ARTIGO

Processo de Construção de Dupla Terapêutica para o Atendimento de Grupos

The Dual Therapeutics Construction Process for the Care of Groups

 

Khristian Barbalho Fragoso de Sequeira*

IGT - Instituto de Gestalt-Terapia e Atendimento Familiar, Rio de Janeiro - RJ.

Endereço para correspondência

 


RESUMO

Este artigo tem como propósito a reflexão sobre o processo de construção de uma dupla terapêutica para o atendimento em grupo. Ele descreve essa experiência que ocorreu durante o curso de especialização realizado no IGT - Instituto de Gestalt-Terapia e Atendimento Familiar. Foi realizada uma busca por bibliografia sobre o tema com o embasamento teórico da Gestalt-Terapia em relação ao atendimento de grupos. A partir daí, foi utilizada a leitura de relatórios desta experiência específica da autora que, corroborou com o registro das facilidades e dificuldades vividas na parceria formada entre duas psicólogas que atuaram juntas em um mesmo "setting" como coterapeutas em uma dupla terapêutica.

PALAVRA-CHAVE: Atendimento de grupo; Dupla Terapêutica, Coterapeuta; Gestalt-Terapia.


ABSTRACT

This article aims at reflecting on the process of building a dual therapy for the service group. He describes the experience of construction that occurred during the specialization course held at IGT - Institute for Gestalt Therapy and Family Service. A literature review was carried out on the subject, and it was only possible to obtain the theoretical foundation of Gestalt therapy in relation to service groups. From then, we used to read reports of this particular experience, corroborated with the registration of facilities and difficulties experienced in the partnership formed between two psychologists who worked together in the same setting as co-therapists in a dual therapy.

KEYWORDS: Group care; Dual therapy, co-therapist; Gestalt therapy.

 

Introdução

"O grupo terapêutico é como o rio procurando o mar, como a flor procurando se transformar em fruto, como a criança crescendo à procura de sua maturidade" (RIBEIRO, 1994, p.10).

A terapia de grupo é uma modalidade de processo terapêutico cada vez mais viável para atendimento de clientes com diferentes queixas. Ao fazer alusão a grupo no presente artigo, nos referimos ao atendimento psicoterapêutico de dois ou mais clientes que não possuem vínculos prévios antes do início do atendimento psicológico. Na rotina deste tipo de atendimento nos deparamos, com muita frequência na literatura e na experiência clínica, com a possibilidade do atendimento de duplas terapêuticas, onde dois psicólogos, juntos em um mesmo "setting" terapêutico, atuam como coterapeutas.

Dentre outras, considero1como principais características desta ferramenta terapêutica: 1. Possibilidade de troca terapêutica entre pessoas com questões diversificadas; 2. Vivência de relacionamentos interpessoais e; 3. Possibilidade da formação de grupos de pessoas com diferentes condições financeiras, o que viabiliza a inserção de clientes, com menor poder econômico, no atendimento terapêutico.

Ao refletir sobre questões de viabilidade terapêutica dos atendimentos de grupo, por uma dupla terapêutica, resolvi relatar minha experiência prática da construção de uma parceria para trabalho como dupla terapêutica.  Minha parceira nesta empreitada foi a psicóloga Regina Leitão Vale2, que atuou comigo nos atendimentos de grupo durante o meu curso de Especialização em Psicologia Clínica - Gestalt-Terapia (Indivíduo, Grupo e Família) que fizemos no IGT3 – Instituto de Gestalt-Terapia e Atendimento Familiar.

 

JUSTIFICATIVA

"Acreditar na forma transformadora do grupo não é uma questão de fé, e sim, teórica, da mais alta relevância. O grupo é uma realidade maior e diferente da soma dos indivíduos que o compõem. Tem tudo o que eles têm e transforma esse conteúdo em um continente de imensas e vastas possibilidades" (RIBEIRO, 1994, p.10).

Por exigência do curso de especialização supracitado, se tornou necessária a produção de um artigo acadêmico. Com esta perspectiva, resolvi escrever sobre minhas experiências e reflexões construídas através de um mergulhar profundo na busca por textos que descrevessem a prática psicoterapêutica em grupos, a formação de duplas terapêuticas e atividades relacionadas à construção da coterapia.

Encontrei alguns autores que descreviam uma forma gestáltica de perceber a possibilidade do grupo, geralmente sem um aprofundamento do tema. Autores como Ribeiro (1994) e Pinheiro da Silva (2014) descrevem a possibilidade sem muita exploração da atividade da coterapia. E, devido à raríssima construção teórica sobre atendimentos de grupo com duplas terapêuticas ou que citassem o trabalho de coterapeutas, me senti motivada a descrever o processo que vivenciei para que outros psicólogos e gestalt-terapeutas possam se beneficiar com os meus relatos e reflexões. Para tal, parti da seleção da bibliografia encontrada e, da releitura dos textos indicados durante meu curso de especialização - melhor descrito no item metodologia deste artigo.

Durante o primeiro ano do curso de especialização, tive acesso a diversos textos sobre a fundamentação teórica da Gestalt-Terapia e, sobre como a abordagem gestáltica se constituiu. Nestas leituras, encontrei o entendimento de uma prática que vem se construindo com a utilização da energia presente no "setting", com diálogo, interesse pelas sensações, experimentos4, dentre outros aspectos também importantes. Mas, ainda muito pouco sobre a prática em grupos. Já no segundo ano do curso, e, quando iniciei minha prática clínica em um grupo terapêutico, outros textos, artigos e algumas monografias, pincelavam reflexões que possibilitavam formar uma base teórica para a construção desta prática.

Na especialização que cursei no IGT, meus professores e coordenadores, me prepararam para o atendimento em grupo antes mesmo dele se iniciar. Foram pouco mais que quinze meses de estudo através de reflexões baseadas em textos acadêmicos, experimentações, vivencias em grupo durante as aulas, "workshops" e atendimentos simulados. Ao iniciar, de fato, meus atendimentos, ainda percebia questões relativas à ansiedade, à importância da presença e da dinâmica da coterapia e, de como seria a relação dos coterapeutas. Na minha turma, existiam alguns psicólogos que não se sentiam totalmente confortáveis com o início desta prática. Era presente uma grande preocupação em como fazer acontecer um elo entre os integrantes do grupo terapêutico e, como o processo terapêutico aconteceria. Muito do que foi refletido lá no início me acompanhou durante o curso.

Ao longo do curso, a dupla terapêutica em que atuei conduziu sessões semanais durante quatorze meses. Neste período muitas sensações foram vividas e é sobre o que foi vivenciado que estarei relatando aqui.

 

OBJETIVO

Este trabalho acadêmico foi desenvolvido com a finalidade de auxiliar os Gestalt-Terapeutas a refletir sobre a importância da dupla terapêutica e o quanto se faz relevante pensar no "como" atuamos, no quanto estamos promovendo o processo de autoconhecimento de nossos clientes e, do quanto o relacionamento dos coterapeutas pode reverberar no processo terapêutico dos clientes envolvidos.

Meu objetivo é refletir sobre minha experiência durante a prática experimentada no curso de especialização em psicologia clínica do IGT na formação da coterapia com o referencial da Gestalt-Terapia para a condução de um grupo terapêutico, observando, em especial, a importância do diálogo entre as psicólogas.

 

METODOLOGIA

Realizei buscas nos indexadores acadêmicos Scielo, Pepsic e BVSPsi e na bibliografia do curso de especialização em psicologia clínica do IGT, com o fim de averiguar a relevância deste artigo. Após diversas buscas nas bases dos indexadores e no rol de textos acadêmicos listados como bibliografia do curso de especialização do IGT, pouquíssimo foi encontrado sobre Dupla Terapêutica ou Coterapia atuando em atendimento de grupos de abordagem gestáltica, publicado em português. Vale ressaltar que na busca nos indexadores, procurei pelos termos "dupla terapêutica" e "coterapia", associados às variações dos termos clássicos da Gestalt-Terapia tais como: gestalt, gestáltica, gestaltica, gestáltico, gestaltico. Nas pesquisas realizadas, localizei, ao todo, cinco textos que citavam a coterapia e/ou dupla terapêutica, porém, a maioria em outras abordagens como TCC, Psicanálise e Terapia Familiar Sistêmica.

Além da bibliografia levantada, utilizei para embasar para a redação deste artigo, os trabalhos escritos produzidos ao longo do curso de especialização em psicologia clínica realizado no IGT – Relatórios de atendimento realizados, avaliações de "workshop", avaliações de módulo.  Dei especial atenção ao que destaquei sobre o que vivenciei na releitura dos relatórios dos atendimentos realizados, nas descrições das mobilizações ocorridas durante os atendimentos, nos "workshops", nas avaliações de módulos, nas trocas com os psicólogos que fizeram o curso junto comigo.  Utilizei também as anotações das supervisões ocorridas durante o período de atuação do grupo terapêutico no qual fiz parte ao longo de minha especialização. Com este material trabalhei utilizando o método de pesquisa narrativa, que segundo Breakwell (2010, p.271) inclui os acontecimentos, sentimentos e pensamentos, como também explicações ou interpretações. Um registro narrativo pode permitir ao participante uma completa reflexividade: para descrever, para explicar e para avaliar sua própria explicação. 

Com base no material textual produzido por mim durante o curso, optei por organizar o texto da seguinte forma: Inicialmente com as facilidades do processo de construção da dupla terapêutica e, em seguida, citando as dificuldades encontradas no que vivenciei durante este processo, nos atendimentos de grupo (que foram realizados por uma dupla terapêutica formada por duas coterapeutas em construção). Ao final, aprofundo meu olhar para o que foi construído com a prática desta modalidade de terapia, descrevendo alguns dos resultados obtidos durante este processo de aprendizagem. Desta forma, descrevo um pouco das "dores e delícias" experimentadas no decorrer desta atividade profissional que tanto acrescentou no meu desenvolvimento enquanto psicóloga clínica especializada em gestalt-terapia.

 

FACILIDADES DO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA DUPLA TERAPÊUTICA

Quando falo de facilidades, tenho como foco o que se desenrolou de forma a contribuir com a maturação profissional de cada uma de nós, coterapeutas atuando no mesmo campo, com os mesmos clientes. Para falar disso, vou citar alguns dos momentos que vivemos e que considero como "momentos felizes" no processo de construção da identidade de nossa dupla terapêutica. Percepções tão agradáveis que me sinto impulsionada a descrever como atuamos e como buscamos o nosso melhor caminho.

Pensando neste processo de construção, recordo que o próprio curso de especialização utilizou espaços em sala de aula e em "workshops" para a formação das duplas. A dupla que formei com Regina, foi aos poucos sendo pensada, pois no decorrer do curso, fomos buscando afinidades e interesses comuns dentre os integrantes da turma.  Fizemos rodas de terapia5, avaliações de módulo, e tantas outras atividades que vieram a facilitar este processo de reconhecimento de uma possível dupla. E, durante um "workshop" pudemos nos escolher e trabalhar a formação desta parceria.  A partir daquele momento a dupla estava formada, mas as questões de como fazer acontecer e como atuar com uma coterapeuta ainda me afligiam. Sentia-me inundada de dúvidas sobre como seria vivenciar um atendimento de um grupo e ainda mais viver isso com uma coterapeuta. Será que iremos percorrer o mesmo caminho, pensar do mesmo jeito? Será que conseguiremos pensar parecido? Será que minha coterapeuta irá entender o meu modo de atender? Será que eu vou entender o modo de atender dela? E o elo terapêutico? Como será formado o elo terapêutico entre a dupla? E com o grupo?

Conforme Augras (1986, p.8):

"O estudante de quinto ano, apreensivo perante a visão de um horizonte profissional cada vez mais estreito, carece totalmente de um repertório de procedimentos seguros, de receitas de eficácia comprovada, que poderão ampará-lo em seu próximo mergulho no mundo do consultório ou da instituição. Não há mais tempo para indagações teóricas aprofundadas. Nesse caso particular, os cursos de pós-graduação em psicologia clínica são de implantação recente e seu número é ainda extremamente reduzido e limitado aos grandes centros. O supervisor, por seu lado, nem sempre teve a oportunidade, por motivos meramente históricos, de realizar estudos. Muitas vezes o supervisor aprendeu o oficio na prática, sob a orientação de pioneiros que, por sua vez, nem cursos completos de graduação possuíam. Tal falta de um enquadramento teórico e metodológico pode levar à insegurança. E esta, todo psicólogo sabe disso, é mãe da rigidez".

Essa era a real sensação naquele momento. A experiência da insegurança fez com que buscássemos um melhor lidar com o contexto para não escorrer para uma rigidez de procedimentos e, das inúmeras questões. Acredito que a abertura da dupla terapêutica para o diálogo, para sentar e conversar sobre o perfil de cada uma de nós, teve um papel facilitador no processo de construção de nossa parceria. Pudemos, com isto, logo no início do trabalho fazer um contrato verbal entre a dupla para que, na medida do possível, todas as sensações e sentimentos fossem esclarecidos antes de cada atendimento. Combinamos que os clientes seriam escolhidos seguindo a fila de espera para atendimento social do IGT, que é organizado por data, e, que estudaríamos as queixas de cada cliente, antes de incluí-los no grupo. Acertamos, ainda, que faríamos relatórios com responsabilidades intercaladas semanalmente e que estes relatórios teriam leituras e comentários complementares antes de cada supervisão (obrigatória no curso). Pactuamos conversas sobre como utilizaríamos o tempo e o acolhimento dos clientes. E, principalmente, tentaríamos deixar cair por terra os medos e ansiedades com relação à nossa relação. Com isto, buscaríamos dar prioridade ao relacionar-se com um olhar atencioso para o que viesse a incomodar, com a meta de evitar desta forma, qualquer má interpretação durante o processo terapêutico de nossos futuros clientes. Observe que mesmo buscando um caminho de apropriação de nós mesmas enquanto parceiras, mesmo assim, algumas ingresias aconteciam. Se trata de um caminho pelo qual passávamos com disposição para a compreensão uma da outra, mas, o manejo de nossas sensações/questões individuais precisava ser constante.

Descobri que o diálogo franco seria o melhor caminho a seguir, com isso conseguimos construir uma sintonia. Posso dizer que de alguma forma possuímos personalidades que se complementam, que se conjugam com facilidade, e esta harmonia não atrapalhou o ritmo dos atendimentos, pelo contrário. Ressalto que existe uma diferença entre a construção de uma amizade e de uma parceria de trabalho, e, sem querer entrar em méritos filosóficos desta questão, registro que o processo de construção descrito neste artigo é um processo de construção profissional. Obviamente que posso dizer que quando se tem um sentimento de admiração pelo outro, naturalmente se apresentam um maior sentimento de respeito, honestidade de pensar e clareza nas ações e nas falas. Isso facilitou a construção de um elo entre as coterapeutas, tornando possível a troca de saberes, além de possibilitar uma fluidez no trabalho que realizávamos.

Ao iniciar os atendimentos, pudemos nos deparar com nossas ansiedades. Encontramos apoio nas supervisões obrigatórias do curso e, em seguida, refletimos sobre nossas condutas. As trocas aconteciam com muita frequência. E, com o tempo, percebemos que da mesma forma como buscávamos integrar os clientes do grupo também estávamos nos integrando aos poucos. Em uma das sessões que vivenciamos, fizemos uma intervenção onde cada um se questionou como era observar como se sentiam.  Outro aspecto aprofundado naquele momento foi a percepção em relação à forma de lidar com seus pares e em relação às características de suas escolhas na vida. Ali, naquele momento, também nós coterapeutas nos demos conta de que falávamos da nossa forma de perceber a realidade. E a surpresa da abertura do grupo para a interação entre eles, nos brindou com uma maior interação entre a dupla terapêutica. Quanto mais buscava ir em direção da integração do grupo terapêutico, mais eu pude perceber que os elos entre mim e Regina se fortaleciam.

"A Gestalt-terapia é uma terapia existencial-fenomenológica [...] ensina a terapeutas e pacientes o método fenomenológico de awareness, no qual perceber, sentir e atuar são diferenciados de interpretar e modificar atitudes preexistentes. Explicações e interpretações são consideradas menos confiáveis do que aquilo que é diretamente percebido ou sentido. Pacientes e terapeutas, em Gestalt-terapia, dialogam, isto é, comunicam suas perspectivas fenomenológicas. As diferenças de perspectivas tornam-se um foco de experimentação e de diálogo continuado. O objetivo é tornar os clientes conscientes (aware) do que estão fazendo, como estão fazendo, como podem transformar-se e, ao mesmo tempo, aprender a aceitar-se e valorizar-se" (YONTEF, 1998, p.15-16).

Ainda conforme Yontef (1998, p.16), o terapeuta que atua na abordagem gestáltica tem o foco mais no processo do que no conteúdo. Entendi que é mais relevante no processo terapêutico compreender "o que" e "o como" está sendo realizado, pensado e sentido por meus clientes, durante o atendimento psicológico. Pensando em processo, percebi que no início, tanto eu como minha parceira Regina tínhamos sensações parecidas, mas pouco trocávamos durante o processo terapêutico, no "setting". Era comum uma das coterapeutas fazer determinadas intervenções, e a parceira se dar conta de que estava percebendo o mesmo. Era como se uma desse voz ao que a outra sentia. Da mesma forma, quando tínhamos a dificuldade de trocar entre nós o que estávamos percebendo e sentindo, nossa postura era mais rígida. Quantas vezes nos percebemos nos entreolhando quase como robôs. Conforme o tempo e a integração da dupla terapêutica foram ocorrendo, pudemos vivenciar uma dança terapêutica onde pudemos nos permitir a troca de olhares com maior fluidez, passamos a complementar falas uma da outra e propor experimentos nas sessões. O envolvimento e a troca de saberes com a coterapeuta fez com que de fato nos sentíssemos "dançando em cena". No início eu me senti travada para uma integração maior com aquela realidade nova que era o atendimento de grupo (e em dupla). A partir do momento que nos despojamos de "pré-conceitos" e nos permitimos interagir pelo bem maior do atendimento, foi possível sentir a dança entre a dupla acontecer.

"O motivo que leva uma pessoa a iniciar uma terapia está relacionado com seu diálogo perturbado com os outros, assim como com a dificuldade de fazer contato consigo mesma. Parece essencial que o terapeuta comece a costurar esse rasgo no tecido do inter-humano colocando-se a serviço do dialógico. De certa forma, o terapeuta se indaga: "Como preciso ser e o que preciso fazer para começar a ajudar essa pessoa a estabelecer ou a restabelecer uma relação dialógica genuína com o mundo?" (...) O que preciso fazer quando alguém entra em meu consultório é usar todos os meus sentidos, toda a minha experiência, todo o meu treinamento para tomar consciência do que está faltando nessa situação potencialmente dialógica" (HYCNER, 1997, p.37).

É fato que se apropriar do elo entre a dupla facilitou o trabalho do elo terapêutico que ocorria entre os clientes do grupo. Facilitou o trabalho para que pudéssemos manusear da melhor forma o que era trazido. Mas, perceber a importância do diálogo genuíno entre as coterapeutas fez todo o sentido para que o processo terapêutico pudesse acontecer.

Ouvi certa vez, durante uma supervisão, que o atendimento com dupla terapêutica poderia se comparar a um jogo de frescobol, onde ganha o time que consegue manter a bola em jogo. Onde o interesse de quem joga é não deixar a bola cair ao longo de um período de tempo pré-determinado e, para tal, os dois jogadores precisam colaborar um com o outro. Para mim, este tipo de comparação fez todo sentido, pois o comprometimento nas "jogadas" foi o que fez a diferença. Atuar como coterapeuta em uma sessão de terapia tem esta característica, se faz necessário atuar como partícipe, como parte de um todo, e não como um fragmento daquela sessão.

A dedicação ao processo de troca das coterapeutas era ao mesmo tempo delicada e estimulante. Algumas vezes repetimos trocas de valores e conhecimentos. Em outros momentos fazíamos construções de formatos interessantes para intervir nas próximas sessões. Era instigante conversar sobre o que acabava de acontecer após uma sessão de grupo. Com tudo aquilo que tínhamos vivido, nos dedicávamos a pensar em manejos possíveis que pudessem proporcionar momentos de "dar-se-conta" de nossos clientes, como por exemplo o uso de algum experimento.

Às vezes, ficávamos durante alguns minutos conversando sobre o que aconteceu e, em outros conversávamos sobre o que poderíamos trazer como experimento para aquele grupo. Os experimentos pensados ficavam como "cartas na manga" e, tão logo achássemos conveniente, utilizávamos destes artifícios para evocar questões que estavam sendo difíceis de serem manuseadas pelos clientes e ou por nós.

Pensando assim, percebo o quanto a dança entre a dupla terapêutica da qual fiz parte facilitou o processo terapêutico de nossos clientes, o quanto nosso time facilitou a manutenção da "bola no ar", como no jogo de frescobol. Pois, sinto que pudemos nos apropriar do "setting" e nos permitir contar ao grupo o que vivíamos e sentíamos.

Vinogradov e Yalom (1992, p.10) ao escreverem sobre o que entendiam por psicoterapia de grupo, registraram que a consideravam mais efetiva em termos de custo, mas, que as vantagens da terapia de grupo transcendem as considerações meramente econômicas por perceberem que se trata de um modo de psicoterapia que se baseia no "setting" de grupo. E, o poder deste instrumento deriva-se da importância exercida pelas interações pessoais sobre o desenvolvimento psicológico.

 

DIFICULDADES DO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA DUPLA TERAPÊUTICA

Uma das maiores dificuldades que vivenciei na formação da dupla terapêutica foi o "como" conduzir as diferenças que surgiam, entre mim e Regina, logo no início do trabalho. Aprender a compreender o modo que cada uma pensava, agia e trabalhava nos demandou uma maior abertura para com a relação. Não teríamos como ter escolhido uma abordagem que fosse tão facilitadora neste sentido, pois em todo o tempo estudávamos, líamos e vivenciávamos o relacional (seja em sala de aula, "workshops", supervisão ou nas diversas atividades que vivemos durante o curso desta especialização). Apesar de ter sido uma dificuldade clara no início do processo, aos poucos encontramos formas de lidar com as diferenças, sem forçar consensos ou carregar descontentamentos ocultos. Isso fez com que buscássemos aos poucos uma forma de trabalhar em parceria, construindo o "nosso jeito", a "nossa" cara.

Lembro que durante um processo de inclusão de uma nova integrante no grupo, vivemos um impasse desta ordem. Surgiu um descontentamento devido ao olhar quase que exclusivo da cliente para uma das coterapeutas. O incômodo foi grande e pudemos conversar sobre o que estava presente. Buscamos uma forma de lidar com o que estava se apresentando naquele momento. Levamos o que vivenciamos para supervisão e, trabalhamos sentimentos que nos mobilizavam como insegurança e receios diversos. Ao final, sentimos que uma fortaleceu a outra no que foi possível. O olhar da cliente pôde ser trabalhado nas sessões seguintes de forma suave e, aos poucos aquele descontentamento inicial se desfez.

Outra grande dificuldade que experimentamos no decorrer de nossa construção, enquanto dupla terapêutica está na conta das vicissitudes da vida. Problemas pessoais, familiares e profissionais nos afastaram, em alguns momentos, da atividade no grupo, gerando um revezamento na condução de 20% das sessões realizadas durante o curso. Nestes momentos o grupo foi atendido por apenas uma das psicólogas. Num dado momento percebemos que fazia sentido conversar, com o grupo, sobre a alternância que estava ocorrendo. Tentar entender como as nossas ausências estavam reverberando em cada um dos integrantes daquele grupo. Utilizamos um experimento com recortes e colagens onde os clientes pudessem falar sobre o que percebiam da presença/ausência e, da relação da dupla terapêutica naquele grupo. E, a partir dali, pudemos trabalhar a coesão do grupo e ainda mais o relacional. Mesmo durante os nossos desencontros, dividíamos nossas expectativas e, sempre que possível, trazíamos ao grupo a responsabilidade que tínhamos de estar ali - presentes e inteiras nos atendimentos do grupo.

"A coesão do grupo é o pré-requisito essencial para o manejo bem-sucedido do conflito. Os membros devem ter desenvolvido um sentimento de respeito e confiança mútua e devem valorizar suficientemente o grupo para serem capazes de tolerar algumas interações desconfortáveis. Os pacientes precisam compreender que a comunicação franca deve ser mantida, para a sobrevivência do grupo" (VINOGRADOV, 1992, p. 87).

Certa vez fomos obrigadas pela supervisora a suspender os atendimentos do grupo devido às alternâncias da presença das psicólogas nas supervisões. Uma das regras de ouro das supervisões dos atendimentos de grupo era que as duas psicólogas responsáveis pelo grupo estivessem presentes durante a supervisão para que a mesma pudesse acontecer.  Não bastava a presença de apenas uma das coterapeutas. O motivo era simples: Dentre outros enfoques a serem observados, como o processo de construção de autoconhecimento dos integrantes do grupo, estavam o melhor entendimento das questões relativas à relação que era estabelecida entre as duas psicólogas durante os atendimentos. Foi difícil passar pela experiência da interrupção de um atendimento de grupo. Em nosso caso, precisamos suspender atendimentos em dois momentos diferentes, foram duas sessões a menos em nossa bagagem profissional. Contudo, aprendemos que não é fácil dividir responsabilidade, dividir tarefas. Ali, no espaço de supervisão, pudemos refletir mais ainda os objetivos da terapia para cada um dos envolvidos, clientes e psicólogas. Aprofundamos o tema de nossos limites e possibilidades, conversando na supervisão inclusive sobre nossa frustração em ter que cumprir aquela determinação. Ali, nós também tivemos que lidar com nossas possibilidades e dificuldades no caminho de uma ampliação de recursos pessoais e profissionais.

"O objetivo da terapia, então, deve ser lhe dar meios para que possa resolver seus problemas atuais e qualquer outro problema que surja amanhã ou no próximo ano. Este instrumento é a auto-estima e ele a adquire lidando consigo e com seus problemas, com todos os recursos de que dispõe no momento. Se a cada momento puder verdadeiramente perceber-se a si próprio e a suas ações seja em que nível – fantasia, verbal ou físico – pode ver como está provocando suas dificuldades, pode ver quais são suas dificuldades e pode ajudar-se a si próprio a resolvê-las no presente, no aqui-agora. Cada resolução torna mais fácil a próxima porque cada uma delas aumenta sua auto-suficiência" (PERLS, 1973, p.75).

A cada interrupção pudemos perceber a insatisfação vivida pelos clientes. O compromisso com os atendimentos sofria com as interrupções e, o envolvimento por parte dos clientes que estava acontecendo parecia se estagnar. Com foco no que estava presente nas reações corporais e verbais, pudemos trabalhar com os clientes do grupo a questão da interrupção de forma a buscar um ajustamento criativo6 no grupo. Era fato o quanto era importante trabalhar com o além do verbal, com o que estava sendo expresso com o corpo. O recurso de propiciar a verbalização do grupo sobre algo que estava gritando no corpo reforçava ainda mais o elo do grupo. Perceber a energia do grupo e poder utilizar o contexto a favor do cliente era valioso.

[...] A presença e o timing dão contexto ao poder de cada intervenção, e ao mesmo tempo sustentam o papel dos terapeutas como figuras importantes no processo. Ao mesmo tempo, os clientes se sentem respeitados (vistos) e cuidados (envolvidos) pelos terapeutas (ZINKER, 2001, p.178).

Dentre muitos textos que li para contextualizar minhas experiências, Zinker (2001, p. 178) descreve fronteiras e manejos de fronteiras na abordagem gestáltica de casais e famílias, citando a importância da presença dos terapeutas envolvidos. E, relendo meus registros de atendimentos e minhas anotações de supervisão, ficou ainda mais clara a relevância do bom entendimento do que significa "estar em um 'setting' terapêutico" e propiciar o desenvolvimento pessoal de cada integrante/cliente que nele esteja inserido, respeitando-os e cuidando de cada um, em seus processos pessoais.

Segundo Therese (1984, p.72) o modelo que a Gestalt-terapia escolheu para atuar com o grupo terapêutico, busca um foco nas relações interpessoais entre os membros dos quais o terapeuta é um, embora desempenhe um papel especial. Sendo assim, percebo com a prática do atendimento de grupo, que é possível focalizar nas relações interpessoais entre os membros, tendo dois terapeutas presentes desempenhando papéis especiais e se complementando a todo o instante.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Foi possível construir a "liga" da dupla terapêutica, ao conhecer o estilo e a maneira de se relacionar de minha parceira na atuação como coterapeuta. A partir daí, jogamos um "frescobol terapêutico" e/ou "entramos na dança da dupla terapêutica". Se tornou possível efetivamente trabalhar as questões dos clientes inseridos no grupo terapêutico, tivemos a possibilidade de manusear as questões que surgiam, de forma que cada cliente percebesse seu modo próprio de funcionar no mundo.

Pensar no atendimento de grupos com dupla terapêutica e ter como norte o olhar da Gestalt-terapia, é ter um aliado importantíssimo no processo de autoconhecimento de cada cliente envolvido em um mesmo "setting" terapêutico. Poder olhar para trás e perceber o quanto aprendi no processo de construção de minha primeira dupla terapêutica, é muito gostoso. Hoje, consigo perceber como minhas ansiedades do início do processo foram importantes para me manter atenta e curiosa, me ajudou a olhar para cada passo de forma cuidadosa. Percebo o quanto foi construído durante o período em que vivenciei a dupla terapêutica; como no início era difícil até de se olhar durante um atendimento.  Com o tempo e as experiências vividas, a dupla foi aprendendo a se olhar, a conversar e se questionar. Poder se questionar em campo foi enriquecedor, perguntar uma para a outra: "Você está sentindo o que eu estou sentindo?" A troca com a dupla terapêutica foi muito valiosa durante todo o processo terapêutico. "Será que o cliente X está percebendo o mesmo que eu?" "Estou com a sensação de que o cliente Y está falando disso ou daquilo, você também?" "Como será viver isso ou aquilo?" Foi estimulante poder trocar antes, durante e após cada atendimento.

A minha percepção da "dança terapêutica" foi rica e valiosa porque pude manusear o que sentia nas sessões. Foi precioso poder perguntar para a coterapeuta sobre como foi viver um atendimento e pensar no que se pode trazer ou intervir em um próximo momento, poder falar sobre as intervenções que foram realizadas, poder planejar algo para uma próxima sessão (ou não). A disponibilidade para que a "dança terapêutica" acontecesse nos permitiu uma melhor atuação enquanto psicólogas. O envolvimento com a coterapia permitia viver a beleza do processo terapêutico, na dupla terapêutica.

Eu percebi a riqueza do processo de autoconhecimento que a terapia traz para o cliente e para o terapeuta, o que também me fizeram amadurecer enquanto profissional. A "dança terapêutica" talvez seja uma das formas de se pensar na atuação do gestalt-terapeuta em atendimento de grupos. Naturalmente, não pude deixar de olhar para a nossa postura enquanto psicólogas. Olhar para o que preparamos, para que o que levamos junto conosco para o "setting" terapêutico, - sentimento, olhar, fala.

Durante todo o trabalho que fizemos juntas para a que a realização fosse se transformando em uma rica construção, pudemos contar com as supervisões.  Estes momentos muito nos permitiram costurar sentimentos, sensações e vivências ao nosso cobertor quentinho que pudemos construir durante todo o processo em que estivemos juntas, frente ao atendimento em grupo de nossos clientes.

Não existe fórmula mágica, somos seres humanos. Para que algo possa acontecer no campo relacional, fez-se necessário estarmos abertos para o outro. Entendo que precisamos estar disponíveis para que algo aconteça durante uma jornada de dupla terapêutica. O diálogo relacional é uma fonte inspiradora, sem ele, não seria possível perceber a sinergia da dupla terapêutica. Porém, estou certa de não ter esgotado o tema, pois o mesmo ainda possui uma quantidade infinita de saber a ser descrita.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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HYCNER, Richard e JACOBS, Lynne. Relação e Cura em Gestalt-Terapia.São Paulo. Summus, 1997.

JULIANO, Jean Clark. A arte de restaurar histórias: Libertando o diálogo. São Paulo. Summus, 1999.

MENDONÇA, Marisete Malaguth. Ajustamento Criativo (p. 20-22) In: D'Acri, Gladys; Lima, Patrícia; Orgler, Sheila. Dicionário de Gestalt-terapia: Gestaltês. São Paulo: Summus, 2007.

PERLS, Fritz. A Abordagem Gestáltica e testemunha Ocular da terapia. Rio de Janeiro. LTC, 2011.

Pinheiro da Silva, Marcelo. O afeto e o afetar em relações de grupo: um olhar a partir da Gestalt-Terapia. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia, 2014.

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THERESE, A. Tellegen. Gestalt e Grupos: Uma Perspectiva Sistêmica. São Paulo. Summus, 1984.

VINOGRADOV, Sophia, YALOM, Irvin D. Psicoterapia de Grupo: Um manual Prático. Porto Alegre. Artes Médicas, 1992.

YONTEF, Gary M. Processo, Diálogo e Awareness – Ensaios em Gestalt-Terapia. São Paulo. Summus, 1998.

ZINKER, Joseph C. A busca da elegância em psicoterapia: Uma abordagem gestáltica com casais, famílias e sistemas íntimos. São Paulo. Summus, 2001.

 

NOTAS:

* Psicóloga graduada pela PUC-RJ e Especialista em Psicologia Clínica/Gestalt-terapia pelo IGT – Instituto de Gestalt-Terapia e Atendimento Familiar.
1 Em concordância com minha Orientadora, optei por escrever na primeira pessoa do singular por se tratar de experiência vivida por mim, ao longo do meu curso de especialização. Para que isto fosse possível, busquei me basear em relato de Pinheiro da Silva (2015, p.20) que em sua dissertação acadêmica fez sua defesa do uso desta forma de linguagem, com muita coerência.
2 Nas próximas citações utilizarei apenas Regina para me referir psicóloga com quem trabalhei em dupla terapêutica.
3 Nas próximas referências a este instituto utilizarei apenas a sigla IGT.
4 Conforme explicação, muito bem, redigida por Juliano (1999, p.42):
"Num contexto de diálogo, negociaremos um experimento, nascido naquele momento do relacionamento. A amplitude desse experimento variará de acordo com o momento, como está sendo vivido e a fase em que o cliente se encontra. "O experimento é qualquer coisa que aumente a consciência",e pode ser bem pequeno, como o espelhar de um gesto, o esclarecimento de algo que foi dito, uma simples pergunta ou comentário. A decisão de usar ou não o experimento dependerá grandemente da arte do terapeuta, de sua avaliação da fase em que o cliente se encontra, e de sua sensibilidade ao ritmo da proposta e sua habilidade para negociar."
5 Roda de terapia é uma ferramenta de atendimento supervisionado que acontecia em sala de aula entre os psicólogos/alunos do curso de especialização. Na prática, um dos alunos tinha o papel de cliente e outro o papel de psicólogo, que era substituído na condução da sessão, de tempos em tempos (de acordo com o que era mobilizado em cada um dos alunos que assistiam ao atendimento), revezando com os demais que assumiam o seu papel dando continuidade àquele atendimento.
6 "Ajustamento Criativo é um conceito da Gestalt-terapia que pode ser descrito como [...] como o processo pelo qual a pessoa mantém sua sobrevivência e seu crescimento, operando seu meio sem cessar ativa e responsavelmente, provendo seu próprio desenvolvimento e suas necessidades físicas e psicossociais" (MENDONÇA, 2007, p.21).

 

Endereço para correspondência:
Khristian Barbalho Fragoso de Sequeira
E-mail Eletrônico: ksequeira.psicologa@yahoo.com.br

 

Recebido em: 21/09/2020
Aprovado em: 29/08/2021