ARTIGO

Processo de luto no contexto da COVID-19 à luz da Gestalt-terapia: Estratégias possíveis de enfrentamento

Mourning process in the context of COVID-19: Possible coping strategies

 

Thalyson Bruno Marques Feitoza*; Yáskara Lobo Cordeiro**; Marcus Cézar de Borba Belmino***

UNILEÃO - Centro Universitário Doutor Leão Sampaio – Juazeiro do Norte, CE.

Endereço para correspondência

 


RESUMO

O presente trabalho apresenta um estudo bibliográfico sobre a elaboração do processo de luto pela perda de um ente querido no contexto da COVID-19 sob o olhar da gestalt-terapia. A COVID-19 é uma síndrome respiratória ocasionada pelo novo coronavírus, a sua disseminação em nível global fez com ela fosse classificada como uma pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Devido a fácil contaminação do vírus, algumas medidas de segurança foram tomadas para evitar o contagio, assim, o Ministério da Saúde estabeleceu algumas restrições aos rituais de despedidas, impossibilitando assim a realização de velórios e funerais. Essas medidas de segurança, embora necessárias, se apresentam como um agente complicador para a elaboração do processo de luto. Desse modo, este momento confronta o indivíduo em seu desamparo, e evidencia a importância do suporte e dos tradicionais rituais de despedidas, sendo imprescindível que sejam pensadas ações que visem mitigar essas possíveis consequências ocasionadas pela realidade imposta pela COVID-19. Assim, as estratégias elaboradas neste estudo, se apresentam como uma alternativa possível de serem desenvolvidas, e podem contribuir para a mitigação dessas consequências.

Palavras chaves: Luto; COVID-19; Gestalt-terapia


ABSTRACT

The present work presents a bibliographic study on the elaboration of the mourning process for the loss of a loved one in the context of COVID-19 under the perspective of gestalt therapy. COVID-19 is a respiratory syndrome caused by the new coronavirus, its global spread has caused it to be classified as a pandemic by the World Health Organization (WHO). Due to the easy contamination of the virus, some security measures were taken to avoid contagion, thus, the Ministry of Health established some restrictions on farewell rituals, thus making it impossible to hold funerals and funerals. These security measures, although necessary, present themselves as a complicating agent for the elaboration of the grieving process. Thus, this moment confronts the individual in his helplessness, and highlights the importance of support and the traditional farewell rituals, and it is essential that actions are taken to mitigate these possible consequences caused by the reality imposed by COVID-19. Thus, the strategies developed in this study are presented as a possible alternative to be developed and can contribute to mitigate these consequences.

Keywords: Mourning; COVID-19; Gestalt-therapy

 

I – INTRODUÇÃO

A disseminação em nível global da COVID-19, síndrome respiratória ocasionada pelo novo coronavírus, fez com que a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2020) a classificasse como uma pandemia em 11 de março de 2020, e a mesma tem se caracterizado como uma emergência internacional de saúde pública. Desse modo, o presente artigo busca versar sobre a elaboração do processo de luto no contexto de pandemia da COVID-19.

O processo de luto permeia a vida humana em todo o seu desenvolvimento, sendo uma resposta natural, a partir de estratégias criativas subjetivas e culturais, a perda de algo ou alguém significativo. Santos (2014, p.27) conceitua o luto como "um processo especificamente relacionado à perda de uma pessoa em decorrência de morte", e salienta que esse processo é único e se assemelha a uma estrada tortuosa, com altos e baixos, podendo ser extremamente difícil no início, mas conforme se vai avançando, os caminhos difíceis vão perdendo a intensidade e se tornado mais curtos, porém, isso não significa que se consiga chegar mais rápido ao fim da estrada, e em algumas épocas, a estrada torna-se difícil mais uma vez, tortuosa, embora com o passar dos anos ela tenha se tornado uma velha conhecida.

A escolha pela temática que norteia esse artigo se deu pelo fato de que na pandemia COVID-19, a morte se tornou mais próxima, inesperada e súbita do que era de costume, se tornando uma complicação considerável para a elaboração do luto, especialmente por que no contexto de isolamento social para evitar a disseminação do Corona Vírus, o Ministério da Saúde (BRASIL, 2020) decidiu que em casos de suspeita ou confirmação de infecção, o sepultamento deve acontecer de forma imediata, não sendo recomendado a realização de velórios, serviços de somatoconservação e outras técnicas, impedindo a despedida simbólica tradicional de muitos familiares e amigos. Já em relação aos mortos por demais causas, é recomendado que as cerimônias funerárias aos familiares durem por no máximo uma hora, sendo limitado o número de dez pessoas, respeitando a distância mínima de dois metros entre elas.

Para tanto, partindo da pergunta problema "Como a mudança do ‘modus operandi' de velórios e sepultamentos, no contexto da COVID-19, tem interferido na elaboração do processo de luto dos sujeitos que perderam um ente querido neste momento de crise?" levantou-se a hipótese de que as medidas adotadas, embora sejam necessárias para conter a contaminação, podem gerar possíveis impactos psicológicos e culturais, agravando a dor da perda e exigindo um olhar mais atento à saúde mental dos familiares e pessoas próximas.

Com isso, o presente artigo objetiva estudar a possibilidade de traçar estratégias que auxiliem o processo de luto que o sujeito atravessa, pela perda de um ente querido, no contexto pandêmico da COVID-19. Para alcançar tal objetivo, visa-se identificar como o processo de luto é entendido sob a luz da gestalt-terapia; analisar a importância dos rituais associados à morte; e apresentar estratégias de enfrentamento ao luto diante da situação de crise gerada pelo COVID-19.

Diante do exposto, vê-se o processo de luto sendo atravessado por diversos fatores que potencializam o risco de agravamento de sofrimento psíquico individual e coletivo. Assim, é necessário pensar em alternativas que auxiliem criativamente o enfrentamento do luto, cabíveis as recomendações básicas de saúde no contexto de luta contra o COVID-19, uma vez que os rituais em torno da morte são importantes para os desdobramentos da saúde mental do sujeito, e estes precisam ser redesenhados e ressignificados nesse contexto.

 

II – METODOLOGIA

Este trabalho foi desenvolvido através de uma revisão de literatura, a partir de pressupostos metodológicos de caráter exploratório, por possibilitar o aumento da experiência dos pesquisadores no que se refere ao objeto de estudo, e descritivo, pois propõe-se a descrever os fatos e fenômenos da realidade estudada, com abordagem qualitativa (MINAYO, 2010; TRIVIÑOS, 1987).

Optou-se pelo método de pesquisa bibliográfica, que segundo Gil (2002) é o tipo de pesquisa realizada a partir de um material já existente. Para tanto, fez-se uso de livros, artigos publicados em periódicos em sites como Scielo, Google acadêmico e IGT na rede, assim como decretos estaduais do estado do Ceará, monografias, teses e dissertações referentes ao tema proposto. No que se refere aos critérios que orientaram o levantamento do material, foi usado como critério de inclusão os materiais que tivessem os marcadores luto; Gestalt-terapia; Covid-19; e rituais de despedida.

 

III – REFERENCIAL TEÓRICO

3.1 - O LUTO ENQUANTO SOFRIMENTO ANTROPOLÓGICO NO CONTEXTO DA COVID-19

O medo de ser infectado por um vírus potencialmente fatal e de fácil contaminação que tem assolado diversos países, o isolamento social, a imprevisibilidade quanto ao tempo de duração da pandemia e suas consequências, tendem a afetar a saúde mental da população total do país em diferentes níveis de intensidade e gravidade. Reações como irritabilidade, angústia, impotência, tristeza, desamparo, solidão, tédio, alterações de apetite e alterações de sono podem se fazer presentes. Desse modo, acredita-se que uma pandemia como a COVID-19 pode promover um aumento da incidência de sofrimento psíquico intenso e transtornos psíquicos entre um terço e metade da população (BRASIL, 2020).

O momento de crise gerado pela COVID-19 tem causado uma onda de insegurança, desde a perspectiva individual à coletiva, e no que se refere à saúde mental, as sequelas invisíveis que uma pandemia pode provocar são maiores que o número de mortes (BROKS et al., 2020 apud FARO et al., 2020). Desse modo, em uma pandemia como a COVID-19 já se é esperado que haja impactos na saúde mental, entretanto, o indício de que esses impactos possam se arrastar por meses ou anos se faz alarmante e revela a urgência de assegurar a implementação de ações eficazes de mitigação.

A morte, além de fazer parte da condição humana, também traz à tona reflexões sobre a nossa finitude, e carrega consigo diversos atributos, representações e significações como, sofrimento, desconhecimento, ruptura, e dor, pois marca o fim absoluto de um ser vivo. Na cultura ocidental, os vínculos estabelecidos com outras pessoas e coisas é altamente valorizado, mas em contrapartida, existe uma tentativa de esvaziar os sentimentos relacionados a situações de perdas e rompimento de vínculos. Evita-se o contato com os sentimentos que surgem nas situações de perda, ou acontece de forma rápida e superficial, o sofrimento e a dor são negados e se faz comum ouvir frases como "vai passar" e "não chore", por conseguinte, a dor da perda não é integrada ao processo vivencial e refletirá como uma situação inacabada na vida do sujeito (BIRCK, 2010).

Quando se trata da morte de um ente querido, existem diversos fatores que influenciam o modo como cada indivíduo lida com a questão da morte e do morrer, como o nível de aceitação da morte; perdas anteriores; o suporte familiar e social; o nível de parentesco; a natureza do vínculo afetivo; a circunstância da morte, se foi súbita ou por doença crônica; religiosidade, entre outros fatores (MELO, 2004). Desse modo, compreende-se que a perda de alguém significativo tem um impacto não somente no individuo, mas no sistema familiar e nas suas interações, assim como também representa a perda de uma vida conhecida, uma identidade e um sentido de pertencimento, assim, o sofrimento não é somente pela perda do outro, mas também pela perda de uma parte de si mesmo, de antigas identidades da qual a imagem de si mesmo dependia.

Fukumitsu (2008) compreende, sob a ótica da Gestalt-terapia, que o luto é um processo de fechamento de gestalten, é um momento em que a existência demanda uma (re)organização, e assim, a partir do processo de satisfação e afastamento da necessidade, figura-contato-afastamento, a situação inacabada vai se apresentar como figura e pedir por um fechamento. A autora ainda pontua que o organismo não assimila o luto só com a constatação da perda, mas sim com a vivência singular dessa experiência.

Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2012b) propõem o entendimento do luto enquanto uma forma de configuração do sofrimento antropológico, que tem relação com a ausência de representações sociais que asseguram ao sujeito uma determinada identidade, assim como uma impossibilidade de conceber uma compreensão sobre o futuro, sobre quais representações podem vir a substituir ou recuperar as que foram perdidas. A clínica do sofrimento antropológico, na gestalt-terapia refere-se a uma vulnerabilidade na função personalidade da teoria do "self".

Aqui, "self" é compreendido como um sistema de contatos, um processo que demonstra o indivíduo como um ser que se constitui na relação daquilo que apreende no aqui-e-agora. Perls, Hefferline e Goodman (1977, p.178) afirmam que "o ‘self' pode ser considerado como estando na fronteira do organismo, mas a própria fronteira não está isolada do ambiente, entra em contato com este, e pertence a ambos, ao ambiente e ao organismo". Desse modo, compreende-se que "self" não é uma instância fixa, mas sim um processo que se dá através de uma relação do campo organismo/meio, sendo a partir de suas funções e dinâmicas que o contato, ajustamento criativo e "awareness" se fazem possível. O "self" é ainda responsável pela formação de figuras e fundos, e tem como principais características a espontaneidade e o engajamento.

O "self" tem três funções: id, ego e personalidade, sendo estas, três pontos de vista diferentes que se pode ter de uma mesma experiência. A função id se apresenta no fundo de hábitos, motores e linguageiros, que foram formados anteriormente e retornam na atualidade em forma de excitamento, servindo de orientação afetiva para as ações do sujeito. Desse modo, relaciona-se com a maneira como o organismo percebe o meio, e é de onde surge as ações mais espontâneas e automáticas. Portanto, entende-se que o id não é deliberado, ele é o que escapa, e age sobre o sujeito quase que à sua revelia (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1977; GINGER; GINGER, 1995; MÜLLER-GRANZOTTO; MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a).

A função ego age de modo deliberado, e diz respeito a forma como o organismo age no mundo, e na maneira que irá interagir com o que é toxico ou nutritivo em suas relações, ou seja, é responsável pela identificação e alienação das figuras, que emergem a partir de um fundo de hábitos (função id), resultando no surgimento de um significante individual, que nada mais é do que a própria ação do indivíduo. Desse modo, compreende-se que a função ego é ato, ação, pois o organismo toma consciência acerca de suas necessidades e desejos, e age de forma concreta no meio em busca de satisfazê-las (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1977; MÜLLER-GRANZOTTO; MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a).

A função personalidade, é responsável por fazer a integração das vivências que o sujeito faz ao longo de sua vida, dando ao mesmo um senso de identidade, ou seja, refere-se ao autoconceito e autoimagem que o sujeito tem de si (PERLS; HEFFERLINE; GOODMAN, 1977). Quando se há uma vulnerabilidade nessa função, a resposta criativa que o sujeito encontra é um pedido de socorro solidário, que Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2012b) definem como ajustamento de inclusão. Esses ajustamentos podem aparecer como choros, gritos, embotamento, expressão de desesperança, desfalecimento emocional ou desanimo, e são sempre direcionados a alguém, mas o sujeito, nessa condição de sofrimento, não consegue reunir condições para identificar o que é que o mesmo precisa, e o outro, a quem essas manifestações são direcionadas, precisa assumir o lugar de corpo solidário, pois o pedido de socorro faz do meio um corpo de atos auxiliar.

É importante salientar que o luto também é um processo cultural e sofre influências de variáveis culturais, desse modo, circunstâncias sociais podem afetar o enlutado na época e após a perda, como crises, situações de estresse, novas perdas, mudanças repentinas, entre outros fatores (BOWLBY, 1998). Assim, considerando o contexto pandêmico da COVID-19, o isolamento social e a fato de que a população foi colocada em uma situação de ter que criar novos modos de existência individual e coletivas, percebe-se que os sujeitos que perdem alguém significativo nesse momento, precisam lidar, de certa forma, com dois lutos diferentes, o luto pela rotina, hábitos, e realidade antes conhecida, e com o luto pela perda do ente querido.

3.2 – RITUAIS DE DESPEDIDA E SUA FUNÇÃO ORGANIZADORA

É de suma importância refletir acerca da morte enquanto um tema legítimo que faz parte da cultura contemporânea. permitindo aos enlutados que as fantasias construídas em volta da morte sejam compreendidas. A morte é cuidadosamente encoberta pela sociedade contemporânea, e os debates sobre a morte e o reconhecimento desse momento como parte da vida são desviados em nome de uma cultura da apatia e da dessensibilização (PERLS, HEFFERLINE E GOODMAN, 1997).

Sassi (2014) compreende que, ao longo da história, o corpo social adota condutas para o enfrentamento da morte que apresentam diferenças significativas: a morte antes vista como um acontecimento público e compartilhado, integrado ao viver, reconhecido enquanto destino circunstancial da vida, hoje tornou-se um evento isolado e distanciado do percurso natural humano, para o desenvolvimento da ideia de prazer imediato e da juventude eterna, no intuito de afastar o sentimento de dor e sofrimento que envolve o morrer. Os esforços são voltados, a todo custo, para o controle da morte, constituindo tentativas de negar a finitude, impossibilitando, na correria cotidiana, o refletir sobre a condição humana: o morrer.

Ainda de acordo com a autora, a psicologia deve funcionar como ferramenta de facilitação neste processo de discernimento a respeito da morte, enquanto etapa inevitável do desenvolvimento humano. O manejo, portanto, deve ser feito de modo que a finitude seja posta a reflexão e trabalhada já nos primeiros instantes de sua ocorrência, como por exemplo, na elaboração dos rituais fúnebres, que se apresentam como sendo de suma importância no que tange ao gerenciamento dos pensamentos e condutas ligadas às limitações humanas. Devem ser elaborados estes movimentos estratégicos que possibilitem, aos enlutados, a compreensão do processo de luto consequente da finitude enquanto reação necessária frente ao rompimento de uma relação significativa, permitindo a melhor aceitação e elaboração criativa desse luto (SASSI, 2014).

Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2012b) afirmam que em situações de emergência (como a pandemia COVID-19) as perdas vivenciadas podem contribuir para o desenvolvimento de adoecimento somático, desencadeando assim a aniquilação das representações relativas a si, pois nesse processo de vivência do sofrimento, o sujeito está mais vulnerável, pois há uma privação dos meios e recursos que constituíam a sua identidade antropológica. Assim, o sujeito tem a necessidade de acolhimento em relação ao luto ou desespero, seja por familiares, amigos, colegas, vizinhos, que nem sempre têm condições de arcar com o sofrimento do outro, ou seja por profissionais da saúde, que é essencial para a restauração das representações de si, da sobrevivência anatomofisiológica e da inclusão social digna.

Assim, corroborando com Lisbôa e Crepaldi (2003), os rituais de despedidas redefinem os relacionamentos, pois, sendo de forma verbal, ou não verbal, apenas com gestos estratégicos traçados para se despedir do ente significativo, há a (re)afirmação dos sentimentos positivos, de ajuda no enfrentamento da morte, do luto e do alivio, através das representações dos sentimentos considerados negativos. Atuam, também, no sentimento de pertencimento aquela relação, ao rememorar e ressignificar vivências relacionais com o objeto perdido. O ritual de despedida aparece como solene, sagrado, honrado, marcando um espaço de despedida simbólica da perda vivida, permitindo ao familiar, ou amigo, comunidade, criar uma cisão entre passado, presente e futuro, aceitando a perda e seguindo em frente, apresentando uma elaboração, ainda que relativa, aos sentimentos de raiva, angústia e/ou melancolia consequentes da morte. Porém, olhando por um viés fenomenológico e gestáltico (MULLER-GRANZOTTO; MULLER-GRANZOTTO, 2012b), o modo como a pessoa construirá suas novas representações e atravessará o processo de luto precisa ser compreendido a partir da concretude da experiência, respeitando o tempo e o modo específico como aquela pessoa irá construir e ressignificar sua experiência vivida.

Sendo assim, Bromberg (1998) descreve estes rituais como proposição a expressão das emoções intensas, a demonstração inicial da dor da perda, em um contexto elaborado para promover conexão. Constitui, portanto, uma importante ação de despedida que possibilita e define um período para a vivência do luto de forma segura, já que é uma práxis limitada pelo tempo e espaço, revelando-se importante quanto à demarcação das etapas do desenvolvimento humano, por meio da familiarização, repetição e transformação de sentidos.

Assim, se contextualiza a experiência de perda, permitindo o nascimento das mudanças de papéis, além da troca de condições consequentes da transição de cada etapa da vida. É um espaço que deve assegurar a intimidade que o sujeito necessita para se autorizar a elaborar o luto, com choro, grito, revolta ou a lamentação, ou seja, ser conduzido à nudez antropológica (MÜLLER-GRANZOTTO; MÜLLER-GRANZOTTO, 2012b). Assim, Sousa (2016) afirma que esses rituais permitem ao enlutado falar sobre da pessoa falecida, possibilitando tornar-se de fato, real, a perda, ajudando a trazer para si a realidade e a finalidade da morte.

No entanto, no contexto de pandemia COVID-19, as recomendações científicas para o enfrentamento do vírus, ao visar a diminuição dos riscos sanitários e de contaminação, são voltadas para a proibição ou restrição de número de pessoas presentes no ritual de velório, sepultamento ou cremação. É certo que os rituais de despedida são organizadores e importantes no processo de luto, como afirmado anteriormente. Essas proibições e restrições, embora necessárias no contexto de crise, impedem a vivência desse momento, podendo surgir sentimentos intensos de raiva, horror, choque e melancolia, que somadas à experiência de emergência na comunidade, não apenas restrito ao âmbito familiar ou social mais próximo, aumenta a possibilidade de agravamento de complicações no processo de luto e na retomada de investimento nas situações necessárias para o enfrentamento da vida. Dessa forma, conclui-se a importância de desenvolver e estimular, juntamente dos enlutados, uma possibilidade criativa e estratégica, de ritualizar o processo de despedida e significar o que estão enfrentando, de modo a respeitar as recomendações sanitárias (BRASIL, 2020).

3.3 – ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO AO LUTO NO CONTEXTO DA COVID-19

Quando se vive uma situação de crise, tem-se a necessidade de que esse momento seja experienciado no aqui-e-agora. A Gestalt-terapia, por considerar o sujeito uma função de campo organismo/meio, que tem seu comportamento como reflexo de sua relação dentro desse campo, entende que a experiência humana está sempre em processo de transformação, dada as diferentes necessidades organísmica e movimentos do campo (PERLS, 1988).

Fukumitsu (2004, p.14) aponta que as "perdas são experiências do nosso viver, experiências como inúmeras outras, que nos ensinam, transformam, deformam e formam", assim, compreende-se que embora não haja nada a ser feito que seja capaz de desfazer a morte de um ente querido, é imprescindível reconhecer que, apesar das facticidades da vida, tem-se a liberdade, permeada pelas possibilidades, de se fazer o que deseja, e de escolher como se apropriar da situação em questão. Desse modo, o sujeito ao se deparar com a perda tende a ir em busca de um sentido para a sua vida, e para encontrar significação, é preciso ajustar-se, pois a perda de um ente querido implica um processo de reorganização individual e relacional.

Diante do que foi exposto, nota-se que o contexto da COVID-19 nos convida a criar estratégias para o enfrentamento do processo de luto, assim, salienta-se que é necessário que haja um respeito pela dor e sofrimento advindo da situação vivida. A adaptação à perda é um processo que pode ser difícil, e nesse momento, o sujeito pode precisar do auxílio de um ambiente que promova acolhimento e escuta não demandante, pois esse pode encontrar-se em uma situação de vulnerabilidade e, por isso, não conseguir encontrar meios para agir, tomar decisões e elaborar o que sente e precisa no momento. Essas condições podem contribuir para a construção da vivência do luto, para que a pessoa possa vir a formular mais claramente suas necessidades, para que assim, sejam resgatadas as identidades possíveis e criação de outras. Desse modo, um abraço, um olhar sem demanda, a escuta do desamparo e outras posturas de solidariedade e gratuidade da relação podem produzir um sentimento de gratidão e reconhecimento do outro como alguém capaz de oferecer um suporte para que se possa voltar a criar (MÜLLER-GRANZOTTO; MÜLLER-GRANZOTTO, 2012b).

Perante a impossibilidade da realização dos velórios e enterros, pode-se pensar em diferentes alternativas para esses rituais de despedidas. Um ritual realizado de forma remota, religioso ou laico, que faça sentido para a família e amigos, pode ajudar, pois em tempos de isolamento social os encontros virtuais têm se tornado momentos de conexão, presença e intimidade. Desse modo, velórios, missas virtuais, homenagens póstumas realizadas em uma plataforma digital se apresentam como uma alternativa possível.

Outra alternativa viável é um momento em que seja feito uma celebração do perdido, do passado, de modo que possa ser compartilhado histórias sobre a pessoa falecida, momentos vivenciados que serão guardados, rememoração através de fotos, pois essas alternativas, embora pareçam simples, podem ser extremamente potentes, pois possibilita um acesso ao fundo de hábitos, aspectos identitários. Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2012b) pontuam que a vivência de uma perda abre caminho para que o passado se manifeste com uma grande força, e que as recordações podem ser um "analgésico" bastante poderoso.

Também se faz importante que o enlutado possa contar com uma rede de apoio, pois a mesma pode fazer o sujeito perceber que não se encontra sozinho, acarretando em uma sensação de segurança (PARKES, 1988). Desse modo, embora exista um afastamento da coletividade devido ao isolamento social, pode-se promover redes sociais de apoio, de solidariedade, sendo feita chamadas de vídeos, ligações, ou a criação de um espaço virtual onde as pessoas próximas possam expressar as suas condolências.

Por fim, salienta-se que o momento de emergência atual pode colocar o sujeito em uma situação de desamparo por ser um fundo que não figurou para o mesmo em um momento anterior, e o amparar-se é ter fundo, ter suporte. Por mais que a humanidade já tenha atravessado outras pandemias, as características que são próprias dessa pandemia são somadas à desigualdade social, as formas de violência e desamparo próprias do regime neoliberal (SANTOS, 2020), tudo isso integrado com as redes sociais e as novas configurações psíquicas produzidas no contexto atual. Desse modo, faz-se importante também o acompanhamento com a profissional de psicologia, para que se possa criar espaços em que os ajustamentos de inclusão sejam acolhidos de forma ética, gratuita e solidária, ajudando o sujeito a ressignificar as suas vivências para despertar a autonomia e capacidade de conduzir a si mesmo, pois a despedida do perdido possibilita que o sujeito possa se abrir para o futuro, e para as possibilidades ainda disponíveis.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pandemia COVID-19, como foi discutida no decorrer deste trabalho, caracteriza-se como um momento atípico na vivência da humanidade, por mais que outras pandemias já tenham sido vividas na história, cada uma apresenta especificidades e desafios que são próprios do seu tempo. Desse modo, os indivíduos, ao se perceberem em uma realidade completamente nova e desconhecida, são convidados a criarem novos modos de existência, individuais e coletivas, o que pode, em algumas circunstâncias, gerar ansiedade e medo. Paralelo a essas mudanças, ainda se tem a presença da morte muito próxima e constante, dado que os índices de morte e transmissibilidade causado pelo novo coronavírus são superiores ao que pode ser encontrado em pandemias como a da H1N1, SARS, gripe aviária e outras. Por isso, muitas pessoas tiveram perdas de entes queridos, e ainda por cima, não puderam velar essas pessoas em função dos cuidados necessários na situação de isolamento social.

Esta situação de emergência confronta o indivíduo com seu desamparo, e evidencia a importância do suporte, da solidariedade, da família, da comunidade e dos vínculos. Desse modo, a impossibilidade de se ter os tradicionais rituais de despedidas e a negação da possibilidade de se despedir do ente querido acaba por gerar ainda mais sofrimento nesses sujeitos. Portanto, é imprescindível que sejam pensadas e realizadas ações que visem mitigar essas possíveis consequências ocasionadas pela realidade imposta pela COVID-19. Assim, as estratégias elaboradas neste estudo, se apresentam como uma alternativa possível de serem desenvolvidas, e podem contribuir para a mitigação dessas consequências.

A pandemia iniciou no Brasil em fevereiro de 2020, e as transformações que ocorrem e as necessidades de adaptação são praticamente diárias sem que se tenha ainda um dado objetivo de quando ela irá acabar. A cada momento acontecem transformações políticas, sociais, econômicas, mas, também, a cada nova semana pode-se acompanhar transformações também nas situações de enfrentamento, assim como novas iniciativas (individuais e coletivas) que buscam reduzir os danos causados por essa situação. Por isso, esse artigo aponta algumas reflexões situacionais, possíveis no momento específico que foi produzido, porém, sabendo-se que ainda é um contexto presente e que, como todo fenômeno humano, está em processo contínuo de transformação. É fundamental que novas pesquisas sejam apontadas sobre essas estratégias e as transformações sociais e individuais que são construídas a cada momento no contexto da pandemia e que possamos manter a Gestalt-terapia nesse movimento constante de olhar para o mundo-da-vida, refletir sobre ele mas também reconhecer que o conhecimento nunca está completamente acabado.

Por fim, a Gestalt-terapia, a partir de sua visão de homem e mundo, se apresenta como uma abordagem potente para pensar os temas discutidos neste estudo, pois nos convida a resgatar aquele olhar que vai ao encontro do outro com abertura, respeito e solidariedade. Acolhendo o desvio, a diferença, apreciando a experiência do outro, reconhecendo-a como única e singular, e se permitindo ser afetado por esta. A Gestalt-terapia nos oferece um olhar que denuncia a importância da gratuidade da relação, do confiar na potência do encontro e na capacidade da vida de se reinventar.

 

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SOUSA, Luiza Eridan Elmiro Martins de. O processo de luto na abordagem gestáltica: contato e afastamento, destruição e assimilação. IGT na rede, Rio de Janeiro, v. 13, n. 25; p. 253-272; dez.; 2016. Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1807-25262016000200006&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 06 jul. 2020.

TRIVIÑOS, Augusto Nivaldo Silva. A pesquisa qualitativa em educação. São Paulo: Atlas, 1987.

 

NOTAS

*Thalyson Bruno Marques Feitoza: Discente do curso de Psicologia (UNILEÃO).
**Yáskara Lobo Cordeiro: Discente do curso de Psicologia (UNILEÃO).
***Marcus Cézar de Borba Belmino: Psicólogo (CRP 11/05136), Mestre em Psicologia (UNIFOR) e Doutor em Filosofia (UFSC). Professor do Curso de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Ensino em Saúde da UNILEÃO.

 

Endereço para correspondência
Thalyson Bruno Marques Feitoza:
Endereço eletrônico:t.brunomf@gmail.com
Yáskara Lobo Cordeiro:
Endereço eletrônico:yaskara_loboc@hotmail.com
Marcus Cézar de Borba Belmino:
Endereço eletrônico:marcuscezar@gmail.com

 

Recebido em: 05/10/2020
Aprovado em: 06/11/2020