ARTIGO

A tesoura do desejo: uma experiência de encontro e construção de sentido na clínica escola

The scissors of desire: an experience of encounter and construction of meaning at the school clinic

 

Janaína Oliveira de Jesus*; Marcelo da Silva Alves Pires**

UNINASSAU - Vitória da Conquista, BA.

Endereço para correspondência

 


RESUMO

Este artigo de relato de experiência tem como objetivo compartilhar experiências e reflexões nascidas no acompanhamento de um caso clínico em psicoterapia breve no estágio curricular do último semestre do curso de psicologia, evidenciando a relação cliente-psicoterapeuta. O texto, menos formal, se apresenta sob a forma de ensaio, por abarcar melhor a amplitude subjetiva e relacional que buscamos destacar. Traremos uma perspectiva clínica do atendimento de uma paciente do sexo feminino, aos vinte anos de idade, que busca o serviço da clínica-escola narrando dificuldades de interação social e ocultando uma ideação suicida que só aparecerá ao longo dos encontros. Num primeiro momento, trataremos de aspectos técnicos da clínica-escola e do estágio em psicologia. Em seguida, discutiremos como a Gestalt-Terapia e sua base fenomenológico-existencial-humanista pôde ajudar esta jovem a ampliar o contato e a consciência de si, esclarecer suas próprias vontades e necessidades, e a se posicionar de maneira autêntica e responsavelmente diante da própria vida.

Palavras - Chave: Psicoterapia Breve; Gestalt-Terapia; Existencialismo; Estágio; Relato de Experiência.


ABSTRACT

This experience report article aims to share experiences and reflections born in the follow-up of a clinical case in brief psychotherapy in the curricular internship of the last semester of the psychology course, highlighting the client-psychotherapist relationship. The less formal text is presented in the form of an essay, as it better encompasses the subjective and relational breadth that we seek to highlight. We will bring a clinical perspective of the care of a female patient, at the age of twenty, who seeks the clinic-school service narrating difficulties in social interaction and hiding a suicidal ideation that will only appear during the meetings. At first, we will deal with technical aspects of the school-clinic and of the psychology internship. Then, we will discuss how gestalt therapy and its phenomenological-existential-humanistic basis could help this young woman to expand contact and self-awareness, clarify her own wants and needs, and to position herself in an authentic and responsible way in front of her own life.

Key words: Brief Psychotherapy; Gestalt-Therapy; Existentialism; Internship; Experience report.

"- Vamos entrar...
- Não tenho tempo!
- O que é que houve?
- O que é que há?
- O que é que houve, meu amor, você cortou os seus cabelos?
- Foi a tesoura do desejo, desejo mesmo de mudar."
(VALENÇA, 1992)

Introdução

O caminho acadêmico pode enviesar-se por muitas áreas e cada uma delas apresenta suas características peculiares e seus sabores diversos. Em Psicologia, sobretudo, um dos momentos mais aguardados, e igualmente temido, é o do estágio, neste caso específico, desenvolvido numa faculdade do interior da Bahia, à partir do oitavo semestre com a introdução nos caminhos da triagem psicológica e do aconselhamento. - a estes que adentram a explora ção do caminho clínico -  e do desenvolvimento de projetos e integração com os dispositivos de assistência da rede municipal – aos que que se dedicam ao campo da Psicologia social. Para cada direção destas há um supervisor, desenvolvendo a função de guia aos exploradores, que são agrupados conforme as áreas de interesse e disponibilidade de campos e vagas. Desta forma, segue-se até o décimo semestre.

Precisamente é neste décimo semestre que este relato de experiência encontra voz, no limiar entre o que é a vivência acadêmica da clínica e as exigências de um olhar já profissional e responsável. Seguindo ainda a diretriz da psicoterapia breve, com fundamentação fenomenológico-existencial.

O serviço de psicologia é um espaço de acolhimento às mais diversas demandas, a partir das quais oferece serviços de triagem, aconselhamento, plantão psicológico e psicoterapia a partir de diversos recortes teóricos (psicoterapia grupal para crianças com dificuldade de aprendizagem, psicoterapia individual). Fisicamente está dividida em recepção, secretaria e três salas de atendimento – um espaço que, por suas limitações, já exige do estudante/estagiário um processo de aprendizagem relacionado à adaptação de técnicas e afins.  Aí também aprendemos o quanto o "setting" ultrapassa em muito o espaço físico e o quanto a construção terapêutica não se atém à disposição dos móveis, à sobreposição da luz, e dos objetos ali disponíveis.

O atendimento que aqui serve de inspiração para o relato e debate dessa experiência e de seus aprendizados, contou com doze sessões entre os meses de março e junho de 2018. Neste período, pude também experienciar a interrupção (que no lugar de estagiária ansiando em fazer a diferença ressoa como prematura e frustrante) do atendimento de uma usuária após apenas duas sessões de aconselhamento.

Poderíamos fazer uso aqui das nomenclaturas tradicionais para designar a pessoa que recebeu estes cuidados, sobretudo para manter a ética do sigilo, tão cara em nossas relações. No entanto, a experiência vivida nessa relação me solicita maior humanização, onde não somente o papel de cliente/paciente/usuário do serviço seja explorado, mas essencialmente sua faceta mais brilhante: a da condição humana. Assim, apelando para Carlos Drummond de Andrade, em seu poema "Especulações Em Torno da Palavra Homem", onde o poeta questiona "que há sob o nome:/ uma geografia? / um ser metafísico?" (DRUMMOND, 2013, p. 25) é que farei uso de um pseudônimo, um nome que permita ao leitor uma proximidade maior com este ser, e que não remonte a nenhum que esteja presente na história da mesma: Zizi.

Zizi contava à época do atendimento com a idade de 20 anos, sexo feminino, solteira, buscou o serviço após ser indicada por uma colega de seu círculo social/religioso. Inscreveu-se sob a queixa de dificuldade no trato social, porém sua demanda a medida em que a relação terapêutica se aprofundava, delineou-se à partir da ideação suicida, culminando na busca do sentido de si mesma. Apresentava um aspecto marcado pela dicotomia: seu semblante jovem e fala bem estruturada "versus" a percepção que tinha de si mesma enquanto alguém desinteressante e longe da beleza.

Ela não teve dificuldades em iniciar o seu relato, congruente com sua própria afirmação sobre gostar de objetividade e clareza. Entre os muitos acontecimentos que a levaram a pensar em se matar ela escolheu iniciar com o fato de ter sofrido abuso sexual pelo esposo de sua avó durante seis anos e não denunciou pois este a ameaçava de morte. Este homem chegou a provocá-la com o argumento de que havia feito o mesmo com sua mãe e, portanto, de nada adiantaria ela falar. Quanto à presença da mãe, o relato é de distância, de uma mãe que também sofria provável estado depressivo, incluindo uso medicações.  Marca o discurso sua lembrança da fala de sua mãe sobre nunca ter desejado uma filha, "seu sonho era ter um menino", dizia Zizi, o que viria a acontecer mais tarde. No entanto, um momento, tragicamente único, de proximidade se dá entre as duas anos depois, um dia antes do falecimento da mesma num acidente de carro, do qual Zizi saiu ferida, assim como seu irmão, mas não gravemente. Como se não bastasse a consecução de tragédias, da avó a cliente chegou a escutar que ela somente trazia desgraça por onde passava, que tudo o que ocorria, a morte da mãe, inclusive, era por culpa dela. Com relação ao pai, o seu discurso também não reconhece o afeto desejado. De acordo com ela, isso em parte se dá porque separou-se de sua mãe enquanto ainda pequena e muito pouco contato tinha, até que este ficasse sabendo do ocorrido quanto ao abuso. Aí o que parecia ser uma possibilidade de reconstrução de um vínculo ora desejado, se transforma em mais frustração. Ela "esperava mais dele", que, entretanto, não quis denunciar o abusador, sob a justificativa de que a cidade em que moravam era pequena e para ele, ela, a menina, sofreria ainda mais. Para Zizi, abafar o caso e a vergonha mais uma vez foi mais importante. Seu pai, então, casou-se com uma outra mulher que, de acordo com Zizi, aparentava lidar muito bem e interagir com a família, mas que depois demonstrou ser autoritária e controladora em relação a tudo. Desta relação nasce a irmã mais nova à qual a cliente agarra-se "como a uma filha". O que torna-se ao longo de nossa relação bem compreensível. Zizi, apesar desse histórico, ainda conservava em sua tez a doçura da juventude, quando ficava nervosa ou mais dispersa em sua narrativa, costumava entrelaçar os dedos das mãos, ou passar a mão no antebraço, como quem se auto acariciava. Ou quando chorava com estas lembranças dolorosas, as lágrimas eram abundantes, embora ela tentasse conter e mostrar-se mais forte.

Os fatos da vida dela assim narrados até então já trazem um arcabouço imenso de significados e o alerta sobre quão delicadas e acolhedoras devem ser as nossas intervenções. A importância de escutar atentamente a narrativa do outro está não nos eventos em si, como diz Rachel Naomi Remen (1998) nas vozes de Balieiro E Del Picchia (2010):

"As histórias são a experiência de alguém sobre os acontecimentos de sua vida, e não os acontecimentos em si... nós os vemos [os acontecimentos] de nossa maneira única, e a história que contamos tem muito de nós. A verdade é altamente subjetiva" (REMEN apud BALIEIRO E DEL PICCHIA, 2010, p. 226).

Ou seja, esta escuta está na relação desenvolvida entre Zizi e cada um destes elementos constituintes da sua história, no emaranhado de subjetividades que ficam evidentes ainda nas palavras de Balieiro e Del Picchia: "(...) Assim como cada pessoa é única, cada história é única e, de certa forma, mostra como a vida moldou aquela identidade e, ao mesmo tempo, foi moldada por ela" (2010, p. 220).

Seguindo o fio da história de Zizi, após este período conturbado da relação familiar, ela muda-se para outra cidade, no intuito de cursar a faculdade de seus sonhos e residir com uma colega de apartamento que integra seu grupo religioso. Sem apoio financeiro do pai, com problemas e discussões entre esta colega de quarto, que vêm a repercutir na Igreja que faz parte, passa a morar com parentes do líder religioso da sua congregação, afirma ser vítima de suspeita e incompreensão constantes por parte da dona da casa, chegando a ser interpelada inúmeras vezes quanto ao desaparecimento de peças de roupas de outras colegas. A cliente nega com veemência qualquer ato de sua parte que pudesse justificar este comportamento.

Possui, também, um relacionamento íntimo que ela própria reconhece que não atende às suas expectativas, citando diversos problemas, também vinculados à aceitação deste companheiro em relação a ela. O que não é de se estranhar diante da narrativa que traz de sua própria história, Zizi sente-se só e desamparada. Não consegue enxergar nada, além de tristeza, desamparo em seu espelho. Em sua narrativa, o que vemos é a história de uma mulher que nunca se viu legitimada pela vida e pelo outro. Todos os outros significativos narrados por Zizi fazem de sua própria história uma história de desprezo e de irrelevância perante a existência. Zizi é triste e anseia por ser alguém, por ser aceita, por ser legitimada, por ser sujeito. Aprofundando o esforço e o cansaço que toma conta da realidade experienciada por Zizi, ela reconhece fazer uso de "máscaras" para manter suas relações sociais, a fim de não explicar-se para os demais. Em sua percepção não haveria ninguém, nenhum porto seguro no seu trabalho ou em qualquer círculo, com quem ela possa descansar seu personagem e experimentar ser ela mesma. A esta altura, a morte só não é mais convidativa dado seu forte vínculo com sua irmã. "O que ela pensaria de mim", afirma Zizi. Aqui, nem a motivação por manter-se viva é desejo genuíno do próprio ser, sendo antes mais uma resposta do seu personagem àquilo a que o outro irá pensar dela mesma.

Em uma das sessões Zizi queixou-se de quadros de insônia e pensamentos acelerados, mas creditou estes episódios à ansiedade, pois acabara de ser promovida e houve consequente aumento das suas funções no trabalho. Ela estava feliz com o acontecimento, mas as apreensões naturais advindas das mudanças trouxeram a necessidade de fazermos um experimento de atenção focada na respiração, com o intento de trazer a ela um alívio, de possibilitar uma ferramenta para o controle destes pensamentos disfuncionais e para o relaxamento próximo às horas do sono. Zizi estava visivelmente muito próxima ao colapso e, naquele momento, senti a real necessidade de construir com ela alguma estratégia de enfrentamento ao seu desgaste.

Mas o seu incômodo, sua angústia, persistia. Para além de seu evidente desgaste e do quadro de colapso orgânico e existencial para o qual se encaminhava, ela buscava desesperadamente um sentido que fosse seu para sua própria vida e existência, e, sobretudo, um sentido e uma identidade que lhe fossem próprios e dentro dos quais ela pudesse se sentir íntegra e autêntica.

Seguiremos, ao longo deste relato de experiência, tratando de evidenciar estes conflitos, as lutas pessoais de Zizi, compartilhados em nossa breve relação, e as intervenções e experimentos que pudemos vivenciar no processo.

De maneira geral este caso foi atendido sob a luz da Gestalt-Terapia de Curta Duração, uma terapia de caráter focal, que busca atender às necessidades de uma época onde os processos ocorrem numa velocidade cada vez maior (PONCIANO, 2009) com um enfoque especial no caráter fenomenológico-existencial- humanista. Sobre o existencialismo é preciso que se diga que este é entendido mais como uma atitude perante à clínica (ALMEIDA e NETO, 2013) onde a visão de ser é interpretada como campo de possibilidades diante do engajamento do ser em sua existência concreta e singular, e não como um encerramento em si mesmo.

"O cliente é um ser emergente, em transformação durante todo o processo psicoterápico, considerado um ser responsável por suas escolhas. O terapeuta existencial trabalha com a aceitação da escolha do indivíduo e responsabilidade sob as escolhas" (ALMEIDA E NETO, 2013, p.01).

Isto posto, dentro da narrativa da cliente veio à mente um excerto d' O Mito de Sísifo: Ensaio Sobre o Absurdo de Albert Camus, quando ele afirma que o maior desafio filosófico é compreender o sentido da vida, aquilo que motiva cada pessoa a seguir em frente... "Matar-se é de certo modo, como no melodrama, confessar. Confessar que se foi ultrapassado pela vida ou que não se tem como compreendê-la" (CAMUS, 1942, p. 8). Esta incompreensão de tudo que cercava a sua própria mente fazia com que Zizi atribuísse à vida sentidos que funcionavam como caricaturas não autênticas de si, uma vez que vinham apresentadas pelo outro e não integrada ao próprio self. Ah! este outro, cujo reconhecimento é tão necessário! Apontou Sartre: "O outro é o mediador indispensável entre mim e mim mesmo (...). E, pela aparição mesmo do outro, estou em condições de formular sobre mim um juízo (…)" (2011, p. 290). Zizi busca a própria legitimação como pessoa no mundo, qual seu papel diante da realidade em que está inserida, ou pela qual sente-se excluída, sempre pela figura do Outro.

O desencanto da vida, a desorganização da percepção do seu sentido para o ser torna a ideia do suicídio algo de extrema atração, por representar o alívio às dores, muitas vezes inexplicáveis da existência. A cliente encontra-se numa idade - de 15 a 35 anos - onde a estatística aponta cenário favorável o desenvolvimento da ideação suicida, assim como tem histórico que, em muito, pareça justificar tal intento. Por isso, o acompanhamento da evolução dos sinais de que possa haver a tentativa do suicídio mostrou-se tão determinante (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2017).

Esse caso também suscitou um mergulho profundo na congruência terapêutica, isto porque, de acordo com Rogers: "a transformação pessoal é facilitada quando o psicoterapeuta é aquilo que é, quando as suas relações com o cliente são autênticas" (2009, p. 72), ou seja, congruência nada mais é do que esta habilidade de ser fiel aquilo que se é, proporcionando uma relação onde o terapeuta seja, sobretudo, um ser humano, conferindo assim o sentido de autenticidade enquanto veracidade e espontaneidade dentro deste espaço relacional. Após tamanhos conflitos e tamanhas quebras de contratos de confiança vividos por Zizi, não poderíamos correr o risco de esbarrar em mais um lugar de não acolhimento, de conveniência. Estar completamente aberta para receber o que viesse dela era condição "sine qua non" para estabelecer o vínculo e a confiabilidade tão necessários para que este processo pudesse seguir adiante; ainda citando Rogers, ao falar de consideração positiva incondicional: "implica que o terapeuta esteja realmente pronto a aceitar o cliente, seja o que for que este esteja sentindo no momento" (2009, p. 73). Afinal, os julgamentos do cotidiano ela já bem conhecia, como sua avó citou certa vez: "você só atrai coisa ruim" ou a sua senhoria quando inspecionava suas coisas em busca de peças de roupas alheias que haviam desaparecido na casa. Uma psicoterapia, naquele momento, não poderia desejar outra coisa senão buscar fortalecer sua capacidade de construir um caminho de aproximação com a autoria e a autonomia sobre si e seu projeto de vida, à partir da descoberta dessa possibilidade de gerar as condições necessárias para tornar-se aquilo que se é. Isto é, de fato, a ambição da compreensão empática, entender os significados e atribuições do cliente para seus fenômenos, sem abdicar da nossa própria figura, enquanto terapeutas. É o "sentir que somos próximos" (ROGERS, 2009).

 

Intervenções e Experimentos Realizados

Um dos fatores mais "dolorosos" quando estamos em estágio é o tempo. Este fator que sobrepuja muitos outros e define nossa maneira de atuar. Jamais me cansarei de repetir isto em toda oportunidade.

Dentro dos caminhos da Psicoterapia Breve em Gestalt- Terapia busquei após o estabelecimento do vínculo, a fortificação do "rapport" (PONCIANO, 2015), assim como experiências que pudessem clarificar à cliente a necessidade de auto perceber-se, de enxergar a sua qualidade enquanto sobrevivente em meio às tragédias– entenda-se aqui o uso do termo tragédia enquanto concepção original daquilo que não pode ser alterado - aparentes de sua vida. Era preciso enaltecer o poder do seu mito pessoal e do heroísmo de sua jornada, constituída por tantos dissabores, tais como o drama da perda materna, a descredibilidade após sofrer abuso por parte de um familiar responsável, o julgamento constante dos membros de sua congregação religiosa, e tantos outros eventos. Pois como Campbell imortalizou em suas palavras "o herói, por conseguinte, é o homem ou mulher que conseguiu vencer suas limitações históricas, pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas, humanas" (1989, p. 16). O fortalecimento de sua autoestima era uma necessidade que derivaria deste momento de reajustamento e, portanto, estava em nossa "lista de prioridades". E, sem sombra de dúvidas, a constante verificação da existência e possível frequência do pensamento suicida era primordial. Também nos concentramos em trazer à cliente o foco sobre si mesma, pois ela evidenciava questões muito frequentemente direcionadas às pessoas ao seu redor, ao seu relacionamento romântico, etc.

Para tanto foi necessário um acolhimento bastante característico das linhas humanistas da psicologia, através: da aceitação incondicional, compreendendo e acolhendo a Zizi no momento onde narrava sua vontade de desistir da vida; da criação de um espaço de liberdade, não ameaçador, onde ela pudesse expor sua dor e insatisfação; do estimulo à sua tendência à auto realização, criando um espaço onde a cliente pudesse experimentar novas formas de estar em contato e de existir; da escuta atenta e empática para que ela própria pudesse escutar a si mesma mais atentamente, encontrando com isso possibilidade de legitimar-se, conforme defendido por Rogers (1986). Assim, as possibilidades vão do aprendizado, ao renascimento e aos encontros autênticos, uma vez que "estamos aqui para promover o processo de crescimento e desenvolver o potencial humano" (PERLS,1977, p. 14). E, claro, a aplicação da compreensão existencial, por tratar-se de um caso onde o ser e sua constituição de sentido diante da vida tornaram-se tão relevantes.

Entre as experimentações realizadas, cito a técnica do espelho como sendo o epicentro do movimento transformador da situação da cliente. Ora! Sendo a imagem de si o que mais a desagradava e tratando-se de identidade a nossa busca, o espelho era o elemento de maior simbologia deste status. Dessa maneira, sugeri à cliente, como um experimento, que buscasse se contemplar diariamente no espelho, no intuito de reconhecer, ali, alguma característica sua que pudesse soar agradável a si mesma, ou mesmo, quando isto não se mostrasse possível, que ela apenas se contemplasse, pois como podemos ver em Stevens "nós nos encontramos e nos comunicamos com os outros principalmente através da face (...) particularmente na comunicação de sentimentos e emoções" (1977, p. 108). Em seu retorno, passados 15 dias, ela espontaneamente me diz que estava fazendo o pequeno experimento do espelho que havia lhe sugerido. Relata que inicialmente se sentia meio "boba", porque não enxergava nada "ali", mas que foi tentando mesmo assim e buscando algo que gostava em outros dias, dava-se alguma ordem ou só se olhava e assim é que decidiu cortar o cabelo! Pontuei a representatividade do ato e também questionei sobre como ela estava se sentindo, ela disse que aliviada, mais leve. E seu semblante apontava, de fato, para esta descrição de leveza. Os olhos que antes, distraíam-se enquanto ela contemplava os dedos, o ar de cansaço, haviam desaparecido. Havia congruência, novamente a fidelidade entre o que se é ou sente e aquilo que se demonstra, entre a imagem global que eu via e a fala da paciente sobre se sentir aliviada e mais leve.

Para as queixas de insônia e pensamento acelerado, chegamos a realizar um experimento a partir de uma técnica de relaxamento focado na atenção sobre a respiração, como citado acima. Ainda em Stevens (1977) pode-se encontrar um exercício simples como este. Apesar de relatar algum efeito positivo da técnica sobre o que entendia como seus sintomas, foi notório como sua implicação em relação aos tais "sintomas" (de insônia e agitação mental) deu lugar em seu discurso às ocorrências subsequentes que demonstraram que as raízes de seus incômodos, ou seja, as insatisfações, preocupações com relação a forma como era vista, os tratamentos que recebia das outras pessoas, em suma, a sua vida, como se encontrava naquele momento, finalmente haviam se mostrado.

Um outro momento que se destacou no processo terapêutico foi aquele que se deu a partir de sua percepção de suas dificuldades em se impor perante às situações desconfortáveis da casa onde residia. Neste momento realizamos uma breve encenação de uma situação onde a mesma era provocada a se posicionar, onde fiz o papel da senhora que a abrigava e ela conseguiu perceber que precisava colocar-se melhor diante dos desconfortos que vivenciava e que as consequências não seriam catastróficas como ela mesma imaginara até aqui. A paciente conseguia então, ver a importância do reconhecer-se, muito além da necessidade de aguardar por ser reconhecida. A partir daí pudemos ver uma pessoa em fase de uma inicial, mas potente, construção de suas fronteiras de contato (PERLS,1988; PONCIANO,1997; CARDELLA,1994), tornando-se capaz, lentamente, de defender seu lugar de existência, através da afirmação de suas posições e pontos de vista, coisa que veio a fazer depois com esta senhora e também com outras pessoas, também trazendo à tona a defesa de argumentos à favor de pessoas que sofreram abuso, e de respeito pela própria singularidade. Zizi, aos poucos, mais consistentemente, estava se tornando pessoa, percebendo-se como alguém que possua uma existência legítima, um sujeito autêntico.

Dentro de uma possível avaliação, creio que podemos enxergar esta como uma intervenção que trouxe resultados positivos, o que só foi possível devido à implicação e compromisso da cliente com o próprio processo. A cliente não apenas cortou o cabelo, o que para a representação feminina pode ser visto como um ato, por si só, revolucionário; em poucas semanas ela terminou a sua relação romântica por ela mesma considerada insatisfatória, mas que antes não via condições de se posicionar a partir de sua própria insatisfação; mudou-se da casa onde residia para morar com um tio, dono de um pensionato; deixou a congregação na qual já não se sentia à vontade; viajou com colegas de curso, motivada por suas próprias vontades; saía com seus amigos; e envolveu-se numa nova relação dentro da qual pelo menos naquele momento sentia-se bem. O que vemos é a manifestação das potências do ser humano e do quanto a relação terapêutica é permeada dos elementos do cotidiano, quando o terapeuta não sabe o que despontará, não possui garantias, mas tem as suas expectativas e olhares, junto com o mundo do cliente, não se sabe o que pode emergir e o quão significantes e rápidas podem ser as transformações.

O maior ganho neste processo foi a apropriação por parte da cliente daquilo que era sua identidade. A modificação da sua percepção acerca da própria imagem enquanto ser humano, como jovem, como mulher revelou a ela aspectos novos e possibilidades de seu próprio ser que estavam subjugados sob o peso de tantas situações de repercussão, compreensivelmente, dolorosas. Ela cita o uso do batom vermelho como uma grande evolução, pois não era capaz de ver-se bonita ou de usar uma cor que lhe desse destaque. Assim como demonstrou muita maturidade ao narrar situações de desconforto em relação ao que as pessoas ainda poderiam manifestar acerca das situações de abuso de seu passado, assumindo uma postura de ativista, de alguém que se propõe ao combate em relação a esta violência. Tudo isto sem perder a vitalidade da sua juventude, sem deixar de lado as confissões do seu dia-a-dia de estudante, ou suas dúvidas diante de uma nova conquista romântica.

 

Impressões Finais

A jornada do estágio acadêmico no contexto da clínica-escola estendeu como possibilidade desbravar uma estrada há muito desejada. Com a luz da supervisão, tornam-se possíveis passos mais firmes e corajosos diante daquilo que nos move enquanto profissionais da clínica psicológica, a "psiquê", a pessoa humana, o ser em seu constante devir imerso nas relações. Através da Gestalt-Terapia, e da permissão de contatos e atravessamentos possibilitados, não só o cliente experimenta o próprio crescimento, mas o próprio terapeuta.

Toda a subjetividade transbordante neste texto é por perceber que o ser humano é um elemento desejante, sujeito da vontade, já apontada por Schopenhauer (2005), dono e escravo de sua própria potência e é, acima de tudo, autor de si e da própria história, figura autora e constituidora dos sentidos e significados de sua própria existência.

Cada percalço apresentado no desenrolar de nossas sessões era como a parte da canção Tesoura do Desejo, em que o poeta, Alceu Valença (1992), questiona "o que é que foi? O que é que há?" sempre à disposição da figura de sua admiração para que ela coloque sobre as coisas que a fazem parecer, diante dele, tão deslumbrante. A cliente que entrou pela primeira vez no Serviço temia o desejo que sentia em si pela vida, mas foi essa tesoura simbólica do desejo que a possibilitou enxergar a sua magnitude, através da vivência do processo terapêutico, do seu comprometimento e disponibilidade, e potência de transformar a vida em algo que novamente estava ganhando sentido.

A poética figura terapêutica coube o papel de admirar este Outro - imagem despontando para a realização - e descobrindo em si, como terapeuta, a alegria de bastar, de não protagonizar, pois o grande espetáculo somente seria possível se explodisse no palco da alma daquele ser à sua frente.  Ainda ecoa nas salas vazias para as quais a cliente não retornou para a última sessão "foi a tesoura do desejo/ desejo mesmo de mudar".

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, E. Q.; NETO, R. A Clínica Fenomenológico-Existencial. Revista de Psicologia I, 2012. Disponível em: <http://blog.newtonpaiva.br/psicologia/wp-content/uploads/2012/08/pdf-e2-13.pdf> Acesso em: 28 jun. 2018.

ANDRADE, C. D. de; A Vida Passada à Limpo. 1ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

BALIEIRO, C.; DEL PICCHIA, B. O Feminino e o Sagrado: mulheres na jornada do herói. 1ª ed. São Paulo: Ágora, 2010.

CAMPBELL, J.; O Herói de Mil Faces. Tradução: Adail Ubirajara Sobral. 10ª ed. São Paulo: Pensamento Cultrix, 2005.

CAMUS, A.; O Mito de Sísifo: Ensaio Sobre o Absurdo,1942. Disponível em:  <http://sanderlei.com.br/PDF/Albert-Camus/Albert-Camus-O-Mito-de Sisifo.pf> Acesso em: 28 jun. 2018.

CARDELLA, B. H. P.; O Amor na Relação Terapêutica: uma visão gestáltica. 4ª ed. São Paulo: Summus, 1994.

MINISTÉRIO DA SAÚDE, Prevenção ao Suicídio: Manual Dirigido Aos Profissionais de Saúde Mental - 2017, Disponível em: <https://www.cvv.org.br/wpcontent/uploads/2017/05/manual_prevencao_suicidio_profissionais_saude.pdf> Acesso em: 28 jun. 2018.

PERLS, F. S.; Gestalt-terapia Explicada. Tradução: George Schlesinger. São Paulo: Summus, 1977.

___________. A Abordagem Gestáltica e Testemunha Ocular da Terapia. 2ª ed. Rio de Janeiro: LTC, 1988.

RIBEIRO, J. P.; Gestalt-terapia de Curta Duração. 3. ed. São Paulo: Summus, 2015.

___________. O Ciclo do Contato: temas básicos na abordagem gestáltica. 2ª ed. São Paulo: Summus, 1997.

ROGERS, C. R.; Tornar-se Pessoa. Tradução: Manuel José do Carmo Ferreira. 3ª Tiragem. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

___________. Sobre o Poder Pessoal. Tradução: Wilma Millan Alves Penteado. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1986.

SARTRE, J. P.; O Ser e o Nada: Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Tradução: Paulo Perdigão. 20ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2011.

SCHOPENHAUER, A.; O Mundo Como Vontade e Representação - TOMO I. Tradução: Jair Barbosa. São Paulo: UNESP, 2005.

STEVENS, J. O; Tornar-se Presente: experimentos de crescimento em Gestalt-terapia. Tradução: Maria Júlia Kovacs e George Schlesinger. 2ª ed. São Paulo: Summus, 1977.

VALENÇA. A.; Tesoura do Desejo. 7 Desejos. Rio de Janeiro: EMI,1992.

 

NOTAS:

* Janaína Oliveira de Jesus: Graduada em Psicologia pela UniNassau. Pós-graduanda em Terapia Familiar (Faculdade Única), atuante no atendimento clínico online e presencial de adolescentes e adultos. Voluntária da Associação Conquistense de Integração do Deficiente - ACIDE, Vitória da Conquista - BA. Atualmente envolvida em trabalhos que focam o desenvolvimento das potencialidades em mulheres cegas, bem como na escuta clínica e estudos voltados a área Fenomenológica-Existencial.
** Marcelo da Silva Alves Pires: Graduado em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia (2006). Especialista em Psicologia Social, tendo atuado diretamente com Políticas Públicas, planejamento e execução de projetos, treinamento e coordenação de equipes interdisciplinares. Mestre em Ensino, História e Filosofia das Ciências pela UFBA/UEFS. Doutor em Psicologia pela UFBA e Professor e Supervisor Clínico na UniNassau de Vitória da Conquista - BA.

 

Endereço para correspondência
Janaína Oliveira de Jesus
Endereço eletrônico:janaipsicologa@gmail.com
Marcelo da Silva Alves Pires
Endereço eletrônico:professormarcelopires@gmail.com

 

Recebido em: 16/07/2020
Aprovado em: 09/03/2021