ARTIGO

A morte na Pandemia COVID-19: Articulando a minha experiência da prática psicológica no Hospital com a Teoria da Gestalt-terapia

Death in the COVID-19 Pandemic: Articulating my experience of psychological practice in the Hospital with the Theory of Gestalt Therapy

 

Amanda Santana Lessa*

IGT – Instituto de Gestalt-Terapia, Rio de Janeiro, RJ.

Endereço para correspondência

 


RESUMO

O presente artigo tem a pretensão de apresentar minha experiência com a intervenção psicológica no âmbito hospitalar no momento da notícia de óbito dada pelo médico aos familiares dos pacientes com diagnóstico confirmado ou suspeito a COVID-19. A proposta é possibilitar uma reflexão frente a morte e o luto intensificado no atual momento da pandemia com aporte da Gestalt-terapia. Com isso, elucida-se a importância de articular a prática e teoria, potencializando a importância do papel do psicólogo neste contexto hospitalar, apropriando-se da postura fenomenológica e da relação dialógica, compreendendo o outro e o mundo a partir dele próprio. Reforçando que sou uma humana e profissional da relação, com isso sempre afetarei e serei afetada diante o momento, entendendo que este encontro pode gerar possibilidades e mudanças.

Palavras-chave: COVID-19; Morte; Sofrimento; Acolhimento; Postura Fenomenológica; Relação Dialógica; Afeto; Transformação.


ABSTRACT

This article intends to present my experience with psychological intervention in the hospital at the time of the news of death given by the doctor to the relatives of patients with a confirmed or suspected diagnosis of COVID-19. The proposal is to allow a reflection in the face of death and intensified grief in the current moment of the pandemic with input from Gestalt-therapy. Thus, the importance of articulating practice and theory is clarified, enhancing the importance of the role of the psychologist in this hospital context, appropriating the phenomenological stance and the dialogical relationship, understanding the other and the world from itself. Reinforcing that I am a human and professional of the relationship, with that I will always affect and will be affected before the moment, understanding that this meeting can generate possibilities and changes.

Keywords: COVID-19; Death; Suffering; Acceptance; Phenomenological Posture; Dialogical Relationship; Affection Transformation.

 

INTRODUÇÃO:

O presente artigo foi desenvolvido em meio a pandemia da COVID-19 na pretensão de descrever a minha experiência de intervenção profissional como psicóloga durante as notícias de óbitos dos pacientes suspeitos ou confirmados ao novo coronavírus (COVID-19), dentro de um hospital público de alta complexidade, situado no município de São Gonçalo/Rio de Janeiro e para finalizar o Curso de Especialização em Psicologia Clínica – Gestalt-Terapia (Indivíduo, Grupo e Família) realizado no Instituto de Gestalt-terapia e Atendimento Familiar (IGT).

No final do mês de janeiro de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que o surto da doença COVID-19 constituía uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional. Segundo o Ministério da Saúde "A COVID-19 é uma doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, que apresenta um quadro clínico que varia de infecções assintomáticas a quadros respiratórios graves". No meado de março deste mesmo ano, a COVID-19 foi caracterizada pela OMS como uma pandemia e o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, decretou estado de emergência no Estado.

Neste período, iniciou o distanciamento social e/ou isolamento frente às orientações da OMS à toda população. Enquanto a maioria das pessoas enfrentavam as orientações para ficarem em casa, muitas outras precisavam trabalhar como serviço essencial, dentre estas, os colaboradores da área da saúde. Partindo deste contexto, no âmbito hospitalar, tentarei elucidar com aporte da Gestalt-terapia uma das minhas experiências como psicóloga hospitalar frente a COVID-19.

No enfrentamento a pandemia, no novo e desconhecido momento, busquei repensar dentro da unidade hospitalar sobre a minha responsabilidade na minha prática como psicóloga nos meus seguintes questionamentos: Como posso atuar frente a COVID-19? Faz sentido os meus sentimentos e reações diante a minha prática? Qual o sentido da minha prática no aqui e agora? O que eu tenho de habilidade e o que eu posso melhorar na minha atuação e na minha forma de ser no mundo? Em meio a minha subjetividade e minhas implicações, busquei dar sentido ao novo momento, sendo empática e presente, ressignificando os meus sentimentos e a responsabilidade do meu papel neste contexto.

Diante uma das minhas práticas dentro do hospital, no acompanhamento das notícias de óbitos dos pacientes suspeitos ou confirmados com a COVID-19, fui afetada frente os sentimentos vividos pelos familiares. Estes apresentavam sofrimentos diante as restrições e orientações antes, durante e após o processo de hospitalização, no recebimento da notícia da morte de seu ente querido e diante a diferente forma de lidar com o sepultamento.

Com isso, tenho o objetivo de elucidar a minha prática articulando com a teoria da Gestalt-terapia, potencializando a importância do psicólogo na área hospitalar, salientando o acompanhamento na notícia do óbito aos familiares frente a COVID-19.

Ao longo da escrita, farei uso da primeira pessoa do singular, como a forma mais apropriada para a estrutura do texto, tentando presentificar minha experiência de uma maneira que possa aproximá-los e/ou afetá-los do atual momento. Desta forma, busco respaldo na seguinte citação:

"No que se refere a forma do enunciador se colocar no texto, o uso da primeira pessoa do plural (nos) e o mais usado, característico de modéstia ou de majestade, além da forma impessoal (espera-se). Mas a primeira pessoa do singular (eu) também é usada, às vezes, em alguns tipos de pesquisas, como em estudos de casos. A decisão em relação a forma de se colocar no texto parte do produtor (...)" (BARRICELLI & OLIVEIRA, apud PINHEIRO-DA-SILVA, 2014, p.14).

O referido artigo é uma pesquisa qualitativa, desenvolvida em meio a pandemia e a partir dos impactos que vivi na experiência profissional na busca de ser empática ao contexto de sofrimento das famílias enlutadas frente a COVID-19. Tentarei oferecer um caminho de leitura que possa situá-los ao momento de atuação na pandemia, o meu lugar de trabalho, os meus sentimentos e intervenções.

Com base nos estudos dos materiais bibliográficos em Gestalt-terapia os quais me dão segurança e ética na minha atuação como psicóloga hospitalar e com pouca bibliografia disponíveis quanto a prática de acompanhar os familiares na comunicação do médico na notícia de óbito, farei a descrição da minha experiência, exemplificando um caso que possa representar tal cenário, potencializando a importância do psicólogo, principalmente neste contexto de pandemia.

 

COVID-19: A TEMIDA DOENÇA DENTRO DO HOSPITAL

Desde os primeiros dias alarmados no Estado do Rio de Janeiro, o hospital público que atuo, recebeu as orientações quanto a necessidade das mudanças de rotina nos setores frente a COVID-19. Irei me ater no momento, apenas as orientações dos setores de pacientes confirmados ou suspeitos. Estes pacientes não poderiam ter visita familiar e as orientações médicas do quadro clínico do paciente seriam passadas por meio de ligação telefônica.

Neste contexto, a família atenta e/ou assustada com os noticiários, traz o paciente com possíveis sintomas da COVID-19 para unidade hospitalar para avaliação médica com receio e incerteza da internação. Tendo a necessidade da hospitalização tanto o paciente quanto seus respectivos familiares são afetados com o diagnóstico e sua consequência, além das novas normas do processo de hospitalização. 

O paciente não pode ser compreendido isoladamente. Com base na Gestalt-terapia, partimos da concepção holística do homem, como ser biopsicossocial, favorecido dos aspectos físico, afetivo, intelectual e social. O corpo e a alma significam partes de uma mesma coisa, visto em sua totalidade, um ser em relação consigo mesmo e com o mundo, na sua singularidade no seu tempo e história (YONTEF, 1998).

Diante a reflexão de Yontef (1998) "Quando algo acontece com um membro de uma família, de algum modo, todos são afetados" (p.196). Com isso, a doença, internação e morte são situações que afeta não só há um único indivíduo, mas todos da dinâmica familiar. Família sendo compreendida não só por um conjunto de parentes por consanguinidade ou afinidade, mas por um grupo com diferentes personalidades, subjetividades, papéis e afetos nas diferentes relações e organizações.

Na perspectiva da Gestalt-terapia, o ser humano é um ser singular, social, integrado e interdependente. Desta maneira, Aguiar (2014), pontua que família é como uma totalidade inserida em outras totalidades sendo constituída pelos membros que a compõem, estando em interação na troca de afetos, buscando a melhor forma possível de se autorregularem. Também afirma que a mesma perspectiva que se tem para o indivíduo tem para família, "bem como a noção de desenvolvimento continuo da família por meio de sucessivas reconfigurações sempre que o "equilíbrio" dela se altera" (AGUIAR, 2014, p.118).

O processo de hospitalização afeta de alguma forma tanto o paciente quanto seus familiares, no entanto, os sentimentos são potencializados e/ou surgem novos ao ter que lidar com a COVID-19. Visto a possibilidade do sofrimento prévio na vivência dos noticiários da pandemia, pela necessidade do processo de hospitalização e diante as novas regras institucionais (Familiares não podem visitar o paciente e estes são orientados a não vir a unidade hospitalar, recebendo as orientações médicas por meio de ligação telefônica).

Por muitas vezes, um processo de hospitalização sem restrição familiar, promove aproximação e ajustamentos das relações, assim como organização de situações financeiras na dinâmica familiar e até mesmo despedidas antes da morte. Mas com a não permissão de visita familiar ao paciente, estas relações e as consequências de uma internação, são enfrentadas por si só como elas estão no momento, sem tempo para organizar e/ou elaborar qualquer situação. 

Com isso, diante ao novo contexto, busquei ser empática aos familiares questionando-me com tais perguntas: Como me sentiria se fosse o meu familiar? De que forma aguardaria as notícias médicas do quadro clínico por meio do telefone? O que sentiria, sem ter direito a escolha, vivenciar a internação de um familiar com a COVID-19 precisando ficar longe do hospital? Na experiência de ser empática e mesmo compreendendo que a vivência é singular, fui implicada por diversos atravessamentos, sentimentos e reações ao pensar nos referidos familiares os quais apresentaram uma potencialidade de sofrimento diferente diante a internação e comunicação de óbitos. No entanto, a COVID-19, a temida doença dentro do hospital afetou não só pacientes e familiares, mais também aos colaboradores da unidade de saúde, os quais vivem o receio de se contaminar e/ou contagiar os seus familiares em casa.

Desde o início da pandemia, eu assumi o meu medo frente a desconhecida doença, e este sentimento me auxiliou na prevenção de usar máscaras, óculos e touca no atendimento as famílias durante as notícias de óbitos e na ressignificação do meu comportamento. Reforço à importância do meu autocuidado na minha atuação neste contexto de atribuir o cuidado aos referidos familiares enlutados.

A maioria das notícias de óbitos que eu acompanhei antes da pandemia, por muitas vezes, durante o atendimento usava minhas mãos, como uma ferramenta na tentativa de acolher e/ou acalentar os sentimentos, no movimento de tocar nas costas ou segurar nas mãos dos familiares que me permitiam com suas expressões corporais.

No entanto, no meu contato com o próprio medo de pegar COVID-19 e contagiar aos membros da minha família, busquei repensar sobre a minha relação e postura com estas famílias que precisavam do meu suporte. Ressignificando mesmo diante deste momento de dor, o meu toque das mãos não seria fundamental e sim a minha presença. De acordo com Yontef (1998) ser presente é mais do que uma aceitação calorosa é permitir o familiar ser quem ele é, assim como eu poder me permitir ser quem sou.

Eu precisei me apropriar mais da minha postura dialógica até com base nos estudos de Yontef (1998) fazendo uso da minha habilidade na técnica e das minhas qualidades pessoais na relação com estas famílias em luto. Com isso, me aproprio do uso da minha presença, sensibilidade, escuta atenta, disponibilidade para ofertar espaço aos sentimentos das famílias neste momento difícil.

Há sete anos trabalho nesta unidade hospitalar, o Serviço de Psicologia sempre acompanhou os médicos nas notícias de óbitos, exceto quando não é acionado. O adjunto administrativo realiza ligação para os familiares solicitando comparecerem ao hospital. Ao chegarem a unidade, a equipe médica e de psicologia são solicitadas para direcionarem-se a sala específica para comunicação da morte do paciente.

Apesar de saber que a morte é a única certeza que temos da vida, a sociedade ainda depara-se com a finitude como um tabu. Nossa vida é constituída pelas polaridades de vida e morte, ter e perder, e vivenciando estas polaridades, temos a possibilidade do processo de mudança. No entanto, falar de morte precisa falar de vida, a morte de uma vida e a consequência desta morte na vida de alguém pensando no ser relacional. Para Gestalt-terapia o ser humano é essencialmente único e relacional, cresce e se desenvolve, a partir da relação e na relação, diferenciando-se nas suas singularidades.

Nossa sociedade apresenta dificuldade de lidar com as possibilidades dos sentimentos que são desencadeados com a morte de alguém com vínculo afetivo. Vivenciando o sofrimento do luto como sentimento negativo, como algo que precisa ser distanciado ou evitado.

Na maioria das notícias de óbito que acompanho é comum às pessoas apresentarem um movimento de quererem controlar o sofrimento de quem acabou de receber uma informação de perda significativa, dificultando o contato com a experiência dolorosa, principalmente quando o referido familiar apresenta alguma questão de saúde. Exemplificando tal momento com tais comunicações verbais: "Calma"; "Não fica assim"; "Não chora"; "Se controla"; "Vai passar";

Há também por muitas vezes, o distanciamento das experiências pessoais com seus próprios sentimentos: "Desculpa por estar chorando"; "Não posso chorar"; "Preciso ser forte" Estas falas distanciam a pessoa da vivência dos seus próprios sentimentos que são coerentes com o luto. O reconhecimento do atual momento e o ter contato com o que se sente no processo de luto abre possibilidades para construção de novos caminhos.

No entanto, o processo de luto é uma vivência normal e singular diante uma perda significativa que gera mudança. Apresentamos perdas ao longo da vida desde o nascimento até a morte. E o lidar com todas as perdas constituídas em nossa vida, nas nossas relações com o outro e com o mundo nos envolve no processo de luto.

Ao depararmos com as palavras morte, perda e luto, associamos a dor e sofrimento que fazem parte da vida. No entanto há uma potencialidade destes sentimentos frente pandemia da COVID-19, devido o afastamento na rotina da hospitalização, o lidar com a morte e as mudanças nas questões sociais com ênfase das restrições do sepultamento.

Na prática, percebi um impacto de sofrimento maior nas famílias que receberam notícias de óbitos dos seus entes queridos suspeitos ou confirmados para COVID-19. Os sofrimentos das diferentes configurações de famílias nas descrições dos fenômenos apresentados não eram só pela perda da morte em si, por muitas vezes havia o luto da identidade perdida, do rompimento da relação construída, além das consequências do luto frente a pandemia.

No entanto, estes familiares perpassam também pelo sofrimento do distanciamento do seu paciente durante o processo de hospitalização, questionamentos e incertezas do diagnóstico, preocupações de contágios e perdas com os outros membros familiares (algumas vezes precisei acolher e acompanhar familiares na triagem do hospital para aferição da pressão arterial, além da medição da oxigenação do sangue), luto das restrições da nova forma de sepultamento, a impossibilidade do velório e a necessidade do caixão ser fechado.

A forma cultural de lidar com a morte, os rituais, como velório, ajuda as pessoas a entrarem contato com a realidade da perda, se permitindo a entrarem em contato com suas emoções, a falar sobre a pessoa falecida o que mobiliza a aceitação do fato. (SOUSA, 2016) No entanto diante a COVID-19 esta forma cultural é interrompida, gerando sofrimentos prévios ao sepultamento.

Sabemos que familiares terão dias prolongados com o luto, ao vivenciar os noticiários e à espera da confirmação ou não do diagnóstico, o qual no momento demora em média trinta dias para o resultado. Além de pessoas estarem sofrendo antecipadamente e/ou duplamente, nas associações dos noticiários com o processo de hospitalização. Deste modo, entendo a importância do suporte da Psicologia aos mencionados familiares a fim de serem acolhidos e terem a oportunidade de entrarem em contato com seus sentimentos frente todo este cenário.

A COVID-19 desencadeou diversas mudanças que potencializaram o sofrimento dos familiares. No contato com meus sentimentos e implicações, afetada por tal momento, também mudou a minha experiência desencadeando meu desenvolvimento pessoal e profissional. Com o aporte da Gestalt-terapia a minha experiência só foi possível com minha interação com o meio, meu contato e awareness.

Compreendendo em está afetada, me fez ter possibilidade de um movimento e uma nova emoção no contexto de cuidado as famílias, me trouxe a reflexão, ampliando minha "awareness", promovendo o meu próprio processo de transformação na minha atuação. Na perspectiva da Gestalt-terapia, awareness se caracteriza pela consciência de si e do que está a sua volta no momento presente, desenvolve-se pelo contato e pela experimentação a partir de conhecer o que deseja, a exploração o que se vive e da vontade de assumir a responsabilidade de pensar em possibilidades. Para "awareness" acontecer, é preciso que tenha contato, embora possa ter contato sem "awareness" (YONTEF, 1998).

Ter contato com o meu modo de ver o mundo e minha atuação à luz da Gestalt-terapia me favoreceu para entender a importância de estar afetada no momento, me potencializando e impulsionando à pensar em possibilidades.

Com isso, busquei compartilhar com o Serviço de Psicologia a idéia de fazer contato telefônico com as famílias dos pacientes internados nos setores da COVID-19, após a equipe médica realizar a ligação para orientação do quadro clínico do paciente. O contato da Psicologia tem o objetivo de ser uma possibilidade de heterossuporte que possa proporcioná-los acolhimento, confiança, oportunidade de poderem falar e se possível dar-se conta dos seus sentimentos e vivências no atual momento. Além de termos a possibilidade da construção do vínculo para desenvolver o trabalho terapêutico nos possíveis novos contatos, sejam por meio do telefone ao longo do processo de hospitalização ou para acompanhá-los na notícia de óbito.

Com a realização da ligação telefônica aos familiares, tenho a possibilidade de ser o heterossuporte tornando importante o suporte emocional no momento de sofrimento. Há dois tipos de suporte que se intercomunicam por toda a vida: heterossuporte ou apoio ambiental e autossuporte ou autoapoio, sendo este o potencial do indivíduo, a independência pessoal e o processo de amadurecimento (FRAZAO & FUKUMITSU, 2014).

Fez todo o sentido, ser o heterossuporte destes familiares em sofrimento com processo de hospitalização frente a COVID-19, além de acompanhá-los no momento da notícia de óbito. Há fatores que influenciam o processo de luto, com isso a forma de enfrentar a morte, acrescentando o fato de ter que lidar com a internação diante a COVID-19, é singular, sendo atravessadas pela personalidade, história prévia de perdas, o sentido da perda e a existência ou não de uma rede de apoio (SOUZA, 2016).

Portanto, em meio a todo sofrimento, o cuidado no modo de informar a notícia de óbito, pode auxiliar os familiares na assimilação para elaboração do luto. Desta forma, torna-se importante ter um olhar atento durante o momento de dar a notícia no que se refere ao local, a conduta médica e ao acolhimento do Serviço de Psicologia. Reforça-se a importância da presença da Psicologia durante e após a notícia de óbito, atribuindo o cuidado aos familiares enlutados, em especial frente o diagnóstico da COVID-19.

 

RELATO DE UM CASO A LUZ DA GESTALT-TERAPIA:

Era uma manhã de mais um plantão, onde o telefone da sala tocou, a adjunta do administrativo apreensiva, solicitando o Serviço de Psicologia para mais uma notícia de óbito de paciente do Centro de Terapia Intensiva setor da COVID-19. Este era o segundo que eu acompanhava naquela manhã, mas não indiferente ou acostumada, encontrava-me ansiosa para mais um atendimento de cuidado que não sabia quais sofrimentos estariam por vir naquele momento na relação com os familiares que poderia está disposta a construir. 

Esta ansiedade vivida a caminho de acompanhar uma notícia de óbito, me revela uma profissional que se preocupa e se responsabiliza de forma ética no cuidado ao outro. Entendo que esta ansiedade faz parte da minha humanidade e com ela consigo ter um manejo para me permitir ser disponível, tornando-me presente na tentativa de fluir ao encontro da família.

Ao chegar na sala, encontrei com um médico comprometido e também sensibilizado com a morte de um homem que no dia anterior dialogava com a equipe. Fizemos um contato, onde cada um de nós pode trocar seus afetos no movimento de empatia em relação aquele homem e sua família.

Apesar de muitas famílias e colaboradores estarem vivenciando a morte de perto, não se pode criar pressupostos dos sentimentos da família diante a morte. Ninguém sabe da dor e/ou a reação do outro, mesmo que tenha passado por situações difíceis ou perdas similares. Concordo com a seguinte citação:

"Para entrar no mundo do outro e não desonrá-lo, um terapeuta fenomenológico o coloca entre parênteses, isto é, põe de lado as perspectivas em que ele mesmo vive, as crenças que tem sobre o que constituem dados, e aprecia a mesma validade para uma realidade diferente e um conjunto de dados diferentes" (YONTEF 1998, p. 252).

Vivíamos um afeto cada um de maneira particular diante aquele homem, mas não tínhamos como prevê a reação da família que nos aguardava para um diálogo sobre seu familiar internado que talvez não imaginasse que seria sobre a morte.

Após a troca de afeto, realizada por mim e pelo médico, este solicitou a adjunta administrativa chamar a família presente para comunicação do óbito. Entrava na sala, uma senhora sozinha, em média aos seus 40 anos, informando ser esposa do paciente. Ao questionarmos se tinha alguém a acompanhando no hospital, responde que o cunhado e o sogro de idade, no entanto estes a aguardava fora da unidade na intenção de proteger o sogro da COVID-19.

Deste modo, o médico se apresentou e verbalizou sobre o processo de internação, comunicando o falecimento do paciente que era seu marido, iniciando o preenchimento da declaração de óbito. Em meio e posterior a este momento, a Psicologia realiza sua atuação. Impactada com tal notícia, a qual não esperava a mulher, esposa, mãe, cunhada e nora entre tantos outros papéis expressava seu momento de cabeça baixa, pedindo desculpas por está chorando. Neste momento, me apresentei com uma das psicólogas do hospital que estaria disponível para acolher seu choro junto aos sentimentos no seu atual momento.

Entendo que este acolhimento é uma atitude ética de possibilidade de encontro na relação terapêutica. Se permitindo a vivenciar este espaço, a referida familiar verbalizava a sua dor da perda, suas preocupações com seus familiares e receios do novo junto aos seus três filhos.

Em respeito ao seu momento, no entanto em meio a questão burocrática, o médico fazia algumas perguntas para preenchimento da declaração de óbito. E junto as respostas neste campo, os fenômenos se manifestavam no espaço aqui e agora.

Para Yontef (1998) campo é uma "Totalidade de forças mutuamente influenciáveis que, em conjunto, formam uma fatalidade interativa unificada" (p.185). Pontua também como características do campo: teia sistemática de relacionamentos; sem interrupções no espaço e no tempo; tudo é de um campo; o que determina os fenômenos; uma fatalidade unitária, onde tudo é afetado. Só se torna campo aquilo que é experenciado pelo indivíduo. Tal familiar precisava entrar em contato com seu sentimento no campo, no seu atual momento da vida.

Uma das perguntas na declaração de óbito era sobre a ocupação do marido, a referida mulher iniciou um choro compulsivo e depois respondeu a profissão de forma rápida. Neste momento, busquei trazer para o campo o que era percebido, propondo a familiar dar sentindo a este momento. E esta verbaliza sobre a escolha do marido em trabalhar em dois empregos na busca de tentar oferecer o melhor para os filhos na questão de saúde e educação, no entanto não tiveram a oportunidade da ocupação do tempo com a família. Ressalta que os dias que puderem estar mais juntos, foram durante a pandemia quando ele foi demitido de um dos lugares de trabalho. Assim nas folgas de um emprego ficava em casa junto com a família, mesmo com algumas restrições devido ao medo de contagiar os filhos por estes serem do grupo de risco.

Deste modo, foi importante trazer para o campo o que foi percebido, que muitas vezes aparece como sem importância na busca do processo de dar-se conta, do que se vive ali, naquele momento. Os fenômenos vão ocorrendo neste campo com contato, em que as relações cruzam-se e afetam-se, podendo a partir disso, ir se transformando.

Torna-se importante para este campo, a postura fenomenológica da atenção e a experiência vivida frente a cada ser humano de forma diferente por terem características próprias no lidar com a morte.

A Gestalt-terapia tem influência da fenomenologia enquanto filosofia e método. Para Yontef, "Fenomenologia é uma busca de entendimento, baseada no que é óbvio ou revelado pela situação, e não na interpretação do observador" (YONTEF, 1998, p. 218).  Pinheiro-da-Silva (2014) nos traz que a fenomenologia Husserliana é uma das filosofias que influencia de forma marcante a Gestalt-terapia. Na perspectiva fenomenológica a idéia de intencionalidade está associada a "atos espontâneos de consciência que atuam direcionando um conjunto de atos de consciência que trazem como correlatos os 'objetos intencionais', também chamados de coisas mesmas" (PINHEIRO-DA-SILVA, 2014, p.43).

Para a fenomenologia nossa consciência é intencional, damos sentido às coisas. Cada ser humano compreende o mundo a partir da sua história e o terapeuta facilita a compreensão do indivíduo e do mundo a partir dele próprio. Assim, trabalhamos com a descrição daquilo que aparece, para o familiar dar sentido aos sentimentos situando-se no seu momento existencial.

Dentro deste método fenomenológico não há neutralidade. O organismo e o meio, o sujeito e o objeto, estão sempre em relação. Eu influencio e sou influenciada pelo outro. Cada ser humano entende o mundo de uma forma, assim como cada familiar lida com a morte de maneira diferente. O terapeuta busca ampliar a consciência sem desrespeitar ou ignorar a visão e os sentimentos do familiar.

Além da fenomenologia, a relação dialógica também é utilizada como metodologia de trabalho dentro da Gestalt-terapia. Esta relação requer a presença integral do terapeuta, como principal ferramenta para auxiliar o suporte emocional dos familiares dentro deste ambiente hospitalar.

A qualidade da presença é recurso essencial para relação ser considerada terapêutica. Só o fato de eu estar disponível para acolher, escutar, olhar nos olhos destes familiares isso já é terapêutico. Na qualidade da presença, Buber afirma:

"Ele não intervém mais, mas nem por isso permite que aconteça pura e simplesmente. Ele espreita aquilo que por si mesmo se desenvolve, o caminho do ser no mundo; não para se deixar levar por ele, mas para atualizá-lo como ele deseja ser atualizado pelo homem de quem ele necessita, por meio do espírito humano e do ato humano, com a vida do homem e com a morte do homem. Ele crê, disse eu, o que equivale dizer: ele se oferece ao encontro"(BUBER, 2001, p.73).

Na relação dialógica, eu não me coloco como detentora do saber, mas sim como ser humana que está à frente do referido familiar. Desta maneira, me disponibilizo para a escuta e o diálogo, utilizando os conhecimentos e a presença.

Escuta fenomenológica é uma escuta cuidadosa, esclarecedora e descontaminada por parte do terapeuta. A partir da qual se estabelecerá a relação dialógica fundamental para o desenvolvimento do processo de compreensão e aceitação do atual momento. O mais importante é deixá-lo perceber que estou disponível e disposta a partilhar alguns de seus sentimentos, entrando na situação experencialmente, possibilitando o acolhimento (PAULINI, 2007).

Após a familiar responder todas as perguntas do médico para declaração de óbito em meio a todo seu desabafo, este se despede da mesma. Logo o adjunto administrativo retira-se da sala para tirar cópias de todos os documentos. Permanecendo eu e ela no contato, na relação Eu-Tu, que baseia a postura terapêutica e consiste estar presente no que for possível com o outro, no encontro existencial, onde acolho a singularidade desta mulher. O encontro Eu-Tu acontece espontaneamente e não pode ser provocado.

"A experiência Eu-Tu é estar tão plenamente presente quanto possível com o outro, com pouca finalidade ou objetivos direcionados para si mesmo. E uma experiência de apreciar a alteridade, a singularidade, a totalidade do outro, enquanto isso também acontece, simultaneamente, com a outra pessoa. E uma experiência mutua; e também uma experiência de valorizar profundamente, estar em relação com a pessoa – é uma experiência de encontro" (HYCNER & JACOBS, 1997 apud VAVASSORI, 2017 p. 188).

Na compreensão de Buber, encontro se dar a partir de duas atitudes básicas do homem na sua existência frente ao seu ser e ao mundo. Eu-Tu, sendo uma dimensão dialógica, fundamentada pelo entre das relações. Eu-Isso uma dimensão monológica, objetificante, que se refere ao mundo como experiência. Ele ressalta que o homem não pode viver sem o Isso, mas se vive somente com o Isso não é homem, potencializando o homem como ser relacional (BUBER 2001; VAVASSORI, 2017).

A partir desta relação dialógica que busca acolher a singularidade do outro, mesmo em sofrimento diante a morte do seu marido aquela mulher teve a possibilidade de buscar se ajustar criativamente para lidar com aquele momento. Em Frazão & Fukumitsu (2015), define-se como ajustamento criativo a capacidade de satisfazer as nossas necessidades fisiológicas e psicológicas de acordo com a prioridade e com as possibilidades no campo organismo e meio.

Enquanto vivíamos aquele encontro, ela relata lembrar-se da minha ligação telefônica que ocorreu dias antes. Diz que naquele contato tinha fé e esperança, reforçado até pelo cunhado que havia recebido alta hospitalar com isso tinha a expectativa da recuperação do seu marido.

Neste momento, tínhamos a possibilidade de dar espaço ao surgimento de novos fenômenos e eu enquanto terapeuta buscava ser seu heterossuporte, ofertando acolhimento e escuta ativa tentando auxiliá-la na busca do seu autossuporte.

Ficou evidente a importância da ligação para as famílias durante o processo de hospitalização, confirmando a importância da criação de vínculo que favorecesse minha atuação com os familiares durante a notícia de óbito, facilitando a possibilidade de darem inicio a elaboração do luto.

Nos primeiros óbitos que acompanhei frente a COVID-19, era comum os familiares apresentarem dúvidas sobre o sepultamento. Nesta vivência, implicada, com novos sofrimentos da família diante as mudanças da forma cultural de lidar com a morte do seu ente querido, busquei fazer contato telefônico com as funerárias, públicas e particulares da mesma região do hospital a fim de obter informações que favorecesse no momento as possíveis orientações e suporte emocional.

O lidar com a morte é singular, além de ser cultural diante seus ritos para o velório e sepultamento, com isso entendo que o luto é vivido diante um processo interno e externo que durante o período do distanciamento social está prejudicado. Estamos habituados a sepultar, a se despedir do corpo no velório e no sepultamento associando ao fechamento. No entanto, as funerárias quando leem na declaração de óbito que o motivo da morte é COVID-19, interrogado ou confirmado, segue as orientações do caixão fechado, sem velório e redução de familiares para o sepultamento, onde o corpo é transferido do hospital para o cemitério momentos antes do enterro.

Não diferente dos outros familiares, a referida familiar, também apresentava dúvidas e sofrimentos sobre o sepultamento. Neste momento, pude informá-la sobre as possíveis orientações que eu tinha conhecimento, buscando estar atenta aos possíveis fenômenos que poderiam surgir. Verbalizava a tristeza do caixão fechado, no entanto, dava-se conta do cuidado do marido nos últimos dias que não abraçava a família no intuito de protegê-la da COVID-19 por fazerem parte do grupo de risco, buscava associar que o caixão fechado seguia o desejo do seu cuidado.

Também trazia para o aqui e agora suas preocupações em como falar tal notícia para seus filhos que são crianças. Após intervenções em busca de dar sentido ao momento, elaborava a situação encarando a realidade que a melhor forma do diálogo seria a própria verdade e que viveria junto com eles a dor do momento.

Colocava como questão também o momento de enfrentar a realidade e falar com o sogro e o cunhado que aguardavam por notícias. Na postura fenomenológica e na relação dialógica, disponibilizava também minha companhia neste processo como suporte, além de oferecer o acolhimento e a presença aos seus familiares que aguardavam fora da unidade hospitalar.

Após o contato da mulher com seus próprios sentimentos diante o momento de luto, junto ao contato da nossa relação construída, a adjunta do administrativo, realizou as orientações burocráticas sobre a busca do serviço funerário e cartório para emissão da certidão de óbito.

Finalizávamos o nosso encontro afetadas. Dentro de uma perspectiva coerente com a Gestalt-terapia quando há encontro eu e o outro nos transformamos. Encontrávamos afetadas e transformadas para lidar com novo momento que seria repassar tal notícia ao sogro e cunhado. Acordamos que eu enquanto terapeuta estaria em sua companhia para suporte, mas a referida repassaria a informação da sua forma frente o momento.

E assim iniciamos um novo contato com o sofrimento junto ao seu sogro e cunhado os quais aguardavam informações fora da unidade. Devido ao medo de entrarem no hospital, chamamos ambos para sentarem na recepção da emergência da pediatria que estava vazia naquele momento. Enquanto terapeuta, encontrava-me disponível na presença com a mulher que triste informava sobre as orientações médicas e o falecimento do marido aos seus familiares.

O cunhado expressava seu momento com choro e perguntas, elaborando sua perda, falando do homem que era o seu irmão como marido e pai, além de falar da sua relação como irmãos. Enquanto este falava e chorava diante a atual condição, seu pai, idoso, apresentava-se de cabeça baixa e calado. Neste instante, sentei ao seu lado, iniciando um diálogo, me colocando disponível para ouvi-lo diante o seu momento.

Olhando nos meus olhos, permite cair às lágrimas dos seus, tentando expressar sua tristeza de ter que enterrar um filho. Fala sobre a morte dos pais e irmãos lembrando com tristeza, mas ressalta que aquela dor era diferente. "Sinto uma dor como se estivesse arrancando uma parte de mim" (SIC). E junto ao seu sofrimento, chorava em pensar no sofrimento da esposa e dos netos que aguardavam ansiosos por notícias em casa. Ao mesmo tempo em que falava da morte do filho, dizia acreditar que ele viveria uma vida eterna por ter sido um homem bom, mencionando sobre a religiosidade de toda família. Fukumitsu (2018) aponta que o sofrimento pode ser diminuído se damos sentido ao que vivemos:

"Dar um significado a condição sofrida frequentemente reduz ou mesmo elimina o sofrimento associado a ela. A transcendência e provavelmente a forma mais poderosa pela qual alguém pode ter sua integridade restaurada, após ter sofrido a desintegração da personalidade" (FUKUMITSU, 2018, p.62).

Reafirmava minha postura fenomenológica em está aberta as possibilidades, sendo acolhedora e curiosa em conhecer como estava sendo para família vivenciar tal momento naquele lugar, evitando julgamentos e juízo de valor. Respeitando o tempo de cada familiar junto aos seus modos de expressão verbal e não verbal no lidar com o luto.

Com isso, de acordo com Yontef "O progresso de um paciente é uma função do campo todo" (1998, p. 193). Associo também ao progresso de cada familiar frente ao processo de luto do seu ente querido, determinado não apenas pela força de cada pessoa, mas pela habilidade e relação do terapeuta no acompanhamento da noticia de óbito, pelo acolhimento do hospital, familiares e amigos e tudo que faz parte do espaço vital de cada família em sua rotina diária.

 

REFLEXÃO ENQUANTO TERAPEUTA:

Em todos os atendimentos, dentro das minhas possibilidades, busco fazer a minha entrega frente o meu comprometimento e minha dedicação, estando presente na relação com os familiares e a serviço deles. A Gestalt-terapia preconiza a relação, desta maneira é importante enquanto psicóloga adotar uma postura relacional através do método dialógico (YONTEF, 1998).

O meu papel enquanto terapeuta diante da família, durante e após a comunicação do óbito pelo médico é poder estar disponível na relação, ser empática e realizar o possível acolhimento diante a dor, angústia, incertezas, inseguranças entre tantas emoções e reações que podem aparecer como fenômenos no momento. Também é auxiliá-lo na possibilidade de ressignificar o seu momento em prol da sua própria vida e de outros familiares que permanecem vivos.

Não há como ignorar a importância de acolher todas as emoções e reações da família, potencializando minha habilidade enquanto terapeuta e ser humana, no auxílio de ser o heterossuporte no atual momento, permitindo e respeitando a elaboração do luto no seu próprio tempo.

O luto vivido é único, de acordo com o momento de cada um, da sua história e relação com a pessoa falecida. No entanto, ao longo de doze anos da minha história, inserida na psicologia hospitalar, tive a oportunidade de vivenciar e acompanhar a dor de muitos familiares em sofrimento diante a morte. E percebo que quando o familiar apresenta uma espiritualidade e/ou religiosidade, o luto torna-se mais tranquilo apesar de sofrido, onde o sofrimento apresenta um sentido para além do que se vive.

"A espiritualidade diz respeito a busca do ser humano de um sentido e de um significado transcendente da vida. A religião, por outro lado, e um conjunto de crenças, praticas rituais e linguagem litúrgica que caracteriza uma comunidade que está procurando dar um significado transcendente as situações fundamentais da vida, do nascer ao morrer" (FUKUMITSU, 2018, p.63).

Com isso, independente da minha religião, acolho a espiritualidade e/ou religiosidade, assim como todas as questões apresentadas pelas famílias na busca de equilíbrio para o sistema. A Gestalt-terapia também se baseia no princípio proposto por Goldstein de auto-regulação organísmica como uma forma de atualização do organismo de interagir com mundo, respeitando sua natureza, procurando encontrar o equilíbrio para o sistema. Da mesma forma, existe um mecanismo de auto-regulação familiar, através o qual a família procura um novo equilíbrio após o aparecimento de algo que desestabiliza ou desorganiza o sistema. E o equilíbrio acontece quando o organismo consegue corresponder às demandas do meio que está inserido(SANTOS, 2008).

Precisamos enquanto terapeutas, desenvolver nosso autoconhecimento, compreendendo nossos pensamentos, sentimentos e comportamentos. Desta maneira, busquei desenvolver com este momento meu autocuidado e autossuporte a partir da busca de heterossuporte dentro das limitações da pandemia com a minha própria terapia on-line, na minha dinâmica familiar, na interação com familiares e amigos (em meio a tecnologia), na minha religião, nos meus estudos e na descrição que faço através deste artigo.

Infelizmente, apesar de toda importância que dou para atuação do psicólogo no âmbito hospitalar, com ênfase no atendimento aos familiares diante a notícia do óbito do seu ente querido ainda não são todos os médicos que permitem a presença do psicólogo em meio a sua comunicação, algo tão importante que precisa ser refletido ao cuidado ao próximo, independente quem seja ou como esteja expressando seus sentimentos.

Poderia aqui descrever diversas possibilidades que poderiam impedir o médico de aceitar nossa companhia, motivos internos e/ou externos, além do conhecimento ou pressupostos que eles possam ter de nós psicólogos. Independentemente do que o impeçam, na minha humilde concepção, falta lapidar a humanização, priorizando a importância do acolhimento.

É comum, quando o Serviço de Psicologia não é acionado para acompanhar o médico durante a notícia de óbito, ser chamado posteriormente frente a família desestabilizada emocionalmente. Já presenciei familiares caídos no chão, gritos e choros desesperados, chamando atenção de todos da unidade. Neste momento, chamam a psicologia para abafar tal situação. No entanto, o psicólogo com base em Gestalt-terapia não abafa sintomas, escuta e acolhe o que lhe é apresentado. Nestas situações de crise, o trabalho também é realizado, mas não da mesma forma cuidadosa como quando acompanhamos a família desde o início da conversa com o médico, conhecendo a história do processo de internação do paciente e do vínculo daquele familiar.

Registro aqui minha tristeza e frustração por depararmos com tais condutas não só na unidade que referencio, mas há todas as unidades particulares e públicas que não envolvem o Serviço de Psicologia no momento da notícia do óbito. No entanto, também deixo aqui meu orgulho e satisfação de ter o privilégio de trabalhar com muitos médicos humanos que valorizam a Psicologia e a riqueza da interdisciplinaridade, reconhecendo que juntos fazemos a diferença no cuidado ofertado.

Vivenciar o lidar com a morte na pandemia COVID-19, me impulsionou a buscar meu autocuidado e ter maior responsabilidade no cuidado com o outro. Despertou-me o interesse de aprofundar-me mais nos estudos teóricos, me apropriando da minha humanidade, reconhecendo e respeitando meus limites.

Pensar no meu afeto frente minha atuação diante a COVID-19, o afeto e o afetar na relação de contato com os familiares durante a notícia de óbito de um dos seus entes queridos é pensar em possibilidades a partir do contato deste encontro.

Contato é a troca entre o indivíduo e o meio, considerando ser um todo indivisível. Refere-se aos ciclos de encontros e retiradas no campo organismo e meio, ocorrendo entre duas realidades disponíveis ao encontro, e quando ele acontece um altera a natureza do outro. O contato traz consigo mudança e transformação e ocorre dentro de um campo composto por partes (SILVEIRA in D'ACRI; LIMA, ORGLER, 2012).

"Fluímos, sentimos, somos conscientes, nos movimentamos, agimos, fazemos contato, nos satisfazemos e nós retiramos para um novo ciclo. Fixamo-nos, dessensibilizamo-nos, defletimos, introjetamos, projetamos, profletimos, retrofetimos, egotizamos, confluímos Cada ponto marca as vezes um novo ciclo. Esse e o jogo da vida; os ciclos de contato registram nosso caminhar e por meio desses nos tornamos presença para nós mesmos" (D'ACRI; LIMA; ORGLER, 2012, p.80).

A Gestalt-terapia ressalta a relação de contato sem neutralidade. Cada ser humano é único, na sua singularidade, dando sentido ao mundo e as suas próprias experiências de forma diferente. O homem se constitui a partir das relações com o mundo, sendo um constante vir a ser, sendo transformado e transformador.  De acordo com a citação:

"O homem é um ser de potencialidades, podendo ser atualizadas e transformadas "ele não e isso ou aquilo de forma definitiva, mas está sendo neste momento algo que pode vir a ser outra coisa no momento seguinte; o homem e um constante vir a ser, um ser em processo" (AGUIAR, 2014, p.44).

Experienciar este encontro de contato com os familiares que estão enlutados pelos seus entes queridos frente a COVID-19, na possibilidade de afetar o outro e de ser afetada me fez me sentir motivada e transformada. E nesta motivação, desejo lapidar-me cada vez mais, na busca de estudos e novos encontros, reafirmando de forma satisfatória a minha escolha como psicóloga Gestalt-terapeuta, acreditando no potencial do ser humano e nas possibilidades das relações e das transformações a cada encontro.

"Eu me transformo a medida que também posso experimentar e muitas vezes até reconhecer reflexivamente aspectos meus na interação. O outro se transforma a medida em que vivência seus próprios comportamentos e se apropria de nuances de sua forma de estar naquele encontro" (SILVA, 2014, p. 332).

Ao final de cada encontro experenciado, seja por meio de ligação telefônica ou no acompanhamento na notícia do óbito, busquei ser presente, afetando e sendo afetada, potencializando minha busca humana em estar em constante processo de transformação. 

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS:

Ao final deste artigo, no meado de julho, na expectativa que chegaremos ao fim da pandemia, expresso minha satisfação de poder atuar na linha de frente junto a equipe de saúde. O caminho percorrido foi de indagações, sofrimento, intervenções, disponibilidade, presença, acolhimento e transformação diante de todas as experiências vividas nos encontros com os familiares dos pacientes falecidos.

Nas respostas aos meus questionamentos, ampliei minha compreensão teórica acerca da Gestalt-terapia assim como possibilidades de atuação na prática como psicóloga, além da motivação para realização deste artigo, assimilando minha transformação a cada encontro e a cada movimento frente COVID-19.

Com isso, percebi que me apropriar dos meus questionamentos e afetos me impulsionou para possibilidades de autocuidado e cuidado na atuação dentro do hospital frente a temida doença. Buscando dar atenção e acolhimento aos familiares dos pacientes internados nos setores da COVID-19 por meio de ligação telefônica e durante a notícia de óbito.

Registro neste trabalho, minha felicidade e orgulho da minha ação dentro das minhas possibilidades, respeitando meus limites frente COVID-19. Ressaltando que fez todo o sentido a minha ligação telefônica para suporte emocional ás famílias, após a ligação médica sobre as orientações do quadro clínico do paciente. Desta forma, experimentei a possibilidade de ser heterossuporte favorecendo a construção de vínculo durante o sofrimento do processo de hospitalização e/ou no luto após comunicação do óbito.

Reconheço e respeito minhas próprias limitações de dias mais exaustivos não ter dado conta de ligar para as famílias. No entanto, na minha concepção a luz da Gestalt-terapia foram terapêuticas todas minhas ações que no meu afeto se tornou o afetar. Tenho a satisfação de dizer que meio a tanto sofrimento, fez todo o sentido a minha prática: postura fenomenológica e relação dialógica nos atendimentos as famílias enlutadas, tornando-me presente na relação para esta ser terapêutica.

Reafirmei a minha habilidade de ser: disponível, atenciosa e dedicada ao que me proponho fazer dentro das possibilidades, na relação com o outro e com o mundo. Busco estudos com o pensamento que sempre preciso aperfeiçoar as minhas práticas. A busca do aprender me aprimora num constante processo de vir a ser como uma continuidade de sempre aprender e me doar mais no ciclo da vida. Além de dar importância do meu autocuidado, nos aspectos físicos, relacional e emocional, recorrendo ao suporte da terapia.

É fundamental a presença do psicólogo na notícia de óbito como oportunidade dos familiares terem um espaço de acolhimento e escuta ativa que favoreçam a possibilidade de se permitirem a entrar em contato com suas próprias emoções no processo de luto.

No entanto, além de promover o acolhimento, preciso ser respeitosa na singularidade, na forma da expressão verbal ou não verbal e o tempo de assimilação de cada pessoa inserida neste contexto, além de ser ética, ter escuta ativa, ser dialógica e relacional.

Com isso, pensar na morte na pandemia COVID-19 é pensar em mudança e sofrimento, podendo gerar possibilidades e transformação. Mesmo com toda particularidade que temos ao lidar com a vida e com a morte, reafirmo a importância de se permitir a viver em contato com as emoções e reações no processo de luto. Reforço que mesmo em situações de sofrimento, acredito na responsabilidade, no potencial, nas possibilidades de crescimento e transformação de cada ser humano.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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FRAZAO, L.M., FUKUMITSU, K.O. (Orgs.) A Clinica, a relação psicoterapêutica e o manejo em Gestalt-terapia – Coleção Gestalt-terapia: fundamentos e praticas. [recurso eletrônico] São Paulo: Summus, 2015, p.202

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MINISTÉRIO DA SAÚDE https://coronavirus.saude.gov.br/

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PINHEIRO-DA-SILVA, Marcelo O afeto e o afetar nas relações de Grupo: Um olhar a partir da Gestalt-Terapia. 2014 162f.

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SILVA, Marcelo Pinheiro da – A Presença, a relação, o afeto e o afetar. Observando praticas grupais. In: Revista IGT na Rede, v.11, nº 21, 2014. p. 322-333. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs Acesso em: 24 de junho de 2020.

SILVEIRA, Teresinha M. Contato. In: D'ACRI, Gladys, LIMA, Patrícia, ORGLER, Sheila(Org.). Dicionário de Gestalt-terapia: "Gesltaltês". 2. Ed. São Paulo: Summus, 2012.

SOUSA, Luiza Eridan Elmiro Martins de – O processo de luto na abordagem gestaltica: contato e afastamento, destruição e assimilação. In: Revista IGT na Rede, v.13, nº 25, 2016. p. 253-272. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs Acesso em: 12 de junho de 2020

VAVASSORI, Mariana Barreto – Postura Dialógica e Frustração Habilidosa: Tramas da Terapia Gestáltica.  In: Revista IGT na Rede, v.14, nº 27, 2017. p. 185-200. Disponível em http://www.igt.psc.br/ojs Acesso em: 14 de junho de 2020

YONTEF, GARY M. – Processo, diálogo e awareness. São Paulo: Summus, 1998, 2ª edição.

 

NOTAS

* Amanda Santana Lessa - Psicóloga clínica desde dezembro/2008 pela Famath; Especialização em Gerontologia e Geriatria interdisciplinar pela UFF. Especialização em Psicologia clínica: Gestalt-Terapia (Individuo, grupo e família). Atuando como psicóloga clínica e hospitalar.

 

Endereço para correspondência
Amanda Santana Lessa
Endereço eletrônico:famandalessa@gmail.com

 

Recebido em: 13/07/2020
Aprovado em: 13/10/2020