FREIRE, M. C. D. M – E a serviço de quê encaminhar ao psiquiatra: formando parceria na clínica gestáltica.
E a serviço de quê encaminhar ao psiquiatra:
formando parceria na clínica gestáltica
And for what reason to refer to the psychiatrist:
forming partnership in the gestalt clinic
Maria Clara Duarte Mélo Freire
Universidade Federal de Alagoas
RESUMO
Este artigo buscou compreender como pode se dar o encaminhamento ao psiquiatra na clínica gestáltica. Para isso, realizou-se uma pesquisa qualitativa, de cunho bibliográfico, que se amparou em artigos, capítulos de livros e vídeos a respeito da temática. O encaminhamento foi entendido como um tipo de ajustamento feito pelo terapeuta na tentativa obter um novo olhar para o caso e partilhar cuidado. É um processo que envolve troca, cuidado e disponibilidade para contato. Antes de fazê-lo, o terapeuta deve sempre se perguntar como, quando e a serviço de quê encaminhar. E o cliente é livre para dar sua opinião, podendo concordar com o encaminhamento ou não.
Palavras-chave: Clínica Gestáltica; Parceria; Encaminhamento; Psiquiatra.
ABSTRACT
This article sought to understand how referrals to psychiatrists can be made in the Gestalt clinic. For this, a qualitative bibliographical research was carried out, which was based on articles, book chapters and videos on the subject. Referral was understood as a type of adjustment made by the therapist in an attempt to obtain a new look at the case and share care. It is a process that involves exchange, care and availability for contact. Before doing so, the therapist must always ask himself how, when and to what service to refer. And the client is free to give his opinion, being able to agree with the referral or not.
Keywords: Gestalt Clinic; Partnership; Forwarding; Psychiatrist.
INTRODUÇÃO
Na clínica, a relação terapêutica se constitui como um encontro genuíno de troca e cuidado, que demanda abertura e disponibilidade de ambos os lados. É uma relação em que é preciso estar junto, disponível para o conhecido e o inesperado, fazendo contato e permitindo contato. E o próprio terapeuta atua entendendo que esta relação de cuidado é sua maior técnica e ferramenta de trabalho (FREITAS, 2016).
No contexto psicoterápico, este profissional atua como um tipo de heterossuporte, de modo que o cliente cresça, se perceba, fortaleça e desenvolva melhor seu autossuporte, experimentando novos modos de ser, estar e se relacionar (FREITAS, 2016). No entanto, existem situações e queixas que demandam um olhar multiprofissional, que extrapola os recursos e possibilidades da relação terapêutica. Por vezes, é preciso encaminhar o cliente ao psiquiatra, de modo que a possibilidade de cuidado possa ser ampliada e compartilhada com o profissional de outra área.
Apesar de ser uma ação frequente e necessária, o encaminhamento continua a ser uma temática pouco pesquisada e explorada, especialmente quando se fala em encaminhamento do psicólogo ao psiquiatra.
Alguns psicólogos citam a necessidade do encaminhamento frente a ajustamentos ansiosos, depressivos, e comportamentos suicidas e autolesivos (FUKUMITSU, 2014; YANO, 2015). Mas fala-se pouco sobre como e quando esse encaminhamento deve se dar, e a serviço de quê encaminhar. Também não é muito discutido que tipo de informação se deve partilhar, e como proceder após esse procedimento se concretizar. Ainda que seja uma prática constante no contexto da psicoterapia, pesquisas sobre essa temática continuam incipientes, especialmente sobre a ótica da Psicologia e da Gestalt-terapia. Diante disso, realizou-se uma pesquisa bibliográfica a fim de compreender como pode se dar o encaminhamento ao psiquiatra na clínica gestáltica.
A perspectiva teórica escolhida foi a Gestalt-terapia, por ser considerada uma das abordagens mais ricas e criativas da psicologia. Ela nasce num período crítico e sofrido, o pós-guerra, e é fruto do trabalho de muitas pessoas, entre elas Fritz Perls e Laura Perls. Ela surge sob o “amparo” de várias teorias e filosofias de base, estando entre elas: a Psicologia da Gestalt, a Teoria de Campo, a Teoria Holística, o humanismo, o existencialismo, a fenomenologia, e o zen-budismo (RIBEIRO, 2011).
É uma abordagem que entende que todos somos seres no mundo, criativos, de relação, portanto, nos constituímos na e a partir dessa relação. É por meio dela que nos diferenciamos, ajustamos e autorregulamos, pegando do meio o que é nutritivo e rejeitando o que pode ser nocivo, na tentativa de atender nossas necessidades e atingir o melhor equilíbrio possível (AGUIAR, 2014).
Partimos do pressuposto que ninguém cresce e se desenvolve de modo isolado, e até no sofrimento precisamos de um outro para que ele seja suportado. Esse outro pode ser a família, os amigos, a igreja, e até mesmo a figura do terapeuta (PINTO, 2021).
O terapeuta é quase como um artista, seu trabalho é artesanal, criativo e único, e sempre está de acordo com o ritmo e jeito de ser de cada cliente. É um trabalho em que este se aproxima e dá suporte, sem pressa e pressão, aceitando e explorando seja lá o que o cliente quiser trazer para a relação (SAPIENZA, 2004).
Em Gestalt-terapia, atuamos entendendo que a relação terapêutica dá colo, escuta, provoca, possibilita novos modos de ser e estar no mundo e se ofertar cuidado. Ela permite um encontro mais aprofundado consigo e com o outro que está do meu lado. É um processo que não depende só do cliente ou do terapeuta, mas da troca que o processo, a disponibilidade de ambos, desencadeia (LUCZINSKI; ANCONA-LOPEZ, 2010).
É uma relação em que, em geral, existe um sofrimento que pede para ser olhado e uma pessoa precisando de cuidado. Nosso papel, como terapeutas, não é olhar só para o que dói, incomoda, mas para a pessoa e tudo o que ela mostra. Nós entendemos que cada pessoa é uma gestalt, um todo com forma e organização própria, que pode até possuir dores e dificuldades, mas também se faz cheio de potências e possibilidades (JÚNIOR, 2010; FRAZÃO, 2015). Como o cliente é um todo, o sintoma, a dor, é apenas uma parte e não o limita ou define quem ele é de verdade.
O sintoma é apenas uma figura, um fenômeno que se destaca e pede para ser visto e cuidado. Por trás dessa figura, existe um fundo, um contexto de experiências e relações, que também precisa ser considerado. Como terapeutas, trabalhamos com tudo o que o cliente traz para o aqui e agora: sua história de vida, queixas, sintomas, lembranças e experiências, planos e potências. Atuamos entendendo que até o sintoma, e o seu jeito de se manifestar, é uma forma de se ajustar, sendo a melhor resposta que ele pôde dar, na tentativa de sobreviver e se autorregular (FRAZÃO, 2015).
Sabemos que o sintoma não é nosso maior inimigo, é apenas um tipo de ajustamento criativo, uma maneira de estar e se relacionar, que se cristalizou, e se repete, gerando incômodo e dor (AGUIAR, 2014). Nosso papel como terapeutas não é eliminar o sintoma, é resgatar a fluidez da pessoa, possibilitar novas formas de ser, reagir, se perceber, de modo que o cliente deixe posições antigas e enrijecidas, e recrie e ressignifique sua própria vida (JÚNIOR, 2010).
Trabalhamos promovendo awareness, permitindo que o cliente olhe para si, se dê conta de como tem funcionado e se relacionado, buscando ou evitando contato. Para que ele se dê conta de que seu sintoma é apenas uma parte, e não representa quem ele é de verdade. A intenção é que este se perceba como alguém cheio de forças e possibilidades, capaz de decidir o que é melhor para si, e desenvolver ajustamentos mais saudáveis, vivendo com mais autonomia e autenticidade (FREITAS, 2016).
Para isso, adotamos uma postura dialógica e fenomenológica, desvelando conflitos, tristezas, dúvidas, queixas, qualquer coisa que possa ser trabalhada na relação terapêutica. Mergulhamos no mundo do cliente, entendendo que suas vivências são sagradas, precisam ser acolhidas e respeitadas. Nosso papel não é julgar, teorizar, ou enfocar no por que o cliente está do jeito que está. Nosso papel é investigar como ele se sente, como costuma reagir e se relacionar, de modo que ele mesmo dê sentido ao seu jeito de se manifestar, e se ajustar (ALMEIDA, 2010).
No entanto, nem sempre a terapia é suficiente e dá conta de lhe ajudar. Às vezes o nosso cliente traz queixas e questões que demandam um outro olhar, outro modo de intervir e atuar, abrindo para nós uma hipótese que devemos ter cuidado ao avaliar: que tipo de suporte buscar? Para quem, que tipo de profissional, encaminhar? Foi a partir dessas indagações que surgiu o interesse por essa pesquisa e pelo entendimento de como funciona o encaminhamento ao psiquiatra à luz da Gestalt-terapia.
METODOLOGIA
A pesquisa bibliográfica é um apanhado geral dos principais trabalhos realizados sobre determinada temática, sendo capaz de fornecer dados atuais e relevantes relacionados a mesma (LAKATOS; MARCONI, 2003). Frente a isso, realizou-se uma pesquisa qualitativa, de cunho bibliográfico, que empreendeu uma revisão de materiais referentes ao encaminhamento ao psiquiatra e à atuação do psicólogo na clínica gestáltica.
Para isso, essa pesquisa se baseou em materiais audiovisuais, a exemplo de vídeos do Youtube, produzidos por psicólogos com experiência na clínica, bem como em capítulos de livros de base gestáltica, e artigos achados nas bases de dados Scielo, Pepsic, Google Acadêmico e em revistas virtuais de Gestalt-terapia, como a revista IGT na Rede. Vale pontuar que os vídeos foram selecionados por abordar a vivência de psicólogos clínicos que realizam encaminhamentos e parcerias multiprofissionais em sua prática clínica diária.
Ainda assim, percebeu-se uma dificuldade em achar materiais que abordassem o encaminhamento ao psiquiatra, especialmente embasados pela abordagem gestáltica. Na busca por publicações, considerou-se como critérios de inclusão: artigos e materiais escritos e audiovisuais (a exemplo de vídeos) em português, priorizando aqueles que abordassem alguns dos temas escolhidos: “psicoterapia”, “visão de mundo e pessoa da Gestalt-terapia”, “encaminhamento ao psiquiatra”, e “gestalt-terapia”. As produções que não se adequaram a esses critérios foram descartadas.
Ademais, foram levantadas pontuações e reflexões, embasadas na atuação da autora como psicoterapeuta de base gestáltica, que também tende a realizar encaminhamentos ao psiquiatra.
A análise de dados se deu embasada na Análise de conteúdo de Bardin, um conjunto de técnicas de análise das comunicações, que permite a classificação e organização das informações em categorias, classes de conteúdo que reúnem um grupo de elementos, que têm características em comum (BARDIN, 1977). Por meio desse processo de análise chegou-se às seguintes categorias, que serão exploradas a seguir: quando encaminhar; e a serviço de quê encaminhar; como encaminhar; o que fazer depois que encaminhar; que tipo de informação partilhar.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Quando encaminhar
Encaminhar significa envolver, orientar, direcionar a profissionais de outras áreas aquele cliente e sua família (FUKUMITSU, 2014). É uma forma de partilhar cuidado, de unir forças para beneficiar e cuidar de uma vida (PAIVA, 2022). Isso se dá para que o cliente tenha o suporte que precisa, um suporte que vai além da sua psicoterapia.
Na clínica gestáltica, entendemos que nós, terapeutas, somos para os nossos clientes mais um heterossuporte: mais alguém que escuta, confirma, acolhe. Mais alguém que possibilita que a pessoa se reconheça, aceite como é e assuma a responsabilidade por aquilo que quer (BARRETO, 2019). Às vezes esse suporte ambiental vem dos amigos, da igreja, dos colegas de trabalho, da família, e quando se faz necessário, da psicologia e da psiquiatria.
Quando nos defrontamos com um caso desafiador e chegamos a ponto de encaminhá-lo, estamos nos ajustando, e acionando recursos do nosso campo. Estamos ampliando nosso próprio heterossuporte, pensando em com quem a gente e aquele cliente pode contar, já que a terapia sozinha não dá conta de lhe ajudar. Em geral, buscamos um novo olhar para o caso e partilhamos cuidado.
Nós, terapeutas, entendemos que nenhuma dor é solitária, toda dor nasce da nossa relação com o mundo e com um outro que nos toca e abala, e justamente por isso, precisa de companhia para que possa ser suportada (PINTO, 2021). Mas a psicoterapia nem sempre dá conta de tudo, de cuidar de toda a dor e demanda que nos é apresentada. Às vezes, para que a pessoa enfrente sua dor, e aprenda a tolerá-la, é preciso que mais de um profissional esteja disponível para olhá-la e explorá-la. E não muito raro, este “outro” profissional é o psiquiatra.
Diante da necessidade de se fazer um encaminhamento, muitos de nós nos questionamos quando e em que condições deve se dar esse procedimento. Em geral, encaminhamos ao psiquiatra quando a psicoterapia sozinha não dá conta de ajudar o cliente a lidar com suas queixas e demandas. Quando há sofrimento, isolamento e muito comprometimento (SALVADOR, 2021).
Encaminhamos quando há prejuízo à vida e rotina do cliente, quando seu sofrimento se faz intenso, desproporcional e frequente. Quando compromete sua vida social, familiar, laboral, e escolar. Quando este não vê gosto, sentido na vida, quando a dor isola, sufoca, é difícil de suportar, e se torna uma figura constante com a qual o nosso cliente tem que lidar (GESTALT-PARANÁ, 2022; PAIVA, 2022).
Encaminhamos porque temos o bom senso de reconhecer que nenhum trabalho ou terapia dá conta de tudo, de toda a dor que pesa, sufoca, machuca, e que às vezes o nosso cliente pode precisar de outros tipos de ajuda (SAPIENZA, 2004).
O encaminhamento é muito comum em quadros que envolvam ajustamentos ansiosos e depressivos, especialmente quando há narrativas autodestrutivas e ideações suicidas (YANO, 2015). Em alguns ajustamentos ansiosos, os ataques de pânico são recorrentes, e nem sempre o suporte do psicólogo se mostra o suficiente. Além do mais, não é possível prevenir situações de risco à vida e violência autoprovocada de maneira solitária, nesses casos o psicólogo deve buscar parceria com a família e profissionais de outras áreas, a exemplo do psiquiatra (FUKUMITSU, 2014).
Os ajustamentos depressivos disfuncionais se caracterizam por tristeza persistente, apatia, fadiga, alterações significativas no apetite, no sono, na rotina, baixa concentração e autoestima, e perda de sentido nas atividades que traziam cor, gosto, à vida (YANO, 2015). Quando essa “tristeza”, fadiga e desânimo se tornam frequentes e exageradas, e começam a gerar inúmeras faltas, faltas à escola, ao trabalho, falta de zelo e cuidado, falta de ânimo para sair da cama e comer ou fazer algo, é provável que o psiquiatra precise ser acionado.
Já nos ajustamentos do tipo ansiosos, predomina o medo do futuro, de escolher, de mudar e se arriscar, de não dar conta de lidar com o que virá. Predomina a sensação de que o futuro é incerto, o mundo é ameaçador, indecisão, insegurança e medo de se expor (YANO; MENDES, 2019). Às vezes esse ajustamento vem acompanhado de taquicardia, tremor, tontura, dor no peito, formigamento, falta de ar, sinais de um ataque de pânico com o qual nem todos sabem lidar. Quando esses ataques se tornam recorrentes, e passam a gerar evitação repetida, de lugares, pessoas, situações incômodas, faz-se interessante avaliar se não é o momento de unir forças e encaminhar.
Sabemos que vivemos num mundo baseado na pressa e na busca constante por tranquilidade e felicidade, onde não somos autorizados a estar tristes, ansiosos, e tudo, toda forma de sofrimento existencial e humano, é passível de receber um diagnóstico. Também entendemos que é por meio da dor que a gente cresce, se humaniza, e desenvolve forças e recursos que nos ajudam a enfrentar o curso da vida (PINTO, 2019).
Mas quando essa dor se torna constante, intensa, exagerada, a ponto de gerar ataques de pânico, vontade de morrer, ou falta de ânimo para levantar da cama ou sair de casa, e quando mesmo em terapia, o nosso cliente sente que é difícil suportá-la, aí sim a necessidade de encaminhamento é considerada, e comunicamos ao cliente que talvez seja preciso unir forças com um psiquiatra.
E a serviço de quê encaminhar
Como psicoterapeutas, além de sabermos quando encaminhar, é interessante que tenhamos claro a serviço de quê esse processo vai se dar. Devemos ter clareza disso tanto para nós, quanto para os nossos clientes, porque eles certamente vão nos indagar a respeito do para quê decidimos lhes encaminhar.
Atuamos desse modo porque entendemos que tudo o que ocorre na relação terapêutica tem um como e um para quê. Sempre partimos de como o cliente está, como enxerga seus sintomas, como se relaciona e funciona, e em seguida, buscamos o para quê, a serviço de quê essa dor veio a aparecer, o que esse sintoma tem a nos dizer sobre seu jeito de se autorregular e viver.
Olhamos para tudo o que faz parte da existência e história do nosso cliente: aquilo que foi vivido, esquecido, diminuído, aumentado, tudo o que ele nos trouxer e demandar atenção e cuidado (SAPIENZA, 2004). Sabemos que a dor não veio só para incomodar, e que ela tem algo a nos contar, sobre quem a pessoa é, como costuma se ajustar e como podemos lhe ajudar. Ela é um sinal que alguém precisa ouvir, entender, decodificar, e com o qual nós, terapeutas, temos de dialogar (PINTO, 2019).
Também entendemos que até nossa fala possui um para quê, ela deve ter um sentido, estar a serviço da outra pessoa, do seu processo. Por isso nossa fala requer cuidado, não diretividade e paciência, dando brecha para que o próprio cliente pense em maneiras de lidar com suas queixas e problemas (SAPIENZA, 2004).
Desse modo, o encaminhamento parte de nós como um convite, uma sugestão, sendo algo que discutimos junto com o cliente ao longo da sessão. É algo que só é realizado e pensado com seu conhecimento e consentimento, desse modo, precisamos de sua opinião antes de decidirmos encaminhar ou não (PAIVA, 2022).
O encaminhamento ao psiquiatra pode ser feito e proposto com a intenção de que aquele cliente passe por uma nova avaliação, uma espécie de entrevista clínica e investigação, feita por um profissional que vai dar uma “segunda opinião”. Pode-se explicar que este profissional vai olhar para seus sintomas, e jeito de funcionar, e avaliar se existe aí um transtorno ou não, e se esta “condição” demanda acompanhamento, medicação ou outro tipo de intervenção (GESTALT-PARANÁ, 2022).
Desse modo, encaminhamos para que o nosso cliente seja avaliado, tenha acesso a um diagnóstico adequado e receba um outro tipo de cuidado (BRUM, 2020). Encaminhamos porque sabemos que o suporte do psiquiatra pode trazer alívio àquele cliente que quer viver e lidar com suas questões, sem tanta dor, sem tanto prejuízo (PAIVA, 2022). Fazemos isso com a intenção de oferecer mais uma fonte de heterossuporte ao nosso cliente, para que ele saiba que não precisa lidar sozinho com as dores que sente. Também o tentamos para que este possa recuperar suas forças e achar outras saídas, que o levem a um caminho de maior expressão e autonomia, e de mais recursos para lidar com os desafios da vida (BARRETO, 2019).
Como encaminhar
Na clínica, cada existência que tratamos é única, e por isso, cada relação terapêutica é única (SAPIENZA, 2004). Desse modo, o processo de cada cliente se faz singular, não existindo um modo único de intervir ou encaminhar.
É interessante que o encaminhamento se dê num clima de diálogo e abertura de ambos os lados, que se faça contato e se permita contato. E que o terapeuta enxergue o cliente como uma totalidade, entendendo que seus sintomas são apenas uma parte, um modo de se ajustar que enrijeceu e cristalizou frente a situações insuportáveis (FREITAS, 2016).
Desse modo, no momento de encaminhar, ele deve considerar que é com uma pessoa, um todo, que ele irá conversar, e que esta tem autonomia o suficiente para avaliar se quer ou não buscar ajuda profissional em outro lugar. É justamente por isso que sugerimos o encaminhamento, dando espaço para que o cliente nos questione e até mesmo recuse esse procedimento.
O ideal é que o encaminhamento seja sugerido, como um convite ou uma indagação ao cliente, para que este se posicione e diga o que acha e como sente. Podemos começar partilhando com o cliente a demanda percebida, como a terapia tem contribuído, o que tem sido feito e o que não dá conta de realizar, apresentando a possibilidade de outros profissionais virem ajudar, dando “brecha” para o cliente concordar, nos questionar, ou discordar (NUNES, 2021).
Como terapeutas, precisamos nos preparar para qualquer situação, inclusive, para receber um “não”. O nosso cliente pode resistir a ser encaminhado, e mesmo sabendo o quanto um encaminhamento poderia lhe ajudar, nosso papel é ouvir essa recusa, respeitar e lembrar que ele mesmo é responsável pelo modo como seu tratamento vai se dar (SALVADOR, 2021). Atuamos entendendo que o cliente é quem decide se quer mudar, achar outros modos de ser e se ajustar, ou se manter no processo tal como está (ANDRADE, 2014).
Vale pontuar que o momento de encaminhar também é o de psicoeducar, de tirar dúvidas e explicar o papel do psiquiatra, pontuando como este costuma trabalhar, que tipo de situações tende a acompanhar e como pode ajudar (NAVARRO, 2019). Pode-se inclusive fazer uso de uma metáfora para facilitar o entendimento do cliente. No trato com crianças e adolescentes, podemos explicar que nós, terapeutas, somos que nem “power ranger”, às vezes a gente precisa do suporte de outros profissionais para conseguir ajudar, sendo necessário unir forças e montar uma “força-tarefa” em prol do seu bem estar.
Caso o cliente aceite ser encaminhado, é interessante que já tenhamos em mente para quem encaminhar, que profissional indicar. O ideal é que seja alguém que conheçamos, um psiquiatra que seja ético, qualificado e responsável, e esteja aberto ao diálogo, uma vez que precisaremos acioná-lo, para discutir detalhes do caso (PAIVA, 2022).
É interessante que, de preferência, o encaminhamento se dê por escrito, de modo simples e preciso, destacando a finalidade do documento, ou seja, o motivo do encaminhamento (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2019).
O documento deve revelar apenas as informações necessárias que justifiquem o encaminhamento, garantindo o direito da pessoa atendida à confidencialidade dos conteúdos abordados em seus atendimentos com o psicólogo (CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA, 2019). O ideal é que se preserve o sigilo do que ocorre na sessão, e o encaminhamento seja breve e sucinto, se limitando a informar quem está sendo encaminhado, há quanto tempo essa pessoa é acompanhada, quem lhe encaminhou, e a serviço de quê lhe encaminhou. Também é relevante pontuar que caso outro profissional comece a acompanhá-lo, aquele psicólogo vai estar disponível para contato.
O que fazer depois que encaminhar
Após o encaminhamento, é interessante que dotemos uma postura de curiosidade, prontidão para o inesperado, e disponibilidade para novos contatos. Que estejamos disponíveis para ouvir o cliente e o psiquiatra, nos permitindo ser ignorantes e reconhecendo que pouco sabemos a respeito da pessoa que está sendo acompanhada, uma vez que a todo momento sua forma de ser e se ajustar pode ser atualizada (FREITAS, 2016).
O ideal é que tentemos monitorar a adesão ao encaminhamento, verificando se o cliente de fato buscou o psiquiatra, ou marcou a consulta, e se já foi, como foi, como se sentiu, que impressões teve nesse primeiro contato e se pretende voltar a encontrá-lo (NUNES, 2021). É pertinente que o incentivemos a continuar frequentando as consultas, e estejamos disponíveis para falar desse acompanhamento e tirar dúvidas (NAVARRO, 2019).
Também é relevante que entremos em contato com o psiquiatra, para partilhar a impressão que tivemos do caso, ouvir a compreensão do outro profissional, conhecer seu modo de perceber o cliente e atuar, especialmente as intervenções que decidiu adotar. Caso alguma medicação tinha sido receitada, é interessante que se investigue a serviço de quê ela foi passada, e que tipo de reação é esperada (GESTALT-PARANÁ, 2022). Tudo deve ser feito com o conhecimento e consentimento do cliente, de modo que este saiba que seu psicólogo está em contato com seu psiquiatra.
Que tipo de informação partilhar
Frente à necessidade de encaminhar ao psiquiatra, é interessante que tenhamos claro que tipo de informação pode ser partilhada, o que nos cabe passar, e o que devemos de fato resguardar. Mesmo em parceria com outro profissional, nem tudo deve ser passado, apenas o necessário para discutir o caso.
A princípio, é interessante que desenvolvamos uma compreensão diagnóstica do caso, uma descrição e compreensão clara do funcionamento daquele cliente, de seus ajustamentos, dores e dificuldades, forças e potencialidades. O ideal é que saibamos o que está saudável e o que está disfuncional e cristalizado, que olhemos não só para o sintoma, mas para a pessoa, seu contexto de relações e experiências, sua rede de apoio e potências, enfocando não só o que a pessoa tem, mas como ela está, como se ajusta e se sente frente a queixas com as quais não sabe lidar (FRAZÃO, 2015; PINTO, 2019).
É justamente a versão mais breve e sucinta dessa compreensão diagnóstica o que iremos compartilhar, após encaminhar. Desse modo, falamos de modo sucinto há quanto tempo o cliente é acompanhado, a serviço de quê buscou psicoterapia e foi encaminhado, e como tem funcionado, que tipo de ajustamentos, funcionais e disfuncionais, temos notado. O ideal é que tragamos em nosso relato queixas, preocupações, ajustamentos enrijecidos e cristalizados, que justifiquem o fato de termos decidido encaminhá-lo.
Nessa “partilha” com o outro profissional é interessante expor os sintomas conectados à sua história, seu campo de relações, experiências, limites e potências, descrevendo de modo breve seu crescimento e mudanças sofridas ao longo do tempo (FRAZÃO, 2015).
Desse modo, trazemos não só aquilo com o que o cliente não consegue lidar, sintomas e ajustamentos que costumam machucar, mas todos os recursos que já conseguiu conquistar. É um modo de dizer ao psiquiatra “eu e o cliente andamos até aqui”, “esses aspectos continuam a incomodar”, e de indagar “e agora, de que modo podemos continuar?”. Assim, damos brecha para que o outro profissional nos diga se suas impressões são parecidas ou distintas das nossas e como pensa em intervir.
Mesmo que peçamos ajuda ao psiquiatra, na tentativa de tratar os sintomas e aliviá-los, atuamos entendendo que o sintoma não é o foco do nosso trabalho. Ele é apenas uma maneira cristalizada de ser e se autorregular, que diz muito sobre como está sua relação com o mundo. Em geral, é um sinal de que esta relação está insatisfatória e faz mal, de que há necessidades que precisam ser olhadas e atendidas, e recursos que precisam ser acionados e atualizados para que o cliente possa seguir com sua vida (AGUIAR, 2014).
Frente a um sinal desse tipo, nos cabe ouvi-lo, decodificá-lo, para cliente e terapeuta pensemos juntos no que pode ser mudado, que tipo de recursos podem ser acionados, em prol do seu cuidado (PINTO, 2019). Desse modo, atuamos entendendo que o foco da parceria com o psiquiatra não é eliminar o sintoma, mas aliviá-lo para que o cliente possa conviver com ele e “escutá-lo” de modo mais claro. O psiquiatra intervém para que o sintoma se torne menos doído, grave e prejudicial, para que seja possível decodificá-lo e explorá-lo, sem que o cliente se sinta tão mal.
Só quando o cliente tem condições de sair de casa, retomar a rotina, e seguir com as coisas que precisa fazer, é que temos condição de pensar no para quê o sintoma decidiu aparecer, o que ele tem a nos dizer sobre seu modo se relacionar, autorregular e sobreviver.
Desse modo, o psiquiatra ajuda a avaliar e amenizar os prejuízos ligados ao sintoma, para que possamos trazer o seu para quê à tona, para que possamos confirmar e aceitar seus ajustamentos, lhe ajudando a se dar conta de como ele está naquele momento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Frente à necessidade de formar parceria e fazer encaminhamento, e à carência de materiais que discorram sobre esse tipo de procedimento, esta pesquisa buscou investigar a serviço de quê nós, psicólogos, encaminhamos ao psiquiatra, entendendo que essa é só mais uma forma de intervir e formar parceria na clínica gestáltica.
Encaminhar um cliente a outro profissional é uma forma criativa de nós, psicoterapeutas, nos ajustarmos às demandas do caso, de reconhecermos que não damos conta de tudo o que nos é apresentado. É um processo que permite que alguns recursos e profissionais do nosso campo sejam acionados para que possamos ajudá-lo. É um ajustamento nosso que permite novos contatos e formas alternativas de partilhar cuidado.
Percebeu-se que essa partilha sempre irá se dar de modo singular, e irá demandar de nós humildade e disponibilidade para dialogar, partilhar, consultar. É um processo que se dá com conhecimento e consentimento do nosso cliente, sendo assim é necessário que tenhamos sua opinião no momento de decidirmos encaminhá-lo ou não.
Como psicoterapeutas, devemos ter sempre claro como, quando, a serviço de quê encaminhar, e que tipo de informações partilhar. Nessa partilha passamos uma compreensão diagnóstica breve e sucinta que tivemos do caso, comunicando apenas o necessário, de modo que o profissional entenda a serviço de quê decidimos acioná-lo.
Atuamos entendendo que o psiquiatra vai olhar para o sintoma, na tentativa de lhe conter e aliviar, e que nosso papel é outro: ajudar o cliente a entender e dialogar consigo, com o mundo e até com aquilo que costuma lhe machucar. Afinal, o sintoma tem sempre uma mensagem a passar, algo a dizer sobre seu modo de ser e se autorregular. Formamos parceria para que possamos lhe escutar, e o cliente encontre outros modos, mais criativos e fluidos, de se ajustar.
Espera-se que este artigo contribua para a formação de outros profissionais que atuam ou tem interesse na clínica gestáltica. Ainda assim, sugere-se que mais estudos e reflexões sejam feitas, uma vez que encaminhar faz parte da rotina de qualquer psicoterapeuta.
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Maria Clara Duarte Mélo Freire
Universidade Federal de Alagoas
Correspondência: mcduartemelo@gmail.com
Revista IGT na Rede, v. 22, no 43, 2025, p.1-32 DOI 10.5281/zenodo.17434687
Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526