GT como “autossuporte”, quanto pode advir do ambiente (no caso, as pessoas e as condições vigentes no campo circundante), o que se denomina em GT como “heterossuporte” (p. 11).
Contudo, Fritz alerta que, diante de impasses resultantes do conflito entre o interesse concomitante de agir e de evitar a experiência, as pessoas tendem a se enrijecer em comportamentos clichês e manipulativos. No caso, esses comportamentos são utilizados com a função de interromper ou controlar a experiência, evitando tanto a emergência do impasse quanto o contato com a experiência evitada. Fatidicamente, tais comportamentos acabam impedindo a superação de tal conflito, comprometendo seu desenvolvimento e aprisionando a pessoa em recriações deste conflito (Perls, 1977a).
Além disso, Fritz afirma que as experiências interrompidas permanecem como gestalten inacabadas, mantendo a pessoa engajada em sua dissolução. E enquanto essas experiências não forem devidamente vividas e assimiladas, elas perturbarão a qualidade do contato, resultando em funções fixas, percepções enviesadas e comportamentos obsoletos. Em outras palavras, a pessoa fica aprisionada em recriações deste conflito. Por isso, ele enfatiza a importância de estar presente no aqui-agora, assumindo o risco da mudança em prol do próprio crescimento (Ibid).
Diante desse contexto, Fritz define a neurose como uma desordem do desenvolvimento, caracterizada pela tentativa de evitar o conflito resultante do impasse. Ele ressalta que a verdadeira cura reside na capacidade de enfrentar esses conflitos, permitindo que as gestalten inacabadas se completem (Ibid).
Retomando a nossa descrição das últimas publicações de Fritz: neste mencionado ano ele republicou suas obras anteriores, Ego, Hunger and Aggression e Gestalt Therapy, atualizando as suas introduções para refletir o seu pensamento em constante evolução (Helou, 2015). No novo prefácio do Gestalt Therapy, Fritz declarou considerar os exercícios do livro úteis, mas a sua teoria obsoleta (Belmino, 2020).
Por fim, Fritz começou a elaborar duas obras, The Gestalt Approach e Eye Witness to Therapy; a primeira delas visava estruturar de forma mais sistemática as bases da GT, enquanto a segundo apresentaria a transcrição de atendimentos clínicos. Infelizmente, esse projeto permaneceu inacabado após sua morte, deixando um vislumbre do que poderia ter sido uma contribuição significativa para a compreensão e aplicação da abordagem gestáltica. Assim, após o seu falecimento ambas as obras foram publicadas juntas e inacabadas, recebendo o nome (na versão brasileira) de “A Abordagem Gestáltica e Testemunha Ocular da Terapia” (Helou, 2015; Belmino, 2020).
Em The Gestalt Approach and Eye Witness to Therapy, Fritz destaca que o ser humano é uma totalidade unificada, integrando pensamento, sentimento e ação para promover a autorregulação. Aponta que isso é evidente na percepção e atenção, onde cada pessoa organiza elementos sensoriais em uma totalidade significativa, focando intuitivamente em suas prioridades situacionais. Então propõe que a psicoterapia favoreça esse processo de autorregulação, ajudando o cliente a ser mais eficiente na manipulação de si mesmo e do ambiente para satisfazer as suas necessidades (Perls, 2012).
O autor ressalta a importância da experiência direta no processo de descoberta e desenvolvimento pessoal. Ele critica severamente a atitude de pais que mimam, superprotegem ou interrompem as tentativas de seus filhos de explorar e utilizar seus próprios recursos. Em defesa do crescimento saudável, ele argumenta que é essencial que os filhos tenham a oportunidade de explorar a si mesmos e ao mundo ao seu redor, aprendendo através do método de tentativa e erro. Ele sugere que a intervenção dos pais deve ocorrer apenas para oferecer suporte ou estabelecer limites em situações que excedam os recursos atuais dos filhos, com o objetivo de lhes proteger de causarem danos sérios a si mesmos ou aos outros (Ibid).
Fritz afirma que indivíduos neuróticos carregam consigo as interrupções impostas por seus pais durante suas vidas, o que resulta em um crescimento estagnado. Assim, ele esclarece que a rigidez neurótica é um resultado das defesas desenvolvidas para lidar com a opressão ambiental. Como consequência, essas pessoas são incapazes de se adaptar às mudanças situacionais, sofrendo porque seus comportamentos se tornam obsoletos. Essa incapacidade de adaptação leva à ineficiência na promoção do próprio equilíbrio, razão pela qual adoecem e buscam a psicoterapia (Ibid).
Fritz cita quatro mecanismos neuróticos: a introjeção, a projeção, a confluência e a retroflexão. E indica que o psicoterapeuta atue como um “espelho” ou uma “lente de aumente”, de modo a auxiliar que o seu cliente a compreenda que que faz uso dessas defesas, assim como para que ele as utiliza (Ibid).
Além disso, Perls afirma que o contato com as gestalten inacabadas permite às pessoas superarem os seus conflitos no aqui-agora da sessão, fortalecendo o autossuporte e restabelecendo a capacidade de discriminação e ação flexível. Para isso, ele sugere o uso de fantasias e técnicas psicodramáticas tanto para identificar quanto para superar as interrupções no fluxo da experiência, promovendo a integração e autorregulação (Ibid).
Retornando a história... Em dezembro de 1969, Fritz iniciou uma viagem pela Europa, em busca de inspiração nos museus e nas óperas. No entanto, essa jornada foi interrompida tragicamente por uma emergência médica. No dia 14 de março de 1970, em Chicago, Fritz faleceu aos 76 anos devido a uma insuficiência cardíaca (Helou, 2015).
Apesar de sua partida, o impacto de Fritz na psicoterapia foi imenso, deixando um legado que transcendeu sua própria existência. Sua visão ousada e abordagem não convencional desafiaram as normas estabelecidas, inspirando gerações de terapeutas a explorar novas fronteiras no campo da saúde mental.
O enterro de Fritz evidenciou uma ruptura presente no interior da abordagem. Na primeira cerimônia, realizada na Costa Leste dos EUA, a elegia fúnebre foi feita por Paul Goodman, que criticou Fritz, acusando-o de ter traído os princípios abordagem. Essa atitude exacerbou as tensões preexistentes, e em resposta foi realizada uma segunda cerimônia de “reparação”, desta vez na Costa Oeste dos EUA, na qual foi proibida a participação de Goodman (Helou, 2015; Belmino, 2018; Ribeiro, 2022). Conta-se que esta última cerimônia, seguindo orientações deixadas previamente pelo próprio Fritz, foi repleta de música e dança (Helou, 2015).
Esse episódio evidência que, apesar da AG ter iniciado a partir de uma rica pluralidade de ideias e de ter como proposta justamente a assimilação do novo, do diferente e/ou do alienado, em seu primeiro momento padeceu justamente daquilo que visava tratar, dicotomizando-se em duas vertentes – uma defendida por Fritz e seus discípulos, conhecida como “Gestalt Visceral”, e outra defendida pelos membros do instituto de Nova Iorque, conhecida como “Gestalt da Cabeça”. De grosso modo, trata-se de expressões polares de uma clássica dicotomia entre ação e intelectualização, energia e consciência, experiência imediata e reflexão teórica (Juliano, 2004). De acordo com Helou (2015): “Os discípulos e admiradores de Perls da Costa Oeste, especialmente os de Esalen, não reconheciam o grupo de Nova York como autoridade em Gestalt-terapia e vice-versa” (p. 79).
A “Gestalt Visceral” teve Fritz como o seu principal representante e também foi chamada de “Gestalt da Costa Oeste”, por ter como referência o Instituto Esalen, localizado na costa oeste dos Estados Unidos (Juliano, 2004). Também recebeu como referência o termo “pele vermelha”, referindo-se ao estereótipo do “pé na estrada”, do entusiasmo pela superação rápida dos obstáculos e da energia para a ação (From; Miller, 1997).
De maneira extremamente simplificada, a concepção era de que o adoecimento advém da falta de autossuporte, levando o neurótico a evitar o contato ou a lhe realizar de maneira manipulativa, ou seja, através do controle do heterossuporte – o suporte fornecido pelo ambiente. Sem a confiança necessária para suportar a experiência e crescer através dela, o neurótico se desvia de um contato genuíno. Assim, buscava-se integrar os aspectos alienados da personalidade, fortalecendo o autossuporte do cliente. O objetivo era que, desde modo, o cliente enfim conseguisse confrontar seu impasse neurótico em prol de suas necessidades, restabelecendo sua capacidade de autorregulação – i.e., de garantir o seu equilíbrio através da interação incessante com o ambiente circundante.
Fritz acreditava que as exigências sociais faziam com que a pessoa alienasse aspectos da experiência, tornando a própria personalidade dividida e conflitiva. Segundo Vieira e Vandenberghe (2011), na concepção de Fritz, “o indivíduo aprende a ignorar os seus sentimentos, desejos e necessidades para responder a um conjunto de respostas fixas para ser aceito na sociedade” (p. 81). Assim, a proposta de Fritz era de que, ao invés de “lutar” contra si mesma, que a pessoa reconhecesse e valorizasse as suas necessidades (Perls, 1977a). De acordo com Fritz: “O mundo não está aí para atender às suas expectativas, e tampouco você precisa viver de acordo com as expectativas do mundo” (Ibid., p. 96).
Fritz argumentava contra o enrijecimento apriorístico das pessoas através de regras, experiências passadas ou ideais fixos, como “eu sou calmo”. Ele sugeria que tais autoconceitos limitam a personalidade ao excluir as perspectivas opostas, como “eu sou agitado”. Em vez disso, buscava o resgate da posição inicial “central”, onde ambos os opostos são considerados possibilidades existenciais, dissolvendo o conflito e integrando a personalidade. Essa posição de “indiferença criativa” ou “vazio fértil” nos liberta para agir em qualquer direção ou intensidade, fluindo conforme cada situação. Assim, em vez de se excluir, os polos opostos – “calmo” e “agitado”, no exemplo – devem se complementar, compondo uma harmonia volátil. Somente dessa maneira seria possível a expressão da criatividade espontânea, promotora do crescimento e da autopreservação (Perls, 1979).
Fritz concebe a neurose como um comprometimento na qualidade do contato, afetando tanto a presença quanto a capacidade de ação no mundo. Em contraste, a saúde, segundo ele, se revela por meio de três capacidades essenciais. Primeiramente, a habilidade de estar aware de sua própria intuição, acessando a “sabedoria organísmica” – i.e., a capacidade primitiva de discernimento em prol da autorregulação. Deste modo, a pessoa poderia discernir e “mastigar” experiências, distinguindo entre o que é nutritivo e o que é tóxico, absorvendo o primeiro e rejeitando o segundo. Em segundo lugar, a saúde envolve a capacidade de fluir conforme a situação do aqui-agora, renunciando aos “ajustamentos cristalizados” – i.e., atitudes que visam controlar ou antecipar a experiência, evitando riscos, mas que também limitam a descoberta de novas formas de interação com o ambiente. Considerava que confiar na própria capacidade de lidar com os eventos conforme estes acontecem é fundamental. Por fim, a saúde inclui o respeito ao fluxo organísmico de contato e retração, agindo de maneira autêntica e congruente com os próprios interesses. Isso implica não se forçar rigidamente a uma ação que não está atrelada à figura organísmica, assim como não bloquear o excitamento que visa afetar o mundo em prol de uma figura. Por meio desses três aspectos, Fritz propõe uma visão de saúde que valoriza a intuição, a adaptabilidade e a autenticidade, encorajando uma postura aberta e flexível diante das experiências da vida (Ibid.).
Tratava-se de uma proposta “atrevida”, que ousava a chacoalhar as pessoas do status quo em prol de suas necessidades. De acordo com Juliano (2004) “Para Perls, a tarefa central da terapia não é fazer com que os pacientes aceitem interpretações arcaicas de sua história passada, mas é ajudá-las a se tornarem vivas para a experiência imediata no momento presente. É acordar para a imediatez e simplicidade do agora” (p. 5). Assim, mesmo considerando a pessoa como parte de um campo, priorizava a pessoa, os seus interesses e a sua sobrevivência neste ambiente. Auxiliava o indivíduo a identificar as suas fronteiras de contato e a fortalecer o seu autossuporte, de modo que, ao invés de ser “consumido” pelo mundo, ele possa discernir o que é benéfico ou prejudicial. Dessa forma, o indivíduo aprende a negociar com o que está “fora” de maneira responsável, buscando no mundo o que precisa para se realizar plenamente (Perls, 1977a; Perls, 2022; Perls, 2012). Visando ilustrar essa posição mais centrada no indivíduo, cito a “a oração da Gestalt-terapia” de Fritz – um texto que ele recitava com os seus alunos:
Eu faço minhas coisas, você faz as suas. Não estou neste mundo para viver de acordo com suas expectativas, e você não está neste mundo para viver de acordo com as minhas. Você e você e eu sou eu. E se, por acaso, nos encontrarmos, é lindo. Se não, nada há a fazer (Perls, 1977a, p. 17).
Em geral, Fritz e seus discípulos estavam muito sintonizados ao movimento da Psicologia Humanista, definindo o ser humano como um organismo e confiando na sua capacidade natural de autorregulação (acessível via awareness, i.e., através da presentificação e da intuição). A partir disto, propunham uma prática psicoterapêutica experiencial de amplificação da awareness do cliente, estimulando a sensibilização e a ação através de técnicas criativas mobilizadoras (Perls, 1977a; Perls, 2002; Perls, 2012).
Aliás, trata-se de uma proposta clínica profundamente humanista, pois se apresenta em sintonia com as premissas da filosofia humanista que valoriza a pessoa como ativa, digna e centro do universo. Ativa, pois é capaz de compreender e se comprometer com a existência, interferindo sobre o curso dos acontecimentos. Digna, pois é capaz de cuidar e melhorar o mundo e a si mesma, promovendo evolução. Centro, pois é finalidade para si mesma, relacionando-se com o mundo a partir das próprias prioridades (Holanda, 2014).
Fritz e seus discípulos visavam auxiliar que as pessoas a estivessem em contato com o óbvio, com o “aqui-e-agora”, desprendendo-se cada vez mais de sua “mente” e se aproximando dos seus sentidos. O objetivo era que as pessoas se aproximassem de um contato legítimo com o mundo e com as outras pessoas, vendo nestes as suas transformações e os seus novos significados, ao invés de estar apenas em contato com as suas fantasias, preconceitos e apreensões fixas (Perls, 1977a; Perls, 2002; Perls, 2012). Assim, não estavam preocupados com a perfeição, mas com a realização à sua maneira. Nas palavras de Perls (1979, p. 97):
Amigo, não seja perfeccionista. O perfeccionismo é uma praga e uma prisão. Quanto mais você treme, mais erra o alvo. Você é perfeito, se permitir ser. Amigo, não tenha medo de erros. Erros não são pecados. Erros são formas de fazer algo de maneira diferente, talvez, criativamente nova. Amigo, não fique aborrecido por seus erros. Alegre-se por eles. Você teve a coragem de dar algo de si. São necessários anos para centrar-se em si próprio, e mais algum tempo para entender e ser agora.
Estes pensadores pretendiam que a pessoa, ao invés de se manter estagnada, reabrisse-se para a mudança criativa, redescobrindo a si mesma constantemente, permitindo-se crescer e gerir o seu próprio equilíbrio. Para isto, utilizavam-se de um manejo clínico que oscilava entre apoiar as expressões autênticas dos clientes e frustrar os seus desempenhos de papéis e manipulações, no intuito de lhes convocar a superar os bloqueios na personalidade e criar novas formas de interação com o ambiente (Perls, 1977a; Perls, 2002; Perls, 2012).
O jeito intensamente frustrador de Fritz pode ser observado em uma saudosa mensagem escrita por Stevens (1988, p. 16):
Caro Fritz: Recordo-me principalmente do seu amor, seu calor, sua gentileza sempre que alguém era aberto e honesto – honestamente santo ou honestamente desgraçado. Lembro-me de quão brutal você era diante da desonestidade, recusando-se a tolerar qualquer tipo de trapaça. Sei que você não gostava de ser brutal, e preferia muito mais viver e fluir entre pessoas conscientes. Na verdade, sua brutalidade era a maior gentileza, trazendo muitos de nós ao confrontar com nossos jogos e manipulações. Com sua vida você tocou muita gente; gostaria que você pudesse ver o número de pessoas que está atingindo com seu legado de livros, filmes e gravações. Nos meus olhos há lágrimas de amor ao escrever isto, e posso ouvir a sua voz rica e profunda dizer: “Existe alguma mistura maravilhosa acontecendo”. Obrigado, Fritz, por me guiar e me frustrar até a beira da descoberta, e por me mostrar os instrumentos para continuar a viagem.
A proposta de Fritz vai além de uma abordagem psicoterapêutica convencional. Ele mesmo não se via como o “descobridor” da AG, mas sim como seu “redescobridor” (Veras, 2005), pois, para ele, “a gestalt é tão velha quanto o próprio mundo” (Perls, 1977a, p. 32 – grifo nosso). Fritz entendia que o funcionamento em totalidade e a autorregulação por meio da awareness são a essência do funcionamento da própria natureza.
Assim, sua proposta se configura como uma verdadeira “filosofia de vida”. Mendonça (2013) descreve essa filosofia como uma forma de viver que se desenvolve ao “deixar ser aquilo que está sendo”, permitindo que emergem as gestalten interrompidas. Conforme previamente mencionado, Veras (2005) destaca a relação desse aspecto de “filosofia de vida” presente na abordagem com os aportes absorvidos por Fritz da filosofia oriental.
Essa filosofia de vida foca na superação de impasses e no fechamento de gestalten inacabadas, objetivando a assimilação do “não-eu” e transformando-o em “eu”. Em outras palavras, trata-se de uma identificação progressiva com o novo ou desconhecido, acostumando-se com sua possibilidade, evitando a fuga ou interferência sobre experiências correlacionadas a este aspecto.
O objetivo final dessa integração é o desenvolvimento do potencial humano. Baseado no conceito de autorregulação organísmica, proposto por Goldstein, Fritz entendia que, após o nascimento, a pessoa inicia um processo contínuo de desenvolvimento, preservando seu equilíbrio e saúde por meio de trocas e interações, identificações e rejeições. Nesse processo, a pessoa se apropria gradativamente de conhecimentos sobre si mesma e sobre o mundo, aprimorando-se (Veras, 2005; Vieira; Vandenberghe, 2011).
Importante esclarecer que Fritz não se preocupava com as consequências das ações, mas sim com a realização do ser. Ele defendia que a pessoa deve aplicar sua agressividade para se apropriar do que necessita, cuidando de si mesma, negociando com o mundo e se posicionando conforme as características da situação. Para ele, a questão não era se algo daria certo ou errado, mas se a pessoa estava sendo fiel a si mesma. Essa visão revela uma enorme confiança no potencial intuitivo de autorregulação, acreditando que, se a pessoa estiver realmente presente e aware no aqui-agora, seu discernimento e ação serão coerentes e necessários. Poderíamos ainda acrescentar que, caso o resultado não fosse satisfatório, “tudo bem”, pois faria parte do processo de aprendizado e crescimento da pessoa (Perls, 1979). Segundo Belmino (2018) “O objetivo terapêutico da Gestalt-terapia de Fritz Perls é possibilitar que nos tornemos aquilo que realmente somos [...] e, além disso, sermos capazes de reconhecer nossas manipulações e falta de autonomia” (p. 93).
No final das contas, Fritz estruturou sua proposta clínica baseada em sua própria forma de viver. Podemos identificar esta intenção em sua última obra escrita, na qual ele declarou: “Este livro [...] Foi escrito a partir da crença de que o homem pode viver uma vida mais plena e rica do que a maioria vive agora. Foi escrito a partir da convicção de que o homem não começou ainda a descobrir o potencial de vida e energia que nele repousa” (Perls, 2012, p. 13). Assim, “a Gestalt-terapia, tal como cunhada por Fritz Perls, é uma luta contra as formações neuróticas, contra esse modelo de vida desinteressada e desinteressante” (Belmino, 2018, p. 74).
Com sua proposta psicoterapêutica, Fritz buscava tornar as pessoas mais autênticas, autônomas e dotadas de uma vida mais interessante, refletindo a essência de sua própria visão de mundo (Perls, 1979; Belmino, 2018).
A “Gestalt da Cabeça” também foi chamada de “Gestalt da Costa Leste”, por ter como referência o Instituto de Gestalt de Nova Iorque, localizado na costa leste dos Estados Unidos (Juliano, 2004). Também recebeu como referência o termo “cara pálida”, referindo-se ao estereótipo da vida urbana, da consciência sobre as condutas e da reflexão intelectual (From; Miller, 1997). De acordo com Juliano (2004):
O grupo de Nova York se distancia de Fritz e lhe faz críticas pesadas, entre as quais a de haver transformado psicoterapia em teatro, de haver confundido workshops com terapia a longo prazo, e de haver encorajado a introjeção. (Que ele tanto criticava em relação à Psicanálise) (p. 6).
Esta vertente teve como principais representantes Laura Perls, Paul Goodman e Isadore From (Frazão, 2013). Laura Perls, batizada como Lore Posner (Belmino, 2020), nasceu em 1905 na Alemanha em uma família amorosa e protetora. Sua vida foi intensamente marcada pela música e pela dança, alcançando um nível profissional em piano aos dezoito anos. Desde pequena, Laura demonstrou um grande comprometimento intelectual e cultural, sendo a primeira mulher a frequentar sua escola. Ao longo de sua vida acadêmica, ela obteve diplomas em Línguas (grego, latim, francês), Literatura Alemã, Direito pela Universidade de Frankfurt, além de um doutorado em Psicologia da Gestalt – tendo sido aluna do próprio Wertheimer e trabalhado com Goldstein durante alguns anos. Ela também se formou em Psicanálise, com estudos em Frankfurt, Berlim e Amsterdã, e realizou um estudo intensivo em Filosofia, especialmente nos filósofos fenomenológico-existenciais como Kierkegaard, Heidegger, Husserl e Scheler (Juliano, 2004; Frazão, 2013).
Frazão (2013) menciona que, “Nas palavras de Laura, muito antes de ser psicanalista ela fora gestaltista” (p. 15). Essa afirmação sublinha a sua profunda conexão de Laura com o viés gestáltico, significativamente presente em seu percurso de vida.
A vida de Laura foi profundamente entrelaçada com as artes e a cultura, elementos que enriqueceram sua prática terapêutica. Sua experiência com a dança, música e outras manifestações artísticas influenciou sua visão da psicoterapia, ressaltando a importância da expressão e do suporte corporal no processo terapêutico (Frazão, 2013; Belmino, 2020). Laura defendia que a psicoterapia é mais arte do que ciência, exigindo intuição e uma profunda sensibilidade às nuances da experiência humana, motivo pelo qual valorizava aspectos criativos, harmônicos, subjetivos e relacionais (Alvim, 2007).
Além de sua atuação como psicoterapeuta, Laura era também escritora de histórias e poemas, o que revela sua inclinação artística e sua capacidade de integrar diferentes formas de expressão em sua abordagem psicoterapêutica (Juliano, 1992). A partir dessas influências, ela desenvolveu uma proposta clínica que não trabalhava o corpo de forma isolada, mas utilizava a awareness do ritmo, fluidez e vitalidade do corpo como guias para o processo terapêutico. Essa abordagem enriquece a psicoterapia ao trazer uma sensibilidade à forma como o cliente se apresenta, seja em movimento, postura ou mesmo em silêncio, contribuindo para uma experiência psicoterapêutica mais rica e conectada com o dinamismo humano (Alvim, 2007).
A soma das experiências artísticas e do engajamento social de Laura, Fritz e Goodman compuseram um rico fundo estético à Abordagem Gestáltica, ampliando a sensibilidade do psicoterapeuta (Alvim, 2007). Não à toa, Laura enfatizou a “os conceitos da Gestalt-Terapia são filosóficos e estéticos” (Ibid., p. 22).
Enquanto Fritz viveu mais exibicionista e vagante pelo mundo, fazendo a linha de frente e chamando a atenção para a abordagem, Laura viveu mais contida e fixada em Nova Iorque, dedicando-se a fundamentação da abordagem, de modo que somente após a morte de Fritz ela assumiu liderança dentro da GT (Juliano, 2004; Belmino, 2020).
Apesar de não ter deixado muitos escritos, as contribuições de Laura à Abordagem Gestáltica são indeléveis (Yontef, 1998; Frazão, 2013; Belmino, 2018). Atuou como psicóloga clínica de 1934 a 1973 e teve uma participação ativa no estabelecimento do Instituto de Gestalt de Nova York, formando gestalt-terapeutas (nos Estados Unidos, Canadá e Europa) até a sua morte, em 1990 (Belmino, 2020), deixando um legado de inovação e compaixão.
Laura realizou discussões em torno da Teoria Dialógica de Martin Buber, enriquecendo a GT com a valorização do encontro humano genuíno e curativo, fundamentado no respeito mútuo e na compreensão empática (Yontef, 1998; Frazão, 2013; Belmino, 2020).
Martin Buber (1878-1965) foi uma figura central na filosofia do século XX. Ele enfatizou a importância do diálogo autêntico e genuíno entre indivíduos, que transcendem relações de mera objetificação e manipulação, promovendo verdadeiros encontros humanos. Ele diferencia entre as relações Eu-Isso, que são utilitárias e superficiais, e as relações Eu-Tu, que são autênticas, sem objetivos ulteriores, onde as pessoas se dedicam integralmente ao momento presente e se permitem modificar e ser modificadas pela interação. Assim, ele criticou a predominância das relações Eu-Isso na sociedade moderna, que reduzem os indivíduos a meros meios para fins, e destaca a necessidade de relações mais profundas e significativas (Hycer; Jacobs, 1997).
Deste modo, a filosofia buberiana destaca a importância do “entre”, um espaço onde o sagrado se manifesta nas relações humanas, integrando o material e o espiritual, e promovendo um respeito profundo pela dignidade humana. Na psicoterapia, suas ideias reverberaram na valorização da confirmação, entendida como o reconhecimento e o respeito da singularidade do outro. Nesta ênfase, a confirmação é essencial para o desenvolvimento humano e para a cura (Ibid.).
A partir da influência buberiana, Laura delineou contornos mais suaves e acolhedores para a GT. Enquanto Fritz, com sua veia provocadora e confrontadora, enfatizava a necessidade de transitar do heterossuporte para o autossuporte, como um rompimento das amarras externas em busca de uma autonomia pessoal. Laura, por sua vez, apresentou um enfoque mais acolhedor e compreensivo, legitimando a importância do heterossuporte. Ela via a relação psicoterapêutica como uma base essencial de apoio, um “ninho seguro” necessário antes que o cliente pudesse se lançar no voo solo do autossuporte. Laura acreditava que, muitas vezes, o cliente precisava dessa segurança inicial que um encontro psicoterapêutico genuíno poderia oferecer, fortalecendo-se através dessa relação de apoio. Assim, ela apontava que tanto o heterossuporte quanto o autossuporte têm seus lugares e importância na jornada terapêutica e no desenvolvimento pessoal.
Voltando a história... Após a partida de Fritz de Nova Iorque, Laura capacitou Goodman como gestalt-terapeuta, contando com a sua colaboração nas formações de novos profissionais. Ele também atuou como psicoterapeuta durante a década de 1950, com uma prática que enfatizava uma relação terapêutica mais horizontal (Belmino, 2020). Contudo, por não ter formação em Psicologia ou Psiquiatria, foi proibido de atuar até concluir uma série de exames – o que ele rejeitou, decidindo se afastar da área clínica e permanecer nas áreas política e educacional (Belmino, 2018).
Goodman defendia a autenticidade nas relações e obteve bastante reconhecimento com o seu livro Growing Up Absurd (dedicado a Laura Perls), no qual apontou que a inibição social da criatividade refletia na falta de sentido vivida pelos jovens americanos, resultando em ajustamentos de rebeldia e drogadição (Belmino, 2018; Belmino, 2020).
A principal referência teórica de Goodman foi a obra Gestalt Therapy, que mais do que uma proposta psicoterapêutica, expõe uma crítica social, deslocando o foco da perspectiva médica e individual para a antropológica e interpessoal – aproximando-se, deste modo, de problematizações sociológicas, políticas e educacionais. Goodman considerava que a psicoterapia, por conta de seu potencial transformador, caracteriza-se como um “risco social”, priorizando por discussões sobre a relação organismo/ambiente (Belmino, 2018).
A raiz da principal diferença teórica entre a “Gestalt Visceral” e a “Gestalt da Cabeça” reside no conceito de self. Goodman, a partir de sua perspectiva fenomenológica e social, apresentou no livro Gestalt Therapy uma compreensão de self intersubjetiva, onde o self é entendido como uma relação. Ele considerava que o comportamento é um ajustamento criativo resultante de uma experiência de campo relacional e processual. Por outro lado, Fritz, fundamentado no paradigma organísmico de Goldstein, defendia uma compreensão de self subjetiva, onde o self é visto como o organismo. Fritz argumentava que, embora o organismo esteja em íntima relação com seu ambiente e se oriente pelas características da situação vigente, ele carrega uma estrutura constitutiva que influencia sua discriminação, permitindo selecionar elementos na fronteira de contato com o ambiente para sua autorregulação, assimilando o que é nutritivo e rejeitando o que é tóxico (Ibid.).
Em Ego, Hunger and Aggression, Perls (2002) enfatizou a visão do organismo como uma totalidade, superando a dicotomia mente-corpo. No entanto, em Gestalt Therapy, Perls, Hefferline e Goodman (1997) propuseram o self como uma integração do campo organismo/ambiente, vinculando a pessoa e o mundo de maneira inextricável, como uma totalidade, superando a dicotomia pessoa-mundo. Esses autores afirmaram que: “Nem o entendimento pleno das funções organísmicas, nem o melhor conhecimento do ambiente (sociedade etc.) abrange a situação total. Só a interação do organismo e ambiente [...] constitui a situação psicológica, não o organismo e o ambiente tomados em separado” (p. 36). Essa foi a principal discordância que deixou Fritz insatisfeito com a versão final de Gestalt Therapy, levando-o a considerar a teoria apresentada na obra como obsoleta e a se engajar na construção e apresentação de sua própria concepção da abordagem (Helou, 2015; Belmino, 2020).
Goodman, ao explorar a psicanálise, encontrou nela um meio potente para a crítica social. Em suas interpretações das teorias de Freud, Reich e dos culturalistas, ele questionava se a adaptação individual seria suficiente para resolver as tensões entre pulsão e cultura. Do mesmo modo, a partir da ótica uma “subjetividade alargada” (pois inclui mais do que somente o indivíduo), questionou a ideia simplista de simplesmente remover as restrições neuróticas para “libertar” o indivíduo. Goodman não defendia o mero desbloqueio do excitamento reprimido, mas que o conflito entre as forças vigentes fosse sustentado até o alcance de um ajustamento criativo. Assim, deixou de compreender a neurose como um transtorno a ser curado, definindo-a como uma função socialmente adaptativa – ou seja, estratégias de sobrevivência frente uma sociedade opressiva. Não à toa, ele se preocupava profundamente com o impacto da sociedade na saúde mental (Belmino, 2018; Belmino, 2020). Essa visão mais ampla e complexa de self e neurose sugere que a resolução de conflitos internos deve levar em conta as interações entre o indivíduo e seu ambiente, promovendo um ajustamento criativo que respeite tanto as necessidades pessoais quanto as demandas sociais.
Goodman também se destacou como crítico dos movimentos de contracultura dos anos 1960, apoiando inicialmente as causas pacifistas e antiguerra, mas mais tarde se tornando crítico das tendências violentas que emergiram. Ele acreditava que a verdadeira mudança deveria ser construída a partir de bases éticas sólidas, que promovam a honestidade e a aceitação mútua, em contraste com qualquer forma de autoritarismo ou ideologia imposta (Belmino, 2020).
No viés clínico, os gestaltista de Nova Iorque não priorizavam o uso da frustração e a mobilização da necessidade organísmica, mas principalmente na capacidade do self de se ajustar criativamente na fronteira de contato, transformando o campo, mas também sendo transformado neste processo de interação organismo-ambiente (Perls; Hefferline; Goodman, 1997).
Essa proposta também valoriza profundamente o encontro genuíno, criando um campo dinâmico de troca e transformação, possibilitando a exploração da experiência e a descoberta de significados (Cardoso, 2013).
Neste campo, buscavam por uma análise holística e fenomenológica da estrutura da experiência, não focalizando apenas no seu conteúdo, mas principalmente na forma como as experiências são lembradas, expressas e compartilhadas – observando-se fatores como a postura corporal, a expressão facial, o tom de voz, assim como a própria dinâmica interpessoal entre psicólogo e cliente (Perls; Hefferline; Goodman, 1997).
Essa análise detalhada ajuda a intensificar o contato, facilitando a ampliação da awareness, de modo que as experiências (incluindo as figuras anteriormente alienadas) possam ser plenamente vivenciadas e manipuladas. Ou seja, ao invés de permitir a amortização dos conflitos, tal proposta visava justamente lhes energizar no ambiente seguro da psicoterapia, de modo a possibilitar que então fossem devidamente integrados, possibilitando o ajustamento criativo (Perls; Hefferline; Goodman, 1997; Belmino, 2020).
Apesar das preocupações de Fritz com o uso desenfreado de técnicas sem o devido embasamento teórico, seu esforço para estruturar a abordagem foi tardio e ineficiente (Juliano, 2004; Helou, 2015). Como se pode observar nas últimas páginas de sua autobiografia, pouco antes de seu falecimento, Fritz reconhecia esse problema, mas admitia não ter uma solução pronta: “Eu sei que deixei soltas muitas pontas de fios, mas também sei que não estou pronto para escrever um texto sistemático sobre a filosofia Gestalt. Ainda estou descobrindo, mas também tenho muitas partes prontas para a figura total” (Perls, 1979, p. 316). Ao longo de sua trajetória profissional, Fritz foi assimilando inúmeras novidades teóricas e filosóficas de sua época e as incorporando em sua prática, mas sem esclarecer devidamente tais atualizações. Como consequência, suas obras ficaram desconexas e fragmentadas, incapazes de refletir a riqueza que havia integrado em sua atuação profissional (Helou, 2015). Além disso, sua forma exibicionista e simplificada de ensinar, mais prejudicou do que contribuiu. Assim, após a sua morte, a abordagem enfrentou um período de incertezas (From; Miller, 1997).
[...] Laura Perls [...] quando relembra uma passagem do Fausto de Goethe, e se remete a Mefistófeles dizendo que “o Diabo é o mestre dos atalhos, e (...) suas ferramentas são a simplificação, a manipulação e a deformação” (Perls, 1994, p. 140). Com isto chama a atenção para o risco de se confundir a prática clínica com um conjunto de técnicas (Holanda, 2014, p. 104).
Particularmente nas décadas de 1960 e 1970, a GT foi julgada como um amontoado de técnicas psicodramáticas acrescidas de um punhado de slogans de filosofia de vida – que muitas vezes pareciam defender uma espécie de puritanismo invertido que incentivava a libertação emocional sem qualquer compromisso interpessoal, contrariando diretamente a fundamentação holística e existencial da abordagem. Durante este período, muitos se autoproclamaram gestalt-terapeutas sem sequer possuir uma formação adequada – muitas vezes, somente por terem participado de alguns workshops (From; Miller, 1997). Conforme apontado por Frazão (2013), nos primórdios da abordagem prevaleceu o modelo de ensino de Fritz, baseado em workshops e com rasa estudo teórico, até que gradativamente o modelo de ensino estruturado, através dos institutos foi ganhando força, promovendo uma formação de maior qualidade.
Fatidicamente, como reflexo dessa desestrutura, surgiram várias propostas que integravam a GT com outras abordagens psicoterapêuticas – período que passou a ser chamado de “Gestalt e” (Juliano, 2004; Belmino, 2018). Uma destas aproximações, principalmente em solo brasileiro, foi entre a GT e a ACP (Abordagem Centrada na Pessoa) de Carl Rogers (Juliano, 2004). Considero que foi um movimento desesperado no qual os profissionais buscaram por fundamentos em outras referências, quando na verdade os próprios fundamentos da AG não estavam claros. Por fim, esse fenômeno resultou em uma “salada de frutas epistemológica” e em uma significativa perda da identidade da abordagem. Sobre a importância de uma fundamentação epistemológica estruturada, Holanda (2014) nos enfatiza que “uma prática sem fundamentação, é uma prática vazia; mas uma clínica embasada se torna um momento de transformação” (p. 104).
Como resposta a esta crise foi realizado um movimento vigoroso de reformulação da abordagem entre os anos de 1970 e 1980 no intuito de resgatar os seus fundamentos epistemológicos, suprindo este déficit e estabelecendo um corpo teórico robusto que servisse de bases para a construção do “edifício gestáltico” (Helou, 2015; Marton; Júnior; Costa, 2021).
Foi neste período de crise que emergiu a primeira geração de gestalt-terapeutas, que assumiram para si a árdua tarefa de dar continuidade e estrutura à abordagem gestáltica (Boris, 2002). Como fruto desse esforço, surgiram obras significativas como Gestalt-terapia Integrada de Erving e Miriam Polster, que pertencem à primeira geração de gestalt-terapeutas introduzidos à abordagem por Fritz e Laura Perls, e O Processo Criativo em Gestalt-terapia de Joseph Zinker, que foi discípulo de Fritz.
Zinker (2007) exalta a importância da criatividade, definindo-a como uma celebração da vida e uma afirmação de nossa divindade, pois permite ao indivíduo vivenciar a vida de maneira inédita e inovadora. Esse enfoque revela uma confiança inabalável no potencial criativo e transformador de cada ser humano, sublinhando a relevância da experiência direta e da presença plena no processo terapêutico. Dessa forma, propõe uma abordagem gestáltica centrada em fomentar a criatividade do cliente, incentivando-o a se reconhecer como autor de sua própria existência.
Para Zinker, a relação de confiança entre psicoterapeuta e cliente é fundamental, proporcionando um ambiente experimental similar a um laboratório onde o cliente pode engajar-se em uma investigação ativa de si mesmo. Ele afirma que “Boa parte da terapia consiste em avivar o fogo, cultivar determinado tema, construir um suporte em certas áreas da verbalização ou da ação em que isso se faça necessário” (Ibid., p. 36), destacando que sua principal ferramenta metodológica é o experimento. Essa abordagem permite criar vivências de presentificação, contato e aprendizado, onde o cliente está profundamente envolvido com o conteúdo trabalhado, em contraste com discursos frios e lembranças estéreis (Ibid.).
Os experimentos propostos por Zinker são voltados para a exploração dos sentimentos e resistências do cliente e podem se iniciar de forma lúdica, como uma “brincadeira”. Nesse processo, os conflitos não são extirpados, mas vivenciados plenamente, permitindo que a energia bloqueada nos impasses seja compreendida e modificada, tornando-se disponível e se convertendo em ações. O ator enfatiza que o aprendizado não pode ser forçado ou imposto; antes que o cliente consiga mudar, ele precisa alcançar uma nova compreensão de si mesmo, o que frequentemente requer uma série de vivências graduais. Cada investigação representa uma possibilidade que, se “pegar fogo”, levará o cliente a explorar mais profundamente suas resistências e gestalten inacabadas (Ibid.).
A relação psicoterapêutica, segundo ele, deve ser construída sobre a aceitação e respeito, criando um ambiente seguro onde sentimentos profundos possam emergir. O psicoterapeuta deve negociar consensualmente os experimentos com o cliente, ajustando a intensidade da tarefa para garantir a participação efetiva sem sobrecarregar. Ele sugere que o foco esteja na pessoa presente, e não nas metas traçadas para ela, ressaltando que o terapeuta deve amar o cliente de maneira simples e básica, acompanhando-o pacientemente em seu próprio ritmo, sem forçar o processo. Assim, cada sessão terapêutica é vista como um laboratório vivo onde terapeuta e cliente cocriam o processo psicoterapêutico. Isso permite que o cliente explore e expanda seu repertório de comportamentos, desenvolvendo autossuporte para uma expressão cada vez mais autêntica (Ibid.).
Zinker também destaca que cada pessoa inicia a psicoterapia com uma integridade pessoal, única e funcional, que desenvolveu ao longo dos anos em sua relação com o mundo, mas que pode não estar mais funcionando adequadamente. Então alerta que o psicoterapeuta deve respeitar essa integridade, evitando se identificar prematuramente com o aspecto de mudança alienado, pois isto poderia levar o cliente a se defender, prejudicando o processo psicoterapêutico. Assim, apontou que é preciso uma disciplina por parte do psicoterapeuta para que consiga acompanhar o cliente pacientemente, caminhando em seu próprio ritmo, sem “espremê-lo” – o que contrapõe a ansiedade do psicoterapeuta em justificar um suposto papel de sábio ou de fonte de ajuda (Ibid.).
Zinker e os demais pioneiros elaboraram uma terceira perspectiva do fazer gestáltico, denominada “Gestalt do Coração”, buscando superar a dicotomia entre a “Gestalt Visceral” e a “Gestalt da Cabeça”. Essa nova abordagem integrava as propostas de ambas, focalizando a awareness do cliente, que promove a descoberta de interesses e o desbloqueio da ligação entre o sistema sensorial e o motor, e sua maneira de estar em contato, que facilita ajustamentos criativos nas relações interpessoais (Juliano, 2004).
A “Gestalt do Coração” representou um avanço significativo na tentativa de unificar e dar coesão à GT, incorporando a ênfase na intuição e na experiência direta do cliente com uma abordagem mais estruturada e teórica. Essa integração permitiu que a AG continuasse a evoluir, mantendo sua essência enquanto se adaptava às necessidades contemporâneas de uma prática terapêutica mais completa e holística.
Desde então, muitas outras contribuições surgiram – entre os quais é possível citar Gary Yontef, Lynne Jacobs e Richard Hycner (Ribeiro, 2007/2021). Segundo Holanda e Karwowski (2004) “a Gestalt-terapia conheceu – e conhece na atualidade – uma expansão significativa” (p. 61); atualmente, conta com gestalt-terapeutas em quase todos os países do mundo (Frazão, 2013) e se expandindo para outras áreas de atuação, como a organizacional, a hospitalar, a sócio-comunitária e a educacional. Inclusive, Joyce e Sills (2014) discorrem que, apesar de as propostas gestálticas ainda hoje serem reconhecidas como inovadoras, as pesquisas atuais em neurociência e desenvolvimento humano têm cada vez mais validado os conceitos da abordagem.
Em meio a este processo de estruturação e atualização, o estilo psicoterapêutico foi se tornando menos “abrasivo” e frustrador, e mais “delicado” e dialógico, assim como menos técnico e mais relacional (Yontef, 1998). Como consequência, hoje os textos clássicos da abordagem precisam ser lidos com entendimento crítico, filtrando-se incoerências ou posturas que se tornaram obsoletas.
O início do movimento gestáltico no Brasil se deu em 1972, em meio a este período de revisão, quando Thérèse Tellegen foi a Londres e fez um workshop em GT. Tellegen voltou para o país entusiasmada, publicando no mesmo ano Elementos de psicoterapia gestáltica no Boletim de Psicologia da Sociedade de Psicologia de São Paulo – a primeira publicação de GT brasileira (Juliano, 2004). A partir deste gatilho, “Thérèse Tellegen, Jean Clark Juliano, Walter da Rosa Ribeiro e Tessy Hantzschel passaram a desenvolver um grupo de estudos sobre a GT (a partir do livro Gestalt-Therapy) em idos de 1973” (Holanda; Karwowski, 2004, p. 62).
Assim como no exterior, no Brasil também houve uma época de entendimento superficial sobre a AG. Segundo Juliano (2004) “Nós, que sofríamos as influências americanas provenientes das duas escolas, a da Califórnia e a de Nova York, também passamos pelas mesmas crises deles. As profundas dissenções entre ‘o fazer’ e o ‘pensar’” (p. 12).
Em tal época, as duas publicações traduzidas no cenário nacional eram Gestalt-terapia Explicada de Fritz e Tornar-se presente de Stevens – e ambas transmitiam a impressão de uma abordagem muito técnica e pouco embasada (Juliano, 2004; Holanda; Karwowski, 2004; Holanda; Faria, 2005). Por questões de negociações de direitos autores, o livro inaugural da abordagem (o Gestalt Therapy) foi traduzido tardiamente, oficializando-se no Brasil somente em 1997. Não à toa, no Brasil a teoria do self foi estudada devidamente somente a partir dos anos 1990 (Frazão, 2013).
Como resultado, muitos profissionais começaram a praticar a GT sem o devido embasamento, o que levou a resultados insatisfatórios. Em resposta a esses mal-entendidos, iniciou-se uma fase em que se tornou necessário divulgar o que a GT não era, esclarecendo as interpretações equivocadas (Holanda; Faria, 2005). Juliano (2004) narra que:
A maioria das palestras foram feitas no sentido da contraposição. Dizíamos a quem quisesse nos ouvir: – “Não, Gestalt não é uma terapia que se faz nu na piscina” (Isso foi publicado em uma de nossas revistas semanais de maior circulação). –“Não, não usamos drogas para aumentar nossa awareness cósmica”; –“Não, terapia de grupo não é equivalente a sexo em grupo"; –“Não, pegar o livro do Stevens e ao acaso propor ‘exercícios’ de Gestalt, não é o que nós entendemos como Gestalt-Terapia”; –“Não, atuações sádicas por parte do terapeuta em relação ao seu cliente não é Gestalt”, e assim por diante (pp. 10 e 11 – grifo nosso).
Por fim, “graças a iniciativas como esta é que a GT, ao longo desses anos foi ganhando credibilidade e se fazendo reconhecida, inclusive, no meio acadêmico” (Holanda; Faria, 2005, pp. 15 e 16). De modo que hoje conta com vasto material bibliográfico e está presente na maioria das faculdades do país (Juliano, 2004).
Em 1973, Thérèse, organizou um workshop no GEPSA (Grupo de Estudos de Psicologia Social Aplicada), local onde trabalhava e mantinha seu consultório junto com Jean Clark Juliano e Lilian Meyer Frazão. O workshop foi ministrado por Sylvia Peters e contou com a participação de Tessy Hantschel, Lilian Frazão, Walter Ferreira da Rosa Ribeiro e Paulo Barros, entre outros. Em 1976 foram lançadas as primeiras traduções de livros da abordagem no país. Em seguida, no ano de 1977, foi criado o primeiro núcleo de formação em GT no Instituto Sedes Sapientiae em São Paulo. Essa iniciativa pioneira foi liderada por Thérèse, Jean, Lilian e Abel. Por fim, ainda na década de 70, Paulo Barros, em colaboração com a Editora Summus, lançou a coleção Novas buscas em Psicoterapia. Essa série editorial foi crucial para a introdução e o fortalecimento da abordagem no Brasil, proporcionando uma plataforma para a publicação de diversos livros em território nacional (Juliano, 2004).
O primeiro livro brasileiro de GT publicado foi Gestalt e Grupos: uma perspectiva sistêmica de Tellegen em 1984. No ano seguinte, Jorge Ponciano Ribeiro lançou Gestalt-terapia: Refazendo um caminho de Ribeiro em 1985 – o primeiro livro nacional de epistemologia gestáltica (Juliano, 2004; Holanda; Karwowski, 2004). Outro marco importante para a comunidade gestáltica brasileira ocorreu em 1987, quando Gary Yontef veio ao Brasil para fornecer estudos avançados na abordagem. A presença de Yontef impulsionou o desenvolvimento da abordagem no país, oferecendo uma oportunidade de aprofundamento teórico e prático para os nossos gestalt-terapeutas (Juliano, 2004).
O primeiro grande evento gestáltico no país foi o I Encontro de Gestalt-terapeutas do Rio de Janeiro, ocorrido em 1986. O segundo encontro foi realizado em Caxambu, em 1989. Por conta da magnitude nacional já registrada no primeiro evento, concedeu-se a aquele o status de encontro nacional e a este último o nome de II Encontro Nacional de Gestalt-terapia (Holanda; Karwowski, 2004). No III Encontro Nacional de Gestalt-terapia, realizado em Brasília no ano de 1991, Richard Hycner foi convidado para dar um minicurso sobre Psicoterapia Dialógica, fortalecendo as bases dialógicas na construção da AG (Chagas, 2016).
Este evento nacional continua se repetindo a cada dois anos, mas atualmente com um novo nome, chamando-se desta vez Congresso Brasileiro da Abordagem Gestáltica – refletindo a expansão da abordagem para além do âmbito clínico, alcançando áreas como educação, hospitais, organizações, grupos e comunidades. Essa diversificação é um testemunho do dinamismo e do desenvolvimento da abordagem, que atualmente é reconhecida como uma das mais influentes e em expansão no Brasil (Holanda; Karwowski, 2004).
Para além disto, considerando a ampla produção brasileira, atualmente somos mais do que apenas consumidores do conhecimento internacional, mas também produtores de saber (Holanda; Faria, 2005; Ribeiro, 2011) – contando com obras mundialmente reconhecidas, como as produções do excelentíssimo Jorge Ponciano Ribeiro.
Ribeiro estruturou a AG sobre os fundamentos epistemológicos pesquisados em sua primeira obra, tendo como norteadores os conceitos de contato e ciclo do contato. Deste modo, propôs uma metodologia que enfatiza a relação de cuidado e diálogo a partir do viés fenomenológico-humanista-existencial. Segundo este:
A Gestalt-terapia, como qualquer forma de abordagem humana, precisa fundamentar-se nos postulados da ciência, da técnica, da arte e da linguagem, pois esses quatro elementos são alguns dos pilares da relação terapêutica, não obstante os estilos que cada Gestalt-terapeuta assumirá com base neles. Alguns se expressam melhor pela teoria, outros pela reexperiência de processos emocionais, outros por um fazer acontecer, e outros, ainda, por uma terapia pela fala. A arte, como um canal livre de expressão contemplativa, habita todas essas possibilidades (Ribeiro, 2016, p. 26).
Destaco Ribeiro – “o (re)fazendor de caminhos” – por seu longo e cuidadoso trabalho, através do qual podemos contar com uma linha de publicações que conversam harmoniosamente entre si, tornando-se instrumentos operacionalizáveis.
Ribeiro enfatizou o conceito de contato, investigando os passos inerentes ao seu processo; deste modo, desenvolveu o ciclo do contato como uma ferramenta clínica norteadora do processo psicoterapêutico (Ribeiro, 2007/2021).
Ribeiro entende o contato como uma força vital, uma energia que move os corpos e permite a interação entre eles. Ele é também visto como uma emoção experienciada no campo, onde a realidade vivida se desenrola, possibilitando a atribuição de sentido, a relação e a mudança. Por sua vez, o ciclo do contato é compreendido como um processo relacional composto por nove etapas, que vão da formação à dissolução de gestalten – ou seja, da identificação à satisfação de necessidades (Ibid.). Santos et al. (2023) definem apropriadamente esse processo:
Para a Gestalt-terapia, contato não é apenas um ato, mas um processo cíclico que se movimenta da formação à dissolução da gestalt. Na “formação de gestalt”, a necessidade do campo fenomênico carregada com mais excitamento emerge como “figura” para a pessoa, tornando-se dominante entre as demais tensões em desequilíbrio – que neste caso ocuparão a posição de “fundo”, cedendo prioridade para a figura. Neste contexto, a “gestalt” se trata de uma configuração de ser em prol da redução da tensão organísmica através satisfação da necessidade e da retomada do equilíbrio. Por sua vez, após a necessidade prioritária ser satisfeita, o excitamento que sustentava a figura diminuirá, de modo que esta recuará de volta para o fundo, “dissolvendo a gestalt” (p. 11).
Ribeiro reconhece que somos seres em transformação, vivenciando constantes ciclos de contato, sempre à procura de uma nova gestalt para formar e dissolver. É um eterno jogo de presença e mudança, onde o contato é a chave para a cura e o crescimento (Ribeiro, 2007/2021).
Cada ponto do ciclo funciona como uma descrição psicodiagnóstica que indica onde o contato se interrompe e, simultaneamente, como uma descrição prognóstica que sugere um movimento em direção à saúde. As nove etapas do contato são: fluidez, sensação, awareness, mobilização, ação, interação, contato final, satisfação e retirada. Correspondendo a essas etapas, os nove bloqueios de contato são: fixação, dessensibilização, deflexão, introjeção, projeção, proflexão, retroflexão, egotismo e confluência. Deste modo, o ciclo do contato estrutura o processo psicoterapêutico de forma compreensível e norteável (Ibid.).
Importante mencionar que a perspectiva gestáltica de Ribeiro não é universal. Segundo este próprio autor:
Assim como não existe uniformidade de visão teórica entre os fenomenólogos, mas sim analogias, e isso não destrói a fenomenologia, antes a faz evoluir, também não existe uniformidade entre os gestalt-terapeutas na aplicação dos conceitos que emanam das teorias e filosofias de base. E isso não destrói a Gestalt-terapia, antes, desenvolve uma diferença saudável que a permite ser, aqui-agora, uma abordagem em permanente crescimento (Ribeiro, 2011, p. 33).
Afinal, a abordagem já iniciou cindida, e apesar dos esforços de muitos autores, ainda hoje continua sendo um movimento plural (Juliano, 2004; Belmino, 2018). Segundo Holanda (2014) “não existe apenas uma, mas diversas “Gestalt-Terapias”, cada uma compreendida a partir de um enfoque específico e de uma construção epistemológica” (p. 91).
Ribeiro (1985; 2011; 2022) declara que a abordagem foi constituída a partir de bases filosóficas e teóricas, assim como de influências adicionais relacionadas as experiências pessoais de seus fundadores. Segundo Ribeiro (2011) as filosofias de base se relacionam com a imaterialidade e a temporalidade, embasando o conceito de pessoa da AG, enquanto as teorias de base se relacionam com a materialidade e a espacialidade, embasando o conceito de mundo da AG.
Ao longo deste artigo, refizemos o caminho de formação da abordagem e pudemos reconhecer tais pilares. Como fundamentos filosóficos identificamos o Humanismo, a Fenomenologia e o Existencialismo. Como os fundamentos teóricos identificamos a Psicologia da Gestalt, a Teoria de Campo, a Teoria Holística, a Teoria Organísmica e a Teoria Dialógica. Por fim, como influências adicionais identificamos nos atravessamentos de Fritz, a cultura teatral (inclusive o Living Theatre), artística e musical, o expressionismo (inclusive através de Max Reinhardt), o dadaísmo, o pensamento vitalista de Bergson, o existencialismo de Nietzsche, a Indiferença Criativa de Friedlaender, a Psicanálise de Freud, as concepções de Reich, de Horney e de neofreudianos, a “sensorial awareness” de Selver, a Contracultura, a filosofia oriental (zen-budismo e taoísmo), o Psicodrama de Moreno e, de maneira mais vaga, a dianética e a semântica geral. Inclui-se também das contribuições dos demais membros do grupo de formados da abordagem, a se destacar Laura e Goodman, de agregando elementos de dança, literatura, política e educação.
Toda essa rede de aportes compõe uma gestalt – e, tal como uma gestalt, a AG não pode ser compreendida através da mera soma de suas partes, pois a sua totalidade operacional manifesta qualidades que a tornam diferente da soma de elementos. Ou seja, os fundamentos da abordagem se mesclam e se articulam, formando um complexo e indissociável campo epistemológico, caracterizado pela harmonia e interrelação entre os seus elementos (Ribeiro, 2011; Ribeiro, 2016). Pinto (2016) corrobora este entendimento, e declara que a AG “é uma síntese criativa e coerente, em constante transformação, de algumas correntes filosóficas” (pp. 17 e 18). Assim, é sobre este campo epistemológico que se edifica a AG.
Logo, por coerência epistemológica, a visão de pessoa, de psicopatologia, de psicoterapia ou qualquer outro conceito da AG precisa ser entendida a partir dos mencionados referenciais (Ribeiro, 2007/2021) – caso contrário, não deverá ser considerado um conceito gestáltico (Ribeiro, 2005). Além disto, é esta coesão entre fundamento, conceito e prática que garante que cada conceito da abordagem se caracterize como um instrumento de trabalho operacionalizável e útil (Ribeiro, 2005; Ribeiro, 2016). Segundo Ribeiro (2016) “Um conceito não nasce por si só, ele emerge de uma teoria, da qual nos mostra uma pequena realidade. Esse conceito, quando operacionalizado e disponível para a pesquisa, revela aquilo que ele é em si, isto é, aquilo que ele mede” (p. 14). Este autor também acrescenta que cada conceito “expressa uma parte de uma teoria e com base nele se podem constituir técnicas e metodologias de ação” (p. 16).
Segundo Ribeiro (2021) “Embora a Gestalt-terapia seja filha de teorias e filosofias que lhe dão sustentação, ela, como uma filha adulta, chegou a maturidade e tem autonomia para, baseada em um corpo teórico clínico, se sustentar e se apresentar com cara própria” (p. 45). Contudo, esta maturidade não significa estagnação, mas sim uma base sólida sobre a qual podem ser construídas novas ideias e propostas. Ribeiro (2011) aponta que, de fato, a AG nunca estará pronta, pois precisará constantemente evoluir para atender as demandas emergentes da sociedade. Porém, alerta que tais atualizações precisarão se manter fiéis a esta mencionada matriz epistemológica de modo a assegurar a eficácia de suas proposições.
Neste tópico discutirei de uma maneira mais livre os embasamentos pesquisados até aqui, apresentando-os em uma linguagem mais atualizada e organizada, divididos em desenvolvimento, adoecimento, psicodiagnóstico, psicoterapia e contato pleno. Com isto, busco explanar os pilares da prática gestáltica
A AG enxerga o desenvolvimento humano como uma jornada contínua de descoberta e realização do potencial individual. Em um estado saudável, a pessoa não apenas alivia suas tensões pela satisfação de suas necessidades, mas também se aprimora continuamente, caracterizando-se como um ser em constante transformação e crescimento, com o ambiente desempenhando um papel crucial nesse processo. Existem três fatores identificados como facilitadores desse desenvolvimento.
O primeiro fator são as interações respeitosas. Na AG, o diálogo e o encontro genuíno são essenciais para o crescimento, pois é nas relações que expandimos nossa consciência e compreensão de nós mesmos. As interações interpessoais são vistas como oportunidades para a transformação pessoal. Sentir-se confirmado, legitimado, amado e protegido oferece um suporte externo fundamental para o desenvolvimento da confiança no próprio potencial, promovendo o autossuporte. A importância do sentimento de segurança e da aceitação da singularidade de cada indivíduo se estende desde as relações mais íntimas até o contato com a sociedade, abrangendo influências culturais, políticas, religiosas e econômicas, que podem tanto fortalecer quanto vulnerabilizar os indivíduos. Dessa forma, a AG enfatiza a relevância de um ambiente acolhedor e de relações significativas para um desenvolvimento saudável.
O segundo fator é a descoberta experiencial. As pessoas obtêm insights e entendimentos valiosos ao explorar o mundo, ampliando sua compreensão prática. Fritz enfatizava que não aprendemos apenas através de teorias, mas principalmente através da vivência direta e da experimentação. É no contato, na “mastigação” e na assimilação do mundo que as pessoas exercem seu próprio discernimento e decisão, desenvolvendo um “paladar” crítico da própria experiência e formando uma personalidade singular e autônoma. Assim, o contato é a chave para o crescimento, pois canaliza as demandas do campo pessoa-mundo formando gestalten que incitam as pessoas à ação visando sua dissolução. Então, movidas por suas necessidades prioritárias, as pessoas são instigadas a explorar o mundo em prol da manutenção do próprio equilíbrio. Quanto maior a abertura e receptividade durante este contato, maior o aprendizado. Portanto, é crucial que os pais forneçam um ambiente seguro para tais iniciativas, orientando e oferecendo suporte quando necessário, de modo que a criança não vivencie excesso de tensão, mas também não seja privada das oportunidades para utilizar e aprimorar seus próprios recursos.
Por fim, o terceiro fator são os ajustamentos criativos. Estes ocorrem conforme a pessoa busca equilibrar suas necessidades com as demandas do ambiente de maneira flexível e adaptativa, maximizando o que lhe faz bem e minimizando o que lhe prejudica. Como na vida não há roteiros fixos, as pessoas precisam inovar constantemente, descobrindo novos modos de ser, interagir e negociar com o mundo diante das mudanças e desafios. Deste modo, cada momento se torna uma oportunidade de crescimento.
Entretanto, o desenvolvimento humano pode ser prejudicado por diversos fatores. Quando o indivíduo se encontra em um ambiente hostil, repleto de desqualificação, opressão, catástrofes, exigências desproporcionais aos seus recursos ou culpabilização, sua confiança é minada. Outras duas formas de comprometer o desenvolvimento são a superproteção, que impede a pessoa de exercer e aprimorar seus próprios recursos e de assumir as consequências de suas ações, e a negligência de suas necessidades, que faz com que ela desacredite em sua capacidade de influenciar o ambiente e alcançar satisfação. Essas experiências são extremamente tóxicas, pois, em vez de fortalecerem o autossuporte, o enfraquecem. A consequência é que, por não acreditarem em suas próprias capacidades de enfrentar os desafios, as pessoas não conseguem sustentar o contato, já que isso as exporia ao novo, ao desconhecido e ao arriscado. Como resultado, estabelecem alienações fixas de qualquer experiência relacionada à sua vulnerabilidade, rejeitando aprioristicamente determinadas experiências e interferindo no fluxo autorregulatório do contato.
Os bloqueios de contato surgem como mecanismos de proteção contra as vulnerabilidades, interferindo na experiência em curso. Essas interferências podem se manifestar de várias formas, como a diminuição da conexão com o momento presente, a desconsideração dos próprios afetos, a busca constante por agradar a todos, a repetição de atitudes seguras ou manipulativas, e a atribuição de responsabilidades aos outros. Tais bloqueios resultam em dicotomias cristalizadas, onde a rejeição de determinadas experiências aprisiona a pessoa rigidamente na polaridade oposta, tornando essa a sua única opção. Por exemplo, alguém que teme o conflito pode se enrijecer na submissão, enquanto uma pessoa que aliena sua autocompaixão pode se enrijecer na autoexigência. Dessa maneira, a pessoa se torna “incompleta” e menos apta a lidar com a impermanência da vida, enfraquecendo a capacidade de exploração da vivência imediata e levando a existências automatizadas e banalizadas.
Essas dicotomias cristalizadas prejudicam diretamente a capacidade de ajustamento criativo, fixando a pessoa em atitudes inflexíveis que podem não responder adequadamente às prioridades da situação atual. Essas atitudes buscam controlar ou manipular a experiência, impedindo a ocorrência das experiências alienadas. Sempre que a impermanência da vida convoca a pessoa na direção negada, seja para sentir, fazer ou pensar sobre algo relacionado à sua vulnerabilidade, a pessoa vivencia um impasse. O impasse é o resultado do conflito entre o desejo simultâneo de agir e de evitar a experiência. Em outras palavras, enquanto a autorregulação convoca a pessoa ao contato, o medo a retém. Essa tensão gera sofrimento, mantendo a pessoa presa em uma tentativa frustrada de conter o fluxo da vida, resultando em uma incapacidade tanto de agir quanto de renunciar, deixando-a estagnada no desconforto, sem alcançar completude e satisfação. Essa tensão dificulta a sustentação do contato, impedindo a dissolução da gestalt da situação vigente, tornando-a uma gestalt inacabada, que não se recua totalmente para o fundo e contamina o campo da consciência, interferindo na percepção e nos processos subsequentes de satisfação de novas necessidades.
Infelizmente, os comportamentos evitativos impedem a superação desse conflito, comprometendo o desenvolvimento e aprisionando a pessoa em uma repetição incessante dele. Inclusive, a vulnerabilidade coloca a pessoa em um estado de alerta constante, fazendo-a tentar se antecipar defensivamente aos impasses, distorcendo a percepção e resultando em entendimentos enviesados e atitudes precipitadas. Como diz o ditado popular, “gato escaldado tem medo de água fria”. E enquanto esses impasses não forem superados em prol da dissolução da gestalt, a necessidade não atendida continuará perturbando a qualidade do contato, resultando em funções fixas, percepções obsoletas e comportamentos disfuncionais. Em outras palavras, a pessoa permanece aprisionada em recriações contínuas desse conflito, com o acúmulo de gestalten inacabadas fazendo com que os conflitos intrapsíquicos reverberem em conflitos interpessoais, provocando desarmonia na interação entre o indivíduo e seu ambiente.
Este problema é exacerbado por dois processos retroalimentáveis. Primeiro, o acúmulo de gestalten inacabadas distorce a percepção, prejudicando a orientação da pessoa frente às novas demandas, comprometendo a eficácia dos ajustamentos criativos. Em consequência, a obsolescência desses ajustamentos torna a pessoa menos apta a atender suas necessidades, resultando no acúmulo de novas gestalten inacabadas. Segundo, na tentativa de aliviar o sofrimento resultante dos impasses, a pessoa recorre cada vez mais a comportamentos estereotipados e manipulativos, buscando tornar a experiência previsível e controlável. Contudo, embora esses comportamentos possam momentaneamente aliviar o conflito intrapsíquico, eles comprometem a capacidade da pessoa de sustentar a situação até alcançar um ajustamento criativo que satisfaça sua necessidade e dissolva a gestalt. Assim, por mais repetitivas que sejam essas crises, a pessoa não consegue se desenvolver a partir dessas experiências – o que fortaleceria seu autossuporte. Pelo contrário, cada situação fragiliza ainda mais sua confiança em si mesma, levando-a a recorrer cada vez mais às estratégias evitativas. A contenção da agressividade inerente a esses processos resulta em comportamentos temerários, onde a tensão é descarregada de maneira descontextualizada após várias situações de acúmulo, gerando conflitos interpessoais que trazem arrependimento, culpa e ainda mais descrença na própria capacidade de contato. A combinação desses processos caracteriza um distúrbio de desenvolvimento que, na AG, denomina-se funcionamento neurótico.
Nesta perspectiva, a neurose não é vista apenas como uma doença que acomete a pessoa, mas como um funcionamento adaptativo frente a condições ambientais fragilizadoras, sustentado por processos intrapsíquicos que promovem a fragmentação do ser. Ao invés de funcionar como uma unidade holística coesa, a pessoa experimenta conflitos e desconexão entre diferentes aspectos de si mesma, ficando presa em uma dinâmica de enrijecimento, ansiedade, medo, manipulação, impotência, confusão, ressentimento, frustração, isolamento e superficialidade. Esse funcionamento afeta significativamente a capacidade de awareness, o potencial criativo e autorregulador da pessoa, assim como a qualidade de suas relações. Inclusive, esse funcionamento pode receber diferentes contornos, evoluindo para diferentes “quadros clínicos”, como transtorno de ansiedade generalizada, transtorno obsessivo-compulsivo, transtorno depressivo maior, entre outros.
Na GT, o psicodiagnóstico é entendido como um processo dinâmico e contínuo de compreensão do cliente em sua totalidade, englobando tanto a pessoa quanto o contexto em que está inserida. Esse processo se entrelaça intimamente com a prática psicoterapêutica, servindo como um guia essencial. Essa perspectiva rompe com dualismos como mente-corpo ou pessoa-mundo, entendendo tudo como indissociável e em constante relação. A relação entre os sintomas e o indivíduo é considerada tão importante quanto a relação entre o indivíduo e seu ambiente circundante. Assim, o psicodiagnóstico gestáltico reconhece que não existem processos isolados, buscando uma compreensão abrangente da totalidade na qual o cliente é apenas um elemento de uma complexa trama de relações.
Essa trama se desdobra de maneira horizontal, abrangendo a sociedade como um todo, e de maneira vertical, retornando a questões inacabadas de gerações anteriores. Observa-se a íntima conexão entre todas as coisas e como qualquer alteração impacta a totalidade, exigindo reconfigurações constantes. Desse modo, o contexto social e político é considerado crucial na formação das neuroses, indicando que, em um nível macro, estas surgem a partir dos conflitos entre o indivíduo e as demandas socioculturais.
Enquanto a psicopatologia tradicional se dedica à checagem de sinais e sintomas para uma classificação que norteie o uso de determinados protocolos de tratamento, a psicopatologia gestáltica foca no entendimento da experiência imediata da pessoa, buscando compreender como ela cria e recria a vivência adoecida e o sentido existencial desse ajustamento. Nesse contexto, o psicodiagnóstico gestáltico visa entender como a pessoa organiza sua experiência e se ajusta ao meio, incluindo como o cliente é influenciado e influencia o seu contexto circundante. Assim, desloca o foco de rótulos genéricos para a compreensão dos processos de contato e de bloqueio de contato vigentes, identificando o que a pessoa faz, como faz e para que faz, de modo a elucidar a função das interrupções que prejudicam o seu ajustamento criativo.
Na GT, o psicodiagnóstico se concentra fenomenologicamente na experiência imediata do cliente, explorando como ele vivencia suas experiências no momento presente. O psicoterapeuta investiga as sensações, sentimentos e pensamentos do cliente no aqui-agora, sem preconceitos ou interpretações predefinidas. Essa abordagem também valoriza a interconexão entre aspectos físicos e mentais da saúde, reconhecendo o corpo como um canal essencial para acessar os processos psíquicos. A comunicação não verbal é altamente valorizada, especialmente quando revela uma desarmonia em relação ao conteúdo verbalizado; considera-se que o tom de voz, a postura e as expressões faciais muitas vezes fornecem informações mais profundas sobre os estados emocionais do paciente do que as palavras ditas. Deste modo, identificar e associar essas expressões é fundamental para uma compreensão global do indivíduo, valorizando a singularidade de sua experiência.
A GT também aprecia a experiência estética, enfatizando a importância dos aspectos sensoriais, harmônicos, rítmicos, intuitivos e criativos. Assim, a análise da experiência foca na forma como as experiências são lembradas, expressas e compartilhadas, utilizando inclusive dos sentimentos do psicoterapeuta e da dinâmica entre psicólogo e cliente como indicadores. A relação psicoterapêutica é, portanto, uma base crucial para a investigação diagnóstica, valorizando a intuição e a experiência imediata do psicoterapeuta para entender o cliente.
O psicodiagnóstico gestáltico encoraja a vivência direta e a autodescoberta, incentivando o cliente a explorar suas próprias experiências e insights para compreender melhor suas dificuldades. Esse enfoque na experiência imediata permite uma compreensão profunda e contextualizada do cliente, facilitando a identificação de dicotomias enrijecidas, padrões de identificação ou alienação de pensamentos, emoções e comportamentos. Além disso, examina-se a relação desses padrões com os bloqueios no ciclo do contato, bem como as gestalten inacabadas associadas a esses bloqueios, convocando o cliente a considerar as relações interpessoais ou dinâmicas sociais que lhe afligiram.
A identificação dessas interrupções é crucial no psicodiagnóstico, pois permite ao psicoterapeuta compreender as formas específicas pelas quais o cliente evita ou distorce o contato pleno com seu ambiente, bem como o sentido dessas interferências. Deste modo, o psicodiagnóstico não se limita à identificação de problemas, mas busca compreender o sentido das cristalizações e traçar um caminho prognóstico. O objetivo é identificar o que impede a autorregulação e determinar como essas barreiras podem ser criativamente superadas para promover a saúde e o crescimento. Assim, o foco está na identificação e resolução dessas gestalten inacabadas. Como consequência, o psicodiagnóstico e a psicoterapia estão intimamente ligados pelo conceito de contato, já que o ciclo do contato serve como guia para o processo psicoterapêutico.
Acima de tudo, o psicodiagnóstico gestáltico considera a interdependência entre o indivíduo e o ambiente, reconhecendo que o seu modo de ser é influenciado pelo contexto em que ele está inserido. Afinal, os bloqueios de contato não são desenvolvidos sem razão; eles possuem uma função adaptativa protetiva, visando o alívio imediato do sofrimento. Assim, o psicoterapeuta investiga como o cliente interage com seu ambiente e como essas interações afetam o seu processo de autorregulação. Logo, a dissolução das gestalten envolve a compreensão e a intervenção sobre a função relacional da respectiva gestalt. Deste modo, o objetivo da GT não é apenas aliviar os sintomas, mas compreender e intervir sobre a função relacional do adoecimento, abordando as dinâmicas que o perpetuam. Pois se considera que somente ao iluminar esse aspecto, o cliente estará apto a realizar ajustamentos criativos eficazes.
A prática psicoterapêutica na GT é orientada pela compreensão psicodiagnóstica e visa a promoção do desenvolvimento humano através de três objetivos. O primeiro objetivo é confirmar e fortalecer o autossuporte do cliente. Através do heterossuporte advindo da presença acolhedora e amorosa do psicoterapeuta, assim como da atitude de confirmação que legitima a singularidade e os afetos do cliente, a psicoterapia promove o desenvolvimento progressivo da confiança no contato. Isso possibilita que o cliente consiga confrontar seus impasses e sustentar temas relacionados às suas vulnerabilidades. Além disso, esses elementos favorecem o desabrochar da autonomia, capacitando o cliente a assumir a responsabilidade de se mobilizar em prol de suas necessidades.
A relação psicoterapêutica na GT é fundamentada no encontro genuíno e confirmador. O gestalt-terapeuta rejeita papéis neutros ou atitudes estereotipadas, permitindo-se ser visto em sua singularidade; também rejeita a hierarquia em relação ao cliente, estabelecendo uma relação horizontal entre dois seres humanos. Considera-se que a presença plena do psicoterapeuta convida o cliente a também se abrir na relação, utilizando autenticidade e empatia para criar um envolvimento humanizado, estabelecendo um espaço de cocriação onde ambos participam ativamente. Esse solo autêntico e seguro é fundamental para que o cliente sinta confiança para explorar livremente suas vivências de maneira profunda e significativa, sem medo de ser julgado ou rejeitado. Assim, ao invés de fornecer orientações diretas ao cliente, o gestalt-terapeuta age como um facilitador do processo de crescimento que já pertence ao cliente, oferecendo-lhe o heterossuporte necessário para que consiga navegar por suas dificuldades e encontrar possibilidades inicialmente obscurecidas.
O segundo objetivo é ampliar a awareness. Na prática clínica, o foco é intensamente voltado para a experiência imediata do cliente, incentivando-o a mergulhar no aqui-agora, prestando atenção às suas sensações, sentimentos e pensamentos presentes. O psicoterapeuta encoraja uma participação ativa do cliente no processo psicoterapêutico, transformando a terapia em um espaço dinâmico de experimentação e descoberta, onde a vivência imediata é central. Para isso, a perspectiva fenomenológica é fundamental, buscando compreender o mundo do cliente a partir de sua própria perspectiva, livre de julgamentos ou interpretações externas.
Confiando na capacidade inata do cliente de autorregulação, o gestalt-terapeuta apoia esse processo ao favorecer a integração das experiências alienadas e promover uma reconexão com suas emoções e necessidades autênticas. Dessa forma, o processo psicoterapêutico visa restaurar a completude e a totalidade do ser, superando conflitos internos através do contato e da compreensão profunda de cada aspecto das vivências do cliente. Assim, ele obtém insights profundos sobre suas emoções, necessidades, padrões de identificação e alienação, além de compreender os modos pelos quais bloqueia o próprio contato e as gestalten inacabadas associadas a esses bloqueios.
Apesar de os bloqueios de contato impedirem o fluxo natural de autorregulação e crescimento, os conflitos não resolvidos e as emoções reprimidas criam tensão e clamam por completude, manifestando-se naturalmente durante as sessões. Ao invés de amortizar esses impasses, a proposta da GT é lhes incitar no ambiente seguro da psicoterapia, possibilitando que o cliente consiga sustentar até alcançar o devido fechamento dessas gestalten inacabadas. Esse processo exige o heterossuporte do psicoterapeuta, bem como movimentos repetitivos de aproximação e afastamento do conflito, construindo uma tolerância gradativa ao impasse. Assim, a ampliação sistemática da awareness naturalmente promove a assimilação e a integração, permitindo que o cliente desenvolva progressivamente uma identificação com as experiências alienadas.
Uma das principais ferramentas clínicas da GT é o experimento. Esses experimentos convidam a pessoa a explorar plenamente o aqui-agora, promovendo identificação e crescimento. Criam oportunidades para vivências de presentificação, contato e aprendizado, envolvendo profundamente o cliente com o conteúdo trabalhado, em contraste com discursos frios e lembranças estéreis. Tratam-se de exercícios criativos, flexíveis e adaptados às necessidades e recursos do cliente, podendo incluir o uso de presentificação sensorial, dramatização, fantasias e trabalho com a expressão emocional.
A AG considera que, para ajudar alguém a superar seus impasses, é necessário mais do que um entendimento racional; é preciso que o cliente vivencie plenamente seus conflitos, promovendo a integração daquilo que foi alienado, pois sua ausência prejudica a capacidade de autorregulação. Promovendo essas vivências, o terapeuta ajuda o cliente a acessar seus afetos e a se mover conforme o fluxo da autorregulação. Ao colocar o cliente diante de seus impasses, os experimentos possibilitam que ele alcance insights e estabeleça ressignificações, promovendo a compreensão e a dissolução de gestalten inacabadas. Além disso, o cliente pode experimentar outras formas de ser, testando novos ajustamentos criativos.
Por fim, o terceiro objetivo é instigar novos ajustamentos criativos. O gestalt-terapeuta convida o cliente a examinar suas atitudes rígidas e manipulativas que destoam do contexto atual, prejudicando sua capacidade de ajuste fluido e personalizado em cada situação. Ao reconhecer e questionar esses padrões, o cliente pode optar por lhes renunciar, desarmando-se, abrindo-se ao risco do contato genuíno e se permitindo ser transformado pelas tensões do campo. Dessa forma, as resistências se convertem em assistências, desbloqueando novas possibilidades existenciais.
Paralelamente, o psicoterapeuta encoraja o cliente a experimentar novas formas de ser e agir relacionadas ao passo do contato obstruído pelos bloqueios, convidando-o a explorar possibilidades ainda não consideradas. Isso promove ajustamentos criativos mais eficazes para lidar com desafios e alcançar melhor autorregulação, reconstruindo uma existência mais saudável, autêntica e significativa.
A psicoterapia gestáltica favorece três resultados. Primeiramente, promove o resgate da presença imediata no aqui-agora, permitindo que a pessoa vivencie plenamente a experiência e discrimine as diversas forças que a atravessam. Isso envolve uma percepção clara do mundo e das outras pessoas, afastando-se de fantasias e preconceitos fixos para alcançar um contato direto e imediato com a realidade. Dessa forma, fomenta uma conexão profunda e autêntica com a realidade vivida. Esse aspecto se refere ao sistema sensório-afetivo do contato.
O segundo resultado é a viabilização da expressão do excitamento no mundo de forma coerente e adaptada. A intenção é que a pessoa se torne um ser que integra e coordena todas as forças do campo, desprendendo-se de suas cristalizações e se construindo através de interações contínuas e dinâmicas com o mundo. O processo inclui a desconstrução e transformação do ambiente, ao mesmo tempo em que a pessoa também se transforma. A agressividade, ou seja, o excitamento advindo das necessidades, deve ser aplicada de maneira viável no mundo, possibilitando uma autorregulação eficaz. Isso envolve criar formas inovadoras e flexíveis frente aos desafios encontrados, exercendo sua liberdade para escolher e criar. Assim, envolve a capacidade desse ajustar criativamente às demandas do ambiente sem perder a autenticidade, performando uma dança entre a pessoa e o mundo, onde ambos se moldam e se transformam continuamente. Esse aspecto se refere ao sistema motor do contato.
O terceiro resultado é estimular o cuidado consigo mesmo e com o mundo. Ao promover a integração das experiências, a GT contribui para o desenvolvimento de um ser consciente, que atribui significados profundos às suas vivências e ao mundo no qual está inserido, exercendo sua liberdade de forma ética. Isso envolve aprender com as experiências para cuidar de si mesmo e do mundo, respeitando seus limites e os do ambiente, de modo a se nutrir da existência de forma autêntica, lúcida e responsável. Esse aspecto se refere ao sistema cognitivo do contato.
Esses três sistemas, juntos, promovem o contato pleno. O contato pleno envolve a capacidade de integrar espontaneamente sentir, agir e pensar, funcionando como uma totalidade autônoma e integrada, onde aspectos físicos, emocionais, mentais e sociais estão interconectados e interdependentes, mantendo um equilíbrio biopsicossocial e espiritual. Trata-se de não ser um prisioneiro da razão, da sociedade ou dos impulsos biológicos, nem se portar como um produto do passado ou uma vítima das circunstâncias, mas sim como um agente ativo de sua própria vida, compondo um todo que é mais do que a mera soma de suas partes.
Essa é a arte de viver plenamente, com saúde existencial, estando presente, consciente e em sintonia com suas necessidades e com o ambiente ao seu redor. Quando estamos em contato pleno, vivemos de forma autêntica, sem máscaras ou defesas desnecessárias, estando inteiros. Isso envolve uma percepção abrangente do que está acontecendo dentro de nós e ao nosso redor, permitindo-nos responder apropriadamente às situações da vida e às demandas inerentes a estas situações. Dessa forma, o contato pleno promove a autogestão, viabilizando que a pessoa exerça a autonomia para a construção de um projeto existencial autêntico e significativo, tal qual um escultor de si mesmo.
Conclusão
Ao revisitar a trajetória da GT, desde sua gênese até sua expansão no Brasil, assim como ao esclarecer suas concepções basilares, fica evidente que essa abordagem nasceu como uma resposta à rigidez da Psicanálise clássica, estruturando-se a partir da integração de várias influências teóricas e filosóficas. Dessa forma, consolidou-se como um campo epistemológico abrangente e intrincado, refletido em uma psicoterapia dinâmica e criativa, apta a se adaptar a diferentes culturas e contextos. Seu marco inaugural foi o livro Gestalt Therapy, e, desde então, a partir da contribuição de diversos psicoterapeutas, sua estrutura teórica continuou evoluindo. No Brasil, começou a ganhar força na década de 1970 e, atualmente, é um manancial de valiosas contribuições.
A GT se apresenta como uma modalidade de psicoterapia que desafia os dualismos convencionais, enfatizando a autogestão por meio da autorregulação. Por isso, ela se opõe a propostas de adaptação social ou submissão passiva a orientações externas – inclusive as do psicoterapeuta. Em vez disso, o gestalt-terapeuta encoraja a liberdade de escolha, desde que a pessoa esteja disposta a arcar com o seu preço, que é assumir a responsabilidade tanto pelas suas decisões quanto pelas suas consequências. Assim, diferente de abordagens que se fecham no indivíduo, a GT considera não apenas os aspectos biológicos e intrapsíquicos, mas também os interpessoais, sociais, culturais e ambientais que o cercam. Isso oferece uma compreensão holística e integrada tanto da existência quanto da saúde mental.
Nessa perspectiva, tal qual outras abordagens fenomenológicas, foca-se nas experiências únicas de cada cliente, evitando classificações teóricas ou psicopatológicas restritivas, buscando-se compreender essas experiências em suas manifestações imediatas. Além disso, similarmente a outras abordagens humanistas, revoluciona ao propor uma relação psicoterapêutica genuína, que não só comporta, mas também enfatiza a importância do diálogo autêntico como base para um espaço confiável de exploração compartilhada das vivências do cliente e ampliação de sua awareness.
O foco do processo psicoterapêutico da GT está na dissolução de gestalten inacabadas, promovendo o autossuporte, o crescimento e a transformação através do contato. Isso conduz a pessoa a um funcionamento mais harmônico e integrado, assumindo-se como uma totalidade coesa e interdependente, capaz de integrar e processar as inúmeras forças do campo que a atravessam, assim como as canalizando e expressando através de formas criativas e cheias de sentido e propósito.
Deste modo, a GT defende a ideia de uma pessoa capaz de se ajustar e crescer diante dos desafios da vida, transcendendo suas estruturas adoecidas e fazendo escolhas que refletem sua singularidade. Assim, não busca apenas remover sintomas, mas promover a saúde, o desenvolvimento pessoal e a vitalidade existencial, construindo uma vida mais plena e realizada. Logo, posiciona-se contra banalidades, autoritarismos e hipocrisias, defendendo os direitos humanos, o respeito às necessidades individuais e a ética interpessoal. Também desafia as pessoas a se reconectarem consigo mesmas e com o mundo ao seu redor, encarando o risco da existência com consciência, lucidez e autenticidade.
É possível observar uma clara relação entre saúde, desenvolvimento, criatividade, espontaneidade, autenticidade, autonomia, responsabilidade e plenitude, assim como entre adoecimento, controle, estagnação, estereotipia, dependência, vitimismo e banalidade, elucidando-se configurações de polaridades antagônicas. Sugiro como hipótese que cada configuração se retroalimenta: enquanto a primeira favorece a saúde, a segunda agrava o adoecimento. Também aponto como crucial o aprofundamento das concepções basilares apresentadas, enriquecendo-as com a exploração dos diferentes nuances que podem surgir diante das necessidades contemporâneas de nossa sociedade pós-moderna, digital, globalizada, consumista e individualista.
Portanto, este estudo demonstra que a GT é uma abordagem psicoterapêutica relevante e encantadora, apta a promover autoconhecimento, autorregulação e crescimento pessoal.
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Willian Henrique Silva dos Santos
Centro Universitário - UNIFATECIE
Correspondência: psiwilliansantos@gmail.com
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Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526