FREIRE, Maria Clara Duarte Mélo. – “O uso da música na clínica gestáltica: dialogando com a musicoterapia na prática.”

ARTIGO

O uso da música na clínica gestáltica: dialogando com a musicoterapia na prática

The use of music in the Gestalt clinic:

dialoguing with music therapy in practice

Maria Clara Duarte Mélo Freire

RESUMO

Este artigo buscou compreender como se dá o uso da música na clínica gestáltica, bem como estabelecer um diálogo entre a Musicoterapia e a Gestalt-terapia. Para tanto, desenvolveu-se uma pesquisa qualitativa, de cunho bibliográfico, que se valeu de artigos, monografias e livros para compreender melhor o tema. Desse modo, percebeu-se a riqueza de se usar a música no contexto terapêutico, o quanto este recurso simples e lúdico contribui para o bem-estar, o partilhar, o olhar para si e para o outro, e o crescer junto, na relação terapêutica. Tudo isso se dá num contexto que busca aliviar as dores e dificuldades dos clientes e trabalhar em cima de seus recursos e possibilidades, sendo algo empreendido tanto por gestalt-terapeutas quanto por musicoterapeutas.

 

Palavras-chave: Música; Clínica; Experimentação; Musicoterapia; Gestalt-terapia.
_________________________________________________________________________________

ABSTRACT

This article sought to understand how music is used in the Gestalt clinic, as well as to establish a dialogue between Music Therapy and Gestalt Therapy. To this end, a qualitative research was carried out, with a bibliographical nature, which used articles, monographs and books to better understand the theme. In this way, the richness of using music in the therapeutic context was perceived, how much this simple and playful resource contributes to well-being, sharing, looking at oneself and the other, and growing together, in the therapeutic relationship. All of this takes place in a context that seeks to alleviate the pain and difficulties of clients and to work on top of their resources and possibilities, being something undertaken by both gestalt therapists and music therapists.

Keywords: Music; Clinic; Experimentation; Music Therapy; Gestalt therapy.

INTRODUÇÃO

A clínica gestáltica é um campo de atuação rico, autêntico e criativo, que dá espaço para diversos modos de atuar e ser terapeuta. Seu foco é ajudar o cliente a olhar mais para si, e se tornar consciente da sua forma de se relacionar consigo, com os outros e com o mundo (Freitas, 2016).

Esse “dar-se conta” de si em contato com o meio, em Gestalt-terapia, é conhecido como awareness, um processo criativo de ampliação da consciência e autodescoberta, que enfoca não só as queixas e problemas do cliente, mas suas potências, suas necessidades e modos de se ajustar naquele meio (Frazão, 2015).

Para facilitar esse processo de autodescoberta do cliente, o terapeuta pode se valer de vários recursos expressivos e artísticos, tais como: o canto, a dança, o desenho, a representação etc. (Figueroa, 2015). Nesse sentido, a música, tema de interesse desta pesquisa, se mostra como mais um recurso criativo a ser usado pelo terapeuta, a favor do processo do seu cliente.

É um recurso simples, rico e artístico, que vem ajudar o cliente a “mergulhar” em si e expressar o que é difícil de verbalizar, aqueles conteúdos muitas vezes dolorosos que ele tende a guardar para si mesmo (Ciornai, 2020). Pode-se ainda considerá-la um recurso não invasivo e indolor, que favorece o bem-estar do cliente, reduz a sensação de desconforto e ansiedade, e possibilita uma maior aderência ao tratamento (Júnior, 2018).

Ademais, é um recurso bastante popular e conhecido, que se faz presente em vários rituais importantes, podendo ser encontrado em casamentos, festas de aniversário, confraternizações, celebrações religiosas etc. (Monteiro & Fermoseli, 2014). Assim, tende a ser algo familiar e atrativo para a maioria dos clientes, facilitando a comunicação e o vínculo com o terapeuta, permitindo que se faça contato e se permita contato, numa relação dialógica, que prima pela autenticidade, cumplicidade e experimentação (Freitas, 2016).

Ainda, é um recurso versátil que pode ser usado por profissionais de diversas áreas, para tratar diferentes públicos, tanto individualmente, quanto em grupo. O fato de se ajustar a qualquer público e lugar, a torna um recurso rico e útil para muitos psicólogos, podendo ser usada no contexto hospitalar, escolar, em centros de referência como o CAPS e em clínicas psicológicas.

Como o tema desta pesquisa é o uso da música na clínica gestáltica, cabe apresentar não só o que se considera música e como esta pode ser um poderoso recurso terapêutico, mas abordar o que é a Gestalt-terapia, qual sua visão de pessoa e mundo, e como esta pode dialogar com outros saberes, a exemplo da Musicoterapia, que também será trazida para a discussão.

Nesse sentido, pode-se dizer que Gestalt-terapia é uma abordagem teórico-prática bastante autêntica e rica, que surge no período pós-guerra, sendo influenciada por diversas linhas teóricas e filosóficas, tendo como seus principais idealizadores Fritz Perls e Laura Perls (Ribeiro, 2011).  

Essa abordagem “bebe” da fonte de vários saberes, entre eles a Fenomenologia, o Humanismo e o Existencialismo, a Teoria Holística, a Teoria de Campo, a Psicologia da Gestalt etc. (Almeida, 2010; Júnior, 2010). Ela tem como visão de pessoa a de um ser vivo, criativo e livre, que está em constante relação com o mundo e com o outro, se ajustando e atualizando na tentativa de satisfazer suas necessidades (Ribeiro, 2011). Este ser é uma gestalt, ou seja, um todo com forma e organização própria, que se autorregula de modo espontâneo e não pode ser pensado como um ser isolado, separado do mundo (Júnior, 2010).

Na clínica gestáltica, cada cliente é um “todo” que tende a se manifestar por meio de suas “partes”: queixas, sintomas, emoções, vivências difíceis, e cabe ao psicoterapeuta acolher suas “manifestações”, numa postura dialógica e respeitosa, livre de julgamentos (Almeida, 2010).  

Essa postura dialógica demanda algumas habilidades do terapeuta, tais como: empatia, autenticidade, paciência e disponibilidade para “caminhar junto” do cliente, de modo interessado e curioso, estando pronto para o inesperado, ou seja, para seja lá o que for que o cliente queira trazer como “figura” no setting terapêutico (Freitas, 2016).

Essa “figura” é aquilo que se destaca, que o cliente traz como emergente e pede para ser explorado na sessão, geralmente é um sintoma, aquilo que gera dor e incômodo (Aguiar, 2014). No entanto, essa “figura” só ganha sentido, no setting terapêutico, graças ao “fundo”, àquilo que lhe contextualiza e lhe dá contorno: a história de vida do cliente, suas relações, experiências, limites e potências, tudo aquilo que explica sua forma atual de ser e estar no mundo (Frazão, 2015).

Essa forma de ser e estar no mundo pode se manifestar de modo mais ou menos saudável, sendo chamada de ajustamento criativo. Em muitos casos, ela pode se tornar repetitiva, enrijecida e cristalizada, se apresentando por meio do sintoma do cliente (Aguiar, 2014). É por isso que a maioria das pessoas busca psicoterapia, para encontrar modos mais criativos e fluidos de se relacionar com o mundo, sem ter que ficar presa ao mesmo tipo de “ajustamento”.

Sendo assim, todo o trabalho do psicoterapeuta se dá enfocando não só os sintomas, mas as possibilidades de ajustamento de seu cliente, entendendo que este faz o possível para se autorregular e sobreviver (Frazão, 2015). E na relação terapêutica, o próprio terapeuta se ajusta criativamente, reagindo de modo autêntico aos conteúdos que o cliente traz para a sessão, podendo se valer de diversos recursos e experimentos para facilitar seu processo de autodescoberta.

Nesse sentido, a música tem se tornado um recurso bastante querido e usado por gestalt-terapeutas, lhes estimulando a ampliar seu modo de ser e experimentar na clínica gestáltica. Muitos gestalt-terapeutas têm, inclusive, demonstrado interesse em dialogar com outra área de saber, bastante rica e criativa, a Musicoterapia. Tal diálogo se torna compreensível e até necessário quando se pensa nos diversos modos de atuar e trabalhar com a música e no potencial terapêutico que esta tem sob tantos pacientes.    

A própria Musicoterapia nasce sob a influência de diversos saberes, como a Medicina, a Música, a Enfermagem, a Psicologia etc. Surge quase na mesma época que a Gestalt-terapia, durante a Segunda Guerra Mundial, interessada em usar a música para tratar soldados hospitalizados e traumatizados, e aliviar suas dores (Nascimento, 2020).

A partir da década de 1940, ela passa a ser reconhecida como profissão e a ser ensinada em cursos de formação, nos EUA, sendo trazida para o Brasil a partir da década de 1970, época em que são fundadas as primeiras associações de musicoterapia em território nacional, e são ofertados os primeiros cursos de formação no país (Monteiro & Fermoseli, 2014).

Caracteriza-se como um campo do saber e um modo específico de intervenção, que estuda os efeitos da música e se vale de experimentos musicais para expandir as possibilidades de existir e agir das pessoas, atuando na promoção da saúde, da aprendizagem, da reabilitação, promovendo mudança e qualidade de vida, tanto em trabalhos individuais, quanto de grupos (Cunha & Beggiato, 2018).

Sendo assim, pode-se considerar que ela tem origens e objetivos parecidos com os da Gestalt-terapia, sendo aplicada nas mais variadas áreas, desde a escolar e hospitalar à clínica, e trabalhando com diversos públicos: grupos, comunidades, estudantes, pacientes hospitalizados, usuários do CAPS, pessoas em psicoterapia, entre outros. Também tem como objetivo ampliar o modo de atuar, de ser e estar no mundo, dos pacientes, promovendo cuidado, autonomia e qualidade de vida, contribuindo para a sua sociabilidade, bem-estar e desenvolvimento.  

Mesmo com tantas similaridades, há poucas pesquisas que investiguem o potencial terapêutico da música na clínica psicológica, especialmente à luz da Gestalt-terapia, e em diálogo com a Musicoterapia, o que é lamentável, considerando a riqueza de tal recurso e da união entre essas áreas de conhecimento e atuação.

O interesse por empreender uma pesquisa que investigue isso, surgiu da prática da autora como psicoterapeuta, por usar com frequência a música na clínica e perceber o seu efeito terapêutico, bem como contribuía para o relaxamento, expressão, e vinculação com o cliente, possibilitando um olhar mais ampliado para o mesmo, que considerasse suas dores, queixas, sonhos, potências e ajustamentos. A música também dava “fundo”, contextualizava a queixa, permitindo uma aproximação com seu campo de relações e experiências.  

Diante da riqueza percebida a partir deste modo de atuação e experimentação, esta pesquisa surge na tentativa de compreender como pode se dar o uso da música na clínica gestáltica, bem como estabelecer um diálogo entre Musicoterapia e Gestalt-terapia. Espera-se com tal estudo contribuir para a formação de outros profissionais interessados na temática, e estimular a produção de mais pesquisas sobre o assunto.  

METODOLOGIA

A pesquisa bibliográfica é um apanhado geral dos principais trabalhos realizados sobre determinada temática, sendo capaz de fornecer dados atuais e relevantes relacionados a mesma (Lakatos & Marconi, 2003). Assim, realizou-se uma pesquisa qualitativa, de cunho bibliográfico, que empreendeu uma revisão de materiais que abordassem a Musicoterapia, bem como o uso da música na prática psicoterápica, articulando tais temáticas à Gestalt-terapia.

Para isso, este artigo se amparou em monografias e livros de psicologia e de base gestáltica, e em artigos achados na base de dados Scielo, Pepsic e Google Acadêmico e em revistas virtuais de Gestalt-terapia, como a revista IGT na Rede.  

Na busca por publicações, considerou-se como critérios de inclusão: artigos e materiais em português, que abordassem pelo menos dois dos quatro termos escolhidos: “música”, “terapêutica”, “psicologia”, “musicoterapia”, “Gestalt-terapia”. As produções que não atenderam a estes critérios foram excluídas.  

Sendo assim, selecionaram-se alguns artigos acadêmicos que versavam sobre o uso da música em diálogo com a Psicologia, a Gestalt-terapia e/ou Musicoterapia, uma monografia e capítulos de livros fundamentados na Gestalt-terapia. Também foram feitas algumas pontuações e reflexões da própria autora, a partir da sua experiência como psicoterapeuta que se vale de experimentos musicais com seus clientes.  

Por fim, para análise dos dados utilizou-se a análise de conteúdo de Bardin, por meio da qual chegou-se às seguintes categorias, que serão exploradas no tópico seguinte: Dialogando com a musicoterapia na prática; O uso da música na clínica gestáltica.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Dialogando com a musicoterapia na prática

Por ser um campo de atuação rico que dialoga com vários saberes e se faz presente em vários ambientes, a Musicoterapia também se dá no contexto clínico, ajudando a promover saúde e cuidado por meio de experimentos musicais e da relação terapêutica (Júnior, 2018).

Tanto em Gestalt-terapia quanto na Musicoterapia, se entende que esta relação precisa ser pautada no diálogo, na empatia, na criatividade, na disponibilidade para ouvir e estar junto com o outro, e no respeito àquilo que o cliente manifesta: às falas, sons e gestos que este produz na sessão com o seu terapeuta (Freitas, 2016).    

Tal trabalho que busca ofertar diferentes modos do cliente se expressar, trabalhando em cima do que é possível e mais atrativo para ele, considerando seus recursos e interesses e lhe auxiliando a criar, ressignificar e vislumbrar outros modos de ser e estar e se relacionar consigo, com o meio e com a vida (Ciornai, 2020).

Desde suas origens, tanto a Gestalt-terapia quanto a Musicoterapia tentam oferecer cuidado, alívio, bem-estar, autonomia, e sociabilidade, trabalhando com improvisação, recriação, composição e audição, buscando auxiliar o cliente a entrar em contato consigo e com o meio e estabelecer relações e ajustamentos mais criativos e saudáveis (nascimento, 2020). Ambas trazem em sua visão de pessoa a de um ser criativo e expressivo, cheio de possibilidades, com potencial para crescer, criar, se comunicar e dar sentido às suas próprias criações e manifestações.

Nessa perspectiva, cabe ao terapeuta olhar para esse cliente de modo integral, possibilitando um “encontro consigo mesmo” no setting terapêutico, um olhar para o que dói e tem incomodado, mas também resgatando sua parte saudável, criativa e autêntica, numa postura que considere suas habilidades e potências (Júnior, 2018). Esta postura e modo de atuar se faz presente tanto na Musicoterapia quanto na Gestalt-terapia, podendo ser aplicada a diversos públicos: crianças, adolescentes, adultos, idosos, pacientes de clínicas psicológicas, CAPS, grupos terapêuticos, jovens escolares, não se limitando a um único âmbito de atuação e experimentação.

As sessões podem se valer de canções, composições, e fenômenos acústicos diversos vivenciados na relação terapêutica, e é a partir desses conteúdos que o terapeuta vai traçando suas intervenções, podendo enfocar a reabilitação física, a expressão e comunicação, e qualquer coisa que seja demandada pelo cliente, no seu campo de atuação (Nascimento, 2020).

Vale pontuar que isso exige uma postura ética e responsável do terapeuta, de atuar com empatia, respeito pela vontade e dignidade do cliente, de modo não invasivo e nem diretivo, permitindo que este decida por onde quer ir, e que tipos de experiências musicais quer vivenciar ou produzir (Júnior, 2018). Desse modo, não cabe ao terapeuta impor o experimento musical, e sim oferecê-lo, como um convite, ao cliente, para que este decida se quer se valer deste recurso ou não, e de que modo eles o utilizarão, cabendo ao terapeuta respeitar seu gosto e sua decisão.

No setting musicoterapêutico, por exemplo, o cliente pode ter sob sua disposição vários instrumentos e recursos musicais, desde sua voz, a uma caixinha de música, ou um violão, e lhe é dada liberdade para escolher qual recurso vai usar, podendo ouvir uma música com seu terapeuta, ou improvisar e cocriar sons, movimentos, danças, canções (Santos, 2012).

Quando se trata de terapia em grupo, os integrantes podem se alternar no uso dos instrumentos, tocando, batendo palma, cantando e dançando ao som de músicas escolhidas por estes. E, claro, o terapeuta não fica de fora, este participa também, dançando, cantando, e instigando o grupo a vivenciar de modo mais autêntico e lúdico possível esta experiência (Baptista, 2019).  

Nesse sentido, o terapeuta deve ser criativo e não ter medo de experimentar, ajudando o cliente a expressar o que sente, e a explorar e elaborar não só suas dores, mas suas potências, descobrindo e experimentando novas sonoridades, outros modos de ser e se expressar (Santos, 2012; Baptista, 2019; Ciornai, 2020).

Para isso, o terapeuta precisa ter uma postura de disponibilidade, interesse, “ignorância” e curiosidade em relação ao outro, entendendo que pouco sabe ou nada sabe a respeito de seu cliente, e que este é seu melhor conhecedor, sendo capaz de dar sentido a suas próprias vivências corporais, sonoras e verbais, expressas no setting terapêutico (Freitas, 2016).

Deste modo, o terapeuta tem que se valer do método fenomenológico, um método investigativo e descritivo, e evitar teorizar e interpretar as manifestações do cliente, pondo sua sabedoria de lado, para priorizar o olhar, a vivência e o saber do cliente, para que este dê sentido ao que percebe e sente (Ribeiro, 2011; Nascimento, 2020).  

Nesse sentido, é possível perceber o quanto há similaridades entre a Musicoterapia e a Gestalt-terapia, sendo campos de atuação afins, com um grande potencial terapêutico, estando disponível e a serviço do cliente, para que este possa revelar, cocriar e ressignificar quem é, como é, com quem sons e gestos é, e como se sente.

Quando o terapeuta estabelece, em sua prática clínica, um diálogo entre ambas, ele favorece a ampliação da awareness do cliente, fortalece o vínculo terapêutico, desenvolve autonomia, expressividade, sociabilidade, resgata a sua capacidade criativa, atuando em cima das suas potências e não só de suas dores e problemas (Baptista, 2019; Nascimento, 2020).  

Desse modo, é um diálogo válido e mais do que necessário, que produz bem-estar e qualidade de vida na vida de muitos clientes, e se faz cada vez mais presente na clínica gestáltica, podendo se dar por meio de vários experimentos musicais, como será visto no tópico a seguir.

O uso da música na clínica gestáltica

Na clínica gestáltica, recursos expressivos e artísticos tendem a ser os “queridinhos” de muitos terapeutas e clientes, podendo a relação terapêutica se valer de desenhos, pinturas, representações, escrita criativa, músicas, poesias, práticas corporais e qualquer outro recurso que chame a atenção e esteja a serviço do processo do cliente (Ciornai, 2020). A música, por sua vez, é um dos recursos mais usados, se mostrando como um experimento rico, criativo, e indolor, que é proposto ao cliente e que muitas vezes ele próprio pede para usar com o terapeuta.

Pode-se considerá-la uma manifestação artística e expressiva, capaz de revelar o “mundo interior”, subjetivo, tanto de quem a cria, quanto de quem lhe ouve e reproduz do seu próprio jeito, sendo por isso, usada como instrumento terapêutico (Nagaishi & Cipullo, 2017).

Tal recurso pode ter efeito calmante ou estimulante, a depender do contexto da pessoa, dos seus gostos, das emoções e memórias acionadas naquele momento, afetando sua respiração, frequência cardíaca, pressão arterial e estado de ânimo (Araújo, 2021). Por se fazer presente em vários momentos da vida da pessoa, a exemplo de casamentos, aniversários e confraternizações, é um recurso que tende a ser bastante familiar e atrativo para muitos clientes, contribuindo para seu relaxamento e aderência ao tratamento (Monteiro & Fermoseli, 2014).

Na clínica gestáltica, o terapeuta deve atuar entendendo como e para que usará este recurso com seu cliente, não lhe cabendo usar a música só por usar, mas sempre se atentando a como esta irá beneficiar seu cliente, que tipo de efeito produzirá neste.

Em Gestalt-terapia se trabalha com o que é possível, com o que o cliente tem condições de suportar e fazer, sendo recomendável propor o experimento e checar com o cliente se ele quer iniciar ou não, e ao aplicá-lo, se deseja continuar ou não, ou seja, sempre se considera sua vontade e disponibilidade no momento (Figueroa, 2015).

Ademais, ao atuar, o terapeuta deve considerar que a música afeta cada ouvinte de modo singular, despertando no cliente sentimentos, sensações e experiências diferentes: alegria, tristeza, saudade, sonhos e memórias que se “atualizam” no aqui e agora do setting terapêutico (Monteiro & Fermoseli, 2014; Araújo, 2021).

Em terapia, o cliente pode cantar, assoviar, pôr suas músicas favoritas para tocar, mostrar a letra da música traduzida ao terapeuta, dançar e se balançar para lá e para cá e se o ambiente dispor de instrumentos musicais ou este trouxer de casa algum que saiba tocar, usá-los do jeito que lhe “der na telha” para se expressar e comunicar.

A própria escolha da música e uso dos recursos e instrumentos musicais revela muito sobre o funcionamento do cliente: seus sons, gestos, preferências musicais, podem evidenciar ataques, defesas, expectativas, queixas, conteúdos que precisam ser “lidos” e acolhidos pelo terapeuta, num contexto livre de julgamentos (Santos, 2012).

Por ser um recurso lúdico e expressivo, a música pode ser trabalhada com as mais variadas faixas etárias: crianças, adolescentes, idosos, sendo aplicada tanto na psicoterapia individual quanto na de grupo. Um público que adora fazer uso deste recurso no contexto clínico são os adolescentes. Eles tendem a usá-lo com frequência para se expressar e comunicar com o terapeuta, revelando, por meio das músicas, coisas que tem dificuldade de dizer, como, por exemplo, “me sinto triste e sozinho”, “tô irritado e ninguém parece me entender”, “tô namorando, mas ninguém pode saber”, “minha orientação sexual não é a que minha família espera e não sei o que fazer”, “comecei a pensar em morrer”.

E cada uma dessas expressões, musicais e corporais, carregam uma mensagem, sinalizam um pedido para que alguém lhes olhe, lhes escute e lhes ofereça ajuda e alívio para o seu sofrimento, numa postura respeitosa e cuidadosa, livre de julgamento.

Um dos principais objetivos da relação terapêutica é justamente esse: promover cuidado, dar colo, possibilitar o falar sobre o olhar para si, e o vislumbre de novos caminhos, outras saídas, outros modos de lidar, que o ajudem a se manter e lidar melhor com aquilo que costuma doer (Ciornai, 2020). No entanto, tal processo não é fácil, leva tempo, e demanda abertura tanto do terapeuta quanto do próprio cliente, para estar junto, explorando suas dores e dificuldades e ampliando suas possibilidades de existir, se autorregular e resistir (Freitas, 2016).  

E quando se trata de música, cada cliente traz gostos e preferências musicais diferentes, alguns gostam de pop, rock, reggaeton, sertanejo, mpb, há o cliente que é fã de Luan Santana, a que prefere Harry Styles, o que toca violão, e o que cria playlists e as compartilha com seu terapeuta, para que este compreenda melhor quem ele é, como se relaciona e como se sente.

Pode-se até dizer que a queixa surge como “figura”, tema emergente, e a música atua como um “fundo”, lhe contextualizando, mostrando quem o cliente é, do que gosta e não gosta, de onde vem, qual sua história, como se comunica e lida com as questões do dia a dia, quem faz parte do seu campo de relações e quais recursos ele acha que tem.

E cabe ao terapeuta explorar isso com o cliente, para que este se torne cada vez mais consciente de si mesmo, de seus ajustamentos e se abra para a possibilidade de mudar, de resgatar recursos de enfrentamento e cuidar melhor de si, agindo de modo criativo, flexível e resiliente (Ciornai, 2020).

Nesse sentido, a postura do terapeuta não é a de fazer por resolver pelo cliente, mas estar junto no processo, experimentando e caminhando no ritmo dele, facilitando o contato consigo e com os outros, de modo que este se sinta ativo e capaz de muito mais do que acha que pode, podendo cocriar outras maneiras de se expressar e ajustar ao seu ambiente (Araújo, 2021). Esta postura facilita e fortalece o vínculo terapêutico e, com o auxílio da música, é capaz de reduzir resistências, facilitar a comunicação e a partilha de histórias e experiências de vida no setting terapêutico (Nagaishi & Cipullo, 2017).

Sendo assim, a música favorece o contato com o mundo e com o outro, especialmente quando as tentativas de contato anteriores resultaram em medo, retraimento e dor. Ela permite uma abertura para a troca, para o estar junto, com um outro que é diferente, é estranho, mas já não parece mais tão assustador quanto antes (Baptista, 2019).

Por saber disso, é interessante que logo no início do processo terapêutico, nas primeiras sessões, o terapeuta investigue não só as queixas e dores do cliente, mas seus interesses e sonhos, de que coisas gosta, e não gosta, se gosta de ler, desenhar, ou ouvir música, quais suas bandas favoritas, o que escuta quando está triste ou deseja se sentir melhor, entre outros. Assim, as suas preferências musicais podem estar inseridas na anamnese, pontuando se este gosta de cantar, compor ou tocar (Nascimento, 2020).

Muitos clientes têm uma predileção por recursos artísticos, alguns se interessam mais por teatro, outros por filmes e livros, alguns amam desenhar, outros preferem se expressar pela música ou por poesias. E o trabalho do terapeuta também se dá em cima disso, daquilo que lhe traz alívio, conforto e prazer.

Em gestalt-terapia se entende que cada pessoa se expressa por meio de sua singularidade, de seus sentidos e subjetividade, estando no mundo de um jeito criativo e único. Por existir de modo singular, somente a pessoa é capaz de se explicar, de se traduzir em palavras, ou em gestos, movimentos, músicas e sons (Ribeiro, 2011).  

Sendo assim, em vez do terapeuta focar em teorizar, analisar ou interpretar as manifestações do cliente, este pede para que ele mesmo se descreva. E quando se vale do uso de músicas, ele pode perguntar o que levou o cliente a ouvi-las e trazê-las pra sessão, com quais trechos se identifica mais, como se sente quando as ouve, que sensações e lembranças elas evocam, e como é para ele partilhar um pouco dos seus gostos e experiências com o terapeuta.

Às vezes não é preciso o terapeuta perguntar nada. O cliente está tão relaxado e conectado à música, que de modo espontâneo, começa a falar sobre si. E às vezes essa fala é verbal, e às vezes, é corporal, são gestos, sorrisos, palmas, entre outros. Trabalhar num setting musicoterapêutico é isso: lidar não só com música e som, mas silêncio, um silêncio que pode refletir tristeza, alegria, e, o que é muito comum na clínica gestáltica, um contato mais aprofundado consigo mesmo (Santos, 2012).

E ao terapeuta cabe respeitar esses momentos de introspecção e silêncio do cliente, entendendo que o setting terapêutico não precisa ser sempre preenchido por falas e sons, que há espaço para o conversar, o escutar e o silenciar. Nesse sentido, pode-se pensar na música como um recurso que leva à reflexão, ao dar-se conta de si, num ritmo que pode ser mais tranquilo, mais pausado, e que leva ao crescimento e ao autocuidado.

E por ser um recurso envolvente e democrático, ela possibilita bem-estar e qualidade de vida tanto ao cliente quanto ao profissional de saúde que o acompanha (Júnior, 2018). Sendo assim, o terapeuta pode se valer desse recurso tanto no trabalho quanto nos momentos de lazer e descanso, podendo criar uma playlist particular para ouvir antes e depois das sessões, para chegar mais calmo e preparado e encerrar o dia com menos “peso” e cansaço, deixando o “trabalho” para outro dia, uma vez que ele não precisa estar disponível para os outros 24 horas por dia.

Sendo assim, fica claro o quanto a música se manifesta como um recurso rico, criativo e válido, que vem oferecer bem-estar, alívio e cuidado, não só para o cliente, mas para todos que se veem envolvidos na relação terapêutica, até o próprio terapeuta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa trouxe dados e reflexões relevantes acerca do uso da música na clínica gestáltica, apresentando-a como um recurso criativo, dinâmico e rico, capaz de ser usado de diversos modos nos mais variados contextos, especialmente na clínica.

Percebeu-se a riqueza de tal recurso, seu potencial terapêutico, capaz de promover bem-estar e qualidade de vida tanto ao cliente quanto ao próprio terapeuta, facilitando inclusive o vínculo e a comunicação entre ambos, no setting terapêutico.

Ademais, percebeu-se similaridades entre a Gestalt-terapia e a Musicoterapia, e a contribuição incrível que ambas têm a dar quando decidem dialogar dentro e fora do contexto terapêutico. As duas surgem a partir dos danos gerados pela guerra, buscando aliviar as dores e dificuldades dos sobreviventes e trabalhar em cima de seus recursos e possibilidades, estimulando a capacidade criativa de todos os envolvidos no processo.

Ficou claro que não existe modo único de atuar e ser terapeuta, que há vários campos de atuação e públicos demandando atenção e que a música se mostra querida e conhecida em vários contextos terapêuticos, possibilitando o olhar para si, se expressar, partilhar, cocriar e ir em buscar de outras saídas, outros modos de ser e estar no mundo.

Sendo assim, a música se manifesta como um recurso versátil, inclusivo e potente, capaz de oferecer cuidado a todos, inclusive a figura do próprio terapeuta. Com essa pesquisa, possibilitou-se um olhar mais próximo, curioso e interessado para este recurso terapêutico. Espera-se que este artigo contribua para a formação de outros profissionais e instigue a produção de mais trabalhos acadêmicos a respeito do tema.  

REFERÊNCIAS

Aguiar, L. (2014). Gestalt-terapia com crianças: teoria e prática. 2 ed. São Paulo: Summus.

Almeida, J. M. T. de. (2010). Reflexões Sobre a prática clínica em Gestalt-terapia: possibilidades de acesso à experiência do cliente. Revista da Abordagem Gestáltica, 16(2), 217-221. Recuperado de: https://www.redalyc.org/pdf/3577/357735614012.pdf 

Araújo, S. C. S. (2021). A música como recurso psicoterapêutico na clínica gestáltica. [Trabalho de Conclusão de Curso, 37 f. Faculdade de Educação e Meio Ambiente, Ariquemes, Rondônia]. Repositório Unifaema. https://repositorio.unifaema.edu.br/handle/123456789/3021 

Baptista, M. C. (2019). A música como facilitadora do processo grupal. Revista IGT na Rede,16(30), 111-134. Recuperado de: http://igt.psc.br/ojs3/index.php/IGTnaRede/article/view/588/760

Ciornai, S. (2020). Experiências psicológicas, psicoterapia e arteterapia em tempos de pandemia. In: ABG – Associação Brasileira de Gestalt-terapia e Abordagem Gestáltica (Org.). Vozes em Letras: olhares da Gestalt-terapia para a situação da pandemia. pp. 55-64. Curitiba: CRV.

Cunha, R. R. S. dos., & Beggiato, S. M. O. (2018). Musicoterapia – definição. UBAM União Brasileira Das Associações de Musicoterapia. Recuperado de: https://ubammusicoterapia.com.br/institucional/musicoterapia/definicao/

Figueroa, M. (2015). As técnicas em Gestalt-terapia. In: Frazão, L. M., & Fukumitsu, K. O. (Org.). A clínica, a relação psicoterapêutica e o manejo em Gestalt-terapia. pp. 103-128. São Paulo: Summus Editorial.

Frazão; L. M. (2015). Compreensão clínica em Gestalt-terapia: pensamento diagnóstico processual e ajustamentos criativos funcionais e disfuncionais. In: Frazão, L. M., & Fukumitsu, K. O. (Org.). A clínica, a relação psicoterapêutica e o manejo em Gestalt-terapia. pp. 65-80. São Paulo: Summus Editorial.  

Freitas, J. R. C. B. de. (2016). A relação terapeuta-cliente na abordagem gestáltica. Revista IGT na Rede, 13(24), 85-104. Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/igt/v13n24/v13n24a06.pdf 

Júnior, F. A. de. B. M. (2010). Da teoria à terapia: o jeito de ser da gestalt. Revista Interdisciplinar NOVAFAPI, 3(1), 49-53. Recuperado de: https://www.yumpu.com/pt/document/view/15887033/da-teoria-a-terapia-o-jeito-de-ser-da-gestalt-novafapi

Júnior, H. de. A. (2018). Eficácia terapêutica da música: um olhar transdisciplinar de saúde para equipes, pacientes e acompanhantes. Revista de enfermagem UERJ, 26(1), 1-7. Recuperado de: http://www.revenf.bvs.br/pdf/reuerj/v26/0104-3552-reuerj-26-e29155.pdf

Lakatos, E. M., & Marconi, M. de. A. (2003). Fundamentos de Metodologia Científica. 5. ed. São Paulo: Atlas.  

Monteiro, D. H. M., & Fermoseli, A. F. de. O. (2014). Musicoterapia: contribuição como ferramenta terapêutica no auxílio a tratamentos de patologias adversas inseridas no âmbito da saúde. Ciências Biológicas e da Saúde, 2(2), 91-110. Recuperado de: https://periodicos.set.edu.br/fitsbiosaude/article/view/1547/1046 

Nagaishi, K. Y., & Cipullo, M. A. T. (2017). Canção como recurso de trabalho para psicólogos: um levantamento de artigos publicados. Boletim de Psicologia, 67(146), 67-82. Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/bolpsi/v67n146/v67n146a07.pdf

Nascimento, L. C. S. (2020). Gestalt-Musicoterapia no Brasil: explorando o campo. Revista da Abordagem Gestáltica, 26(1). Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rag/v26n1/v26n1a06.pdf

Ribeiro, J. P. (2011). Conceito de Mundo e de Pessoa em Gestalt-terapia: revisitando o caminho. São Paulo: Summus.

Santos, C. F. (2012). Setting musicoterapêutico: encontros visuais e sonoros. Revista Brasileira de Musicoterapia, 24(13), 15-26. Recuperado de: https://musicoterapia.revistademusicoterapia.mus.br/index.php/rbmt/article/view/258/239

Endereço Eletrônico:

Maria Clara Duarte Mélo Freire

Email: annnacarolll@hotmail.com

Revista IGT na Rede, v. 21 n. 42, 2025, p. 1-22. DOI 10.5281/zenodo.15425891

Disponível em http://www.igt.psc.br ISSN 1807-2526