Green book á luz da Gestalt terapia

Green book in the light of Gestalt therapy

Anna Vilar Resende Araujo

Bruna Gabriela Alves Moreira da Silva

Mikaela Ferreira Souto

Faculdade de Ciências Biomédicas de Cacoal

Resumo
Este artigo analisa o filme Green Book (2019), dirigido por Peter Farrelly, sob a perspectiva da Gestalt-terapia. A narrativa se passa na década de 1960, nos Estados Unidos, e retrata o improvável vínculo entre Don Shirley, um pianista negro de renome, e Tony Lip, um motorista branco inicialmente preconceituoso. A relação entre os dois se transforma ao longo de uma turnê pelo sul racista do país. A partir da abordagem gestáltica, são explorados conceitos como ciclo de contato, ajustamento criativo, awareness e gestalt inacabada, refletindo sobre os processos de mudança, aceitação e desenvolvimento pessoal.

Palavras Chaves: Racismo, Gestalt-terapia, Estados Unidos.

Abstract

This article analyzes the film Green Book (2019), directed by Peter Farrelly, from the perspective of Gestalt therapy. The narrative is set in the 1960s in the United States and portrays the unlikely bond between Don Shirley, a renowned black pianist, and Tony Lip, a white driver who is initially prejudiced. The relationship between the two transforms over the course of a tour through the racist South of the country. From the Gestalt approach, concepts such as the contact cycle, creative adjustment, awareness and unfinished gestalt are explored, reflecting on the processes of change, acceptance and personal development.

Keywords: Racism, Gestalt therapy, United States.

A escolha do filme Green Book para uma análise à luz da Gestalt-terapia justifica-se pela maneira como a obra expõe o encontro entre diferenças sociais, raciais e emocionais, proporcionando um terreno fecundo para reflexões sobre o contato humano autêutico. A história se passa na década de 1960, em um contexto de forte tensão racial e de desigualdade nos Estados Unidos. A presenta o relacionamento entre Don Shirley, um pianista negro refinado, e Tony Lip, um italiano-branco com pouca escolaridade e comportamentos rudes.

Sob a perspectiva gestáltica, esse encontro evidencia o movimento da consciência através do contato com o outro, provocando transformações significativas em ambos os personagens. Como define Ribeiro (2021), o contato na Gestalt-terapia é o ponto de encontro entre organismo e ambiente, onde ocorre a troca e a emergência da consciência, é através do contato que a pessoa se relaciona com o mundo, identificando suas carências e anseios, e se ajustando ao meio.

Ao iniciar a turnê no sul dos EUA, região marcada historicamente pelo racismo (GONÇALVES et al., 2017), Don Shirley enfrenta diversas situações de discriminação racional. A resistência inicial de Tony em criar um vínculo emocional com o patrão negro revela uma gestalt inconclusa — marcada pelo preconceito. No entanto, através do contato contínuo e da experiência compartilhada, essa configuração se move em direção a um novo ajuste criativo, reorganizando-se em uma percepção mais integrada e menos fragmentada. A jornada de ambos é marcada por momentos que ilustram conceitos-chave da Gestalt-terapia, como o ajustamento criativo (Berri, 2020) – a capacidade de se adaptar de forma singular às demandas do ambiente. Don precisa se ajustar a um mundo que não o aceita plenamente nem como negro nem como artista. A sua busca por pertencimento é atravessada por angústias e ressentimentos, como quando é impedido de usar banheiros ou frequentar os espaços onde se apresenta.

Cardella (2002) destaca que a awareness é um estado ampliado de consciência sobre si e o meio, o que pode ser observado em Don nas cenas em que ele reflete sobre sua solidão e sobre o papel que ocupa socialmente. Um exemplo disso é a cena em que ele, após ser humilhado, se refugia em um bar e entra em conflito consigo mesmo, ilustrando tanto o ressentimento quanto a culpa mencionada por Yontef (1998).

Em outro momento crucial, o filme aborda com sensibilidade a questão da sexualidade marginalizada quando Don é surpreendido em intimidade com outro homem e preso pela polícia. Essa cena expõe não apenas sua vulnerabilidade social, mas também a sobrecarga de gestalts inacabadas (SANTOS; FARIA, 2006) — ciclos emocionais interrompidos pela repressão e pelo auto aprisionamento em uma identidade fragmentada. A intervenção de Tony, ao defendê-lo, transcende a relação contratual de motorista e patrão: ao se colocar como aliado ativo, ele rompe a fronteira do preconceito e estabelece um contato autêntico (HEFFERLINE; GOODMAN; PERLS 1973), transformando a dinâmica da relação. Esse movimento exemplifica o conceito de ajuste criativo na Gestalt-terapia — onde o organismo (Don) reorganiza seu campo perceptivo a partir da experiência de aceitação incondicional, ainda que inicialmente mediada por interesses práticos.

A solidariedade de Tony, portanto, não apenas resgata Don da violência institucional, mas também opera como uma ferramenta de fechamento de gestalts, permitindo que novas configurações emergem no espaço relacional antes dominado por hierarquias rígidas. A Gestalt aberta relacionada ao abandono também se evidencia quando Don tenta evitar que Tony o deixe, oferecendo-lhe mais dinheiro. Sua dificuldade em lidar com perdas e sua tendência a resolver conflitos por meio de recompensas materiais remetem às formas de ajustamento disfuncionais que ele aprendeu ao longo da vida.

A evolução emocional de Don se intensifica nas etapas do ciclo de contato. Na fase de pré-contato (CASTELLO & MORAES, 2009), ele se sente afetado pelas injúrias externas, ainda sem elaborar profundamente suas emoções. Em seguida, na fase de contato, começa a agir para se ajustar, como quando decide tocar em um bar para negros, assumindo um estilo musical que ele realmente aprecia. Por fim, no pós-contato (GINGER, 1995), Don aceita passar o Natal com a família de Tony, encerrando simbolicamente a gestalt da solidão e abrindo-se à possibilidade de novos vínculos.

Esse gesto também representa um insight – a formação de uma nova gestalt (MAYER, 1995) – pois Don compreende que não precisa mais se manter isolado para preservar uma imagem. Ele se permite vivenciar a relação com autenticidade.

Por outro lado, Tony também vivencia seu próprio ciclo, iniciando com resistências à convivência e encerrando com uma nova gestalt de amizade e respeito. Através do contato com Don, ele também confronta suas crenças e se transforma.

Tessaro e Ratto (2015) ressaltam que as gestalts inacabadas podem influenciar nossas relações atuais e que seu reconhecimento é essencial para viver de forma plena. Nesse sentido, a trajetória de ambos revela como o contato autêutico, a empatia e o ajustamento criativo permitem transformar relações baseadas na desigualdade em vínculos de respeito e acolhimento.

Conclui-se que Green Book oferece um terreno potente para pensar a Gestalt-terapia em sua dimensão relacional. Ao retratar personagens em constante contato com suas limitações e possibilidades, o filme evidencia o potencial de cura das relações autênticas. A história de Don e Tony ilustra como o processo terapêutico pode acontecer fora do setting clínico, no encontro humano cotidiano, através da consciência, do apoio e da presença.

Referências

Berri, B. (2020). A esperança como ajustamento criativo: Reflexões dos processos de saúde, doença e morte em Gestalt-terapia. Revista da Abordagem Gestáltica: Phenomenological Studies, 26(3), 351–360.

Burke, J. (Produtor), & Farrelly, P. (Diretor). (2019). Green Book [Filme]. Universal Pictures.

Cardella, B. H. P. (2002). A construção do psicoterapeuta: Uma abordagem gestáltica. Summus Editorial.

Castello, L. do N., & Moraes, K. F. B. (2009). O estabelecimento do contato afetivo durante a gestação, sob a perspectiva da Gestalt-terapia. Revista IGT na Rede, 6(10), 144–169.

Ginger, S. (1995). Gestalt: Uma terapia do contato. Summus Editorial.

Gonçalves, R. F., et al. (2017). A tradução de dialetos do sul dos Estados Unidos no romance As aventuras de Huckleberry Finn. Revista Belas Infiéis, 6(3).

Hefferline, R. F., Goodman, P., & Perls, F. S. (1973). Gestalt therapy: Excitement and growth in the human personality. Penguin.

Mayer, R. E. (1995). The search for insight: Grappling with Gestalt Psychology’s unanswered questions. In R. J. Sternberg & J. E. Davidson (Eds.), The nature of insight (pp. 3–30). MIT Press.

Ribeiro, J. P. (2021). O ciclo do contato (9ª ed. rev. e atual.). Summus Editorial.

Santo Barreto, C. do E. (2017). Um estudo sobre a Gestalt-terapia na contemporaneidade. Revista da Abordagem Gestáltica, 23(1), 94–101.

Santos, L. P., & Faria, L. A. de F. (2006). Ansiedade e Gestalt-terapia. Revista da Abordagem Gestáltica: Phenomenological Studies, 12(1), 267–277.

Tessaro, L. G. S., & Ratto, C. G. (2015). Pessoas que dependem de drogas: Ensaio de figuras e fechamentos. Revista da Abordagem Gestáltica: Phenomenological Studies, 21(1), 83–94.

Yontef, G. M. (1998). Processo, diálogo e awareness: Ensaios em Gestalt-terapia. Summus Editorial.

Anna Vilar Resende Araujo

Bruna Gabriela Alves Moreira da Silva

Mikaela Ferreira Souto

Faculdade de Ciências Biomédicas de Cacoal

Correspondência: annakarolynevilar@gmail.com

Correspondência: brunah.gabi@gmail.com

Correspondência: mikaellaferreirasouto@hotmail.com

Revista IGT na Rede, v. 22, no 43, 2025, p.1-32 DOI 10.5281/zenodo.17434332

Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs ISSN: 1807-2526