FREIRE, M. C. D. M – Cão que labra acolhe: os pets como heterossuporte.
Cão que ladra acolhe:
os pets como heterossuporte
Barking dog welcomes:
pets as heterosupport
Maria Clara Duarte Mélo Freire
Universidade Federal de Alagoas
RESUMO
Esta pesquisa buscou compreender, à luz da Gestalt-terapia, como os pets podem se tornar heterossuporte de clientes em psicoterapia, bem como investigar o impacto da relação pessoa-animal sob sua saúde mental. Para isso, empreendeu-se uma pesquisa qualitativa, de cunho bibliográfico, que fez um apanhado de materiais já elaborados sobre o tema. Percebeu-se que o pet atua como heterossuporte para clientes em psicoterapia, lhes auxiliando a suprir algumas necessidades básicas, como de afeto, companhia, proteção, alívio do estresse, da ansiedade e da solidão. Desse modo, cabe ao terapeuta validar a importância desta relação e acolher sentimentos e experiências do cliente, sem apressar, direcionar ou desviar o foco da conversa. Apesar da riqueza deste modo de atuação, há uma carência de pesquisas a respeito do assunto, sendo necessário que mais estudos sejam feitos, com a finalidade de ampliar o olhar e o modo de atuar de mais psicoterapeutas.
Palavras-chave: Pet. Saúde mental. Heterossuporte. Psicoterapia. Gestalt-terapia.
ABSTRACT
This research sought to understand, in the light of Gestalt therapy, how pets can become heterosupport for clients in psychotherapy, as well as to investigate the impact of the person-animal relationship under their mental health. For this, a qualitative research was carried out, with a bibliographical nature, which made an overview of materials already elaborated on the subject. It was noticed that the pet acts as hetero-support for psychotherapy clients, helping them to meet some basic needs, such as affection, company, protection, relief from stress, anxiety and loneliness. Therefore, it is up to the therapist to validate the importance of this relationship and welcome the client's feelings and experiences, without rushing, directing or diverting the focus of the conversation. Despite the richness of this mode of action, there is a lack of research on the subject, and more studies need to be done, in order to broaden the perspective and the way of acting of more psychotherapists.
Keywords: Pet. Mental health. Heterosupport. Psychotherapy. Gestalt therapy.
INTRODUÇÃO
Quando se fala em fazer psicoterapia, em geral se tem a ideia de que o terapeuta trabalhará focado apenas nas queixas e problemas trazidos pelo cliente. No entanto, este profissional não pode trabalhar de forma tão limitada, se atentando apenas ao que dói e gera incômodo. Na clínica gestáltica, o terapeuta precisa ter um olhar ampliado, que considere não só as queixas e dilemas do cliente, mas seus recursos, potências, relações e experiências (FRAZÃO, 2015), o que inclui sua relação consigo, com os amigos, com os Pets, com a família, e com tudo e todos que já fazem parte do seu dia a dia.
Sendo uma abordagem teórico-prática bastante autêntica e rica, a Gestalt-terapia surge no período pós-guerra, fruto da parceria de vários pesquisadores, dentre eles Laura Perls e Fritz Perls, considerados os fundadores da Gestalt-terapia (RIBEIRO, 2011). Ela nasce influenciada por várias teorias e filosofias de base, tais como: fenomenologia, existencialismo, humanismo, Psicologia da Gestalt, Teoria de Campo, Teoria Holística, Zen Budismo (ALMEIDA, 2010; JÚNIOR, 2010).
Tem em sua visão de pessoa a de um ser-no-mundo singular, consciente e livre, que está em permanente movimento e relação consigo, com o meio e com o outro (RIBEIRO, 2011). Este ser é uma gestalt, ou seja, um todo com forma própria, que se ajusta e tenta satisfazer suas necessidades por meio de suas trocas com o mundo (JÚNIOR, 2010), se autorregulando e crescendo em contato com tudo o que compõe esse mundo: árvores, pessoas, objetos, animais.
Esta tentativa de se ajustar e se autorregular se chama ajustamento criativo, é uma resposta adaptativa e criativa que visa a sua sobrevivência e o seu crescimento. É por meio dela que necessidades de conforto, segurança e alimentação são vistas e atendidas. No entanto, quando esta forma de se ajustar se torna difícil, cristalizada e repetitiva, é que surge o adoecimento, o que mobiliza no cliente a demanda por tratamento psicológico (FRAZÃO, 2015).
Na clínica gestáltica, este todo, que é o cliente, se manifesta por meio de suas partes, sintomas, que emergem como figura e se destacam na sessão. Cabe ao terapeuta investigar o que está por trás dessa figura/sintoma/forma de se ajustar cristalizada, ou seja, considerar seu fundo, aquilo que faz parte de sua história e seu contexto de experiências e relações: seu contexto familiar, escolar, profissional e social (AGUIAR, 2014). Em muitos casos, os Pets fazem parte desta teia rica de relações dos clientes, sendo considerados por estes seus amigos, melhores companheiros, confidentes, e até mesmo parte da família, sendo vistos e tratados como “filhos” de alguns.
Atualmente usa-se, inclusive, o termo “família multiespécie” para tratar de configurações familiares em que humanos se referem a seus animais de estimação como membros da família, lhes incluindo na sua rotina de passeios, refeições e viagens (AGUIAR; ALVES, 2021). Isso não é de causar tanto estranhamento quando se entende que a presença deste Pet supre algumas necessidades básicas dos seres humanos, tais como a de afeto, companhia, aconchego e aceitação (SOUZA; CASTRO, 2022).
Entre os Pets mais citados nos atendimentos psicológicos, há cães, gatos, passarinho, hamster. E nada disso é ignorado pelo terapeuta, uma vez que se entende que seu papel é acolher e respeitar as manifestações do cliente, sendo seu dever explorar seja lá o que o cliente quiser trazer para a sessão (ALMEIDA, 2010).
Assim, se o cliente quiser falar de seu Pet e de seu dia a dia com ele, não cabe ao terapeuta lhe julgar, apressar ou direcionar a outro assunto. Deve-se trabalhar com qualquer coisa que se mostre como “fenômeno”, tema de destaque, no aqui e agora da sessão, podendo ser um assunto, um gesto, um sintoma, uma fantasia, uma viagem feita com o Pet e o resto da família, o que ele estiver à vontade para trazer na terapia (FIGUEROA, 2015).
Ademais, esse modo de intervir focado no “aqui e agora” não desconsidera o passado ou o futuro do cliente, não desabona sua relação com os Pets que já teve, ou os que gostaria de ter, uma vez que estes são constantemente presentificados por ele através de suas memórias, sonhos, planos e situações inacabadas, cabendo ao terapeuta estar atento e aberto a acolher os conteúdos que este traz em suas falas (COSTA, 2014).
Para tal, o terapeuta precisa deixar de lado, entre parênteses, seu saber, reconhecendo que nada sabe ou pouco sabe a respeito do cliente, deixando que este se manifeste tal como é, e por si próprio dê sentido àquilo que sente e vivencia no seu dia a dia (RIBEIRO, 2011), ficando este livre para falar, desenhar, exibir fotos e vídeos dos Pets que fazem parte de sua vida.
Este modo de atuar se ampara no método fenomenológico, um método descritivo que instrumentaliza o terapeuta a explorar e compreender o mundo do cliente a partir do olhar e vivência deste, evitando teorizar, explicar, ou buscar o por quê das coisas (ALMEIDA, 2010), mas se atentando a investigar e entender “como é isso para você?”, “como você se sente em contato com este Pet?”, “qual diferença este faz no seu dia a dia?”, “e a serviço de quê você o cita tanto na terapia?”.
Assim, é possível se estabelecer uma relação genuína, dialógica, com o cliente, na qual ele se sinta recebido e acolhido tal como é, com suas forças e fraquezas, limites e possibilidades , de modo que se torne “aware”, consciente de si, de seu modo de funcionar e se relacionar (FREITAS, 2016), e de tudo e todos que compõem sua realidade, inclusive os Pets, que citam com tanta afetividade.
É por meio desse processo de awareness, de “dar-se conta” de si, dos próprios limites e possibilidades, que a mudança ocorre, que o cliente se abre para experimentar novos modos de ser e estar no mundo, agindo de forma mais fluida, autêntica e criativa (ALVIM, 2014), e dando um novo sentido a todas as coisas, objetos, animais, projetos e pessoas, que fazem parte de sua vida.
No entanto, este processo não é rápido e tampouco fácil e não se dá em isolamento. Para que isso ocorra, é preciso que o próprio terapeuta sirva de heterossuporte para seu cliente, ou seja, de apoio para que este cresça, se perceba e redescubra que é capaz de muito mais do que acha que pode, podendo contar com o seu próprio autossuporte, ou seja, consigo mesmo e seus recursos, e não só com o seu meio (ANDRADE, 2014).
Nesse processo de redescoberta de si, o terapeuta, é claro, não atua sozinho, mas em parceria com todos que fazem parte da rede de apoio do cliente: os pais, amigos, colegas, parceiros e também com os seus Pets. Isso ocorre porque em Gestalt-terapia entende-se que o cliente se constitui, atualiza e autorregula a partir de suas relações, sendo cada forma de se ajustar e se relacionar única, e uma tentativa de alcançar o melhor equilíbrio possível (AGUIAR, 2014).
Assim, todas as suas formas de fazer contato são consideradas, e como muitos clientes citam seus Pets nos atendimentos, estes não poderiam ser deixados de fora, virando tema que, em geral, “rende” nas interações entre terapeuta e cliente. Por vezes, estes são citados como a principal causa de conforto, diversão e alívio nos momentos de estresse e ansiedade vivenciados em seu dia a dia, fazendo parte de muitas narrativas.
Os Pets cumprem a função de oferecer afeto, conforto, e companhia, propiciando bem estar e qualidade de vida a seus “tutores”, facilitando e auxiliando no seu tratamento (MARINARI, 2022). Isso fica explícito na clínica gestáltica, no contato com muitos clientes, a partir de suas falas pode-se perceber o quanto essa relação de apego com seus Pets contribui para seu crescimento e bem estar psicossocial.
Já tem, inclusive, sido realizados alguns estudos sobre o efeito da convivência com os Pets na saúde mental das pessoas (MARINARI, 2022; SOUZA; CASTRO, 2022). No entanto, há uma escassez de estudos que investiguem como essa convivência pode ser usada a favor do cliente no seu processo terapêutico.
Diante disso, e da vivência da autora em sua prática como terapeuta, em contato com vários clientes que citavam seus Pets nos atendimentos, tornou-se relevante realizar uma pesquisa que objetivasse compreender como os pets podem se tornar heterossuporte de clientes em psicoterapia, bem como investigar o impacto da relação pessoa-animal sob sua saúde mental.
Espera-se com tal estudo ampliar a discussão a respeito da prática na clínica gestáltica, e da relação terapeuta-cliente, contribuindo para a formação de outros gestalt-terapeutas e estudantes de psicologia que têm interesse em atuar neste campo.
METODOLOGIA
A pesquisa bibliográfica é um apanhado geral dos principais trabalhos feitos sobre determinada temática, sendo capaz de fornecer dados atualizados e relevantes relacionados a mesma (LAKATOS; MARCONI, 2003). Assim, realizou-se uma pesquisa qualitativa, de cunho bibliográfico, a fim de compreender como os pets podem se tornar heterossuporte de clientes em psicoterapia, bem como investigar o impacto da relação pessoa-animal sob sua saúde mental.
Para tanto, essa pesquisa se amparou em artigos acadêmicos e materiais científicos sobre o tema, obtidos por meio das bases de dados Scielo, Pepsic e Google Acadêmico. Também foram feitas algumas pontuações, a partir da experiência da autora como psicoterapeuta de clientes que manifestam apreço por seus Pets.
Na busca por publicações, considerou-se como critérios de inclusão: artigos e materiais científicos em português, que abordassem pelo menos dois dos quatro termos escolhidos: “animal e saúde mental”, “animal e gestalt terapia”, “animal e fenomenologia”; “heterossuporte e Gestalt-terapia”. As produções que não atenderam a este critério foram excluídas. Devido à carência de artigos, também foram usados capítulos de alguns livros embasados na Gestalt-terapia, a exemplo do livro organizado por Lilian Meyer Frazão e Karina Okajima Fukumitsu: Gestalt-terapia: conceitos fundamentais.
Para análise dos dados, utilizou-se a análise de conteúdo de Bardin, um conjunto de técnicas de análise, que permite a classificação e organização das informações em categorias, classes de conteúdo que reúnem um grupo de elementos, com características em comum (BARDIN,1977).
Por meio desse processo de análise, chegou-se às seguintes categorias: Caminhar da Terapia: Do Heterossuporte rumo ao Autossuporte; Pet como heterossuporte: aquele que conforta, estimula e acolhe. As categorias buscam detalhar qual o papel da relação terapêutica como heterossuporte, e quais outros elementos do campo do cliente, a exemplo da relação pessoa-Pet, também atuam no fortalecimento do seu autossuporte.
Vale pontuar que nesta pesquisa, será usado o termo “tutor” e não “dono” de Pet, uma vez que o termo “dono” dá a entender a ideia de posse, de que o pet é propriedade de alguém, e o termo “tutor” dialoga com a intenção da autora, de investigar a relação pessoal-animal, ou seja, o vínculo entre aquela pessoa que “tutela”, cuida, e aquele que é tutelado e cuidado, o Pet (GIUMELLI; SANTOS, 2016). Ademais, o termo Pet será usado para se referir a bichinhos de estimação que fazem parte da rotina e da vida de seus tutores, estando incluídos nesta categoria: cães, gatos, passarinho, tartaruga, hamster, peixe, etc.
A seguir, serão expostos os resultados de revisão bibliográfica empreendida pela autora, sendo estes divididos nas categoriais supracitadas.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Caminhar da Terapia: Do Heterossuporte rumo ao Autossuporte
Na clínica gestáltica, não se trabalha enfocando apenas na queixa manifesta pelo cliente, mas a partir de tudo o que ele trouxer e puder expressar naquele momento: sua postura, gestos, falas, fantasias, silêncios, choro, produções artísticas, menções a amigos, Pets, e projetos de vida (AGUIAR, 2014). Parte-se da compreensão de que essa pessoa que está diante do terapeuta é um “todo”, com forma própria, que não possui apenas dores e dificuldades, mas possibilidades e potencialidades (FRAZÃO, 2015), estando em contato com um mundo com o qual troca e cresce junto.
Neste sentido, o cliente é um fenômeno, que se revela lentamente e está a todo momento se autorregulando na tentativa de atender suas necessidades, estando, para isso, ligado a um contexto de relações, que o muda e está sempre mudando (FREITAS, 2016). Tudo o que vem “de fora”, do meio e do outro, é considerado heterossuporte, e está ali para fornecer apoio (ANDRADE, 2014), o que inclui a família, a escola, os colegas, os Pets, os amigos, e todos aqueles com quem têm interagido.
A própria terapia atua como um tipo de heterossuporte, que permite que o cliente amplie seu olhar sobre si, seu modo de funcionar e estar no mundo, e ache formas mais saudáveis, satisfatórias, de interação com esse mundo (AGUIAR, 2014; FREITAS, 2016). Seu papel é promover awareness, ampliação da consciência, de modo que o cliente vá além de suas dores e problemas, e revisite sua história, seu campo de relações, necessidades e experiências (AGUIAR, 2014).
Uma necessidade que todos clientes têm e tende a se manifestar no contexto terapêutico, é a de desenvolver melhor seu autossuporte: a de se conhecer, se aceitar tal como é, confiando na própria capacidade, e passando a priorizar suas vontades e necessidades (ANDRADE, 2014). Tal processo não é fácil e tampouco rápido, ele demanda disponibilidade do terapeuta para ouvir, “caminhar junto” com, sem julgar, apressar ou direcionar, sempre entendendo que o cliente está fazendo o melhor que pode, no tempo que dá (FRAZÃO, 2014; FREITAS, 2016)
Desse modo, cabe à relação terapêutica servir de heterossuporte para que o cliente cresça e desenvolva melhor seu autossuporte, servindo de apoio para que este se sinta ouvido, acolhido, e cada vez mais consciente de si, de como tem funcionado e interagido (FREITAS, 2016). Isso inclui saber olhar para si, para tudo o que se é, sente, e tem feito, e para tudo o que existe no campo, a saber sua família, seus amigos, seus Pets, que contribui para que ele seja e se manifeste desse jeito.
Ainda, cabe ao terapeuta ajudar o cliente a crer mais em si, nos seus gostos, escolhas, atitudes e vontades, caminhando “junto com”, para que o cliente perceba seu próprio potencial para crescer e atender suas necessidades (ANDRADE, 2014). A intenção é que este se descubra capaz de muito mais do que acha que pode, que ache em si mesmo, e no mundo, recursos, apoios, com os quais possa contar e seguir junto. De modo que consiga olhar para si e sua dor, se enxergando como muito mais que isso, como alguém que tem recursos próprios, e também pode contar com a família, os Pets e os amigos.
Para que tal processo ocorra, é fundamental que o terapeuta considere todos os elementos do campo que podem dar suporte nesta direção: a relação com a família, escola, trabalho, amigos, e, claro, com os Pets. O vínculo pessoa-animal não pode ser ignorado, uma vez que é capaz de favorecer o seu processo de autodescoberta e autoaceitação, lhe oferecendo conforto, estímulo e alívio para sentimentos de estresse e solidão.
Pet como heterossuporte: aquele que conforta, estimula e acolhe
Todos os seres vivos são seres de relação, seres que estão em contato com algo ou alguém. Estar em contato significa ser capaz de assimilar ou rejeitar aquilo que está disposto no ambiente, numa relação dialética, ativa e criativa, que leva todos os envolvidos, pessoa-meio-outro, a se nutrir e crescer (D’ACRI, 2014).
O contato se dá entre seres separados, ou seja, entre o “eu” e o “não-eu”, que pode ser uma pessoa, uma música, um objeto, um pôr do sol, uma flor, um animal (POLSTER; POLSTER, 2001). É por meio desse contato que o ser humano se diferencia, autorregula e desenvolve, delimitando o que é nocivo e nutritivo, na tentativa de satisfazer suas necessidades e se manter vivo (AGUIAR, 2014).
E os seres humanos, desde sua constituição, são atravessados por inúmeras necessidades biopsicossociais: se alimentar, dormir, estar em relação, ser reconhecido, amado, respeitado, se sentir pertencente a um grupo (FRAZÃO, 2015). Sua relação com os animais se constitui, desde a pré-história, com o propósito de atender algumas dessas necessidades, especialmente a de caça, companhia e proteção (GIUMELLI; SANTOS, 2016), evoluindo com o tempo, e com o seu processo de domesticação.
Só muito tempo depois os animais passam a ser domesticados e começam a integrar algumas famílias, se tornando “filhos”, “amigos”, daqueles com quem tem interagido. A relação pessoa-animal se torna tão forte e complexa, que os Pets passam até a participar de tratamentos terapêuticos junto com seus tutores, oferecendo apoio, conforto e alívio para as dores (SOUZA; CASTRO, 2022).
Entre os tratamentos realizados com a presença dos Pets, há a Atividade Assistida por Animais, que consiste em breves visitas de condutores com seus animais a pacientes que estão internados em instituições como hospitais e asilos; e também há a Terapia Assistida por Animais, na qual os animais são parte do tratamento do paciente, participando de sessões acompanhadas por profissionais da saúde, contribuindo para a redução de queixas de estresse e ansiedade, e para o desenvolvimento de novas habilidades (MARINARI, 2022).
Tais intervenções conseguem produzir uma melhora social, física, cognitiva e emocional em seus pacientes, propiciando momentos agradáveis, de relaxamento, aprendizagem e bem-estar aos envolvidos no tratamento (SOUZA; CASTRO, 2022). Elas contribuem para que o paciente consiga ir além de suas dores e queixas, encontrando força, conforto e cuidado com sua saúde física e mental através da relação de afeto e troca entre pessoa e animal.
Ademais, tais intervenções podem ser realizadas com pessoas de todas as faixas etárias, em diferentes locais, tais como escolas, asilos, hospitais, centros de reabilitação, possibilitando uma melhora de muitos pacientes, especialmente nas áreas de socialização e comunicação (SOUZA; CASTRO, 2022), contribuindo, ainda, para o alívio de momentos de estresse e solidão.
No entanto, intervenções deste tipo tendem a ser predominantes entre médicos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos e terapeutas ocupacionais, sendo um recurso pouco utilizado pelos psicólogos (GIUMELLI; SANTOS, 2016). Este “déficit” torna-se compreensível, especialmente quando se pensa na atuação e formação do psicólogo clínico, que, em geral, atende num espaço fechado, por tempo limitado, sob condições que não permitem a inserção desse “recurso” no seu campo de atuação. A presença do Pet no setting terapêutico dificilmente atenderia ao critério de limpeza e organização que muitos clientes e responsáveis prezam na hora de buscar atendimento.
Ainda assim, os clientes trazem, em suas falas, desenhos, histórias, fotos e produções artísticas como é a experiência de ser “tutor” de um bichinho de estimação, de ter que acompanhar, cuidar, e estar nesta relação. Nos atendimentos remotos eles inclusive mostram seus Pets ao terapeuta, numa tentativa de lhe comunicar quem são os membros mais importantes da casa e do seu “campo de interação”.
Não é incomum que, durante uma sessão remota, um Pet se manifeste através de um miado, piado ou latido, ou que a câmera do cliente seja desviada, a fim de que sejamos apresentados aos Pets com quem tem convivido. Ou que mesmo sem estar fisicamente presente na sessão, o Pet seja mencionado, desenhado, e apontado como uma figura de apoio e conforto, nos dias de estresse, ansiedade e solidão.
E cabe a nós, terapeutas, saber acolher essas falas e manifestações, de forma atenta, paciente e interessada, nos orientando a partir do que acontece e emerge na sessão, sem planejar ou prejulgar ou desviar o assunto daquilo que o cliente traz como foco de sua atenção (FIGUEROA, 2015). De modo que, se o cliente deseja falar, desenhar ou até nos mostrar o seu Pet, tudo o que nos cabe fazer é dar abertura para ver o que acontece.
Nesse sentido, o terapeuta pode auxiliar o cliente a se dar conta da importância e riqueza da relação pessoa-animal, e do impacto disso na sua saúde física e mental. Ele pode lhe estimular a descrever como o cliente funciona e se sente quando ele e seu Pet estão em contato, de modo a entender quais vivências, ajustamentos, e lembranças vêm à tona a partir desse “diálogo” (FREITAS, 2016).
Assim, pode-se pedir que o cliente apresente seu Pet pelo nome, pelo tempo que estão juntos, pelas atividades que realizam no seu dia a dia, pelo grau de importância que este tem em sua vida. Não é muito incomum que estes Pets sejam apresentados por meio de apelidos, como integrantes da família, sendo descritos como melhores amigos, confidentes e até mesmo filhos, sendo incluídos em refeições, passeios, viagens e em outros momentos decisivos (AGUIAR; ALVES, 2021).
Tal atitude não causa espanto quando se entende o papel de heterossuporte que estes Pets cumprem na vida e rotina de seus tutores: companhia, proteção, conforto em momentos de perda, divórcio e mudança, bem como sentimento de alegria e alívio de situações que geram estresse e insegurança (GIUMELLI; SANTOS, 2016).
Nesta pesquisa, entende-se que a função do heterossuporte é a de oferecer apoio para que a pessoa cresça e se desenvolva, de maneira singular e criativa, de modo que consiga se autorregular e aceitar tal como é, mesmo diante dos desafios da vida (ANDRADE, 2014). Este heterossuporte, esta forma de apoio ambiental, pode vir dos mais variados contextos relacionais da pessoa: a família, a escola, o trabalho, a terapia, os amigos, os vizinhos e, em muitos casos, os Pets (GESTALT-PARANÁ, 2018).
Além de oferecer companhia e conforto a seus tutores, os pets auxiliam no cuidado com sua saúde mental, aliviando o sentimento de solidão, estresse, ansiedade, e depressão, e servindo de estímulo para que o seu tutor faça escolhas mais saudáveis em prol dos dois, tendo mais cuidado com seu sono e alimentação (SOUZA; CASTRO, 2022).
Ademais, o contato com os pets tende a vir desprovido de preconceitos e críticas, produzindo relaxamento e qualidade de vida, servindo inclusive de incentivo para que os clientes mudem suas rotinas e comecem a sair mais e praticar atividades físicas (MARINARI, 2022). Eles podem ser a companhia e incentivo que falta para um cliente sair de sua zona de conforto e começar a ser e se ver como uma pessoa que merece ser cuidada.
Também não é tão incomum que os pets façam parte do projeto de vida do cliente, estando nos seus planos para o “futuro”, inseridos em uma viagem, mudança de casa e cidade, início de uma relação, e até mesmo na escolha do curso de graduação. Muitos clientes que têm apego e interesse em seus Pets, e estão em processo de escolha profissional, optam por fazer o curso de medicina veterinária, inspirados pela convivência com seu próprio animal.
E na clínica gestáltica, cabe ao terapeuta acolher e confirmar este “projeto” existencial do cliente, explorando expectativas, temores, fantasias, ligadas ao mesmo, estabelecendo uma relação genuína de confiança e abertura, para que o cliente se sinta cada vez mais seguro de si e daquilo que ele busca (FREITAS, 2016).
No entanto, nem sempre a fala dos clientes a respeito do Pet expressa leveza e alegria em psicoterapia, especialmente quando estes fogem, adoecem, desorganizam seu ambiente ou morrem de modo brusco. Inclusive é comum que pessoas que tem um forte vínculo com seu bichinho de estimação se sintam mal só de pensar em perdê-lo ou vê-lo doente, associando a sua possível ausência ao sentimento de solidão, vazio, tristeza e falta de apoio (GUIMELLI; SANTOS, 2016).
E quando o pet morre, muitas pessoas vivenciam um processo de luto semelhante ao que teriam diante da perda de um ente querido (MARINARI, 2022), podendo tal perda gerar muita angústia, solidão, e incompreensão por parte de quem não entende o que o que cliente tem vivido.
Assim, cabe ao terapeuta acolher o estado emocional do cliente de maneira paciente, respeitosa e amorosa, explorando o que quer que seja que este queira trazer para a sessão no “aqui e agora”, permitindo que o cliente dê sentido à sua perda e lhe revele como tem se sentido, funcionado e interagido diante da mesma (ALMEIDA, 2010).
Assim, deve-se permitir que o cliente viva a dor da perda, fale dela, a desenhe, associe a músicas, poesias, posts, emojis, memes, de modo a entrar em contato com seus sentimentos e os expressar, num ambiente de escuta ativa e acolhimento, no qual ninguém irá lhe julgar. O terapeuta também pode dar abertura para que o cliente olhe para todas as situações que ficaram em aberto, ou seja, tudo o que se deixou de fazer e viver com a morte do Pet (MARINARI, 2022), seja uma viagem, um passeio, um aniversário, ou algum evento que foi interrompido, a partir da perda daquele ser que foi (e ainda é) tão querido.
Diante disso, fica perceptível o quanto o vínculo que os tutores têm com o seus pets impacta sua saúde mental, sendo sua presença nutritiva, e sua ausência geradora de sofrimento, solidão e episódios de ansiedade, estresse e fadiga. Não existe modo único de vivenciar esse tipo de perda, a única coisa que se mantém constante é a importância de permitir que isso seja visto, dito, sentido, desenhado e reelaborado, dentro da própria relação terapêutica.
Também se evidencia o quanto os Pets podem atuar como heterossuporte e contribuir para o bem estar psicossocial de seus tutores, tanto no âmbito doméstico, como no contexto terapêutico, propiciando o alívio do sentimento de vazio e solidão, e de quadros de estresse, ansiedade e depressão, sendo a relação pessoa-animal aquela que potencializa qualidade de vida e uma forma de ser e estar no mundo mais leve e criativa.
Neste sentido, cabe ao terapeuta validar a importância deste vínculo, buscando entender qual papel desse pet na vida do seu cliente, como este lhe oferece suporte e faz parte do seu dia a dia, de modo que este também possa estar presente na sua psicoterapia.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa empreendeu uma revisão bibliográfica com intenção de investigar como os pets podem se tornar heterossuporte de clientes em psicoterapia, bem como o impacto da relação pessoa-animal sob sua saúde mental. Para isso, amparou-se na compreensão de mundo e pessoa seguida pela autora: no olhar da Gestalt-terapia.
Percebeu-se o quanto o vínculo pessoa-animal é rico e supre diversas necessidades de seus tutores: de companhia, afeto, reconhecimento, aceitação, proteção. Estes também atuam como heterossuporte de clientes em psicoterapia, favorecendo a sua saúde mental e oferecendo conforto em momentos de solidão bem como alívio de sentimentos de estresse, ansiedade e depressão.
Na clínica gestáltica, cabe ao terapeuta confirmar a importância desse vínculo e explorar, junto ao seu cliente, o papel que este pet cumpre na sua vida, sentimentos e vivências ligados a esta relação, e como ele pode ser afetado frente a momentos de perda e solidão.
Nesse sentido, o próprio terapeuta acaba servindo de heterossuporte para que seu cliente se desenvolva, num caminho de mais autonomia e consciência, explorando novas formas de ser e estar no mundo, e de lidar com seus problemas, sem pressa, direcionamento ou pressão. O foco do processo é oferecer apoio e estar junto ao cliente para que este se sinta cada vez mais seguro de si, e de suas escolhas, se enxergando como um ser de capacidades e inúmeras possibilidades, num processo de autodescoberta, experimentação e autoaceitação.
Mesmo diante da riqueza de tal atuação e manejo do gestalt-terapeuta, ainda são escassos estudos que investiguem a postura do psicólogo frente a clientes que manifestam um apreço por seus Pets, lhes citando em psicoterapia. Sendo assim, sugere-se que mais pesquisas sejam feitas a respeito da temática, para que se amplie a discussão a respeito do vínculo pessoa-animal e seu impacto sob a saúde mental. Estas pesquisas também se fazem necessárias à própria formação dos psicólogos clínicos e estudantes interessados na área, ampliando seu modo de olhar e lidar com seus clientes, na clínica gestáltica.
REFERÊNCIAS
Aguiar, J. (2014). Gestalt-terapia com crianças: Teoria e prática (2ª ed.). Summus.
Aguiar, M. de S. de, & Alves, C. F. (2021). A família multiespécie: Um estudo sobre casais sem filhos e tutores de pets. Pensando Famílias, 25(2), 19–30. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/penf/v25n2/v25n2a03.pdf
Almeida, J. M. T. de. (2010). Reflexões sobre a prática clínica em Gestalt-terapia: Possibilidades de acesso à experiência do cliente. Revista da Abordagem Gestáltica, 16(2), 217–221. https://www.redalyc.org/pdf/3577/357735614012.pdf
Alvim, M. B. (2014). Awareness: Experiência e saber da experiência. In L. M. Frazão & K. O. Fukumitsu (Orgs.), Gestalt-terapia: Conceitos fundamentais (pp. 13–30). Summus.
Andrade, C. C. (2014). Autossuporte e heterossuporte. In L. M. Frazão & K. O. Fukumitsu (Orgs.), Gestalt-terapia: Conceitos fundamentais (pp. 147–162). Summus.
Costa, V. E. S. M. (2014). Temporalidade: Aqui e agora. In L. M. Frazão & K. O. Fukumitsu (Orgs.), Gestalt-terapia: Conceitos fundamentais (pp. 131–146). Summus.
D’Acri, G. C. de M. R. M. (2014). Contato: Funções, fases e ciclo do contato. In L. M. Frazão & K. O. Fukumitsu (Orgs.), Gestalt-terapia: Conceitos fundamentais (pp. 31–46). Summus.
Figueroa, M. (2015). As técnicas em Gestalt-terapia. In L. M. Frazão & K. O. Fukumitsu (Orgs.), A clínica, a relação psicoterapêutica e o manejo em Gestalt-terapia (pp. 103–128). Summus Editorial.
Frazão, L. M. (2015). Compreensão clínica em Gestalt-terapia: Pensamento diagnóstico processual e ajustamentos criativos funcionais e disfuncionais. In L. M. Frazão & K. O. Fukumitsu (Orgs.), A clínica, a relação psicoterapêutica e o manejo em Gestalt-terapia (pp. 65–80). Summus Editorial.
Freitas, J. R. C. B. de. (2016). A relação terapeuta-cliente na abordagem gestáltica. Revista IGT na Rede, 13(24), 85–104. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/igt/v13n24/v13n24a06.pdf
Gestalt-Paraná. (2018, 27 de abril). Heterossuporte e autossuporte [Vídeo]. YouTube. https://www.youtube.com/watch?v=Gl-CM-B0E-o
Giumelli, R. D., & Santos, M. C. P. (2016). Convivência com animais de estimação: Um estudo fenomenológico. Revista da Abordagem Gestáltica, 22(1), 49–58. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rag/v22n1/v22n1a07.pdf
Júnior, F. A. de B. M. (2010). Da teoria à terapia: O jeito de ser da Gestalt. Revista Interdisciplinar NOVAFAPI, 3(1), 49–53. https://www.yumpu.com/pt/document/read/15887033/da-teoria-a-terapia-o-jeito-de-ser-da-gestalt-novafapi
Marinari, M. M. de O. (2022). O luto por animais de estimação sob o olhar da Gestalt-terapia: Uma análise do filme Marley e Eu [Trabalho de Conclusão de Curso, Centro Universitário Cambury]. Revista Leia Cambury Repositório Acadêmico. https://www.revistaleiacambury.com.br/index.php/repositorio/article/view/68/67
Polster, E., & Polster, M. (2001). Gestalt-terapia integrada. Summus.
Ribeiro, J. P. (2011). Conceito de mundo e de pessoa em Gestalt-terapia: Revisitando o caminho. Summus.
Souza, M. M. de, & Castro, A. (2022). Repercussão do animal de estimação na saúde mental de indivíduos na fase adulta. Revista Panorâmica, 35, 394–409. https://periodicoscientificos.ufmt.br/revistapanoramica/index.php/revistapanoramica/article/view/1498
Maria Clara Duarte Mélo Freire
Universidade Federal de Alagoas
Correspondência: mcduartemelo@gmail.com
Revista IGT na Rede, v. 22, no 43, 2025, p.1-32 DOI 10.5281/zenodo.17434526
Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526