FIGUEIRA, Renata Almeida. VALE, Kamilly Souza do. – “Experiências e desafios no atendimento a adolescentes transgêneros: contribuições da gestalt-terapia.”

ARTIGO

Experiências e desafios no atendimento a adolescentes transgêneros: contribuições da Gestalt-terapia

Experiences and challenges in caring for transgender adolescents: contributions from Gestalt therapy

Renata Almeida Figueira

Kamilly Souza do Vale

RESUMO

O presente escrito refere-se a uma compreensão gestáltica acerca do manejo clínico com adolescentes transgêneros. O tema da transgeneridade é emergente, pesquisas indicam uma procura crescente de pessoas trans por atendimentos na área da saúde. Nesse caminho, o jovem trans tem sido uma realidade nas demandas de atendimentos psicoterapêuticos. Eles podem passar por situações de violências diversas, frutos do padrão hegemônico estrutural da binariedade de gênero. Portanto, as áreas da saúde e do cuidado precisam acompanhar essa discussão. Este trabalho busca ampliar tal temática a partir de relatos de vivências clínicas em Gestalt-terapia a adolescentes trans, em uma proposta decolonial e dialógica na ética do cuidado. Reconhece-se que, em sua perspectiva teórica, a gestalt possui importante arcabouço para sustentar e promover suporte e saúde mental frente às violações que pessoas trans sofrem cotidianamente.

Palavras-chave: Adolescente transgênero. Gestalt-terapia. Diversidade de Gênero.

ABSTRACT

The present writing refers to a Gestalt understanding regarding clinical management with transgender adolescents. The theme of transgender identity is emerging, with research indicating a growing demand for healthcare services among transgender individuals. In this context, transgender youth have become a reality in psychotherapeutic settings. They may face various forms of violence, stemming from the hegemonic structural pattern of gender binarism. Therefore, the fields of healthcare and caregiving need to engage in this discussion. This work seeks to broaden this theme through accounts of clinical experiences in Gestalt therapy with transgender adolescents, within a decolonial and dialogical proposal in the ethics of care. It is acknowledged that, from its theoretical perspective, Gestalt therapy provides an important framework to sustain and promote support and mental health in the face of the daily violations experienced by transgender individuals.

Key words: Transgender adolescent. Gestalt therapy. Gender diversity.

INTRODUÇÃO

Ao pensarmos as demandas atuais referentes ao atendimento com enfoque psicoterapêutico em crianças e adolescentes, percebemos que tem acontecido um aumento do público de adolescentes trans. A pesquisa de Spizzirri et al (2021) revelou que 2 a cada 100 brasileiros são transgênero ou não binários. Considerando que a população brasileira possui um quantitativo de mais de 200 milhões de pessoas, conforme dados do The Word Bank (2024), é possível mensurar que tenhamos mais de 4 milhões de brasileiros transgêneros. Projeta-se que estatísticas oficiais sobre a população trans no Brasil devam ser divulgadas em 2024 pela Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde (PNDS), conduzida pelo IBGE (2023).

Em 2022, em Belém do Pará, cerca de 500 pessoas trans passaram pelo Projeto Casulo em apenas quatro meses de seu funcionamento (Pinho, 2023). O projeto é uma iniciativa da Secretaria do Estado de Saúde Pública (SESPA) como plano de reestruturação de atendimento à pessoa trans no Estado do Pará. Já em São Paulo, dados do ano 2023 apontaram que 380 pessoas trans foram recebidas no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP). Desse total, 280 era de crianças e adolescentes entre 4 e 17 anos de idade (Tomaz, 2023).

A escassez de dados oficiais sobre a população trans no Brasil é preocupante pelo atraso na apropriação de políticas públicas que amparem esse grupo. Quando falamos em crianças e adolescentes trans, essa situação é mais alarmante. Até o presente momento, não encontramos referências específicas que elucidem sobre o quantitativo de crianças e adolescentes trans no cenário brasileiro e nem na região Amazônica, de onde parte nossa vivência clínica.

Nesse contexto, é vital reconhecer que os adolescentes transgêneros enfrentam uma série de desafios emocionais, éticos, políticos e sociais, já que, em sua maioria, não têm sua alteridade reconhecida e validada socialmente. Desse modo, urge que as áreas da saúde e do cuidado acompanhem as discussões sobre diversidade e identidade de gênero diante dessa demanda na atualidade.

Incluímos, aqui, a importância do debate que envolve a classificação da sexualidade a partir de modelos estáticos e binários. Para Barros (2020), várias são as tentativas de explicar a gênese da homossexualidade, por exemplo, por meio de muitas teorias (biológicas, antropológicas, psicológicas) e os achados ou compreensões não alcançam uma conclusão que não contenha uma exceção. O autor aporta seu pensamento na afirmação de que tal tentativa também acontece com as identidades transexuais e intersexuais (Barros, 2020; Trevisan, 2018). Assim, a criação do termo “homossexualidade” confirmaria uma norma cis-heteressexual de polaridades e fortaleceria o binarismo de gênero nas configurações homem/mulher, macho/fêmea, masculino/feminino. (Spargo, 2017; Barros, 2020).

A partir do momento em que a heterossexualidade e a cisgenaridade são percebidas como a norma, as demais expressões e identidades sexuais passam a ser consideradas desviantes e anormais, o que nos permite falar na existência de uma cis-heteronormatividade” (Barros, 2020, p.65).

Nosso interesse em tal temática parte de uma trajetória na pesquisa clínica existencial fenomenológica, que envolve, também, a Gestalt-terapia e os estudos de gênero. Nas pesquisas realizadas no programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará (UFPA), na linha fenomenologia Teoria e Clínica, em parceria com o Núcleo de Pesquisa de Gestalt-terapia da UFPA, os temas que envolvem as interseccionalidades permeiam nossa compreensão a partir de uma perspectiva que visa a construção de conhecimento na Amazônia.

Em vista disso, ancoradas na abordagem Gestáltica, reconhecemos que tal perspectiva teórica tem um importante arcabouço para sustentar e promover suporte e saúde mental frente às violações que pessoas trans sofrem cotidianamente, além de poder contribuir significativamente sob o viés da autenticidade do ser no mundo. No presente escrito, pretendemos compartilhar experiências clínicas de uma das autoras no atendimento a adolescentes transgêneros a partir de uma perspectiva Gestáltica, visando uma compreensão decolonial deste fenômeno.

        

NOÇÕES DE GÊNERO

Gênero refere-se a uma categoria de análise social, uma produção de cultura. Santana e Belmino (2017) afirmam que a identidade é uma expressão complexa das experiências individuais, relacionamentos e interações sociais. Ele é moldado pela forma como uma pessoa se percebe, se identifica e se relaciona com os outros e com o mundo ao seu redor.

Bernardino (2021) discute que o conceito de gênero foi construído a partir de disputas históricas no campo dos direitos humanos, culturais, políticos, econômicos e étnicos. O autor propõe, assim, que façamos uma compreensão para além de mera categorização social ou identitária. Gênero seria, para ele, uma modalidade existencial, uma forma de nos relacionarmos com o mundo e com nossa própria existência. Pensar em gênero como uma modalidade existencial, portanto, é reconhecer os desdobramentos das diversas possibilidades de “ser no mundo”.

Butler (2018) foi pioneira ao argumentar que a noção de transculturalidade foi fortemente marcada pelo patriarcado e que é imprescindível questionar e discutir a natureza fluida e socialmente construída do gênero. Ela afirma que o gênero não é uma essência fixa e pré-determinada, mas sim uma performance que é repetidamente reafirmada e construída mediante a interações sociais.

Jesus (2013) defende que há instalada uma crença heterocentrista em nossa sociedade como norma privilegiada e dominante. O heterocentrismo operaria para marginalizar e deslegitimar qualquer outra orientação sexual e identidade de gênero. Emergiria de uma estrutura social e cultural que governa instituições, saberes e relações sociais, manifestando-se na forma de preconceito, discriminação e outras violências.

Isso posto, pareado a conceitos como heteronormatividade, sexismo e branquitude, a cisgeneridade passa a ser central nas discussões sobre identidade de gênero. Uma pessoa trans, logo, desafiaria as normas de gênero ao reivindicar uma identidade que não corresponde àquela atribuída a ela ao nascer.

Outra noção multifacetada sobre a compreensão de gênero também pode ser encontrada na perspectiva dos povos indígenas. As percepções e a aceitação da identidade de gênero podem variar significativamente entre diferentes comunidades. Lima (2019), ao citar a obra de Fernandes (2017), retrata que o empreendimento colonial impôs um modelo heteronormativo aos povos originários e que a perspectiva binária de gênero foi construída a partir do contato com o colonizador, tendo implicações até hoje.

Em uma proposta gestáltica, a proposição de gênero deve transgredir o padrão de binaridade colonial homem-mulher tradicionalmente imposto. Contribuições de Santana e Belmino (2017) convergem com essa assertiva ao realizarem uma análise das identidades de gênero sob a perspectiva da teoria do self.

Entendendo a complexidade e a diversidade da sexualidade na contemporaneidade, os autores sustentam que mudanças sociais, culturais e políticas afetam fortemente essa compreensão. Para eles, a fluidicidade de gênero pode ser concebida em sua dinamicidade e não mais de forma fixa e pragmática, podendo modificar-se ao longo da vida e do contexto dos indivíduos.

O aporte da teoria do self, nesse pensamento, reside em seus conceitos centrais de autoconsciência, autenticidade e integração na formação da identidade (Yontef, 1998). Além disso, é vital reconhecer que essa construção é profundamente sensível a influências culturais e sociais que delineiam as experiências de gênero (Parlett, 1991; Quinhonhes, Cid, Trento, 2019).

O gênero passa a ser compreendido, então, como uma construção dinâmica e fluida, que reflete a interação complexa entre a pessoa e o seu ambiente, e que requer uma abordagem holística e inclusiva no processo Psicoterapêutico. Ao adotar uma abordagem gestáltica, reconhece-se a totalidade do self e a importância do contato autêntico com as próprias experiências e emoções (Quinhonhes, Cid, Trento, 2019).

COMPREENSÃO GESTÁLTICA DO MANEJO CLÍNICO COM ADOLESCENTES TRANS

Atualizar a perspectiva gestáltica acerca do manejo clínico é recorrentemente nos lembrarmos que a Gestalt-terapia busca sobrepujar a análise sintomática de um processo de sofrimento.  Dessa forma, as questões da pessoa trans devem ser compreendidas a partir de uma perspectiva de respeito e inclusão das especificidades dessa comunidade, em vista das mais variadas formas de violências vivenciadas, como o enfretamento do preconceito e da discriminação. Barros (2020) afirma que, em uma concepção gestáltica,

deixamos de olhar para o sofrimento vivenciado por pessoas LGBTQI+ como uma manifestação da vida interior de um indivíduo e passamos a olhar para campos de sofrimento e de afetação nos quais diferentes formas emergem, permitindonos averiguar as formas de contatar na fronteira organismo/ambiente (Barros, 2020, p 68)

Entendendo que a identidade é constituída e construída por uma ideologia, Alvim et al (2022) afirmam ser impossível “reconhecer-se positivamente no mundo” (p. 306), visto que a sociedade estereotipa noções identitárias fixadas e naturalizadas. Em um estudo sobre a população negra, os pesquisadores discorrem que esse nicho de pessoas sofre o que intitulam “aflição do campo”, o qual “reproduz socialmente formações sociais que servem como forma de dominação e coerção” (p. 306), mantendo a estrutura social patriarcal. Desse forma, a violência é concebida como um fenômeno social multifacetado.

Essas afetações de violência podem levar ao sofrimento psicológico. Barros (2020) discursa sobre como é importante reconhecer a diversidade de gênero e orientações sexuais dentro da comunidade LGBTQI. O autor cita que há uma quantidade de jovens trans que desistem ou são expulsos das escolas e das universidades. Entende-se, nesse caso, que não ocorrem “evasões” e, sim, expulsões em virtude dos dispositivos institucionais e regras que não toleram a diversidade, “criando um verdadeiro processo de eliminação das pessoas consideradas diferentes – assemelhandose, assim, ao sistema prisional, no qual os corpos estão em intenso controle” (Acosta, 2019, citado por Barros, 2020, p 64).

Diante desse contexto, compreendemos que a Gestalt-terapia é uma abordagem que alcança formas de lidar com essa realidade que gera violações, já que inclui no seu manejo a perspectiva de campo e reconhece a importância efetiva do trabalho com a singularidade das pessoas e da sua dinâmica relacional com o meio. Para tal, é imprescindível ao Gestalt-terapeute basear sua práxis profissional na relação dialógica, na inclusão da alteridade e na capacidade de deslocar-se do seu lugar de saber e de especialista diante do outre.

O Psicoterapeute, na clínica gestáltica, ocupa significativo lugar de suporte seguro para que o cliente possa explorar suas possibilidades de contato. Não é mero espectador do enredo que se apresenta, mas implica-se no processo, de forma a fornecer apoio e compreensão, sem se isentar de sua própria humanidade na escuta de outre.

Ao contrário da maioria das abordagens, que defendem a neutralidade e o não envolvimento do terapeuta, a Gestalt-terapia defende a impossibilidade dessa neutralidade e a utilização do terapeuta e da relação construída como principal ferramenta no processo terapêutico, principalmente por acreditar que o sujeito se constitui nas relações, sendo a relação terapêutica uma delas. (Freitas, 2016, p. 87)

Referente à situação terapêutica, Alvim (2019) dialoga sobre a alteridade e o reconhecimento como construtos de uma relação de cuidado. Diante da invisibilização posta a determinados corpos, ela defende que a alteridade seria uma ética de uma ação clínica que nota o outro e que devolve seu direito de ser “um outro para mim, um outro eu que pode igualmente se ver como Um e, de seu lugar, me ver como um Outro” (Alvim, 2019, p. 884)

No cenário da clínica gestáltica para adolescentes, Imperatori e Macedo (2017) afirmam que a identidade de gênero está entre as questões mais desafiadoras relatadas em setting terapêutico. Assim, destacam o quão imprescindível é propiciar uma atmosfera segura e acolhedora para que os jovens consigam expressar seus pensamentos e sentimentos para poder “ser quem se é”.

No atendimento ao adolescente trans, uma postura humanizada e responsável é uma forma de impedir violências e de qualquer tipo de ação desumanizadora. Escutar o outro é basal no estabelecimento de um diálogo autêntico e recíproco, vendo a si e ao outre a partir do cuidado e do afeto. Dessa forma, conhecer e reconhecer o outre é condição criativa de uma formação a favor da humanização. Para Buber (2009), há três maneiras de se perceber o outre: a observação, a contemplação e a tomada de conhecimento íntimo; sendo esta última requerente de uma postura de abertura, recepção e aceitação, vendo o outre como pessoa, e não como objeto.

Buber (1977) desenvolveu em sua filosofia a concepção Eu-Tu e Eu-Isso. Trata-se de uma filosofia do diálogo em que há essas duas possibilidades de dimensões nas relações humanas. Na relação Eu-Tu, não há objetificação ou coisificação de valores na relação; em vez disso, há um encontro genuíno com o outro, um mútuo reconhecimento. Essa relação é marcada pela empatia, pelo respeito e pela abertura para o transcendental, é uma relação de diálogo e conexão profunda. Nos relacionamentos pautados na palavra princípio Eu-Isso, não há um verdadeiro encontro com a singularidade do outro; nela, então, o outro é reduzido a uma função ou categoria, é uma relação utilitária.

Nessa compreensão, Vale (2018), ao se referir à filosofia buberiana em suas possibilidades Eu-Tu e Eu-Isso, argumenta que elas são:

Duas escolhas que permitem encontrar o outro na relação de maneiras diferenciadas e complementares, sendo a primeira permeada pelo respeito à singularidade do outro em sua realidade existencial e realizada no encontro; e a segunda, entendida como uma relação na qual o outro é percebido como um meio para alcançar um objetivo, um fim. A alternância rítmica dessas dimensões compõe a expressão da intersubjetividade, cuja fundamentação é o diálogo (Vale, 2018, p 45).

No diálogo, equilibrar essas duas formas de relação é fundamental para uma vida significativa e ética. Nesse sentido, a palavra oferece ao falante um meio para introduzir-se na existência, ela é revelação. Ouvir e aceitar “o que vem” compõem atitudes de uma relação que engloba o encontro, pois há cuidado, reciprocidade, engajamento e alteridade diante da novidade que o outro pode trazer. Assim, a relação acontece (Buber, 1977).

De maneira ampla, reivindicamos um caminho possível de posicionamento em relação às discussões de gênero e um lugar de acolhimento para as diversidades, uma vez que, em sua premissa holística da experiência humana, a Gestalt-Terapia abrange o reconhecimento e a integração das variadas formas que uma pessoa pode se identificar no mundo em sua autenticidade. Em um sentido social e político, essa visão pode suscitar aberturas de inclusão, respeito e equidade, impactando o público de adolescentes trans que apenas “são” no mundo e que sofrem violências por transgredir o padrão normativo.

Se admitirmos que transgeneridade transcende categorias binárias e normativas, será fatídico afirmar que a pessoa trans representa um corpo político na dialética da resistência a sistemas totalitários que impõem padrões de identidade e comportamento, desafiando estruturas de poder e controle. Como consequência a essa resistência trans de afirmação da diversidade humana, o fundamentalismo hegemônico normativo costuma marginalizar e patologizar os corpos trans, tentando impor a narrativa da identidade e da sexualidade.

Há, por conseguinte, violentas tentativas de subjugar as identidades não normativas. Como, pois, “ser quem se é” e ficar exposto a adversidade ainda em fase de vida tão tenra como na infância e na adolescência? Como oferecer suporte para fomentar a vida de pessoas ainda em situação de hipervulnerabilidade? Qual o papel da psicologia nesse interim? Diante dessas inquietações, nossa partilha, a seguir, propõe reflexões a discussões sobre nossas percepções clínicas no atendimento a adolescentes trans.

Como propomos realizar um compartilhamento de experiências profissionais no atendimento a adolescentes transgênero, dispensa-se a necessidade de submeter esta proposição ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP). Descreveremos parte das vivências de uma das autoras e, ainda que este trabalho seja uma produção em díade, iremos utilizar, no próximo tópico, a primeira pessoa do singular para melhor fluidez do texto.

DESAFIOS NA DESCONSTRUÇÃO DA COMPREENSÃO COLONIAL DE GÊNERO NA PRÁTICA DA GESTALT-TERAPEUTA

A temática trans permeia meu setting terapêutico desde a primeira vez em que me vi no universo clínico. Há cerca de 10 anos, quando em aprimoramento clínico em Gestalt-terapia, na clínica escola, escolhi um caso clínico que pensei ser “fácil” ao ler, na ficha, a descrição de que a queixa era relacionada à “sexualidade”. Eu, uma mulher bissexual, nortista, indígena, pessoa com deficiência e artista, julguei-me isenta de precisar me descontruir de algo sobre questões que considero mais basais quando falamos de diversidade. Logo, achei que seria um tema fluido para mim. Porém, a clínica gestáltica oferece encontros inusitados.

A pessoa a ser atendida era um jovem trans que acabara de completar 18 anos, cuja figura no atendimento permeava seu gênero. Vi-me, pela primeira vez, refletindo de que, em minha caminhada até ali, não tinha previsto essa possibilidade e essa temática. Eu não sabia o que fazer... Como se eu “tivesse que” fazer algo. Inclusive, creio ser esse um primeiro entrave para muitos colegas de profissão. A falta de estar disponível para desmantelar-se da normatividade cultural que rege a compreensão de gênero colonial tende a nos engessar e a tornar surpreendente algo que não deveria ser.

Eu já conhecia barreiras atitudinais pelos marcadores sociais que ocupo, dentre eles, ser uma mulher bissexual. Performo estereotipicamente alguma categoria de sapatão, as pessoas verbalizam saber que eu seria homossexual apenas por me olharem, segundo o que ouço quase diariamente. Assim sendo, conheci algumas violências simplesmente por meu corpo ocupar algum espaço. Com o tempo fui entendendo que, no processo de tornar possível a existência de pessoas como eu, a norma ditou um jeito de ser homossexual e de desvalidar a fluidez na orientação sexual, praticamente uma norma na antinorma. E esse fundamento da binaridade não inseriu a pessoa trans.

Nesses 10 anos de atuação, em meu cenário clínico, percebo crescer a demanda de adolescentes transgênero advindos das mais diferentes faixas sociais, com idades entre 11 e 17 anos. São jovens que verbalizam sofrer sanções em variados ambientes sociais, contudo, o nível de sofrimento tem sido exponencial em seus relatos quando retratam o contexto familiar e escolar.

O manejo com a família e a escola costumeiramente é o que me requer maior engajamento de energia. Acompanhei casos em que os jovens, impedidos de dirigirem-se ao banheiro pela comoção que isso causava na escola no momento do recreio, passaram a evitar frequentá-lo e, por conseguinte, contraíram complicações de saúde no trato urinário. E, sim, falei no plural porque infelizmente é uma situação que não escutei somente de um adolescente. Nesse sentido, além da intervenção e orientação junto a instituições escolares, é importante que estejamos munidos da lei para a reivindicação de direitos, pois, quando requer, devemos acionar órgãos para fazer valer a garantia de vida de nossos clientes.

Por vezes, quando cheguei a orientar sobre possibilidades de ações na escola sobre diversidade, já escutei de instituições o discurso de que “não se quer estimular a transgeneridade”, “não que tenhamos algo contra”. Nesses momentos, trilho pelo viés da psicoeducação, além de elucidá-los sobre questões jurídicas de processos de violência e transfobia.

No referente ao trabalho com a família, constato ser um outro ponto sensível. A depender da dinâmica desta, mais desafiador pode ser o manejo. Acompanhei adolescentes que, ao verbalizarem à família sobre quem eram de fato, houve uma interrupção no processo terapêutico. Ou situações em que, mesmo com a ajuda das terapeutas, a família continua a chamar o jovem pelo “nome morto”. Ao mesmo tempo, já estive com casos em que, no processo de se autoafirmar para a família, houve muito acolhimento e quebra de crenças. Acompanhei um adolescente cuja mãe rompeu com sua igreja em proteção e apoio ao filho.

Pessoalmente, costumo frequentar a intervisão e a supervisão clínica. Percebo que o olhar em rede é muito importante diante de uma situação complexa. E não me refiro que ser trans seja complexo e, sim, que o contexto forma um campo de complexidade para o qual é necessário estar atento. Não há como realizar o manejo de adolescentes trans sem considerar que, em muitos momentos, o “problema” é o meio e não “algo de errado com elus”, como costumam se referir.

Outro desafio que identifico é nas políticas públicas e com a rede disponível de profissionais de outras áreas. Médicos e outros profissionais de saúde, com certa frequência, em minhas experiências clínicas, não estão preparades para atender o público de adolescentes trans. Constantemente, por meio de clientes, me chegam relatos de: “você ainda é novo para saber disso” ou “isso (a transgeneridade) não é o foco aqui, vamos ajustar a sua medicação”. Tem sido uma procura árdua encontrar profissionais e outras redes de apoio.

Mesmo diante dessas dificuldades externas ao setting terapêutico, tenho observado que uma possibilidade de abertura de vida e de espaço de acolhimento é o manejo de grupos terapêuticos. Colecionando anos após meu primeiro caso clínico, venho construindo, com outres profissionais, um espaço chamado “Fábrica das Emoções”, que oferece processos terapêuticos em psicologia, arte e educação para todas as idades, em grupo e individual. Nossa equipe é formada por duas psicólogas, ambas da Gestalt-terapia, e duas pedagogas. Somos, em maioria, artistas com atuação profissional nas áreas do teatro, música e literatura. Os grupos em formato terapêutico têm a atuação das quatro profissionais e os grupos psicoterápicos são manejados pelas duas psicólogas, em que eu sou uma dessas.

Acompanho casos de clientes trans que faziam processos individualmente e que transitaram para nossos grupos. Um dos pontos de suas narrativas era sobre a solidão e o não pertencimento, por exemplo. No grupo, passam a verbalizar que ali tem sido um lugar para que elus possam estabelecer-se e serem aceites do jeito que são. Tenho visto jovens que saem de quadros de ideação suicida para comemorar a vida com os novos amigues de grupo, tamanha a potência de pertencimento e de suporte de resistência que o grupo se torna, frente ao sofrimento na lida.

Em vista de tantos desafios, o manejo em grupo tem sido uma força importante em minha experiência clínica. Primeiro porque conduzo as sessões com outra profissional da Gestalt, compondo um cenário de apoio mútuo, principalmente quando precisamos intervir em contextos familiares e escolares. Segundo, pela atmosfera criada pelo próprio grupo de alteridade e reconhecimento, que não somente advindos de minha condução. O próprio grupo se movimenta no acolhimento dos sofrimentos ali compartilhados.

Em uma ocasião, articulei em encontro entre clientes trans não-binárie e seus familiares com um representante trans também não-binárie do coletivo de “Themônias” de minha cidade. Foi verbalizada a surpresa de ambos os lados por conhecer “alguém como eu em uma idade diferente da minha”, “eu nunca tinha visto um adolescente não-binárie”.

Dessa maneira, tenho feito contatos com organizações trans de minha cidade e os tenho trazido para dentro do consultório, assim como também tenho tentado propiciar o acesso das famílias a esses núcleos, já que acredito que é urgente agir em rede e nos articular em coletivo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O reconhecimento das alteridades que buscam apoio profissional para lidar com os sofrimentos psíquicos oriundos das violações requer suporte em uma psicologia que esteja disposta a deslocar-se para ser terreno/chão/base de travessia para vivências ainda experienciadas em relações que almejam colonizar corpos, sentimentos e modos de subjetivação das pessoas. Em virtude da forte ameaça constante à pessoa trans, precisamos agir juntes. O adolescente não tem o mesmo suporte emocional que uma pessoa adulta para enfrentar as violências impostas ao seu corpo.

Nós, Gestalt-terapeutes, precisamos nos eximir da crença de que não vamos reproduzir padrões hegemônicos. Conduzir esse pensamento ao nível de que somente pessoas ruins e ignorantes sejam veiculadoras de violência de gênero pode nos cristalizar a não revermos nossas condutas. Carecemos nos despir do que achamos que sabemos se queremos defender uma clínica da diversidade e da inclusão.

Observamos que a invisibilização do adolescente trans ainda é uma realidade. Ao mesmo tempo, percebemos que nós, Gestalt-terapeutes, por nossa formação vivencial, teórica e prática, temos ferramentas importantes para fazer uma clínica na ética do cuidado. Acreditamos, ademais, que o a atmosfera de nosso cenário amazônico pode oferecer contribuições pertinentes quando falamos de diversidade, cuidado e inclusão. Embora tenhamos nossos desafios, ousamos dizer que a ancestralidade originária latente em nós é linguagem propícia para a desconstrução colonial convocada quando estamos falando de atendimento ao adolescente trans e qualquer outra temática que fuja à lógica pragmática social estabelecida.

A norma ainda é um impedimento profundo para que, na construção de um processo psicoterapêutico, seja possível construir algo pautado numa relação efetivamente dialógica com a inclusão do outre, que me afeta, me toca e me convoca a sair do lugar da psicólogue “especialista” e/ou “detentore do saber/corpe do outro”. Quanto que nós, Gestalt-terapeutes, estamos dispostes a estar diante do outre sem colonizar? Quanto que dos nossos processos nos reconhecemos como únicos diante do que vivenciamos? Para quais pessoas estamos disponíveis e conseguimos olhar? Tais indagações nos ajudam a refletir e pensar acerca dos padrões normativos que muitas vezes atravessam a práxis psicoterapêutica e biomédica que busca normalizar modos de ser e estar no mundo.

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Endereço para correspondência:

Renata Almeida Figueira

E-mail: natakameckran@gmail.com

Kamilly Souza do Vale

E-mail: kamilly@ufpa.br

Revista IGT na Rede, v. 21, nº 41, 2024. p. 242 – 255. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs

ISSN: 1807-2526