FILHO, Dácio Pinheiro Carvalho; BORIS, Georges Daniel Janja Bloc. – “Possibilidades da arte na Gestalt-terapia: A interface entre campos.”

ARTIGO

Possibilidades da arte na Gestalt-terapia: A interface entre campos.

Possibilities of art in Gestalt-therapy: The interface between Fields.

Dácio Pinheiro Carvalho Filho        

Georges Daniel Janja Bloc Boris

RESUMO

O artigo se propõe a explorar as possibilidades da a relação entre a arte e a Gestalt-terapia. Sob esta ótica, disserta sobre aspectos históricos sobre a relação que a Gestalt-terapia estabeleceu com manifestações artístico-culturais, sobre a arte enquanto base para a proposição de experimentos em Gestalt-terapia como também a inspiração artística em uma psicoterapia eminentemente estética. Por fim, com base nestes diferentes pontos de vista sobre a relação da arte com a Gestalt-terapia o artigo reflete sua potencialidade no processo de desenvolvimento de psicoterapeutas.

Palavras-chave: Arte, Psicoterapia, Gestalt-terapia.

ABSTRACT

The article proposes to explore the possibilities of the relationship between art and Gestalt-therapy. From this point of view, it talks about historical aspects about the relationship that Gestalt-therapy established with artistic-cultural manifestations, about art as a basis for the proposition of experiments in Gestalt-therapy as well as the artistic inspiration in an eminently aesthetic psychotherapy. Finally, based on these different points of view on the relationship between art and Gestalt-therapy, the article reflects its potential of  psychotherapist's development.

Key words: Art, Psychotherapy, Gestalt-therapy.

INTRODUÇÃO

Ao abordamos a interface entre a arte e a Gestalt-terapia estamos encarando as possibilidades que o intercâmbio entre dois campos autônomos estabeleceu e que potencialmente podem estabelecer. Deste modo, ao examinarmos esta relação estamos contemplando que influências a arte teve na história da Gestalt-terapia, quais as possibilidades desta relação e quais os seus desdobramentos possíveis.

Ao observar a interface entre a arte e a Gestalt-terapia encontramos desde aspectos históricos como manifestações artístico-culturais importantes para a abordagem como também diferentes conotações que à arte dentro da abordagem. Alvim (2007), por exemplo, nos chama atenção para olharmos além das correntes teóricas reconhecidas como bases da Gestalt-terapia para considerarmos também que as experiências artísticas de seus fundadores constituíram um fundo estético que os fizeram repensar a atuação na psicoterapia. Deste modo, além de pensar possibilidades de articulação também estamos evidenciando elementos artísticos já presentes no desenvolvimento da Gestalt-terapia.

Deste ponto de vista, considerar a proximidade da arte com a Gestalt-terapia não se resume a comparações ou analogias entre campos distintos, mas uma atenção à maneira como algumas manifestações artísticas deixaram marcas na abordagem. Como exemplo, o teatro expressionista que influenciou o estilo teatral de Fritz Perls como e à Jacob Moreno, fundador do psicodrama (OLIVEIRA; VIEIRA, 2015). Outro exemplo, a atenção que Laura Perls passou a ter sobre expressividade do corpo na década de 1930, época em que ainda se denominava como psicanalista e anterior ao surgimento da bioenergética e outras psicoterapias têm influência de suas experiências na música e na dança moderna. (PERLS, 1992/2012).

Deste modo, analisar a interface entre a Gestalt-terapia e a arte é um exercício que nos leva a repensar a história da abordagem ao considerar as manifestações artísticas e culturais que a atravessaram bem como aprimorar a compreensão da dinâmica da própria abordagem já que frequentemente a Gestalt-terapia é subestimada sendo reduzida a um conjunto de técnicas erroneamente encaradas como o cerne da Gestalt-terapia.

A história da Gestalt-terapia em interface com a arte

Para compreendermos a relação entre a arte e a Gestalt-terapia é necessário contextualizarmos o Zeitgueist, o espírito do tempo, da primeira metade do século XX. Ao mesmo tempo que Fritz e Laura Perls presenciaram grandes avanços científicos como a física nuclear, a era da automação e avanços na medicina também testemunharam um cenário de devastação em decorrência da primeira Guerra mundial. Neste clima efervescente, ao passo que ideologias políticas como o socialismo e o anarquismo reclamavam por um novo modelo de sociedade a arte expressionista também se engajava politicamente por um novo modelo de homem pautado na sensibilidade, sentimento comunitário e na responsabilidade social (WULF, 1997).

Sob esta ótica, é válido contextualizar que Fritz Perls nasceu no ano de 1893 fazendo parte da “Geração do fronte”, os nascidos no final do século XIX que passaram por um momento de instabilidade política acompanhada da sensação de incerteza frente aos anos que antecederam a primeira guerra mundial tendo seus projetos de vida atrapalhados pelo grande conflito. Como efeito, a frustação com a derrota alemã fez boa parte desses jovens se voltassem a um populismo de direita e conservador (o movimento Völkisch). Todavia, o Fritz Perls segue por outros caminhos sob influência do meio boêmio de Berlim que o aproximou do movimento expressionista (BOCIAN, 2015).

Deste modo, se por um lado a maioria dos jovens pertencentes à “Geração do fronte” simpatizaram com uma postura conservadora, populista e nacionalista que precedeu ao nazismo, por outro o movimento expressionista possuía tendências disruptivas em um momento histórico de rupturas como a revolução russa de 1917, a primeira guerra mundial, desagregação do império austro-húngaro e a transformação da paisagem de um país agrícola em um processo de explosão urbana em um estado capitalista que trouxe consigo desigualdade social e miséria. Desse modo, as produções teatrais faziam jus a um povo com suas identidades fragilizadas e enfatizaram a experiência subjetiva privilegiando a desproporção na caracterização dos personagens e montagem de palco e a interação público-plateia em detrimento de uma representação fidedigna da realidade (VÁSQUES, 2007). Deste modo, nas raízes culturais de Fritz Perls encontramos manifestações artístico culturais que refletiam o caos político e cultural da Europa, como efeito, entra em contato com escritores artistas e filósofos que se posicionavam contra a primeira guerra mundial, lutavam por reformas sociais e que foram influentes na construção da Gestalt-terapia como Salomo Friedlander, Max Reinhardt e Martin Buber (SÁ, 2009).

Deste modo, chamamos atenção para o contexto artístico, político e cultural de Berlim na primeira metade do século XX para compreendermos os seus desdobramentos na construção da Gestalt-terapia. Na perspectiva de Bocian (2015) o surgimento da gestalt-terapia é, em certa medida, parte do prolongamento dos esforços empreendidos por Fritz Perls influenciado pela arte expressionista junto à grupos de psicanalistas com uma orientação política à esquerda que buscavam integrar psicanálise com a sociologia e integrar a corporeidade com o intuito de reformular a dinâmica da análise.

Na minha opinião, o modelo de Gestalt-terapia que foi desenvolvido em conjunto com o autor anarquista Paul Goodman no final da década de 1940 foi, de certa forma, uma extensão dos esforços iniciados em Berlim para desenvolver uma psicanálise socialmente crítica e ativa [Tradução nossa].” (Bocian, 2015, n.p)

Ademais, além dos movimentos de contracultura presentes em Berlim na década de 30 levamos em conta o contexto da contracultura estadunidense entre as décadas de 40 e 50, influenciou tanto o movimento humanista (famosa terceira força da psicologia) como também reverberaram no intenso cenário de contestação da década de 60. Deste modo, ao se instalarem nos Estados Unidos ao final da segunda guerra mundial, Fritz e Laura Perls se associaram com artistas e intelectuais críticos ao espírito consumista e conservador estadunidense sendo contemporâneos à escritores do movimento beat como Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William Burroughs. Sob tal ótica, é interessante observar que a crítica à rigidez dos costumes, a valorização da espontaneidade e da experimentação de si são aspectos valorizados tanto na Gestalt-terapia como na literatura beat. Por analogia, é interessante observar como, cada qual em sua área Fritz Perls e Allen Ginsberg conquistaram determinada fama de “gurus da contracultura” (SÁ, 2009).

Inclusive, em um de seus workshops Perls (1977) chega a fazer menção ao movimento beat enquanto apontava criticamente que a maioria das propostas da psicoterapia tentavam, em suas entrelinhas, adequar o indivíduo à sociedade.

“O papel do bom cidadão requer que ele seja previsível, por causa do nosso anseio por segurança, de não correr riscos, de nosso medo de sermos autênticos, de nosso medo de nos sustentarmos sobre nossos próprios pés, especialmente sobre nossa própria inteligência – este medo é horripilante. Assim o que fazemos? Nos ajustamos, e na maioria dos tipos de terapia você descobre que o ajustamento à sociedade é o objetivo principal. Se você não se ajusta, você é ou um criminoso, ou um psicopata, ou um paspalhão, ou um beatnik, ou alguma coisa do gênero. De qualquer forma, você é indesejável e deve ser jogado e deve ser jogado fora das fronteiras desta sociedade.” (PERLS, p.51, 1977)

Neste aspecto, a crítica à proposta de adequação do indivíduo à sociedade se deve por considerar que esta teria aspectos doentios e como a necessidade de renunciar ao potencial em prol de uma previsibilidade de papéis, em contraproposta, descreve a Gestalt-terapia como uma abordagem que daria maior ênfase ao crescimento.

“Eu considero que a personalidade básica de nosso tempo é a personalidade neurótica. Esta é uma ideia preconcebida, pois acredito que estamos vivendo numa sociedade doente, onde as pessoas apenas precisam escolher entre participar da psicose coletiva, ou correr riscos e tornar-se sadio, e talvez também ser crucificado” (PERLS, 1977, p.51) 

Além da comparação com a contracultura literária da época, em especial literatura beat, nos chama a atenção também as semelhanças da Gestalt-terapia com a proposta do The Living-Theatre, grupo teatral fundado em 1947 por Judith Moline e Julien Beck, personalidades influentes no cenário artístico político e cultural a qual os fundadores da Gestalt-terapia estavam imersos e que chegaram até mesmo a contar com a colaboração dramatúrgica de Paul Goodman. Uma característica do Living Theatre, foi sua dinâmica performática que se distanciou dos grandes palcos fazendo dos espaços urbanos locais de intervenções gerando impacto pelo teor crítico e pela colaboração e participação do público, se propondo a romper a barreira entre arte e vida. De modo aproximado, seu caráter experimental e dialógico nos remete à dinâmica da Gestalt-terapia (SILVA, 2020).

Destarte, compreender as influências artístico-culturais que atravessaram a Gestalt-terapia é, em certa medida, observar a história da abordagem sob um prisma artístico. Tal maneira de recolocar o olhar e sob a Gestalt-terapia parece elucidar nos movimentos artístico culturais influenciaram o desenvolvimento de uma abordagem pautada na experimentação.  

Conotação da arte enquanto recurso terapêutico.

Antes de adentrarmos na dinâmica da arte enquanto recurso terapêutico que fornece elementos que sirvam de propostas para experimentos resgataremos a apresentação da proposta de psicoterapia apresentada no Gestalt-therapy, obra considerada como marco da fundação abordagem.

“A psicoterapia proposta nos capítulos anteriores enfatiza: concentrar na estrutura da situação concreta; preservar a integridade da concretude encontrando a relação intrínseca entre fatores socioculturais, animais e fisiológicos; experimentar e promover o poder criativo do paciente de reintegrar as partes dissociadas” (PERLS, HEFFERLINE; GOODMAN, 1997, p.50)

Em uma primeira análise, nos chama a atenção à ênfase dada por Perls; Hefferline; Goodman (1951/1997) à capacidade criativa. A lógica do pensamento gestáltico é a de uma visão sobre a totalidade, ou seja, na situação concreta estariam presentes tanto os elementos socioculturais como biológicos. Destarte, a situação concreta aqui-agora é tomada como ponto de partida para o crescimento, como efeito, a proposta da abordagem é norteada mais pelo poder criativo do que a preconcepções sobre o que seria considerado saudável e normal ou patológico e anormal. Sob esta ótica, temos uma abordagem que privilegia o crescimento e o potencial criativo em detrimento de uma lógica de correção e ajustamento.

No que se refere à processos de criação Ostrower (1977/2014) não considera que o potencial criativo seja um aspecto próprio de artistas plásticos excepcionais como ela, mas sim como um elemento inerente ao humano. Criar pode ser compreendido como formar, o ato criativo fomenta um algo “novo” a partir do rearranjo de diferentes elementos e ideias seja no âmbito artístico ou não, seja alguma demanda prática específica ou alguma necessidade existencial já que o processo criativo é vital para o crescimento. Destarte, no processo criativo o ser humano não só percebe as transformações em curso, mas também se percebe nelas à medida que aspectos latentes podem vir ao primeiro plano ao passo que ganham uma nova forma.

Sob esta ótica, a criatividade pode ser encarada como elemento norteador dentro da Gestalt-terapia, como efeito, os psicoterapeutas podem se aproximar do campo da arte buscando elementos para fomentar a capacidade criativa. Zinker (1977/2007), por exemplo, considera que o processo psicoterapêutico da Gestalt-terapia como uma permissão a ser criativo. Um psicoterapeuta não removeria os conflitos de seu paciente tal qual um cirurgião removeria um tumor. A tarefa do psicoterapeuta seria proporcionar um espaço acolhedor que sirva como uma espécie de laboratório vivo aonde reminiscências, memórias, e fantasias que entram em um processo dinâmico e experimental, neste ponto, um processo artístico como a pintura pode servir de convite e engajamento a tal processo.

Rhyne (1984/2000) também enfatiza a potencialidade de se integrar elementos artísticos na Gestalt-terapia tanto pela influência da psicologia da Gestalt que estudava processos de percepção e integração de diferentes aspectos em totalidades tanto quanto sua dinâmica experiencial onde o sujeito amplia sua percepção de si ao passo que se expressa. Deste modo, aponta que os processos de socialização podem inibir a espontaneidade pela imposição de padrões rígidos em detrimento de um aprendizado que ocorra pela liberdade de experimentar. A partir de então, percebe-se que esta concepção de psicoterapia enfatiza a espontaneidade uma vez que o sujeito pode perceber melhor como se atém a padrões rígidos e fortalecendo sua capacidade criativa pode restaurar a capacidade de crescer espontaneamente pela própria experimentação. Como efeito, a autora considera que nas artes podemos encontrar uma potente possibilidade para a proposta da psicoterapia.

Lehmkhul (2015) além de reforçar a ideia de que a criatividade não se trata de um aspecto exclusivo de pessoas excepcionais, como artistas e intelectuais, também salienta que é necessário a considerá-la como elemento marcante na própria condição existencial do humano, visto que ele está em um constante processo de transformação, sempre inacabado. Destarte, considerando que a Gestalt-terapia encara o humano como ser aberto, inseparável do seu meio, a criatividade pode ser considerada como critério de saúde, pela variabilidade de respostas necessárias para manter uma relação harmoniosa com o meio. Sob esta ótica, sendo considerada como condição existencial e critério de saúde, a criatividade torna-se elemento a ser estimulado com o intuito de potencializar o processo terapêutico.

Destarte, partindo da compreensão de que de que a criatividade é um elemento associado à condição existencial humana Silva; Carvalho; Lima (2013) vêm na arte um potencial de ampliação das possibilidades de intervenção clínica e, e deste modo, consideram estar potencializando o processo e flexibilizando os métodos tradicionais da psicoterapia. Como efeito, encaram que a aliança com elementos da arte, como pinturas e esculturas poderiam proporcionar um processo de materialização no qual o homem se indagar de sua criação, por carregar elementos do criador, o elemento materializado teria a potência de ressoar sob o criador à medida em que ele contemplaria sua própria criação.

Deste modo, observamos que a arte recebe a conotação de uma proposta de ampliação das possibilidades de intervenção na psicoterapia indo em direção à outras formas de expressividade além da verbal. Polster; Polster (1973/2001), inclusive, colocam que um dos principais elementos da Gestalt-terapia seria reconectar o mero “falar sobre” e o processo de mobilização de energia para a tomada de decisão quando o paciente se encontra desvitalizado em pensamentos e abstrações ruminantes. Deste modo, o experimento entraria como uma possibilidade de se explorar, mobilizar energia em um ambiente seguro se aproximando da criação artística por ser um processo perpassado pela criação e pela exploração, entretanto, ao contrário da criação artística que será exposta a um público o experimento serve ao próprio processo de criar e se explorar.

Desta forma, percebemos que a interface entre a arte e a Gestalt-terapia tem em partes a conotação de formas de intervenção que viabilizariam a construção de uma forma concreta, uma materialização do processo criativo. Como efeito, a tomada de empréstimo de elementos da arte para a psicoterapia eventualmente recebe a conotação de experiencias de outros canais de expressão para além do além do verbal.

Conotação da arte como influência na dinâmica estética da Gestalt-terapia

A temática sobre arte na Gestalt-terapia eventualmente é frequentemente tomada como sinônimo de recursos artísticos. Deste modo, apesar da estima por tais propostas de intervenções não podemos deixar de pontuar que tal relação não corresponde à totalidade das relações que a Gestalt-terapia pode estabelecer com o campo da arte. Destarte, prosseguiremos dissertando sobre a relação da arte com a Gestalt-terapia elucidando elementos artísticos na própria dinâmica estética da abordagem.

Partindo deste ponto, resgatamos a provocação colocada por Silva (2020) que nos leva a pensar a interface da arte com a Gestalt-terapia enquanto estímulo à um olhar dialógico e experimental.

“Contrária a toda proposição teórica capaz de prejudicar um real contato com determina da experiência, seja com o outro ou com uma lembrança, a pergunta que se devolve para a abordagem gestáltica é a seguinte: a partir de quais caminhos e esforços se torna possível manter uma postura fenomenológica diante da experiência humana? Como adotar uma conduta capaz de suspender certos saberes a priori, conceitos provenientes de uma pré-experiência, a fim de lançar-se, de forma autêntica e livre, em direção a uma vivência de presentificação afetiva, emocional e narrativa?” (SILVA, 2020, p. 2)

Deste modo, pensamos sobre os desafios de exercer uma função primordialmente experimental que busca concentrar à atenção e à sensibilidade ao momento presente. Alvim (2007) nos chama a atenção para as origens da Gestalt-terapia elucidando que além das correntes teóricas devidamente referenciadas como base da abordagem a relação com diferentes modalidades artísticas ao longo da trajetória de vida de seus fundadores tem uma expressiva contribuição com o desenvolvimento da abordagem. Como efeito, nos chama a atenção ao fato de Fritz Perls, Paul Goodman e Laura Perls terem em comum experiências com disciplinas artísticas que, de modo implícito, influenciaram a abordagem lhe conferindo um fundo estético, um rompimento da fronteira entre razão e sensibilidade, uma influência que conferiu uma primazia experimental para a abordagem com determinada atenção à expressividade do corpo.

Na obra considerada o marco fundador da abordagem, O Gestalt-therapy Excitment and Growth of Human Personality, Perls; Hefferline; Goodman (1951/1997) sistematicamente dissertam em direção à uma quebra sistemática de dicotomias como corpo e mente, self e mundo externo, infantil e maduro, espontâneo e deliberado dentre outras. Sob esta ótica, que Alvim (2007) elucida a discussão do fundo estético da Gestalt-terapia rompendo com outra dicotomia, a da razão e a da sensibilidade considerando-a como um elemento vital para (des)orientar a psicoterapia, e não como fonte de erro ou engano.

Entretanto, falar que a arte foi um elemento comum entre os fundadores da Gestalt-terapia não significa uma unanimidade entre seus fundadores. Laura Perls (1992), analisa criticamente o modo como a Gestalt-terapia fora popularizada nos Estados Unidos a partir das gravações dos Workshops de Fritz Perls apontando uma descontextualização que levou a uma simplificação que toma o estilo teatral de Fritz Perls como cerne da Gestalt-terapia enquanto uma abordagem eminentemente técnica.

“Infelizmente, esta abordagem dos workshops ficou amplamente conhecidas como a essência da Gestalt-terapia e foram aplicadas por um grande número de terapeutas que trabalharam com ele. Logo, a Gestalt-terapia ficou reduzida a uma modalidade técnica devido às suas limitações, combinada também com qualquer outra modalidade de técnica dentro do arsenal de psicoterapias disponíveis. Então nós temos treino sensitivo e Gestalt, awareness do corpo e Gestalt, Bioenergética e Gestalt, dança e arte terapia e Gestalt, meditação transcendental e Gestalt, análise transacional e Gestalt e alguma coisa ou outra e Gestalt ad infinitum. [Tradução nossa]” (PERLS, 1992, p. 2)

Ademais, o próprio Fritz Perls também manifestava preocupações sobre o modo como a Gestalt-terapia vinha sendo replicada no que considerava um abuso no uso de técnicas. “Uma das objeções que tenho contra qualquer pessoa que se diga um gestalt-terapeuta é quanto ao uso da técnica. Uma técnica é um truque. Um truque deve ser usado apenas em casos extremos.” (PERLS, 1969/1977, p.14).

Bocian (2015) Descreve que ao final da década de 60 junto à sua fama de guru da contracultura Fritz Perls possuía uma imagem marcante com barba espessa e grisalha que remetia ora a um místico como Rasputin e ora a um velho hippie. Entretanto, por trás desta imagem havia não só um intelectual com uma formação médica, bagagem filosófica e formação psicanálise. Mas também experiências de vida marcadas pela fuga da perseguição nazista e pelo contato com a vanguarda da expressionista de Berlim nos anos 30. Destarte, tanto compreender os elementos que compunham à bagagem teórica como também a influência do teatro expressionista são aspectos cruciais para se compreender à figura de Fritz Perls.  

Sob tal ótica, Miller; From (1997) reconhecem em Fritz Perls uma primorosa bagagem teórica que não o faria ser reduzido à uma estereotipada espécie de guru. Entretanto, não deixam de apontar um desequilíbrio entre aspectos teóricos e práticos/experimentais na popularização da Gestalt-terapia que foi mal compreendida como um conjunto de técnicas e a orientação da psicoterapia para a concentração na situação presente, aqui-agora, confundida como a propagação de um estilo de vida. Nas palavras do próprio Perls:

“Por outro lado, frequentemente sou superestimado pelo que faço. Eu não sou perfeito, eu não sou um bastardo, às vezes sou muito ‘legal’, não sou onipotente, não sei fazer mágicas, sei muito bem as minhas limitações, e muitas vezes alguém vem com o objetivo de mostrar que eu não passo de um bobalhão.” (PERLS, 1969/1973, p.109)

Deste modo, frente à maneira como a Gestalt-terapia foi popularizada passando por um processo de super simplificação levando a ser associada a um conjunto de técnicas. Miller (2011), aponta que a relação que a arte estabelece com a Gestalt-terapia frequentemente também é reduzida à uma ênfase à conotação de ferramenta, um recurso terapêutico que faça o cliente entrar em contato com seus próprios sentimentos. De certo modo, esta ênfase representa uma possibilidade dentro da Gestalt-terapia, entretanto, não poderia ser considerada a totalidade desta interface.

A arte e a psicoterapia são experiências que desviam o sujeito de seu fluxo cotidiano possibilitando outras formas de se experimentar, mas ambas estariam alicerçadas na capacidade de formar, transformar e se integrar de novas maneiras. Desta maneira, o psicoterapeuta também é possível se orientar por categorias estéticas, qualidades eventualmente associadas à arte como harmonia, vitalidade, ritmo e intensidade dentro da expressividade. Logo, mais do que tomar de empréstimo elementos para eliciar sensações a interface com a arte possibilita uma orientação estética para o olhar clínico. Ou seja, mais do que usar a arte para fazer o paciente entrar em contato consigo, pensar a dimensão estética é olhar para as categorias estéticas que emanam da expressividade na relação terapêutica (Miller, 2011).

Um exemplo de arte como orientação de um olhar sensível a categorias estéticas é encontrado em uma das entrevistas concedidas por Perls (1992/2002) onde ela explicitou a influência de suas experiências artísticas no modo de repensar a psicanálise e, futuramente, a construção da Gestalt-terapia. Na década de 1930, período em que se instalou na África do sul em decorrência da perseguição nazista, Laura Perls atuou como analista distante dos grupos psicanalíticos sentindo-se insatisfeita com a ausência do contato face a face e da observação à corporeidade. Deste modo, sob a influência de suas experiências artísticas ao piano e com a dança moderna passou a dedicar uma especial atenção à corporeidade (modo como a musculatura dos pacientes se tensionava no momento da sessão) e às características musicais da voz dos pacientes. Deste modo, a ênfase que a abordagem dedica à expressividade do corpo está ligada a influências de experiências artísticas.

Outrossim, Perls; Hefferline; Goodman (1951/1997) dedicaram uma especial atenção à verbalização situando a expressividade em um embate entre a expectativa em torno de papéis sociais contrastando com afetos subjacentes. Deste modo, distinguiram duas possibilidades de para o as verbalizações: A fala “verbalizadora”, quando as verbalizações se tornam um hábito de supressão dos afetos no exercício de fixação em papéis sociais. E a fala “poética”, quando o campo de verbalizações está conectado com a afetividade. Sobre esta ótica, observamos que a arte recebe aqui uma conotação de sensibilização aos aspectos expressivos do corpo e da fala para além do conteúdo exposto.

Deste modo, simpatizamos com Dufrenne (1967/2002) quando ele debate se a arte poderia ser considerada uma linguagem. Neste aspecto, conforme a linguagem obedece a uma sistematização de códigos para a transmissão de uma mensagem de forma clara e objetiva a arte não poderia ser considerada uma linguagem pela sua insubordinação a um conjunto de regras, logo considera que a arte ocupa um campo supra linguístico. Mesmo que eventualmente lance mão de elementos da linguagem e que o artista tenha a proposta de comunicar a dinâmica da arte é distinta, ela impacta sem se traduzir com precisão, não se contêm em aspectos puramente intelectuais, mais do que comunicação se trata de uma necessidade existencial de experimentar.

Deste modo, se a Gestalt-terapia se propõe a uma dinâmica que além do conteúdo verbal se atente à toda a expressividade como o tônus muscular, expressões faciais e musicalidade da voz ela estaria, conforme Miller(2011), perante à categorias estéticas. Deste modo, podemos pensá-la como um elemento que sensibilize o olhar para toda esta expressividade, estas categorias estéticas que emanam da situação concreta no setting terapêutico, observar o paciente tal qual se observa uma obra de arte. Sob esta ótica, se num primeiro momento exploramos a conotação da arte enquanto recurso terapêutico que possibilitaria a experimentação de outros canais de expressão, agora dissertamos sobra a arte como sensibilização para a percepção de categorias estéticas em toda à expressividade do paciente.

É sob esta atenção à totalidade, de ouvir um conteúdo verbal não com uma postura analítica e interpretativa, mas como uma postura sensível e integrada à toda a expressividade e que Laura Perls compara um bom terapeuta à um artista.

“Terapia também é uma arte, é mais uma arte do que uma ciência. É preciso muita intuição e sensibilidade e uma visão geral significa algo muito diferente de uma abordagem de associação. Ser um bom artista é funcionar holisticamente. E ser um bom terapeuta também significa isso [tradução nossa]” (PERLS, 1992/2012, p. 20).

Laura Perls também foi questionada sobre intervenções corporais na Gestalt-terapia. De modo surpreendente, responde ao questionamento chamando atenção para a conotação dicotômica presente na ideia de uma “intervenção no corpo”. Em contrapartida, responde que não se trata de intervir no corpo, mas sim de se experimentar enquanto corpo no sentido de estar aberto à estesia corporal: “Não é o uso do corpo. Esta já é uma atitude fragmentada. Você está aqui em cima em sua cabeça e você tem um corpo em algum lugar lá embaixo. Na verdade, o objetivo é ser um corpo. [Tradução nossa]” (PERLS, 1992/ 2012, p. 23)

Sob tal ótica, nos propomos a pensar a arte na Gestalt-terapia como um fundo de referenciais artísticos que podem orientar o olhar clínico refinando a sensibilidade para toda a expressividade que emana da relação terapêutica. Deste modo, para além das propostas de aplicação de arte enquanto recurso terapêutico elucidamos a arte enquanto um ato implicar-se artisticamente.

CONCLUSÃO

Exploramos as possibilidades da arte na Gestalt-terapia a partir de um ponto de vista de uma interface, um entrelaçamento entre campos. Deste modo, sistematizamos as observações em aspectos históricos que ressaltam o papel que diferentes manifestações artístico-culturais desempenharam no desenvolvimento da Gestalt-terapia e em duas conotações, uma que se refere a determinados recursos terapêuticos específicos e a de uma dinâmica estética da psicoterapia. Deste modo, buscamos uma ampliação dos pontos de vista de se pensar a relação da arte com a Gestalt-terapia. Mas o que reflexões podemos desenvolver a partir da observação destes três aspectos?

Em uma primeira análise, observar diferentes aspectos e conotações da arte dentro da Gestalt-terapia foi, primordialmente, um exercício de explicitar as raízes artísticas dentro de uma abordagem fortemente orientada pela experimentação. Como efeito, podemos reconhecer uma particularidade da Gestalt-terapia como abordagem que se desenvolveu rente a manifestações artísticas.

Eventualmente a relação entre arte e Gestalt-terapia costuma ser associada como sinônimo de recursos artísticos que servem como recurso terapêutico para a propulsão de experimentos como o uso de esculturas, pinturas, dramatizações dentre outras possibilidades possíveis. Entretanto, o que chamamos a atenção é que a chegada da conotação da arte enquanto recurso terapêutico já adentra uma abordagem permeada por influências artísticas como a arte expressionista em Berlim, os movimentos de contracultura estadunidenses e as experiências artísticas singulares dos principais fundadores da abordagem. Sob esta ótica, é que realçamos que estudar a relação da Gestalt-terapia com a arte leva à uma melhor compreensão da própria abordagem.

Destarte, poderíamos considerar experiências no campo da arte tão importantes para o desenvolvimento do psicoterapeuta quanto sua própria psicoterapia pessoal, estudo e supervisão? Tal questionamento não parece exagerado considerando o histórico entrelaçamento da arte com a Gestalt-terapia. Entretanto, não temos uma orientação prescritiva que aponte um caminho simples e direto. Por outro lado, levantamos a possibilidade do psicoterapeuta se autorizar a se fazer valer de suas experiências no campo da arte para o seu desenvolvimento de modo singular e único, tal qual fizeram Fritz Perls, Laura Perls e Paul Goodman

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