ARTIGO

Jogo Eletrônico Celeste: Um Olhar Gestáltico

Heavenly Electronic Game: A Gestaltic Look

Ronilda Lima de Miranda


RESUMO

Celeste é um jogo eletrônico de plataforma produzido por canadenses com a participação de brasileiros e premiado como "Melhor Jogo Independente" e "Jogo Mais Impactante" no "The Game Awards 2018" nos EUA. O jogo tem como narrativa a aventura de uma menina chamada Madeline em subir uma montanha em cuja jornada evidencia-se conteúdos emocionais relacionados à síndrome do pânico e à depressão. O presente trabalho pretende discutir a proposta do jogo sob o olhar da Gestalt-terapia, baseado no seu aporte epistemológico (Contato, Awareness, Ajustamento Criativo e Figura e Fundo) e na Teoria Paradoxal da Mudança. Pelo olhar Gestáltico, a jornada de Madeline é a busca de si mesmo em que, no contato com as próprias fragilidades, reconhecendo-as e aceitando-as, torna-se aware de si. Nesse sentido, e, dentro da perspectiva vivencial do ato de jogar, a narrativa de Celeste pode promover ao jogador uma experiência de autoconhecimento e de ampliação das suas percepções.

Palavras-chave: Jogos eletrônicos; Celeste; Gestalt-terapia; Teoria Paradoxal da Mudança.


ABSTRACT

Celeste is an electronic platform game produced by Canadians with the participation of Brazilians and awarded as "Best Independent Game" and "Most Impactful Game" at "The Game Awards 2018" in the USA. The game has as narrative the adventure of a girl named Madeline to climb a mountain whose journey reveals emotional content related to panic syndrome and depression. The present work intends to discuss the proposal of the game from the perspective of Gestalt-therapy, based on its epistemological contribution (Contact, Awareness, Creative Adjustment and Figure and Background) and on the Paradoxical Theory of Change. From the Gestalt perspective, Madeline's journey is the search for herself in which, in contact with her own weaknesses, recognizing and accepting them, she becomes aware of herself. In this sense, and, within the experiential perspective of the act of playing, Celeste's narrative can promote to the player an experience of self-knowledge and expansion of their perceptions.

Key words: Electronic games; Celeste; Gestalt-therapy; Paradoxical Theory of Change.

 

INTRODUÇÃO

O século XXI é marcado pela crescente ascensão das tecnologias e pela sua inserção cada vez mais ampla no cotidiano das pessoas. No que tange à eletrônica e à informática, a internet e os jogos eletrônicos tornaram-se cada vez mais populares sendo o videogame uma das mais importantes atividades de lazer para crianças, jovens e adultos.

Segundo Gamehall (2018), Celeste é um jogo eletrônico desenvolvido pelos canadenses Matt Thorson e Noel Berry, lançado em janeiro de 2018 para Microsoft Windows, Nintendo Switch, PlayStation 4, Xbox One, macOS, e Linux. O jogo recebeu aclamação da crítica e foi premiado como "Melhor Jogo Independente" e "Jogo Mais Impactante" no "The Game Awards 2018", também conhecido como o "Oscar dos Games" realizado em Los Angeles nos Estados Unidos, também indicado para "Jogo do Ano" e "Melhor Trilha Sonora" nesta mesma premiação.

O presente trabalho pretende discutir a proposta do jogo eletrônico Celeste sob o olhar da Gestalt-terapia, mais especificamente através de seu aporte epistemológico e dos seus conceitos centrais, como por exemplo, Contato, Awareness, Ajustamento criativo e Figura e Fundo e na Teoria Paradoxal da Mudança.

Por meio de um levantamento bibliográfico em torno do tema, buscou-se estabelecer um diálogo entre a narrativa do jogo e a Gestalt-terapia, além de refletir acerca das inúmeras possibilidades vivenciais experimentadas pelo jogador ao jogar Celeste.

O trabalho aspira ser motivo de incentivo de pesquisas sobre o tema jogos eletrônicos, tendo em vista a escassa literatura acerca do assunto sob a ótica da Gestalt-terapia.

O JOGO CELESTE

De acordo com Gamehall (2018), Celeste está classificado como um jogo 2D por utilizar imagens bidimensionais, utiliza uma forma de arte digital chamada pixel art em baixa resolução, na qual as imagens são criadas ou editadas tendo como elemento básico os pixels, elementos gráficos provenientes de sistemas computacionais muito utilizados nos jogos produzidos na década de 80 e com isso, apesar da sua alta tecnologia, traz um aspecto de visual mais "retrô" e tom nostálgico. Entretanto, Couture (2018) ressalta que o menu do jogo e os diálogos entre os personagens da história se apresentam em tecnologia 3D.

Gamehall (2018) esclarece que é um jogo de plataforma, composto por dez capítulos (fases), inspirado nos jogos de plataforma da era Nintendo, em que o jogador corre e pula entre plataformas e obstáculos, enfrentando inimigos e coletando objetos bônus. Está enquadrado na classe dos jogos independentes por ter sido desenvolvido por um grupo de pessoas sem a participação de financiamentos de grandes empresas produtoras, inclusive conta com a produção de brasileiros do estúdio MiniBoss: os artistas Amora Bettany e Pedro Medeiros, além da gerente de operações Heidy Motta.

Carli (2018) revela que Celeste não é o nome da protagonista do jogo, e sim de uma enorme e misteriosa montanha situada no Canadá a ser escalada pela protagonista Madeline. Uma montanha gigantesca com mais de 700 telas de desafios de plataformas exigentes carregadas de segredos ardilosos que requer jogadas precisas de saltos, dash aéreo (arrancada aérea) e escaladas. O jogo traz também outras configurações que o tornam mais desafiador ou mais divertido, onde cada morte é uma lição e os renascimentos são rápidos permitindo que o jogador retome a escalada ainda na mesma fase.

Segundo Carli (2018) e Craddock (2018), a aventura traz uma narrativa que cativa e prende a atenção do jogador com cenários e visuais diversificados, uma trilha sonora pegajosa com sons de piano em um "estilo jazzístico de canção de ninar" e sons de sintetizadores que dão o clima vintage.

Apesar do ritmo da música se manter sempre mais baixo, Couture (2018) destaca que  a trilha sonora é flexível e dinâmica que caracteriza os movimentos, mas de uma forma mais lenta com uma constante sólida em seu núcleo. Enquanto os sintetizadores exploram as partes em constante mudança de Madeline em sua jornada, há sempre um som suave de piano.

Além disso, Gamehall (2018) identifica que há uma jogabilidade acessível, compatível com a sua classificação indicativa (10 anos), porém dinâmica e cheia de desafios que exigem reflexos e agilidade do jogador no uso do controle.

Castruita (2018) evidencia que o design de Celeste foi projetado com o objetivo de fazer com que o crescimento do personagem acompanhasse o crescimento do jogador, de modo que, à medida que Madeline vai crescendo e melhorando, o jogador também vai crescendo e melhorando em novas habilidades, mas o crescimento real do jogador neste gênero vem da maestria e compreensão para a história do jogo.

A protagonista da história, Madeline, é uma jovem cativante e encantadora que se propõe a escalar a montanha chamada Celeste com um objetivo que nem ela mesma conhece, ela simplesmente quer subir a montanha, como se fosse algo que ela tivesse que fazer. Na base da montanha tem uma casa onde ela encontra uma senhora idosa e, ao lhe informar que vai subir a montanha, recebe respostas desencorajadoras, misteriosas e até assustadoras como: "a montanha mexe com as pessoas, geralmente elas não retornam". E de fato, uma das primeiras coisas que Madeline encontra no seu trajeto é um memorial de pessoas que morreram na escalada. Ela ignora o que encontra e continua a sua aventura (CELESTE A HISTÓRIA…, 2018).

No decorrer da escalada, surgem outros personagens que compõem a narrativa do jogo. Um dos primeiros personagens se chama Theo, um outro aventureiro que Madeline encontra e que lhe diz que não pretende chegar ao cume da montanha, só quer tirar algumas fotos a fim de conseguir mais seguidores em uma rede social. Theo se mostra agradável, faz companhia para Madeline em vários momentos da sua jornada (CELESTE A HISTÓRIA…, 2018).

Nesse ínterim, Madeline encontra um espelho e seu reflexo mostra uma forma similar a ela, esse espelho é quebrado e a forma se desprende do espelho tomando vida própria. Instantes depois, essa forma se identifica como "Parte de mim", ou seja, "parte de Madeline". Ao conversarem, Madeline percebe que as intenções de "parte de mim" não são nada boas, suas palavras são desmotivadoras, agressivas e "parte de mim" diz que quer se juntar a ela. Madeline consegue escapar e julga ter sido apenas um sonho (CELESTE A HISTÓRIA…, 2018).

Seguindo seu caminho, Madeline encontra um grande hotel fantasmagórico que ficava na montanha e lá conhece o dono do hotel, o senhor Oshiro, que se mostra muito receptivo com ela, insiste para que ela fique no hotel, já que não recebe clientes há muito tempo. A princípio, Madeline não aceita o convite, mas se deixa convencer pelo Senhor Oshiro e, com sua boa vontade, Madeline o ajuda a arrumar o hotel que estava bem bagunçado e cheio de criaturas estranhas (CELESTE A HISTÓRIA…, 2018).

Nessa fase do jogo, "parte de mim" surge novamente e acaba provocando uma briga entre Madeline e o senhor Oshiro, o qual se descontrola e tenta atacá-la e, durante a fuga, Madeline enfrenta outros obstáculos e consegue escapar do hotel mal assombrado e do senhor Oshiro (CELESTE A HISTÓRIA…, 2018).

Continuando sua jornada, Madeline fica cada vez mais próxima de Theo. Os dois passam a se conhecer e durante o diálogo, Madeline conta que sofre de ataques de pânico, que se sente triste e vazia e que acredita que subir a montanha a ajudaria a se recompor e a se completar. Theo fala sobre seu avô como sua grande inspiração de vida, revela que tem uma irmã chamada Alex, muito parecida com Madeline, que era fotógrafo e que se demitiu do seu emprego porque não se sentia feliz com o que fazia (CELESTE A HISTÓRIA…, 2018).

O ponto crucial da história é justamente quando Madeline é absorvida por um espelho, é levada para um lugar escuro e perigoso, com vários caminhos bloqueados, repleto de monstros que perseguem a pobre menina. Ela acha que a grande responsável por aquele pesadelo seria "parte de mim", entretanto "parte de mim" explica que tudo o que acontece ali é fruto do que está dentro de Madeline, que a montanha tem o poder de liberar os demônios internos e o espelho funciona como um amplificador desses conteúdos, tornando-os mais real (CELESTE A HISTÓRIA…, 2018).

"Parte de mim" continua a desencorajar Madeline a continuar sua jornada alegando que ela deveria desistir por não possuir força suficiente e que elas deveriam se juntar para sair daquele lugar (CELESTE A HISTÓRIA…, 2018).

A partir desse ponto, Madeline chega à conclusão de que ela precisa se livrar dessa parte dela. Entende que "parte de mim" é uma presença negativa dentro de si mesma e que precisa se livrar disso para prosseguir sua viagem e atingir seu objetivo (CELESTE A HISTÓRIA…, 2018).

Em Celeste (2018), "Parte de mim" se revolta com a decisão de Madeline, acusa agressivamente a menina de abandoná-la e o resultado disso é que Madeline cai da montanha em um buraco abaixo da base, ou seja, Madeline volta para a estaca zero e o jogador passa para um nível inferior ainda não explorado. Para retomar a montanha, o ambiente se apresenta bem mais pacífico, Madeline encontra novamente a senhora idosa e lhe relata que finalmente entendeu que ela deve aceitar a sua outra parte e que é necessário que elas se unam para alcançar seu objetivo. Em meio a outros conflitos, Madeline convence "parte de mim" a ajudá-la e assim Madeline se reconcilia consigo mesma, adquire novas forças e habilidades apresentadas no jogo, volta à escalada e chega ao topo da montanha.

Grayson (2018) caracteriza Celeste como um jogo introspectivo e silencioso comparado com os jogos anteriores produzidos pela mesma empresa. O jogo se caracteriza por trabalhar determinados conteúdos emocionais que levam à reflexão, cuja experiência pode ser facilmente relacionada a cada jogador. O conteúdo real da história retrata um pouco das experiências pessoais de ansiedade e depressão vividas por um dos seus desenvolvedores, Matt Thorson.

Os jogos eletrônicos sempre foram a grande diversão da infância de Matt Thorson que, por sofrer de ansiedade, tinha os jogos do Nintendo como uma forma de escapar desses sentimentos e funcionavam como uma fuga para questões pessoais que enfrentava na época. Com a sua capacidade criativa e o incentivo de sua mãe, Matt passou a criar jogos tornando-se, ainda muito jovem, um grande desenvolvedor de jogos com um significativo ganho financeiro. Ao despontar como milionário, Matt tinha receio de perder a equipe com quem trabalhou por muito tempo e que considerava como sua família. Aliado a isso, a produção de jogos e o excesso de trabalho agravaram ainda mais seu quadro de ansiedade. Celeste é o reflexo dessa experiência. Madeline lutando com um outro lado fisicamente manifesto dela que representa sua própria depressão e ansiedade. A tentativa de fuga dos próprios medos, inseguranças, angústias, impotência, perdas, através de uma escalada de montanha em busca de paz interior. A partir da aceitação de si mesmo e do olhar compassivo para tais fragilidades se torna possível a tão sonhada chegada ao topo. Através de Madeline, Thorson retratou desejos, sonhos e seus próprios demônios. Thorson queria que Celeste fosse mais do que um jogo (CELESTE THE STORY..., 2018).

JOGOS ELETRÔNICOS E A LITERATURA

A literatura que aborda o tema dos jogos eletrônicos numa perspectiva humanista-fenomenológica existencial é bem escassa e, em se tratando de uma perspectiva da Gestalt-terapia, ela é praticamente inexistente.

Por se tratar de um tema que está em constante e rápida transformação, especialmente considerando as atuais mudanças de comportamento que norteiam a crise sanitária provocada pela pandemia da COVID-19, utilizou-se os trabalhos realizados mais recentemente para fazer uma análise do que já foi produzido sobre o tema.

Observa-se que os temas relativos ao uso, principalmente, da internet e das mídias sociais, seja nas relações sociais, seja na educação e formação cognitiva das crianças, são as questões que mais prevalecem no meio acadêmico e da pesquisa. Abreu et al. (2008) realçam que muitos estudos relacionam o uso de jogos eletrônicos com a maior facilidade de aprendizado, o desenvolvimento de habilidades cognitivas e motoras e a facilitação da socialização ou abordam as questões relacionadas aos impactos negativos decorrentes do seu mal uso, e, muitos desses estudos, dentro da abordagem Cognitiva-comportamental. Dessa forma, supõe-se uma ausência da discussão sobre o tema jogos eletrônicos na perspectiva da Gestalt-terapia.

Dentro dos temas mais próximos e que, de certa forma, norteiam o assunto jogos eletrônicos, foram encontrados alguns trabalhos conforme descrito no quadro 1.

Quadro 1.  Artigos científicos sobre virtualidade, internet e jogos eletrônicos numa relação com a gestalt-terapia e o psicodrama, segundo as variáveis: ano, autores, título e revista.
 

ANO

AUTORES

TÍTULO

REVISTA

2019

Brasil e Belmino

Contato, Virtualidade e Ciberespaço: Uma reflexão à luz da Gestalt-terapia

Revista IGT na Rede

2017

Carvalho e Melo

O eu em cena: O jogo no Psicodrama e os jogos eletrônicos

Revista Brasileira de Psicodrama

2016

Basso

Reflexões sobre a internet à luz da Gestalt-terapia

Revista IGT na Rede

2013

Zampronha

A experiência de contato de graduandos em Psicologia e o uso da internet

Revista IGT na Rede

Fonte: Elaborado pela autora.

Brasil e Belmino (2019) tiveram como base a teoria do self e seus desdobramentos, partiu-se da noção de contato para ressaltar o caráter virtual da experiência, implícito na leitura da Gestalt-terapia. Desta forma, foi possível adentrar este novo campo das relações interpessoais com intuito de propor uma leitura acerca do avanço das mídias digitais e os fenômenos que o circundam. Constatou-se o ciberespaço enquanto um campo onde coabitam implicações materiais e virtuais que fomentam uma nova configuração para experiência e consequentemente um campo de ajustamento criativo.

A pesquisa de Zampronha (2013) verificou a relação entre a experiência interpessoal e o uso da internet considerando três aspectos: preconceito, racionalidade tecnológica e narcisismo. Observou-se que a amostra expressou maiores graus de preconceito e adesão à racionalidade tecnológica e menor grau de narcisismo e que houve correlação entre o modo como os sujeitos utilizam a internet e a expressão dessas três categorias.

Basso (2016), entendendo a internet como um dado virtual participante de um laço social realizado por nós, sujeitos complexos, interrelacionais, discorre sobre temas que a envolve em: ajustamentos antissociais, sofrimento ético-político e antropológico, ajustamentos evitativos, ajustamentos banais, modalidades de prática clínica virtual, enfim, situações que implicam o(a) Gestalt-terapeuta nela e o(a) coloca/exige um posicionamento.

Carvalho e Queiroz (2017), consideraram que o indivíduo que se lança ao universo do ciberespaço é conduzido a liberar a imaginação e a partir da expansão da criatividade se inspira a experimentar facetas de seu Eu, a construir cenários aos quais se insere como ator, a buscar avatares que estimulem a criação de personagens e a utilizar os objetos não humanos que favoreçam um potencial treino de papéis; enfim, brincar numa atmosfera que lhe permite ir além da realidade factual. Ao lançar foco sobre as formas lúdicas de expressão de sentimentos e sensações com a finalidade de revelar significados experienciais, percebe-se o quanto o jogo eletrônico se torna um canal para fluir interrelações.

Os respectivos autores trazem, oportunamente, uma série de discussões acerca das influências, repercussões e novas conexões que o mundo virtual e os meios tecnológicos tem exercido especialmente nas interrelações e suas consequentes ressignificações nos mundos internos e externos das pessoas. Em contrapartida, algumas problematizações paradoxais foram colocadas no que se refere ao uso da internet e dos recursos tecnológicos disponíveis. Reitera-se que, muito embora tratar-se de um objeto de pesquisa da atualidade que está em constante transformação, observa-se uma tímida produção científica sobre o tema na Gestalt-terapia.

CELESTE SOB O OLHAR DA GESTALT-TERAPIA

Faz-se necessário pontuar que a proposta é criar um diálogo entre Gestalt-terapia e o jogo Celeste sem inferir ou supor que esta obra é produzida a partir do referencial da Gestalt, mas sim de fazer uma análise através do olhar gestáltico do jogo em si e de se pensar na possível experiência do sujeito ao jogar.

Inicialmente, vale destacar que o jogo Celeste é adquirido pela internet e, como muitos jogos desta categoria, não vem acompanhado de manual. O jogador aprende a jogar jogando o jogo o que lhe dá um caráter de maior imersão ao jogar. Apesar de ser um jogo de escalada da montanha, as etapas se apresentam em cenários diversos, incluindo diferentes paisagens, ambientes urbanos e domésticos.

No decorrer da jornada de Madeline, surgem alguns diálogos entre seus personagens e enigmas em forma de frases. A partir dos diálogos é possível compreender o processo de evolução intrapsíquica da personagem que, de alguma forma, podem refletir no jogador.

Sobre Gestalt e a Teoria Paradoxal da Mudança, Paula (2008) ressalta que a proposta é incentivar o indivíduo a aceitar o seu modo de sentir e de funcionar, aceitar as próprias fragilidades e conflitos a partir do contato com os mesmos e com as próprias necessidades, reconhecendo-os como partes de si e assim se tornar aware de si e do seu meio. Com isso o sujeito desenvolve seu autossuporte, reconhece seus conflitos e integra suas polaridades que o leva a fazer uma experiência mais plena de si o que já pode ser considerado como autoconhecimento e/ou mudança.

Pelo olhar da Gestalt, pode-se considerar que a jornada de Madeline até o topo da montanha é a busca de si mesmo e nessa busca ela entra em contato com suas próprias fragilidades, medos e emoções. Os seus conflitos aparecem por exemplo nas palavras desencorajadoras de "parte mim" como "volta pra casa, você não é alpinista". Entretanto, Madeline assegura: "Parece estranho, mas eu tenho que escalar essa montanha".

Durante a sua jornada, Celeste (2018) evidencia que  enquanto Madeline tenta se livrar de "parte de mim", não obtém nenhum sucesso na sua escalada. Somente quando ela passa a aceitar o seu lado sombrio e reconhece as suas fragilidades da depressão, da ansiedade e da síndrome do pânico é que Madeline se reconcilia consigo e consegue agregar novas forças para o êxito da sua escalada. "Mas ela é parte de mim. Eu nunca vou ficar livre dela".

A reconciliação acontece depois de uma difícil fase do jogo em que Madeline faz o movimento contrário ao que vinha fazendo até então. Desta vez, sempre indo em direção a sua parte sombria. A estética do jogo muda, as imagens de natureza surgem ao lado das imagens de sombras numa mesma tela. Madeline continua a sofrer as ofensivas de "Parte de mim" e, a cada investida da menina, "Parte de mim" a repele com uma explosão. Esta fase finaliza quando Madeline vence os últimos ataques de "Parte de mim" e propõe o acordo de se ajudarem.

Segundo Cardella (2002): "é preciso aceitar afetos, pensamentos e desejos, mesmo que sejam desagradáveis e dolorosos, para que a mudança ocorra e para que se experencie a harmonia e a paz" (p. 42). A autora coloca que o homem está em contínuo processo de crescimento, transitando entre polaridades que formam a sua totalidade. Observa-se nessa fase do jogo que, Madeline procura estar em contato com sua parte sombria até tornar-se aware de si e do seu meio.

Pensando desta forma, para que o sujeito possa se conhecer, ele precisa estar em contato consigo e com o meio que o cerca. Se ele estiver em contato com as suas necessidades pode ser mais fácil conhecer seu modo de funcionar. E foi justamente isso que aconteceu na longa jornada de Madeline. O contato com sua outra parte lhe permitiu a autorrevelação e o encontro de si.

O momento em que Madeline se reconcilia com "Parte de mim" pode ser considerado como o seu processo de integração pessoal, a reapropriação de suas características rejeitadas, projetadas para fora de si. Segundo Beisser (1975), a partir da Teoria Paradoxal da Mudança,  o estado natural do homem é o de um ser único e total, e não fragmentado em partes. Quando o sujeito "se identifica com os fragmentos alienados, ocorre uma integração. Assim, sendo aquilo que é – plenamente – a pessoa pode se tornar uma outra pessoa" (p. 112).

Durante o diálogo de reconciliação de Madeline com "parte de mim", Madeline insiste em voltar até a montanha, desta vez indo as duas juntas. O amigo Theo dispõe-se a ajudar Madeline e se oferece para segurar a sua mochila. Inicialmente, Madeline recusa o auxílio, mas termina entregando a mochila para Theo. Nesse momento do jogo, há indicativos em Madeline de um autossuporte mais elaborado e os cuidados de Theo podem ser considerados como seu hetero-suporte para a nova jornada. A personagem recomeça a escalar junto com "parte de mim", com novas forças e sem a mochila nas costas. Consequentemente, a escalada acontece de forma bem mais rápida.

Paralelamente, o jogo Celeste oportuniza uma experiência ao jogador fazer contato com as suas próprias emoções, medos, tristezas e angústias junto à personagem principal.

De acordo com Carvalho e Queiroz (2017), os jogos digitais configuram-se como "ambientes propícios à vivência de fantasias nas quais o indivíduo projeta as próprias ficções, (...) podendo experimentar uma existência paralela à vida real e aproximar seus conteúdos internos às suas vivências, recriando na tela situações que remetam ao seu cotidiano, inclusive modificando-as para atender às suas aspirações e aos seus desejos" (p. 96).

Em um dos momentos de crise de pânico de Madeline ela diz: "não consigo respirar" e, para que ela sobreviva a esta fase, o jogador precisa controlar a respiração da protagonista através de uma pena que precisa ser mantida dentro de um quadrado até Madeline se recompor. Quando a própria pena se torna uma ferramenta de jogo nos últimos níveis do jogo, permite que Madeleine alcance novos lugares e se mova de novas maneiras, mas não reduz a dificuldade geral. Quando o jogador não consegue avançar, o jogo lança telas de carregamento incluem mensagens positivas como "Você pode fazer isso" e "Apenas respire".

Em outro momento do jogo, quando Madeline está exausta da sua jornada, ela diz: "Eu não consigo". Em seguida a velhinha responde: "você pode pegar seu carro ir para casa e voltar depois". Supõe-se que esse diálogo dá margem para uma possível metalinguagem ou identificação do jogador com a personagem.

Carvalho e Queiroz (2017) observam que "os jogos perpassam as relações humanas, seja diretamente através de uma conexão entre pessoas, por meio do contato pessoas-objetos, como acontece com o apoio de um computador, ou através de uma plataforma de videogame" (p. 96). As mesmas autoras expõem que jogar videogame é se deixar afetar por elementos desafiadores inerentes ao brincar, tais como permitir explorar a si próprio passando a recriar na tela situações que remetam ao seu cotidiano.

Dessa forma, Carvalho e Queiroz (2017) explicam que no ato de jogar, personagem e jogador vivenciam suas próprias existências e experimentam sua cotidianidade, em um mesmo cenário, que podem promover encontros e ampliação de percepções. Nesse sentido, pode-se pensar que a narrativa de Celeste pode promover ao jogador uma experiência de autoconhecimento e de ampliação das percepções de universos internos e externos ou favorecer um contato autêntico com os outros e consigo, como uma forma de ajustamento criativo do organismo ao meio.

Ao longo da aventura, não se descobre a origem do sofrimento e dos transtornos de Madeline. A narrativa do jogo não prioriza em nenhum momento as causas dos problemas enfrentados pela personagem e se atém muito mais ao "como" subir a montanha do que ao "porquê". Na Gestalt-terapia há uma ênfase para aquilo que acontece no Aqui-Agora, na discussão dos limites e das possibilidades para uma experienciação direta focada no momento presente.

Madeline também não recebe nenhuma revelação surpreendente no cume de Celeste, apenas a compreensão de si e das suas fragilidades. A única recompensa de Madeline por atingir o pico é um momento de reflexão, um descanso tranquilo apreciando uma bela vista. O que remete ao conceito de cura que a Gestalt-terapia se propõe, compreendido a partir da concepção fenomenológica-existencial do ser humano.

Desse modo, para a Gestalt-terapia o conceito de saúde não implica em ausência de doença, mas está baseado no modo como o sujeito se relaciona consigo e com seu meio. No sentido de que a saúde está ligada à capacidade do indivíduo de atualizar seu contato com o mundo, não se mantendo rígido no seu modo de ser e estar.

Madeline se mantinha rígida nas suas percepções e, apesar de reconhecer sua parte sombria, fugia dela constantemente. Esta autointerrupção a impedia de encarar e assimilar uma conscientização desagradável e, consequentemente,o livre fluir natural do movimento figura-fundo característico do ser saudável.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como ferramenta de lazer, os videogames são uma tecnologia crescente e complexa e estão cada vez mais inseridos na rotina e na dinâmica da vida das pessoas em nível mundial. Sem desconsiderar os severos impactos para a saúde dos seus usuários, quando utilizados de forma abusiva e indiscriminada, vale ressaltar os benefícios desses recursos em níveis educativos e de interação com o meio quando usados de forma saudável.

No caso de Celeste, observa-se que é um recurso tecnológico imbuído de uma certa subjetividade que corrobora para uma experiência de autoconhecimento por parte do jogador. A subjetividade que lhe é impressa advém de uma experiência vivencial de um dos seus criadores. Importante salientar que os jogos independentes possuem uma certa "liberdade" na sua criação, tendo em vista que, geralmente, estão desatrelados de propostas pré-fabricadas ou exclusivamente mercadológicas.

Fazendo uma relação com as bases da Gestalt-terapia, observa-se na história de Madeline o ajustamento criativo, que consiste em autorregulação, abertura ao novo, vitalização. Pode-se perceber que o personagem vai se transformando em cada contato que faz com o meio, com cada novidade e possibilidade que surgem. O ajustamento criativo é parte fundamental para a autorregulação, onde a pessoa mantém sua sobrevivência e seu crescimento.

A jornada de Madeline mostra que a escalada da montanha é a busca pelo que se é. Nessa jornada ela pode experimentar como ela verdadeiramente era, pode conhecer suas capacidades, seus limites, suas interrupções, suas possibilidades e que pode aceitar e viver plenamente com sua forma singular de funcionar, e assim se tornar consciente da sua forma de contato com o outro e com o meio.

Para quem joga, o jogo Celeste pode funcionar como uma grande metáfora que, dentro de um caráter vivencial, pode promover inúmeras possibilidades que norteiam o autoconhecimento, o encontro de si e a integração do self.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência
Ronilda Lima de Miranda
Endereço Eletrônicoronildamiranda@gmail.com

Recebido em: 06/08/2021.
Aprovado em: 15/08/2021.