ARTIGO
Relação dialógica com a natureza: Novas possibilidades de contato
Dialogical relationship with nature: New contact possibilities
Beatriz Sardenberg*
UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro- RJ.
RESUMO
A relação do indivíduo e da sociedade com a natureza vem sido marcada por alguns vieses perceptivos desta, culturalmente colocados. Essa vivência tem levado a impactos no todo do qual os humanos fazem parte, percebidos já cientificamente e sensivelmente, mas incapazes de levar a mudanças que tendam a um maior equilíbrio. Este trabalho visou a revisão e elaboração de uma base teórica dentro da Gestalt terapia que seja capaz de embasar projetos futuros de estudos teóricos e práticos da relação entre sociedade e natureza a partir desta linha. Foi possível estender o entendimento do que sustenta o tipo de relação que mantemos agora e desenhar possíveis caminhos futuros em uma relação de maior equilíbrio com a natureza.
Palavras-chave: Gestalt-Terapia; Psicologia ambiental; Natureza.
ABSTRACT
The relationship of individual and society with nature has been marked by some perceptual biases of it, culturally placed. This experience has been impactful in the whole of which humans are part of, scientifically and sensibly perceived, but incapable of leading to changes that tend to a higher balance. This work seeked to review and elaborate a theoric base within Gestalt therapy that is able to encompass future theoretical and practical projects on the relationship between society and nature through this line. It was possible to expand the understanding of what sustains the kind of relationship that we maintain now and draw possible future paths in a relationship of higher balance with nature.
Key words: Gestalt-Therapy; Environmental psychology; Nature
Introdução
Pensar as relações do indivíduo com o meio de forma dialógica é sabidamente uma direção compreendida como saudável dentro da Gestalt terapia. Ao mesmo tempo, também é entendido que o "meio" se constitui de tudo aquilo que se encontra "fora", ou seja, a relação não se dá apenas com outros humanos, ou outros seres, mas com o ambiente como um todo. Quando se tem em mente esta abrangência, é fácil perceber que algumas partes que compõem este meio têm sido negligenciadas - pelo indivíduo, pela teoria, pela nossa vivência em geral - e tomadas como objetos em uma relação utilitarista.
Viver esse meio fixado como objeto, como algo sempre simplesmente utilitário, afasta, como se sabe, da experiência e do pertencimento (ALVIM, 2015), da "awareness", da dimensão sensível e capacidade criativa de entrar em contato com o presente como se apresenta, o que retroalimenta a fixação disfuncional nesta relação. Vivemos esta disfunção na relação com a natureza a partir de crises ecológicas, que, como bem colocado por Latour (2004), se apresentam não como crise da "natureza" mas como crise dos objetos e dos nossos vínculos (objetificantes) assim mantidos com eles.
Estas crises são vividas cada vez com mais frequência e intensidade, sendo percebidas mesmo por cima do adormecimento autoimposto à nossa capacidade de percepção corporal, clivando-nos da sensibilidade em nome da vivência objetificante do meio. Ainda assim, para exemplificar, apenas no Brasil, temos vivido dificuldades climáticas difíceis de ignorar, como o dia que virou noite em São Paulo devido às queimadas na floresta Amazônica (G1, 2020), as tragédias ambientais de Mariana e Brumadinho (MENDONÇA, 2020), temperaturas cada vez mais extremas (DALE; STYLIANO, 2021) e cada vez mais áreas vivendo ocasional racionamento de água (LIMA; VICTORINO, 2021) em pleno país tropical que possui em sua área a maior quantidade de água doce do mundo, em relação a outros países.
Isto tudo surge dentro de um contexto de desmonte generalizado da agenda climática, com redução ou remoção da fiscalização de crimes ambientais, flexibilização do licenciamento de atividades que causam grandes impactos no ambiente, e aumento significativo da perda de ecossistemas registrada por indicadores e notícias, como aponta o último Relatório Luz da Agenda 2030 (2020). É interessante repensarmos então o tipo de relação que constituímos com a natureza, de forma a garantir o bem estar do máximo de pessoas possíveis, em um presente e futuro passíveis de coexistência com o meio não humano.
A partir disso, realizou-se esta revisão bibliográfica acerca de o que é e de como se constitui uma relação dialógica, em oposição a uma objetal, como desenvolvido por Buber (2006), e sua aplicabilidade na interação indivíduo/sociedade e natureza. O objetivo deste trabalho é instigar a reflexão sobre o tema, visto não haver ainda muitas publicações neste interesse, para que possam então se avançar em considerações, diálogos e práticas dentro do mesmo.
Relações dialógica e objetal e como se percebem em nosso contato com o natural
Buber (2006) descreveu em sua obra diferentes tipos de "diálogos" e as diferentes formas de relacionar-se que estes implicam. Há a possibilidade de viver-se uma relação EU - TU, na qual o indivíduo se coloca disponível para o encontro, para ver o que quer que seja que ele está entrando em contato com como sujeito, respeitável em seu modo de ser e passível de ser escutado também. Assim se estabelece uma reciprocidade no contato, na escuta, na transformação. Esta seria a relação dialógica propriamente dita.
Outros tipos de "diálogo", nos quais busca-se apenas comunicar algo, falar com alguém a partir apenas de si, buscando se confirmar, configuram uma relação com o outro do tipo EU - ISSO. Nesse segundo tipo, não há uma real experiência de encontro com o outro, pois o outro está ali apenas para receber o que o "eu" deposita, suas verdades, como acha que "isso" deve estar. Por isso, entende-se este segundo tipo de relação, que coloca o que se encontra como objeto, como utilitarista (CHAGAS, 2016). Vivendo este tipo de relação, pode-se ver o meio com o qual se entra em contato como algo presente para atingirmos nossos fins, sejam eles convencer, converter, transformar, usar, destruir, consumir, ou qualquer outro, que tenhamos pensado para o "isso" sem levá-lo em conta.
Vivemos culturalmente uma relação generalizadamente fixada em "EU - ISSO" com o meio natural. Como colocado por Doca e Bilibio (2018), a introjeção desses valores extensamente promovidos participa na manutenção da desconexão com esse meio. Transforma-se uma relação espontaneamente dialógica de consideração, respeito e afeto em algo objetivante e utilitário, favorecendo uma separação do meio para servir-se dele.
Krenak (2019) exemplifica a diferença destes tipos de relação a partir de sua vivência: "[...] num extremo, gente que precisa viver de um rio e, no outro, gente que consome rios como um recurso?" (KRENAK, 2019, p. 27). O autor exemplifica ainda a vivência dialógica que os Krenak possuem com o rio Doce, entendendo sua experiência como de personalização. Ao ver o rio como "pessoa" como o autor coloca, algo equiparável com o TU da relação dialógica, e não como recurso, este se torna parte da construção coletiva e não um objeto do qual se apropriar.
Viver essa relação com o meio como dialógica significa ser capaz de dar voz ao meio também, para garantir a construção conjunta, a capacidade de interferência de cada ator no meio experimentado coletivamente. Krenak (2020) traz ainda a noção de que "o organismo da Terra" se utiliza de diferentes linguagens para se comunicar conosco, apontando ele mesmo como percebeu rios falando com raiva, ofendidos ao se aproximarem deles níveis de intervenção elevados. É interessante entender como traduzir tanto para uma cientificidade quanto para uma vivência possíveis dentro da nossa sociedade atual este tipo de linguagem para garantir uma escuta em um momento em que os vínculos ainda se encontram esgarçados.
Tornando o diálogo com o natural mais experienciável
Existem diferentes maneiras pelas quais o meio se faz ouvir e sentir para nós como indivíduos e como sociedade. Nas crises ecológicas, a mensagem parece ficar um pouco mais clara, como coloca Latour (2004), de que o que quer que seja - baleias, um rio, o clima, árvores, etc - não aceitam mais ser tomados como objetos, como meios para determinado fim nosso. Nesse momento, pode-se entender que não há diálogo também - há apenas a comunicação de que não será possível a coexistência assim. Então, a permanência da crise constante que temos vivido pede mais recursos de escuta para uma vivência dialógica que nos retire desta dualidade, ora senhores do mundo, ora suas vítimas.
Como convocar este meio a falar e como coletar seus meios de fala? Latour (2004) traz para essa discussão o conceito político de porta-voz, alguém que fale em nome do outro. Este alguém, para o autor, se encontra bem no papel dos cientistas, que através da colocação em palavras e disciplinas conseguem nos alertar sobre problemas trazidos pela fala do meio natural. Seria uma capacidade intermediária entre "eu falo" e "os atos falam", logo imperfeita em seu propósito de fortalecer a relação dialógica, ainda que bem intencionada.
Essa introdução de porta-vozes contribui de fato para a desconstrução da oposição sujeito/objeto que impede a troca de propriedades, como coloca Latour (2004), e torna essa troca necessária, dotando o meio de vontades, liberdade, e palavra. Porém, como o mesmo coloca, é importante duvidar da capacidade dos "porta-vozes" de falar em nome de seus mandantes. Visto a inserção de todos estes na cultura humana contrariante à relação dialógica, seria necessário e interessante garantir o sentir experiencial de alguma forma, da conexão destes e de todos os indivíduos com seus meios naturais, afinal, como o autor coloca, nem todos os afetados pelas questões do meio são cientistas. Logo, todos os "afetados" que entram em contato com o meio poderiam ser atores de um novo tipo de relação caso seja possível acordar o corpo para essa experiência.
Entra aí o conceito gestáltico de ambientalidade. A ambientalidade, como explica Ponciano (2019), é uma dimensão da existência humana intrínseca à vivência entre ambiente e corpo. É a experiência e vivência desta relação, entendendo o humano como não só animal e racional, mas também ambiental. Faz parte da essência de um ser qualquer coisa que retirada dele faça com que ele desapareça, como aponta o autor, e nesse sentido entende-se o ambiente como essencial ao ser humano, e a ambientalidade como algo que o habita também - todo indivíduo é capaz de acessar a ambientalidade pois faz parte de si.
Esse conceito implica ainda experienciar o mundo como parte de si, entendendo-se como mundo também, como parte pertencente dele (RIBEIRO, 2019). Implica então uma vivência de um novo conceito de natureza. Moscovici (2007, p.121-122, apud NASRI, 2018) coloca sobre nossa vivência atual que "a proibição da sensibilidade, a negação radical de nossa relação corporal, sensorial com o mundo visível e vivo fez com que ela fosse abandonada ou relegada". Para uma humanidade que ainda vive a racionalidade cindida e acima do resto de si como ideal, ter a ciência como aliada torna o processo possivelmente mais fácil. E permitir o acesso a essa sensibilidade terá um papel importante na construção pela psicologia de uma relação diferente com o meio natural e do acesso à ambientalidade em nós.
A psicologia na construção da relação dialógica
Ponciano (1994), ao falar sobre o processo grupal, deu o exemplo de grupos residenciais, que "ocorrem em uma granja, numa fazenda, onde o silêncio, o isolamento, o contato com a natureza facilitam sobremaneira o fluir do processo terapêutico" (RIBEIRO, 1994, p. 91). Este conhecimento empírico também é destacado por Doca e Bilibio (2018) como um coadjuvante no processo psicoterápico ao se basear na conexão entre mente, corpo e natureza, conexão essa natural ao ser humano, sendo a cisão vivida um processo neurótico em si. Outros exemplos mais cientificamente baseados do que é conhecido hoje como terapia baseada na natureza (TBN), em publicações de Stigsdotter e colegas (2017a; 2017b), demonstram o efeito da TBN em proporcionar um maior desenvolvimento de "awareness", de senso de pertencimento, e ser um fator positivo em tratamentos de estresse.
Nesses exemplos, como psicólogos, podemos fazer a natureza falar, ser seus porta-vozes, ao trabalharmos a relação com a natureza como algo que se encontra fixado, no fundo da experiência, e participa de outras interrupções no contato por representar uma vivência EU - ISSO generalizada com o meio. Mesmo quando permitimos sua vivência de maneira diferente em contextos clínicos onde surgem outras questões como figuras, como nos exemplos acima, é possível perceber maior fluidez nesses diferentes contatos com o meio ao garantir uma maior fluidez na relação com o natural, florescendo a ambientalidade que é parte do indivíduo.
Porém, colocando-a como figura, e então colocando luz direta sobre essa relação específica, podemos ver mudanças no próprio bem estar dos indivíduos de forma generalizada, ao se promoverem sensações que não estavam antes lá. Em revisão bibliográfica de Ferreira e colegas (2021), estudos experimentais eliciando a sensação de deslumbramento ("awe") com a natureza através do contato direto ou indireto com esta levaram os participantes a um maior comportamento pró-social, maior sensação de pertencimento a grupos maiores/ mais inclusivos, maior satisfação com a própria vida, menor sensação de impaciência e até maior apresentação de senso crítico percebidos e avaliados nos estudos.
Esse tipo de trabalho de propiciar um contato diferente do usual com a natureza pode então favorecer mudanças individuais e coletivas no tipo de relação que se dá com esta; e promover o bem estar igualmente em ambas as instâncias. O estudo dessa relação mais saudável e seus efeitos pode também participar de concretizações de mudanças de planejamento público ao apontar algo que é essencial ao ser humano e precisa estar presente de forma mais concreta em sua vida: a vivência dialógica desse todo do qual se faz parte que é a natureza.
Conclusão
A relação dialógica com a natureza passa por ser capaz de escutá-la, algo que podemos fazer a partir do estudo científico desta relação e a partir da revalorização da sensibilidade e ambientalidade presentes em cada indivíduo. A cisão que se tem destas partes em detrimento de uma exclusividade de nossa parte racional causa uma vivência neurótica e não dialógica com esse meio, que podemos experienciar através das mais diversas evidências de crise ambiental que vivemos cada vez com mais frequência. Faz-se urgente a capacidade de embasar cientificamente, em todas as áreas de conhecimento, os fatores positivos dessa relação ser vivida de outra forma.
Na psicologia, isso significa ser capaz de promover essas experiências de vivência diferente da relação de forma que perceba-se, mesmo como plano de fundo em outros processos, a diferença que a inclusão harmônica da natureza no meio traz para a figura completa da experiência que se forma. Como já se tem visto, tal vivência é capaz de influenciar positivamente em processos outros como estresse relacionado a outras áreas da vida e aumentar o senso de pertencimento. Ainda, como imagem ou foco de intervenções, também percebe-se ser possível incentivar sensações positivas através da nova vivência da relação indivíduo - natureza. Também se aumenta o senso de pertencimento a grupos maiores de indivíduos, e ainda há maior comportamento pró-social, maior satisfação com a vida e menos sensação de impaciência, entre outros achados.
Como parte de nós renegada, a ambientalidade reintegrada gera sensações de bem estar diversas em diferentes partes da vida do indivíduo e do coletivo. Se percebe que a falta de diálogo nesta relação, em outras palavras a tendência a não vivermos uma relação dialógica com a natureza, afeta de forma negativa outras diversas relações e maneiras de estar no mundo. Ainda que tal ligação não esteja ainda tão teoricamente embasada, é na experiência que já somos capazes de perceber cientificamente e corporalmente as diferenças entre uma natureza objeto, distante e utilizável como recursos em cadeias de produção, e uma natureza sujeito, que constrói algo conosco, que tem algo a nos dizer e a acrescentar ao todo ao qual pertencemos.
Frente à pequena produção científica voltada diretamente à questão estudada, próximos passos na construção deste diálogo poderão vir de um maior entendimento teórico e prático e produção de encontros entre indivíduo e natureza nesse sentido. Assim, poderemos embasar ao mesmo tempo em que já estaremos promovendo essa relação diferente entre indivíduo/ sociedade e natureza. Que possamos chegar a diálogos antes que nós mesmos tenhamos de virar objetos fixados nesta relação.
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NOTAS
* Beatriz Sardenberg – Psicóloga graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Endereço para correspondência
Beatriz Sardenberg
Endereço eletrônico:beatrizsardenberg.psi@gmail.com
Recebido em: 16/11/2021
Aprovado em: 24/12/2021