FALCÃO, Yasmim. - “(Im)possibilidades maternar entrega legal sob perspectiva gestalt-terapia”
(Im)possibilidades do maternar e entrega legal sob a perspectiva da gestalt-terapia
(Im)possibilities of maternity and legal delivery from a gestalt-therapy perspective
Yasmin Falcão
Faculdade Católica do Rio Grande do Norte
Esse artigo possui o intento de compreender as possibilidades existentes na Entrega Legal realizada pela genitora que não deseja ou não pode exercer a maternagem trazendo uma reflexão a partir do olhar da Gestalt-terapia. Promove a descrição da história da Entrega Legal e desenvolve conhecimentos acerca da maternidade à luz da Gestalt-terapia. Quanto aos procedimentos técnicos, orienta-se através de pesquisas bibliográficas, tendo como instrumento escolhido para contribuir com o propósito deste levantamento a revisão narrativa, caracterizada como uma síntese compreensiva de informações publicadas, que apresenta conhecimentos de forma coerente e legível. Os resultados deste estudo permitem compreender as possibilidades da mulher que realiza a Entrega Legal, uma vez que se torna vítima do julgamento social por não corresponder aos ideais postos socialmente, assim como oferece uma nova reflexão do olhar da Gestalt-terapia acerca da maternidade.
Palavras-chave: Maternidade; Gestalt-terapia; Entrega Legal
ABSTRACT
This article aims to understand the possibilities that exist in the Legal Delivery carried out by the mother who does not wish or cannot exercise motherhood, bringing a reflection from the Gestalt-therapy point of view. It describes the history of Legal Delivery and develops knowledge about maternity in the light of Gestalt-therapy. As for the technical procedures, it is guided by bibliographic research, and the instrument chosen to contribute to the purpose of this survey is the narrative review, characterized as a comprehensive synthesis of published information, which presents knowledge in a coherent and readable way. The results of this study allow us to understand the possibilities of the woman who carries out Legal Delivery, since she becomes a victim of social judgment for not corresponding to the ideals socially set, as well as offer a new reflection from the Gestalt-therapy point of view about maternity.
Keywords: Maternity; Gestalt-therapy; Legal Delivery
O ser mãe está inserido em uma realidade que ultrapassa a ordem do biológico. Conforme explica Faraj (2017), esse conceito de “ser mãe”, por muito tempo, foi visto como um determinismo na vida das mulheres, pois existia a noção do desejo intrínseco da maternidade como parte da essência feminina, desconsiderando assim todos os fatores sociais e subjetivos.
Portanto, muito há que se discutir acerca desse pensamento, pois este não considera as mudanças vividas no espaço/tempo das sociedades, como por exemplo, as novas constituições de subjetividades no que diz respeito às dimensões das diferentes classes sociais e raças/etnias, bem como as novas formas de ser mulher na contemporaneidade (ARTEIRO, 2017).
Neste sentido, em uma sociedade diversificada como a brasileira, a maternidade se apresenta de forma distinta em classes sociais diferentes. Assim sendo, é de acordo com o momento histórico e os modos de vida que as mulheres se situam com relação à maternidade. Pois, a exaltação da mulher, através do ser mãe, mostra-se inconstante nas variadas culturas, na qual a capacidade de gerar uma criança não é celebrada da mesma forma nas regiões (JERUSALINSKY, 2002).
À vista disso, ainda que seja considerado os tempos atuais e as novas formas de ser mulher, há um imaginário social enraizado no que concerne ao amor materno. A autora Arteiro (2017) aponta que, na lógica social, é imperioso o determinismo biológico, no qual se acredita que as mulheres sempre desejam exercer a maternagem e que, quando gestantes, irão automaticamente cuidar e querer educar a criança gerada.
No entanto, existem mulheres que no período de gestação, ou logo após, escolhem não maternar a criança gerada. Neste caso, é possível que muitas assumam a responsabilidade, a depender de suas condições, mesmo negando o exercício da maternagem. Porém, também é uma possibilidade que a mulher decida entregar o recém-nascido para os órgãos competentes, como o Juizado da Infância e Juventude (PALHEIRO, 2011).
Esse procedimento de entrega passou a ser legalmente reconhecido apenas através da Lei nº 12.010, de 2009, conhecida como nova Lei da adoção (BRASIL, 2009). Esta entrou em vigor alterando e acrescentando dispositivos que constam na Lei nº 8.069, de julho de 1990, que forma o Estatuto da Criança e do Adolescente, responsável por sistematizar a proteção integral destes, bem como dispõe acerca das medidas protetivas para o acolhimento institucional (BRASIL, 1990).
Neste sentido, apesar de ser chamada como Lei da adoção, a lei de nº 12.010 também regulamenta o acolhimento da gestante que manifesta interesse em entregar a criança para adoção e, com isso, estabelece o recebimento do recém-nascido pelos Juizados de Infância e Juventude. No entanto, este procedimento de entrega, a chamada Entrega Legal ou Voluntária, direciona-se no sentido de garantir o direito de crianças, pois surge como um ajustamento quanto ao abandono e ao desamparo que é considerado crime pelo Código Penal (BRASIL, 1940).
Isto posto, é preciso destacar que a ideia imaginada e sustentada na sociedade de que toda e qualquer mulher deseja a maternidade e possui os atributos necessários a essa prática provoca consequências. De forma especial, esse pensamento torna a mulher que realiza a entrega legal vítima do julgamento social, pois esta passa a ser vista como aquela que não corresponde aos ideais postos socialmente (MENEZES, 2007).
Considerando o exposto, torna-se relevante destacar a forma que a temática será apresentada e desenvolvida no presente estudo. Tendo em vista que a Psicologia possui diversas abordagens, ou seja, variadas formas de enxergar o ser no mundo e nas relações e a fim de contribuir com uma nova perspectiva a respeito do tema proposto, o olhar da Gestalt-terapia será trabalhado com o propósito de dialogar com a problemática que vem sendo apresentada.
A Gestalt-terapia refere-se, como mencionado, a uma abordagem da psicologia, que nasceu baseada, inicialmente, nas ideias de Perls, mas conta com a influência de outros pensadores e teóricos que marcaram seu pensamento. Neste contexto, foi escrita e publicada na década de 50, a primeira obra desenvolvendo a teoria, sendo considerada uma inovação para as abordagens vigentes na época (PERLS, HEFFERLINE, GOODMAN, 1997).
Sendo assim, uma das mais importantes contribuições da Gestalt-terapia foi à perspectiva holística do homem, ou seja, a visão deste como um ser biopsicossocial. Desta maneira, sustentando-se em teorias de base fenomenológicas, existenciais e humanísticas, a abordagem leva em conta o ser humano em constante interação com o seu meio, valorizando as relações estabelecidas no campo e a capacidade da pessoa em perceber-se no momento presente, expandindo sua consciência em nível corporal, mental e emocional (PERLS, HEFFERLINE, GOODMAN, 1997).
Logo, partindo do que pode ser observado socialmente acerca do julgamento social direcionado à mulher que não deseja ser mãe e levando em consideração o processo de Entrega Legal, acrescentando diálogos com a abordagem da Gestalt-terapia, a presente pesquisa se orienta objetivando responder ao seguinte problema: Quais as possibilidades da maternidade através do processo de Entrega Legal sob a perspectiva da Gestalt-terapia?
Portanto, o presente trabalho tem o intento de compreender as possibilidades existentes na Entrega Legal realizada pela genitora que não deseja ou não pode exercer a maternagem trazendo uma reflexão a partir do olhar da Gestalt-terapia. Quanto aos objetivos específicos, estão relacionados a descrever a história da Entrega Legal e desenvolver conhecimentos acerca da maternidade à luz da Gestalt-terapia.
Segundo Kuark, Manhães e Medeiros (2010), a metodologia representa o caminho a ser seguido no desdobramento do processo de pesquisa. Neste sentido, o presente trabalho desenvolveu-se através da abordagem qualitativa, tendo como foco a interpretação dos fenômenos, sabendo que a atribuição de significados é dada pelo sujeito, que existe de forma particular e subjetiva.
Quanto aos procedimentos técnicos, o trabalho será elaborado através de pesquisas bibliográficas, ou seja, utilizando materiais já divulgados. Considerando este ponto, o instrumento escolhido para contribuir com o propósito deste levantamento foi a revisão narrativa, caracterizada como uma síntese compreensiva de informações publicadas, que apresenta conhecimentos de forma coerente e legível, baseados na visão crítica do autor (RIBEIRO, 2014).
Em vista disso, com o intento de estabelecer ligações entre as ideias, para assim compreender os fenômenos de causa e efeito, foram realizadas pesquisas utilizando as palavras chaves “Adoção”, “Maternidade” e “Entrega legal”. Tendo em vista a dificuldade encontrar artigos que associasse a temática a gestalt, esse olhar foi lançado a partir do aporte teórico de livros e feito essa costura sob a perspectiva das autoras. No que diz respeito aos critérios de exclusão, desconsideraram-se todas as obras que não estava na língua portuguesa ou traduzida para tal idioma, como também as que não tinham relação com o tema, que não estavam disponíveis completas e gratuitas.
Salientamos que os artigos, dissertações e teses pesquisadas e utilizadas que possuem maior influência no presente estudo foram publicados no espaço de tempo dos últimos 10 (dez) anos, entre 2011 e 2021. No entanto, os livros utilizados ultrapassam o critério supracitado, dado a magnitude de seu valor para os conhecimentos na área pesquisada. Além disso, as buscas ocorreram através das plataformas SciELO - Scientific Electronic Library Online; BVS – Biblioteca Virtual em Saúde e BDTD – Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações.
Com o desenvolvimento das buscas por materiais, foi possível compreender que, naturalmente, abordar a temática da maternidade constitui-se como um processo delicado, por ser uma realidade vivenciada através de muitos desafios e diferentes nuances. Além disso, destaca-se à escassez de estudos na área da Gestalt terapia e maternidade, existindo uma lacuna nas investigações científicas. Portanto, a pesquisa propõe suscitar reflexões acerca do tema e contribuir com os estudos teóricos da área.
Sendo assim, este estudo pretende desenvolver-se com o intento de construir saberes relevantes para as comunidades científicas e sociais. Visando a contribuir com aprendizados relacionados a um problema social contemporâneo, acreditando que novos conhecimentos expandem as possibilidades de ir sempre adiante. Assim, conforme explica Kuark, Manhães e Medeiros (2010, p. 28), o objetivo é gerar “maior familiaridade com o problema, tornando-o explícito”, ou seja, expor um desafio vivenciado na contemporaneidade e provocar reflexões acerca dos atravessamentos percebidos neste.
A literatura traz que, na história da humanidade, o abandono sempre se apresentou como uma prática muito comum. Mas é fundamental evidenciar que até o século XIX não existia diferença entre entregar a criança e abandoná-la (MARTINS et al., 2015). A autora Portella (2013, p. 12), expõe que no Ocidente o abandono e a entrega de crianças realizada pelos próprios pais sempre existiram, modificaram-se “apenas as circunstâncias, a motivação e a intensidade”.
Com isso, faz-se necessário diferenciar abandono de entrega. Partindo desse pressuposto, é possível analisar que a palavra abandonar refere-se a uma ação que pode provocar risco de vida, ou seja, a criança considerada abandonada é colocada em uma situação que ameaça sua vida e o seu direito de fazer parte de uma comunidade familiar (MENDES et al. 2019).
Já o ato de entrega não representa diretamente uma violação aos direitos da criança ou situação de risco à vida. Ao contrário disto, conforme explicam Mendes et al. (2019), quando a criança é entregue para adoção, está sendo garantido que ela possua direito à filiação, assim como a possibilidade de pertencer a uma família.
Esse pensamento foi sendo construído como reação social, levando em consideração que as sociedades estão em constante movimento, pautando-se sempre em ideologias e costumes de sua época. No Brasil, em virtude das manifestações ocorridas no século XX, que eram direcionadas à situação das crianças e adolescentes que estavam em sofrimento, surgiu inicialmente o Código de Menores, em 1927 (SOUZA, 2019).
Nesse caso, a autora Souza (2019) comenta que, apesar de ser uma inovação, pois atendia diretamente as questões relacionadas à infância daquela época, essa legislação recorria a intervenções punitivas e disciplinares. Ou seja, mesmo quando o Estado se coloca no lugar de responsável pelas crianças e adolescentes em “situação irregular”, as medidas tomadas baseavam-se em institucionalização e isolamento, existindo pouca preocupação com os processos adotivos (SOUZA, 2019).
Nesse contexto, a adoção era realizada através de meios simples, mas por falta de preocupação e atenção a essas demandas, a legislação acabava sendo desrespeitada. Com o avanço das discussões acerca do tema, foram sendo gerados novos conhecimentos, e o Estado começou a controlar e a ficar mais rígido quanto ao procedimento, embora as leis ainda apresentassem olhares discriminatórios em relação à criança e/ou ao adolescente adotado (PALHEIRO, 2011).
A adoção não é mais vista sob uma ótica contratual, em que a busca se limita a uma criança para uma família. O que se pretende atualmente em um processo de adoção é a busca de uma família para uma criança, o que é uma mudança de perspectiva, pois o instituto passa a centrar-se no seu melhor interesse do menor (PALHEIRO, 2011, p. 20).
Essa afirmação se concretiza, pois, durante os anos, foram sendo realizadas alterações nas leis e, nos anos 1970, os processos de adoção precisavam passar pelo Poder Judiciário. Simultaneamente a isso, foi ocorrendo também mudanças no tocante à mulher e ao seu papel social, assim como em relação ao planejamento familiar e novas formas de ser família (SOUZA, 2019).
Logo, provocou ajustamentos sociais, articulando-os assim aos procedimentos judiciais, que passaram a pensar no bem-estar da criança e, posteriormente, na família adotiva, bem como biológica. Dessa forma, surgem as leis que oferecem suporte a esses envolvidos, como por exemplo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a nova Lei da Adoção.
No passado, diferentes povos praticavam a adoção como uma ação legal, no entanto, é importante destacar que essa prática muda de sentido a depender do tempo e do contexto. Por isso, as razões para tal ação acontecer em tempos remotos diferem das compreensões conhecidas nos tempos atuais acerca dos processos de adoção, pois, até o século XVII, não havia a noção de família como um lugar de proteção destinada às crianças (SOUZA, 2019).
Sendo assim, Palheiro (2011) comenta situações e razões para que a adoção fosse legal na realidade de alguns povos, como os romanos, persas, hindus e gregos. Porém, a autora destaca que, com a chegada da Idade Média, essa realidade mudou, pois foi preciso que as diferentes culturas se fundissem, orientando-se apenas através dos mandamentos e normas da Igreja Católica, que ia de encontro à prática da adoção.
A igreja católica condenava a prática da adoção por ir contra a ideia de que o sacramento do matrimônio tinha o propósito maior de procriação. Aquele que não poderia ter filhos devia batizar uma criança, incutindo assim a ideia de ser desnecessária a adoção. Além disso, o instituto da adoção ia de encontro aos interesses econômicos que preponderavam naquele período, pois se a pessoas morresse sem herdeiros, seus bens seriam destinados aos senhores feudais ou à Igreja (PALHEIRO, 2011, p. 17).
Destarte, reforçando o supratranscrito, Portella (2013) expõe que durante a Idade Média prevaleceu o ideal da Igreja no que diz respeito à ideia de caridade. Neste sentido, começaram a ser criados hospitais e colégios destinados a receber e atender pobres e crianças desamparadas. Como a população passou a crescer durante os anos, consequentemente houve o aumento da pobreza e do número de crianças abandonadas.
Nesse contexto, apesar de ser uma prática recorrente, o abandono de bebês tornou-se um escândalo, devido ao grande número de casos. Além de numeroso, a forma selvagem do abandono começou a preocupar as autoridades, visto que os recém-nascidos eram deixados em lugares isolados, como praias, lixos e espaços inabitados. Ademais, havia também a realização de abortos e, cada vez mais, a prática do infanticídio (CHRISPI, 2007).
Ao ganhar visibilidade social, sendo reconhecida como uma questão de ordem pública, houve mais uma forma de intervenção inventada a partir do século XVIII. Uma irmandade italiana criou um artefato conhecido como Roda dos expostos, destinada a acolher as crianças, sem que houvesse a exposição da família e/ou mulher que praticou o ato (SOUZA, 2019). Esse instrumento funcionava da seguinte forma:
Um dispositivo de madeira onde se deposita o bebê. De forma cilíndrica e com uma divisória no meio, esse dispositivo era fixado no muro ou na janela da instituição. No tabuleiro inferior da parte externa, o expositor colocava a criancinha que enjeitava, girava a roda e puxava um cordão com uma sineta para a visar à vigilante – ou rodeira – que um bebê acabara de ser abandonado, retirando-se furtivamente do local, sem ser reconhecido (MARCÍLIO, 1998, p. 57).
Segundo Souza (2019), há variadas razões para que esse instrumento passasse a ser tão utilizado. Entretanto, destaca-se as condições de vulnerabilidade socioeconômica da mulher, que em grande maioria vivia em condições miseráveis. Porém, “seria um erro pressupor, numa projeção anacrônica da situação atual, que, naquela época, as mulheres que não viviam na extrema miséria tivessem o poder de tomar as decisões importantes de sua vida” (FONSECA, 2012, p. 18).
Logo, é preciso reconhecer que a sociedade da época também se pautava em corresponder ao modelo dominante de família, estimulado especialmente pela Igreja. Essas normas estavam relacionadas à monogamia, à condenação do aborto e ao preconceito relacionado a filhos fora do casamento, o que provocava vergonha e medo e, por conseguinte, direcionava a uma gravidez escondida e posterior abandono (SOUZA, 2019).
No Brasil, esse instrumento foi instalado nas Santas Casas de Misericórdia, que se tornaram lugares de referência para a entrega de crianças. Essa alternativa surgiu como uma forma de desnaturalizar o infanticídio, mas contribuiu para a rotulação e acusação da mulher, surgindo assim a raiz do olhar desfavorável para com a pessoa que realiza a entrega até dos dias atuais (MARTINS et al. 2015). Desse modo, existia um paradoxo em relação à Roda dos expostos, que era vista como uma forma de salvaguardar os recém-nascidos, ao mesmo tempo que, culpabilizava os pais, em especial as mães.
Segundo Oliveira (2016, p. 91) “no Brasil, a história do abandono infantil se mistura à própria história da infância e das crianças nesse país”. Sabendo disso, leva-se em conta a grande dificuldade em construir o conceito de cuidado relacionado às crianças, que comumente ficavam expostas as mais variadas violências. Assim, as câmaras criaram outra forma de prestar assistência, funcionando da seguinte forma:
Todo aquele que encontrasse um recém-nascido na rua ou que o recebesse diretamente dos respectivos pais deveria recolher a criança e batizá-la. O pároco redigiria então um certificado explicando que o enjeitado estava residindo no domicílio da pessoa que o acolhera e que por ela era bem tratado (VENÂNCIO, 2002, p. 220).
Neste contexto, a adoção passa a ser construída como um ato de caridade, tanto por parte da Igreja, como através da assistência prestada por pessoas ricas. Portanto, não existia um desejo autêntico e verdadeiro de cuidado para com a criança desassistida (MAUX & DUTRA, 2010). Por essa razão, conforme Leão et al. (2014), por muito tempo não houve uma legislação relacionada às crianças que não eram criadas pelas suas famílias, outro fator deve-se à realidade de que no Ocidente sempre existiu uma maior valorização da consanguinidade, criando uma cultura de laço de sangue.
Neste sentido, difundiu-se o mito de que a personalidade dos sujeitos era construída a partir de sua genética. Desta forma, instalou-se um olhar de distanciamento, consequentemente preconceituoso, para os referidos casos, envolvendo a crença na perpetuação de comportamentos advindos do afastamento da família biológica. Assim, devido ao grande número de fatores envolvidos, por muito tempo o processo de adoção não teve atenção necessária (LEÃO et al. 2014).
Em razão a todos esses acontecimentos, Portella (2013) assinala que ainda houve uma morosidade até que fosse criada uma percepção sobre a questão da infância e família. Deste modo, foi apenas com o Código Cível em 1916 que ocorreu a regulamentação da adoção, no entanto, esta previa muitas restrições, além de estabelecer distinções entre filhos biológicos e adotivos.
Atualmente, a Constituição Federal do Brasil, promulgada em 1988, e o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), instituído na década de 1990, depois de grandes mudanças sociais, dispõem em seus artigos o direito à convivência familiar e comunitária, sem discriminações, como um dos direitos fundamentais da pessoa. Conforme explica Mendes et al. (2019) é no seio familiar que a pessoa vivencia suas primeiras relações e é por isso que a relação familiar se caracteriza como um direito imprescindível para o desenvolvimento da criança e do adolescente.
Desta forma, é possível perceber que ainda nos tempos atuais, de forma majoritária, as famílias são constituídas por pessoas que possuem relação de consanguinidade e filiação. Esse fato implica diretamente no ato de entrega e destituição do poder familiar, no qual insiste-se no histórico relativo à ligação biológica, ignorando o fator essencial de desejo e convivência ao realizar o exercício da maternagem (OLIVEIRA, 2016).
Entretanto, é importante observar que essa valorização do vínculo de sangue decorre da histórica naturalização do ato de maternar. Sendo importante destacar, assim, que existem casos que tal relação não é possível, pois não há na família condições para o desenvolvimento da criança/adolescente, mas também pela ausência do desejo, existindo a possibilidade de alguém ter filhos e entregar para adoção (MENDES et al. 2019).
A parentalidade passa a ser compreendida também pela ordem do afeto, que amplia possibilidades para homens e mulheres colocarem-se disponíveis para filiar uma criança e, em contrapartida, possibilita para tantos outros homens e mulheres abrirem mão do exercício de se tornarem pais (SOUZA, 2019, p. 60).
Isto posto, a Lei 12.010 de 2009 (BRASIL, 2009) foi a quem primeiro regulamentou a entrega de crianças, ou seja, tal ato passou a ter previsão legal a partir dela, a qual posteriormente sofreu alterações em seu artigo referente à questão citada, regulada atualmente pela Lei º 13.506, de 2017. Desta forma, o direito da mulher de exercer ou não os cuidados para com a criança passaram a existir, considerando a possibilidade para que a gestante ou a família, de forma responsável, negue o exercício da parentalidade e busque o Poder Judiciário para realizar o processo de doação, contando com o direito ao sigilo (MENDES et al. 2019).
No entanto, apesar de existir uma determinação legal, a construção de um serviço que acolha as mulheres que procuram o Judiciário passou a ser um desafio. Uma vez que, assim como ocorreu com o interesse capitalista no século XVII, a legislação brasileira seguiu reproduzindo o lugar da mulher como objeto de proteção da criança. Isto, considerando que, ainda hoje, não há respaldo no âmbito dos direitos das mulheres que descrevam a forma como o procedimento de acompanhamento destas deve ser conduzido, tornando necessário que algumas inquietações acerca da temática sejam problematizadas (MENDES et al. 2019).
Portanto, a existência dessa nova possibilidade exigiu que durante os anos fosse fundamental maiores explicações acerca do processo e os procedimentos a serem realizados pelas equipes e redes de proteção social. Assim, hoje se pode fazer uso do Estatuto da Criança e Adolescente, de 1990, considerando as alterações mais recentes, que estabeleceram, entre outras coisas, os seguintes artigos:
Art. 13
§ 1º As gestantes ou mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção serão obrigatoriamente encaminhadas, sem constrangimento, à Justiça da Infância e da Juventude.
Art. 19-A - A gestante ou mãe que manifeste interesse em entregar seu filho para adoção, antes ou logo após o nascimento, será encaminhada à Justiça da Infância e da Juventude.
§ 1º A gestante ou mãe será ouvida pela equipe interprofissional da Justiça da Infância e da Juventude, que apresentará relatório à autoridade judiciária, considerando inclusive os eventuais efeitos do estado gestacional e puerperal.
Ao observar os artigos supracitados, é imprescindível levar em conta que a legislação indica o encaminhamento da mulher ao judiciário, além disso, garante que não deve haver nenhum constrangimento para esta. Contudo, não há regulamentação ou política pública que ampare a mulher, ou seja, não existe o apontamento de como o serviço deve ser estruturado, ficando a cargo de cada município desenvolvê-lo ou não, no entanto sendo algo urgente de ser estruturado e normatizado.
A autora Andrade (2019) detalha que a gestante deve ser ouvida por uma equipe multidisciplinar, geralmente composta por assistente social e psicólogo, fazendo articulações na rede, promovendo assim cuidado e atenção a esta, pois se busca assim atenuar o desgaste psicológico envolvido no processo de entrega, bem como, evitar processos de estigma relacionado a sua decisão.
No entanto, a crença do instinto materno que domina o imaginário social pode interferir no direito da gestante em realizar a entrega da criança, ainda que essa seja sua vontade. No Brasil, a situação vivida e os motivos da mulher que tomam tal decisão ainda são negligenciados, o que consequentemente fomenta os julgamentos sociais acerca desta mulher, tornando-a invisível (FARAJ et al. 2017).
O fato de ouvir a mulher que procura a justiça e tornar visível a sua demanda de realizar o processo de entrega legal da criança gerada é essencial, entendendo que existem diversos fatores implicados. Tanto da ordem intrapsíquica, como extrapsíquica, a decisão da gestante possui caráter individual, ainda que se apontem motivos, não há como vivenciar as mesmas motivações (MENEZES, 2007).
Portanto, o desejo de filiar uma criança não pode ser imposto, entendendo que a origem desse sentimento está para além dos laços de sangue. Sustentando essa afirmação, Menezes (2007, p. 56) valida que em relação a entrega “os motivos, sejam quais forem, precisam ser compreendidos, a criança acolhida e a mãe assistida”. Logo, a decisão da entrega precisa ser respeitada, pois existe como uma possibilidade de vida.
A Gestalt-terapia foi criada como uma abordagem da Psicologia, que possui sua forma particular de perceber as questões, envolvendo os conceitos de mundo e pessoa. Ela conserva uma visão de mundo como um campo de forças, um lugar aberto às possibilidades de vida, mas que funciona como uma configuração que depende do ser humano. Então, é partindo da forma que se entende o mundo que decorre o conceito de pessoa (RIBEIRO, 2011).
Sendo assim, a Gestalt-terapia valoriza a visão holística do homem, percebendo este como um todo. Neste sentido, o autor Ribeiro (2011) considera que o conceito de pessoa representa um conjunto integrado de formas que os seres humanos têm de sentir, pensar, falar e fazer, o que permite um modo de funcionar no aqui-e-agora como uma totalidade, resultado de um processo em permanente construção e relação com o mundo.
À vista disso, um dos conceitos que contribuem para o entendimento acerca do homem e seu funcionamento é o de figura e fundo, estudado incialmente pela Psicologia da Gestalt. Essencialmente, o conceito de figura e fundo preocupa-se em determinar os mecanismos da percepção fisiológica e psicológica, que afeta as relações experienciadas pelo indivíduo com o meio (GINGER & GINGER, 1995). Esse processo pode ser definido da seguinte forma:
Todo campo perceptivo se diferencia em um fundo e em uma forma, ou figura. A forma é fechada, estruturada. É a ela que o contorno parece pertencer. Não podemos distinguir a figura sem um fundo: a Gestalt se interessa por ambos, mas, sobretudo, por sua inter-relação (GINGER & GINGER, 1995, p. 38).
Ou seja, este processo de percepção acontece, conforme Ribeiro (2012), ao destacar um foco (figura) na configuração total, o que consequentemente provoca a formação de um fundo, que é responsável por dar forma à figura emergente e não aparece como principal. Desta maneira, também a forma como as questões humanas são percebidas na história dependem de fatores objetivos e subjetivos, atingindo as relações entre o organismo e o meio.
Assim, é possível compreender a relação que se estabelece do conceito explicitado com o entendimento acerca dos papéis sociais baseados nas diferenças anatômicas. Isso dado que, até o século XVIII, havia maior interesse dos estudiosos em identificar as semelhanças existentes entre homens e mulheres e seus órgãos sexuais. É apenas com a ascensão do capitalismo que começa a existir a busca em reconhecer as diferenças como figura, pois estas passaram a ser politicamente necessárias (ZANELLO, 2020).
Isto posto, foi através da concentração nas diferenças físicas que houve a naturalização das diferenças sociais, percebidas como fundo no referido contexto. Importa citar que essas diferenças sociais estão relacionadas à construção das relações de gênero. Corroborando com o exposto, a autora Badinter (1985) apresenta que, tradicionalmente, em todas as comunidades existentes, havia funções realizadas por pessoas de um determinado grupo e proibidas para outros.
Logo, entende-se que essas separações foram feitas com foco nas diferenças sexuais, motivada por diversas mudanças na sociedade, que passaram a servir como justificativas para reproduzir desigualdades sociais. Pois as mulheres eram vistas como inferiores e incompletas e, por isso, não possuíam o mesmo acesso às possibilidades oferecidas aos homens, como por exemplo, o estabelecimento da distinção entre os espaços públicos para o gênero masculino e espaços privados para o gênero feminino, restringindo as capacidades das mulheres (ZENELLO, 2020).
Desse modo, a estruturação do sistema capitalista, junto com as separações de papéis de gênero bem estabelecidas, produziu, durante muitas décadas, transformações sociais que tiveram por fim constituir e cristalizar um lugar específico para a mulher como ser no mundo. Uma vez delimitada a imagem da mulher, que passou a se relacionar com a maternidade, é possível perceber novamente a perspectiva do conceito de figura e fundo.
Pois, a criança foi fixada como principal foco da atenção materna, cuja função da maternidade passou a ser figura na vida das mulheres como uma possibilidade única de ser (BADINTER, 1985). Consequentemente, a percepção do fundo foi constituída por outros aspectos que fazem parte da existência humana, mas que não eram considerados, que passaram a figurar inicialmente com o movimento de expansão do capitalismo, uma vez que elas assumiram espaços públicos destinados aos homens.
Essa mudança de percepção acerca de cumprir o papel de ser mãe, tido como figura, e as outras possibilidades que se apresentam na vida das mulheres, ainda é visto com dificuldade, pois vai de encontro à crença social de perpetuação do lugar da mulher atrelado à maternidade. Sendo assim, é possível relacionar esse processo de estruturação do ser com o conceito de self a partir da Gestalt-terapia.
Comumente, a palavra “self” é percebida como um sinônimo de “eu”, deixando entender que há um lugar psíquico em que o eu existe em mim. Porém, para a Gestalt-terapia o self não deve ser compreendido como uma estrutura fixa, mas sim variável, que didaticamente pode ser reconhecida por ocupar um lugar na fronteira do organismo e está em constante inter-relação com outros conceitos da teoria. Assim, considerando o contexto de construção contínua do ser, convém destacar o conceito de self (KIYAN, 2006).
Chamamos self ao sistema complexo de contatos necessários ao ajustamento no campo imbricado (...) não se deve pensar o self como uma instituição fixada; ele existe onde quer que haja de fato uma interação de fronteira, e sempre que esta existir (PERLS, HEFFERLINE, GOODMAN, 1997, p. 179).
Neste sentido, o self não deve ser considerado como um sistema de funções que fazem parte do tecido celular, mas como uma relação de contato e troca energética entre o organismo e o meio. Essa relação age de modo a permitir a manutenção de formas já conhecidas, mas também provoca a destruição de modos antigos, com a consequente assimilação de novas formas de ser no mundo, portanto, essa experiência acontece de maneira a modificar-se sempre (GRANZOTTO, GRANZOTTO, 2004).
Logo, compreende-se que o self, para a abordagem da Gestalt-terapia, não é uma estrutura fixa e rígida, mas sim um processo, que inclusive está para além do seu ser, destacando assim o ser no mundo de forma singular. Neste sentido, esse processo se configura de forma pessoal, como uma maneira própria de agir e reagir às circunstâncias do momento em um determinado campo em que, através do contato com o meio, motiva-se um permanente ajustamento criador (GINGER & GINGER, 1995).
Isto acontece, pois, uma vez impermanente, ele se autorregula para atender as necessidades organísmicas e a do meio. Desse modo, através do contato e consequente satisfação das necessidades emergentes, configura-se uma Gestalt impulsionada pelo self, conhecida pelo conceito de figura e fundo quando em contato com o mundo. Logo, o self passa a agir como um instrumento de integração das experiências (KIYAN, 2006).
Desta forma, levando em consideração a construção e valorização da maternidade no tempo, as mulheres se desenvolvem e se constituem em culturas que percebem a afirmação da identidade feminina através do exercício da maternagem. Sendo assim, ao pertencer a um meio que repetidamente afirma a maternidade como um dever, cristalizando o papel social da mulher, isto figura como uma necessidade, existindo então a busca para que a satisfação desta aconteça (COTRIM, 2017).
Apesar disso, como o self está em constante mudança, é possível perceber novas organizações nas constituições subjetivas da mulher, que se posiciona de formas diferentes as conhecidas. No caso da mulher que realiza a Entrega, destaca-se a experiência pessoal dela, que pode ou não se perceber como mãe, ainda que não exerça a maternagem. Além disso, ainda que ela não se veja maternando um filho, isso não quer dizer que ela nunca mais se verá nessa posição, sendo possível que ela deseje maternar outro filho. Portanto, sabendo que a estruturação do self decorre dos contatos que a pessoa realiza com outras pessoas e com o campo, sofrendo assim influências, o conceito de self pode ser apropriadamente compreendido através da Teoria de Campo.
A Teoria de Campo foi essencial para construção da Gestalt-terapia, pois apresenta a visão de que as pessoas devem ser entendidas como seres que se constituem de forma integrada e se relacionam dentro de um campo. Deste modo, um ser humano nunca está essencialmente isolado, pois há sempre uma relação de contato com outras pessoas e com o meio que está inserido, o que implica em perceber as influências de cada contexto especifico (JOYCE, SILLS, 2016).
Essa lógica decorre da abordagem holística da teoria de campo, que considera os fenômenos e as pessoas como um todo, em seus variados aspectos. Conforme Yontef (1998, p. 185), para a teoria de campo “cada fenômeno é estudado no contexto de uma complexa teia de forças inter-relacionadas, que se reúnem no tempo e no espaço, formam uma fatalidade unificada chamado campo, e mudam dinamicamente com o tempo”.
Além disso, a abordagem de campo também é conhecida por espaço vital psicológico, forma utilizada inicialmente por Lewin, segundo Rodrigues (2013). Este aponta que o conceito de campo é composto pela pessoa e o ambiente que integram os fatos determinantes no comportamento do indivíduo em um dado momento, considerando os aspectos corporais e emocionais, bem como as circunstâncias atuais, históricas, culturais, econômicas e sociais.
Assim, a perspectiva de campo é variável e definida por quem o estuda, dependendo do que será estudado. Segundo o autor Yontef (1998), o campo pode se apresentar como pequeno ou grande, físico ou não e, ainda, observado através dos sentidos humanos ou não. Na Gestalt-terapia as pessoas são consideradas em seus campos organismo/ambiente, pois as ações delas se integram à relação com o meio.
Logo, é fundamental que o campo seja compreendido de forma fenomenológica, pois não existe como é, mas sim para a pessoa em um momento determinado. Desta maneira, os fenômenos que emergem na realidade precisam ser observados pelo campo todo, constituído pelas experiências do sujeito, uma vez que o campo organismo/ambiente é dinâmico e tem o poder de determinar a pessoa (YONTEF, 1988).
Em toda e qualquer investigação biológica, psicológica ou sociológica temos de partir da interação entre o organismo e o seu ambiente (...) O organismo/ambiente humano naturalmente não é apenas físico, mas social. Desse modo, em qualquer estudo de ciências do homem, tais como fisiologia humana, psicologia ou psicoterapia, temos de falar de um campo no qual interagem pelo menos fatores socioculturais, animais e físicos (PERLS, HEFFERLINE, GOODMAN, 1997, p. 42).
Sendo assim, entende-se que para uma compreensão mais elaborada das situações é necessário perceber que o que acontece no campo possui relação com seus elementos e precisa ser observado na interação, pois afeta ao todo. Contudo, diante das variadas possibilidades que afetam as pessoas e suas relações, torna-se dificultoso destacar todas as influências, sendo algumas mais significativas para a situação proposta.
Neste caso, é fundamental salientar que as interseccionalidades, em especial de raça e classe, exercem forte influência no contexto do campo, percebidas nas vivências das relações (ZANELLO, 2020). Entretanto, ao pensar na construção do desejo pela maternidade e a consequente valorização materna, especifica-se a influência de gênero como dispositivo necessário para a construção do lugar da mulher na sociedade.
A autora Zanello (2020) expõe que repetições são interpeladas e sustentadas através de scripts culturais, estabelecendo modos de sentir, se expressar e pensar, ou seja, formas rígidas de se colocar como ser no mundo. Com o propósito de criar e atualizar esses modos de ser, há o desenvolvimento do que se entende pelo conceito “Tecnologias de Gênero”. Essas tecnologias, como afirma Caldeira e Paraíso (2016, p. 758), é um “mecanismo que aciona técnicas, procedimentos, práticas e discursos para produzir sujeitos que se identifiquem como homens e mulheres”, um exemplo básico são as mídias, através do cinema, desenhos e propagandas.
Desta forma, levando em consideração a história da percepção de gênero já mencionada, destaca-se que mediante a repetição e representação de atos padronizados, houve aos poucos a cristalização do entendimento acerca dos papéis sociais. Como as mídias influenciam diretamente nas relações sociais, todo o campo organismo/ambiente é atingido, o que provoca uma relação de integração das pessoas ao seu meio. Neste sentido, o ideal materno que se constrói na dinâmica das relações dentro do campo é atravessado pela perspectiva cultural.
Portanto, a forma como a maternidade ou a não maternagem é exercida pelas mulheres se fundamenta na experiência destas, porém há a forte pressão social e as variadas influências existentes no campo organismo/ambiente para que a função materna seja concretizada. No caso das mulheres que realizam a entrega, destaca-se diversas fragilidades em seu campo para além do desejo ou não de maternar, inclusive fragilidade de suporte social. Por isso, sendo a Gestalt-terapia uma abordagem que valoriza os processos de contato na interação com o meio, fica evidente a importância dos ajustamentos criativos como uma forma de lidar com o campo.
Na Gestalt-terapia, existe o entendimento de que o ser humano vive constantemente um processo de autorregulação, fisiológica ou psicológica, que visa a satisfazer as necessidades emergentes em diversas condições. Um dos processos que sustenta essa regulação é a busca pelo contato, que acontece na fronteira do campo organismo/ambiente, por esse motivo, os autores Perls, Herfferline e Goodman (1997, p. 45) estabeleceram que “todo contato é ajustamento criativo do organismo e ambiente”.
Isto porque ainda que o processo de autorregulação provoque ajustamentos conservativos, o campo está continuamente sendo perpassado por mudanças, existindo então diferentes condições de vida para os organismos e o meio (MENDONÇA, 2012). Neste sentido, é necessário que o ser humano se posicione de forma ativa e criativa, considerando que a criatividade é a capacidade de lidar com as adversidades e reinventar novas formas de estar no mundo.
Desta forma, os ajustamentos criativos possibilitam que a pessoa mantenha seu desenvolvimento e satisfaça suas necessidades físicas e psicossociais. À vista disso, o autor Yontef (1998) pensa o processo de ajustamento criativo a partir do relacionamento entre pessoa e meio, em que é possível perceber responsabilidade nas escolhas de sua vida, através da habilidade de criar condições que conduzam a autorregulação.
Logo, os ajustamentos criativos também dizem respeito à capacidade de se responsabilizar pelas escolhas tomadas a partir das experiências decorrentes do encontro com os outros. Além disso, é essencial que os seres sejam capazes de se reposicionar de forma pessoalizada e subjetiva, pois se não há possibilidade de escolher o contexto de vida e o que acontece, há a liberdade de escolher como viver as experiências e atribuir ou não sentido a estas (CARDELLA, 2014).
Seguindo essa lógica, é possível discutir maternidade e não maternagem através da ideia de ajustamento criativo. Primeiramente, ao considerar a forma como o exercício da função materna é posto e exigido socialmente, demandando que as mulheres se posicionem de forma preestabelecida, entretanto, o que ocorre essencialmente é o processo de ajustamento criativo de acordo com cada realidade e possibilidade, que pode ser percebido também na mulher que manifesta a vontade de realizar a entrega.
Há recursos que vêm da escuridão, recursos que podem ser criados em meio ao desespero e à desorientação. É uma história de reposicionamento criativo diante das circunstâncias, é a recontextualização do sofrimento e do desespero, ou seja, a capacidade de sustentar-se numa situação, de forma diferente, usando os recursos disponíveis (CARDELLA, 2014, p. 103).
Desse modo, a entrega da criança pode surgir como o melhor recurso encontrado pela mulher para satisfazer suas necessidades em um determinado contexto. Sendo assim, uma forma diferente, mas possível de ajustar-se criativamente, o que não anula a dor e/ou sofrimento, mas permite novas formas de ser e estar no mundo, no sentido de manter-se ativa e responsável em seu processo de autorregulação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desenvolvimento deste artigo permitiu constatar que apesar de ser um campo rico de pesquisa, abordar o tema da não maternagem e Entrega Legal mostrou-se desafiador. Isto, entendendo a maternidade como uma construção social que se estabelece de forma rígida na sociedade, então a mulher que não deseja ou não pode maternar torna-se vítima do julgamento social.
Além disso, foi possível conduzir a presente pesquisa articulando esses saberes com os conhecimentos e conceitos da Gestalt-terapia. Partindo da compreensão de que a citada abordagem valoriza a visão holística e relacional do ser no mundo, destacando a construção do self, as influências do campo nos modos de agir dos sujeitos e a capacidade de ajustar-se criativamente nas situações da vida, percebendo o mundo como um espaço aberto às possibilidades do ser, especialmente no que diz respeito à maternidade e não maternagem.
Por fim, ressaltado esses pontos, é fundamental salientar a relevância do estudo para o ambiente acadêmico, pois a escassez de pesquisas relevantes para o tema na área da Gestalt-terapia se apresentou como uma dificuldade para o desenvolvimento dos conhecimentos apresentados. Neste sentido, é relevante que seja desenvolvido estudos acerca da maternidade, inclusive destinados a escutar e acolher essas mulheres. Além disso, percebe-se também que o trabalho desta temática pode ser benéfico para além dos muros acadêmicos, auxiliando na construção de um novo olhar para as diferentes realidades das maternidades e formas de ser mulher, agregando valor à sociedade em geral e, especificamente, profissionais de saúde e justiça.
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Yasmin Falcão
Faculdade Católica do Rio Grande do Norte
Correspondência: yasminfalc@gmail.com
Revista IGT na Rede, v. 21, nº 42, 2025, p.1-32 DOI 10.5281/zenodo.15784624
Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526