ARTIGO

O Profissional de Psicologia Clínica e seus ajustes na Pandemia da COVID-19

The Clinical Psychology Professional and his adjustments in the COVID-19 Pandemic

 

Franciellen Amorim da Silva*; Nádhia Williane de Lima Ramos**

UFRJ - Universidade Federal do Rio de Janeiro – Rio de Janeiro, RJ.

Endereço para correspondência

 


RESUMO

Numa situação de Pandemia, diante do medo, da incerteza e dos riscos para a própria sobrevivência e a de outros, tão difícil quanto a luta contra o vírus é o cuidado com a saúde mental. Neste cenário, os profissionais de psicologia clínica estão lidando na sua prática diretamente com os efeitos estressores advindos do enfrentamento da pandemia na sua vida e na dos seus clientes, tendo que realizar os mais diversos ajustes para continuar realizando o seu trabalho com segurança e qualidade, encontrando potências em tempos de fragilidade. A fim de contribuir com o desenvolvimento dessa árdua tarefa, este artigo se propõe a ser um espaço de construção, troca de experiência, acolhimento e cuidado para os profissionais de psicologia clínica, revelando alguns sofrimentos e transformações vividos neste tempo. Com metodologia teórico-biográfica e fundamentado nas teorias fenomenológicas da Gestalt-Terapia e do Existencialismo, o presente estudo pretende mostrar a percepção e a elaboração do fazer profissional nesse tempo através do relato de experiência das autoras.

Palavras-chave: Pandemia; Psicologia Clínica; Fenomenologia; Ajustamento.


ABSTRACT

In a Pandemic situation, while people face fear, uncertainty and the risks for their own survival and the survival of the others, taking care of their mental health is as difficult as fighting against the virus. In this scenario clinical psychology professionals need to deal directly with the stressful effects of living through a pandemic not only on their own lives, but on their patients lives too, forcing them to adjust themselves to keep working safely and with quality, and to find strength in times of fragility. In order to contribute to this difficult task, this article proposes to be a space of self-building, exchange of experience and care that reveal suffering and transformation. With a theoretical-biography methodology reasoned in the Gestalt-Therapy and Existentialism phenomenological theories, this research intends to present the perception and the elaboration of being a professional in this time through the reports of the author's own experiences.

Key-words: Pandemic; Clinical Psychology; Phenomenology; Adjustment.

 

INTRODUÇÃO

O conceito de Epidemia, segundo Rezende (1998), se caracteriza pela incidência de um grande número de casos de uma doença em curto período de tempo numa região. Quando essa doença toma grandes proporções e se espalha entre a população atingindo grandes regiões geográficas, como vários países, continentes e até mesmo todo o planeta, passa a ser designada como Pandemia. Considerando que a saúde é direito de todos e dever do Estado (BRASIL, 1988, art. 196), uma de suas ações para a redução do risco de doenças é o controle de fronteiras. Já internamente, o confinamento de doentes com enfermidades infectocontagiosas é uma prática antiga que até hoje é prevista através da quarentena.

De acordo com Santos e Nascimento (2014), a palavra quarentena [do fr. quarantaine] deriva da palavra quadraginata e do italiano quarenta, atribuída ao período de quarenta dias de isolamento. Ela consiste num período de reclusão imposto às pessoas portadoras ou suspeitas de portar doenças infecciosas, consistindo numa medida de saúde pública que visa conter o avanço da epidemia em questão. O valor 40 "tem origem histórica na China Antiga, quando, nos primórdios da prática de vacinação antivariólica, observava-se que as crostas extraídas dos acometidos por varíola permaneciam infectantes por cerca de 40 dias" (p. 176).

Com a descoberta das primeiras vacinas na virada do século 19 para o 20, a humanidade deu início a uma nova forma de combate às epidemias através da imunização em massa. Mas a prática de quarentena continuou sendo utilizada no caso de doenças ainda sem vacina, como na pandemia de gripe espanhola que matou ao menos 20 milhões de pessoas entre 1918 e 1919. Tendo como princípio utilitarista a proteção da coletividade, numa situação de pandemia contra doenças ainda sem vacina, a quarentena continua sendo uma das principais medidas de saúde pública comumente adotadas para a contenção do contágio.

No final de 2019 foi identificado na China o novo coronavírus (COVID-19). Com alto potencial de contágio, sua incidência aumentou exponencialmente e sua transmissão generalizada foi considerada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma Pandemia. Com isso, medidas de quarentena foram adotadas em diversos países juntamente com outras ações para monitoramento e controle. Entretanto, diante do medo, da incerteza e dos riscos para a própria sobrevivência e a de outros, tão difícil quanto a luta contra o vírus foi o cuidado com a saúde mental. Sofrimento com a restrição da mobilidade e do contato social, preocupação com os cuidados de higiene para não se infectar e não contaminar os outros, com os recursos financeiros que podem ficar escassos, as frustrações pelo adiamento de projetos pessoais, a mudança na rotina, dentre tantas outras experiências de sofrimento vividas, tornaram a luta pela sobrevivência por vezes uma experiência de perdas.

Segundo Ornell et al (2020), ainda não existem dados precisos sobre os efeitos psicológicos relacionados à COVID-19, mas alguns estudos revelaram que pacientes infectados "podem sofrer intensas reações emocionais e comportamentais, como medo, tédio, solidão, ansiedade, insônia ou raiva" (p. 3). Existe ainda, de acordo com a Fundação Oswaldo Cruz (2020, p. 2),  a expectativa de que "entre um terço e metade da população exposta a uma epidemia pode vir a sofrer alguma manifestação psicopatológica, caso não seja feita nenhuma intervenção de cuidado específico para as reações e sintomas manifestados".

Numa situação de Pandemia as pessoas experimentam um frequente estado de alerta e o número de pessoas cuja saúde mental é afetada tende a ser maior que o número de pessoas afetadas pela infecção, como aponta Ornell et al (2020). Logo, a oferta de primeiros socorros psicológicos é um componente essencial de assistência para população e consiste num grande desafio para os profissionais, que, além de vivenciar todos esses efeitos, precisam também auxiliar outras pessoas a passar por essa experiência.

Considerando a abordagem fenomenológica da psicopatologia, pode-se compreender que "a existência humana em seu nível mais fundamental é inerentemente relacional" (HYCNER, 1995, p. 22). Nesse sentido, a saúde mental seria o fluxo ininterrupto desse diálogo consigo, com os outros e com o mundo. Partindo dessa compreensão, num contexto de Pandemia se torna de extrema relevância uma reflexão a respeito dos seus efeitos na saúde mental das pessoas, além dos desafios colocados para a assistência psicológica. Diante disso, desejamos contribuir com esse diálogo ao partilhar como ele foi para nós, sinalizando as atualizações do nosso modo de ser profissionais que foram elaboradas visando a manutenção da nossa saúde e assim contribuir para a promoção de saúde também de outros colegas profissionais.

Com o enfrentamento da pandemia da COVID-19 a reflexão sobre saúde mental ganhou força pela grande relevância social. Entretanto, a  maioria das publicações a respeito tem como foco a população em geral e, neste artigo, é proposta uma reflexão mais específica sobre essa  vivência para os profissionais da psicologia clínica. O presente estudo consiste numa pesquisa teórico-biográfica fundamentada em duas teorias de cunho fenomenológico - a saber: a Gestalt-Terapia e o Existencialismo- que, através do relato de experiência das autoras, pretende mostrar a percepção e a elaboração do fazer profissional nesse tempo.

A metodologia de pesquisa biográfica, segundo Delory-Momberger (2012), estabelece uma reflexão sobre o agir e o pensar humanos, organizando e construindo a sua experiência através da lógica narrativa. Usando como recurso a vivência do indivíduo, a proposta é que a compreensão e a estruturação da experiência e da ação no tempo e na história seja ativa, consciente, integrada e não automatizada no cotidiano da sua existência.

Os profissionais de psicologia clínica estão lidando na sua prática diretamente com os efeitos estressores advindos do enfrentamento da pandemia na sua vida e na dos seus clientes, tendo que efetuar os mais diversos ajustes para continuar realizando o seu trabalho com segurança e qualidade, encontrando potências em tempos de fragilidade. A fim de contribuir com o desenvolvimento dessa árdua tarefa, este artigo se propõe a ser um espaço de construção, troca de experiência, acolhimento e cuidado para os profissionais de psicologia clínica, revelando alguns sofrimentos e transformações vividos neste tempo.

 

DO PRESENCIAL PARA O VIRTUAL: DESAFIOS NO MANEJO CLÍNICO

Para a Gestalt-Terapia, a relação entre o homem e o meio é de reciprocidade, o mundo é uma realidade humana e o homem faz parte dele, entrelaçados, se fazendo e refazendo a todo instante. O conceito de campo organismo/ambiente auxilia nessa compreensão ao postular que a existência só pode ser pensada enquanto inseparável do mundo, dada por meio do contato, sendo este um processo temporal e fluido que oscila na fronteira entre o eu e o outro num movimento de abertura e fechamento (PERLS, HEFFERLINE, GOODMAN, 1997).

Segundo Tenório (2003), o ser humano é livre na medida em que tem possibilidades de escolha dentro de uma situação determinada e as faz considerando suas necessidades, limitações e exigências impostas. Esse movimento acontece constantemente na medida em que, quando o homem tem uma necessidade, ele busca no meio um modo de a satisfazer. A dinâmica da existência acontece, então, neste contínuo diálogo entre o que está dado e o que fazemos a partir da realidade concreta numa efetivação de nossa liberdade existencial em vias da autorrealização. A Pandemia da COVID-19 impôs uma gama de limitações em nossas vidas, determinando em quais condições ela pode acontecer de maneira saudável. E é nesse contexto que os profissionais da psicologia clínica se mobilizaram para adaptar a sua prática ao cenário que tem sido apresentado.

Na teoria existencialista encontramos o conceito de situação que nos ajuda a potencializar esse movimento de superar limitações através de um comportamento criador. Falar em situação, conforme Sartre (1971 apud CASTRO, 2012), é entender que ela se define na relação entre facticidade e liberdade.

"Trata-se da inseparabilidade entre a liberdade e a contingência e do esclarecimento que o homem somente existe frente à adversidade transcendente do mundo objetivo. Desta forma, jamais a contingência objetiva pode agir mecanicamente sobre o sujeito, à medida que, este necessariamente se elege naquelas possibilidades concretas e contingentes, por mais restritas que sejam, estando assim, impossibilitado de ser determinado mecanicamente, seja pelo meio, pela cultura, pela dureza da escassez material, pelo lugar que ocupa na sua família ou, ainda, pela constituição biológica" (p.45).

Dito de outro modo: não estamos condenadas às limitações postas no curso da COVID-19 em seu caráter factual ao mesmo tempo em que não somos pura liberdade existencial e podemos fazer qualquer coisa. Dentro da realidade posta, não estamos determinadas por ela, pois existe a possibilidade do ato criador que, ao considerar a realidade, transcende-a. É partindo da realidade que podemos construir nossos possíveis.

Partindo dessas compreensões, o funcionamento saudável do organismo acontece quando ele está em constante processo de autorregulação, que se dá pela completa realização de suas necessidades, através do contato sem interrupções com o meio e consigo mesmo. Assim, podemos compreender que as dificuldades impostas pela pandemia da COVID-19 não impõe que a psicologia clínica não se viabilize ou que, nesta realidade, ser psicoterapeuta seja um limitante fruto de sofrimento.A percepção deste fazer profissional como prática de trabalho saudável, nessa situação, está intimamente relacionada com a forma com que esse processo de regulação acontece. Há uma situação nova no campo organismo/ambiente - a Pandemia - que gerou um desequilíbrio e é a nossa manipulação dessa novidade para a sua assimilação que criará novas formas de ser, sendo caracterizada como um ajustamento criativo (PERLS, HEFFERLINE, GOODMAN, 1997).

Nesse sentido, a psicopatologia é constituída quando não há ajustamento criativo, ou seja, quando o indivíduo não é capaz de recuperar o equilíbrio ao manipular o meio para suprir essas demandas, interrompendo assim o fluxo de diálogo consigo, com os outros e com o mundo. Portanto, a saúde existe quando na interação com o meio a pessoa escolhe seu modo de se relacionar para satisfazer suas necessidades pela opção que pareça a mais adequada para a demanda organísmica daquele momento - não sendo apenas uma adaptação ou acomodação, mas envolvendo uma conscientização da situação numa dialética de novidade e mudança. Há assim no relacionamento entre a pessoa e o meio responsabilidade e engajamento na condução de sua vida, sendo ela capaz de contatar, reconhecer e criar as condições que conduzirão ao seu próprio bem-estar (YONTEF, 1998).

Como afirmam Perls, Hefferline e Goodman (1997), "a psicologia é o estudo dos ajustamentos criativos. Seu tema é a transição sempre renovada entre a novidade e a rotina que resulta em assimilação e crescimento" (p. 45). Levando isso em conta, nossa proposta neste estudo é refletir sobre a transição entre a novidade - a Pandemia - e os ajustamentos criativos que elaboramos a fim de assimilá-la e crescer no nosso fazer profissional.

Com as medidas de isolamento social presencial, como afirmam Gondim e Borges (2020), o alcance do redimensionamento espaço-temporal foi ampliado e novos modos de trabalho surgiram como possibilidade e estratégia aos trabalhadores. No âmbito da psicologia clínica, a prática do atendimento virtual ganhou uma força antes nunca vista e trouxe muitas transformações no fazer profissional. Castro e Ehrlich (2016) apontam que, "Somente quando concebe um outro estado do mundo, o homem age. Para tanto é necessário apreciar o dado à luz de um futuro, evidenciando que os motivos da ação referem-se a apreensão de uma carência no mundo presente e a um possível ainda inexistente" (p. 64). Ao constatarmos a falta imposta pela Pandemia da COVID-19, voltamos nosso olhar para a experiência da prática clínica de maneira a construir uma realidade onde seja possível continuar realizando os atendimentos psicoterapêuticos. Nesse movimento de ajuste criativo, motivadas pela necessidade de fazer existir um mundo onde o atendimento se possibilite, o lar então passou a ser também local de trabalho. Entretanto, em alguma medida, isso afetou a rotina de vida e de  relacionamento familiar, se constituindo num convite para rever os sentidos e significados do trabalho e colocando à prova a capacidade de ajustamento.

O Conselho Federal de Psicologia publicou a resolução CFP n° 11/2018, que regulamenta prestação de serviços psicológicos por meio de tecnologias de informação e comunicação, revogando a resolução CFP n° 11/2012 que impunha algumas restrições. Os progressos alcançados pela categoria também se estenderam à atualidade da COVID-19, uma vez que novos ajustes foram incentivados e viabilizados. O Conselho Federal de Psicologia, através de comunicados à categoria, orientou a suspensão dos atendimentos presenciais, bem como propiciou a facilitação do registro no e-Psi, um dos requisitos para o atendimento on-line, que é o Cadastro Nacional de Profissionais de Psicologia para Prestação de Serviços Psicológicos por meio de Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs). Em função das recomendações sanitárias para o enfrentamento da pandemia, a autarquia publicou em seu site uma nota comunicando que os profissionais devem realizar o cadastro no e-Psi, "porém, temporariamente para os meses de março e abril, não será necessário aguardar a confirmação da plataforma para começar o trabalho remoto" (CFP, 2020), apontando compreender as adaptações necessárias ao contexto atual.

Com isto, observamos que há um contínuo movimento de ajuste sendo proporcionado ao profissional da psicologia. A experimentação da internet como veículo de trabalho e não apenas como meio de produção de conteúdo e divulgação tem nos permitido descobrir a potência desse recurso ao mesmo tempo que encontramos em nós, profissionais, possibilidades de expansão técnica e pessoal. Na aparição do "on-line" como uma possibilidade de dar continuidade ao processos terapêuticos em andamento e acolher novos casos, nos deparamos com as nossas resistências e preconceitos acerca do ambiente virtual como meio frutífero para a prática clínica. Será que a qualidade do contato será a mesma? Será que a distância afetará o vínculo estabelecido? Ainda será viável a emersão de experimentos? Entretanto, Alvim (2014) nos lembra que "tal conservadorismo representa a fixação em um modo de funcionamento automatizado e não consciente, fechado sobre si mesmo e desconectado do ambiente" (p. 26).

A atitude fenomenológica nos convida a colocar entre parêntese aquilo que julgamos saber de antemão a respeito do fenômeno que se apresenta. Husserl (apud LIMA, 2014) coloca a fenomenologia como método para acessar o vivido sem para isso recortá-lo do contexto onde surge, quando nos diz que a fenomenologia "propõe a suspensão de qualquer julgamento, (sobre a existência, sobre as propriedades reais e objetivas do que aparece), abandonando os pressupostos em relação ao fenômeno que se apresenta, ao que denomina de suspensão fenomenológica ou epoché" (p. 13). Exercitar essa "epoché"é deixar que a terapia online se apresente tal como ela é, na conjuntura atual, sem que nossas inseguranças, resistências e impotências encubram o aparecer deste fenômeno. Essa postura fenomenológica foi a que buscamos construir na nossa experiência e foi a partir dela que pudemos, diante dessa novidade, reconhecer os desafios e também as potências, integrando assim o ambiente virtual à nossa prática.

O "setting", o processo e a relação terapêutica estão sendo vividas, em sua grande maioria, através de recursos de transmissão de vídeo como plataformas, sites e aplicativos. Migramos do presencial para o virtual, da presença física para a presença "on-line". Entretanto, neste contexto e na especificidade do fazer clínico, não basta simplesmente transpor as habilidades e competências exercidas porque, afinal, não se trata do mesmo fenômeno. Entendemos então que será estabelecida uma outra qualidade de trabalho, novas oportunidades de vivenciar os experimentos e uma nova configuração de vínculo. Com isso, o manejo clínico foi alvo das mais variadas interferências e modificações conforme veremos ao longo deste artigo.

Na Gestalt-Terapia o psicoterapeuta está interessado no processo, no como, na forma, ou seja na qualidade da experiência descrita aqui e agora e não apenas em seu conteúdo. Disto isso, tanto a comunicação verbal como a não verbal (gestos, postura, expressão facial, etc) possuem grande importância. Conforme afirma Salomão, Frazão e Fukumitsu (2014), "dada nossa visão holística de homem percebido como totalidade, consideramos não apenas aquilo que o cliente comunica verbalmente, mas tudo aquilo que ele expressa de qualquer outra forma, particularmente com o corpo" (p. 55). Nós apreendemos o mundo através das funções de contato (visão, audição, tato, olfato, paladar) e na relação terapêutica elas viabilizam a expressão dos sentimentos, percepções e vivências. Na medida em que intensificamos o contato conosco, com os outros e com o mundo através dos sentidos, ampliamos nossa consciência de maneira integral compreendendo a totalidade do nosso ser.

A visão é umas das principais funções de contato na relação estabelecida entre cliente e psicoterapeuta. Entretanto, no atendimento virtual ela fica comprometida pelas limitações do recurso tecnológico: a internet de baixa velocidade diminui a qualidade do vídeo, o dispositivo não enquadra com nitidez o corpo inteiro, o travamento da imagem por falhas de conexão dificulta a identificação das expressões corporais, etc. A audição, por sua vez, acaba sendo a mais privilegiada porque é menos comprometida, ainda que sofra com assincronismos e pausas por possíveis falhas da internet. Já o olfato e o paladar seguem com a mesma viabilidade de experimentação e o tato com a impossibilidade de ser vivido  em conjunto. Nesse sentido, se torna ainda mais desafiador ao profissional a exploração das funções de contato a fim de potencializar o emergir da "awareness", de uma nova figura, uma consciência corporal de totalidade do sentido para mim da relação eu-mundo (RIBEIRO, 2006).

O manejo clínico sofreu alguma modificação na medida em que houve certas limitações com o trabalho remoto. Mas é interessante observar que o que, a princípio, pode ser causa de desequilíbrio e sofrimento, pode também ser transformado em potência. Afinal, a ausência de alguns recursos pode acabar se revelando como uma oportunidade para a descoberta de outros. Quando aceitei que havia uma restrição imposta, pude ampliar meu repertório clínico adquirindo novas capacidades de resposta às demandas que surgiram ao longo dos processos terapêuticos. Um exemplo disso na minha experiência foi o uso de um instrumento musical como recurso expressivo no atendimento. Um cliente estava aprendendo a tocar ukulele e o fato de estar em casa na posse do instrumento facilitou sua inclusão no campo, o que nos deu a oportunidade de experimentá-lo enquanto estratégia terapêutica e foi muito potente.

Nesse sentido, foi importante também ajustar com os clientes a responsabilidade quanto aos recursos materiais utilizados no atendimento. Na inviabilidade de ofertarmos, é necessário que eles mesmos busquem por si corresponder a algumas necessidades - desde a internet de qualidade e um dispositivo que faça chamada de vídeo a ter à sua disposição papel e caneta. Assim, o atendimento é possibilitado e a relação terapêutica pode ser até potencializada com a parceria no enfrentamento desse desafio através da construção conjunta do que é possível nesse momento.

Decerto a impossibilidade do atendimento presencial trouxe algumas perdas, mas não podemos deixar de sinalizar que também trouxe oportunidades. A amplitude do alcance da prospecção de clientes foi aumentada exponencialmente para os profissionais que, ao se abrirem para a internet como veículo de trabalho, se lançaram nessa modalidade. Com a maior visibilidade que a internet proporciona, veio também a oportunidade de mais networking e da construção de uma rede de indicações muito maior. Além disso, não é necessário deslocamento por parte do cliente nem do terapeuta, assim como não é necessário o gasto com o local de atendimento por parte do terapeuta, trazendo vantagens financeiras para ambos.

Outro ganho foi a troca de experiência com outros profissionais, que nesse momento de dificuldade foi potencializado pela necessidade de uma reinvenção repentina no fazer profissional. Para nós, particularmente, todo esse processo de mudança foi muito enriquecedor nesse aspecto. Fazemos parte de um mesmo grupo de supervisão e ele foi suporte emocional e técnico nesse momento, nos auxiliando na construção de alternativas através da partilha das nossas vivências com outros colegas de profissão. Nossa formação também pôde ser mais desenvolvida, uma vez que, a partir da expansão do on-line, as oportunidades de cursos, aulas e lives de profissionais que admiramos se aproximaram de nós e com elas transpormos as barreiras dos limites geográficos.

 

FAMÍLIA E TRABALHO: QUANDO AS FRONTEIRAS RELACIONAIS CONFLUEM

A construção de um sistema acontece na mútua influência entre o indivíduo e o meio do qual participa. Desta maneira, a relação familiar acontece na dinâmica entre o eu e o sistema do qual se faz parte. É uma relação marcada pela dialética, pois, ao mesmo tempo em que o indivíduo faz o meio do qual participa, ele é construído por ele. A família influencia os indivíduos que fazem parte dela ao mesmo tempo em que cada sujeito que a compõe tem suas maneiras próprias de existir no qual vão estabelecendo para si papéis externos aos desempenhados dentro do sistema familiar, incluindo aquele que se dá dentro do contexto de trabalho, que será o recorte utilizado por nós neste artigo.

A família é entendida com um sistema que abarca subsistemas, que são as relações estabelecidas entres os indivíduos que a compõem. Neste sentido, podemos citar as fronteiras enquanto "as regras que definem quem participa de cada subsistema e como participa. Para que o funcionamento familiar seja adequado, estas fronteiras devem ser nítidas" conforme  nos aponta Carneiro (2005, p. 4). Assim, cabe perguntar: O que pode acontecer quando um papel desempenhado por um membro da família acontece numa dinâmica de permeabilidade dessas fronteiras? Quais desdobramentos se colocam em curso quando uma função externa ao que é desempenhado no interior família passa a acontecer dentro de suas fronteiras concomitantemente ao papel familiar? Em outras palavras: como o sistema familiar pode comportar uma atuação profissional que passa a se dar dentro do seu ambiente e de seus contornos?

No cenário pandêmico da COVID-19 os profissionais da psicologia clínica foram orientados pelo Conselho Federal de Psicologia a realizar a sua prática de maneira remota, ou seja, realizando os atendimentos a distância, conforme já discutimos no início deste artigo. Em alguns casos, para além dos ajustes supracitados, a possível concentração do local de trabalho no mesmo ambiente reservado à família construiu uma nova estrutura onde estes papéis se efetivam simultaneamente.

Nesta nova forma de exercer a prática clínica e viver a experiência familiar, alterada pela mudança no local de trabalho, foram geradas mudanças nas fronteiras relacionais, outrora geralmente rígidas e bem delimitadas entre trabalho e família, uma vez que ambas relações interferem mutuamente no desempenho dos papéis. A inclusão do contexto de trabalho na ambiência familiar construiu uma nova forma do profissional da psicologia clínica experimentar o seu fazer laboral na medida em que passou a exercê-lo na rotina familiar e fora do espaço destinado para o seu trabalho. Esta nova forma de trabalhar foi se construindo marcada pela confluência, uma maneira específica de estar e construir relações onde não há separação do individual em relação ao todo. Ribeiro (2017) enfatiza um importante aspecto disfuncional presente na confluência: "diminuo as diferenças para sentir-me melhor e semelhante aos demais e, embora com sofrimento, termino obedecendo a valores e atitudes da sociedade ou dos pais" (p. 63). Há então uma constante junção onde não é permitido criar espaço para o afastamento, para a disjunção e nem mesmo para a demarcação de limites.

Se o estabelecimento de fronteiras regula as interferências entre as partes que compõem um sistema, trazer o consultório para dentro de casa rompe com a separação concreta dos espaços onde cada papel se desempenha. Se antes os atendimentos psicológicos eram realizados fora de casa num espaço físico previamente preparado para tal, agora como fruto de um ajuste o consultório acontece nas dependências domésticas no espaço da sala ou do quarto, por exemplo. Conforme aponta Ribeiro (2017), "qualquer processo de mudança, no sentido da cura, passa pela necessidade de diagnosticar em qual campo os processos saudáveis ou não saudáveis estão atuando mais ativamente, para que, utilizando a energia construtiva de dado campo, de maneira didaticamente consciente, todo o campo restante possa organizar-se" (p. 98). Nessa simbiose, como se possibilita a discriminação das necessidades da profissional, da filha, da irmã, da esposa, da neta e etc? Se o consultório acontece em casa, no ambiente de todos, como cuidar da diferença entre o papel profissional e a dinâmica das relações familiares?

Na dinâmica de formação das necessidades surge o desafio de sustentar a figura do consultório do profissional uma vez que, para quem não mora sozinho, o fundo é casa de todos. A confluência saudável viabiliza a empatia, pois quando os membros de um sistema familiar conhecem e compreendem as necessidades da filha-neta-irmã-psicóloga, o movimento de sustentação acontece em conjunto e, de forma coletiva, o ajustamento se desenvolve. Da mesma maneira a filha-neta-irmã-psicóloga, ciente das relações familiares e das formas de habitar o espaço do lar, procura trabalhar em casa respeitando as normas do sistemas ao trazer o consultório para o quarto, por exemplo.

A vivência dessa multiplicidade de papéis centralizados num mesmo ambiente também aciona no profissional um estado de alerta e tensão, pois a rotina e os acontecimentos habituais do lar acontecem ao mesmo tempos em que os atendimentos psicoterápicos, o que faz com que figura e fundo mudem rapidamente durante o atendimento em virtude da permeabilidade e fluidez das fronteiras entre casa e trabalho. Ao mesmo tempo em que estamos atendendo no consultório virtual localizado geograficamente dentro de casa, os outros moradores da mesmo casa, também quarentenados ou minimamente afetados pela Pandemia da COVID-19, estão realizando as suas tarefas: há quem faça barulho na cozinha, há quem abra a porta do cômodo ao lado gerando um susto, há quem espirre muito alto na sala e todos esses atravessamentos despertam no psicólogo uma hiperatenção: além da imagem que chega pela tela e o do som que sai pelo fone de ouvido, estamos tensas pelos acontecimentos da casa e seu possível impacto aos desdobramentos da sessão.

Dois movimentos acontecem em paralelo: por um lado, temos a desabitação do espaço de trabalho em relação à profissional e, por outro, temos a obstrução dos espaços domésticos no seu fluir natural em relação aos componentes da família. É neste momento que os membros da família, impedidos de viver o lar com a circulação costumeira, e a profissional, ocupando esse duplo lugar, podem estar diante de um conflito oriundo desse impasse confluente entre nosso "versus"meu (nossa casa "versus"meu consultório; meu quarto "versus"meu consultório "on-line"; filha "versus"psicóloga e etc), onde não há uma delimitação rígida entre esses pólos e tudo passa a ser nosso.

O meu trabalho acontece no espaço de outras pessoas; o horário de lazer e descanso, também concentrado no lar, de uns acontece no horário de trabalho de outros. Os ambientes são divididos e compartilhados, configurando um desafio muito particular de validação das individualidades e necessidades pessoais. É dessa maneira que a mudança do espaço de trabalho e a consequente interferência na realidade familiar tem pautado ajustes e  divergências, diálogos e resistências.

Se antes eu chegava em casa como a psicóloga que após um dia de trabalho podia descansar e assumir o seu papel filha e irmã, no contexto atual eu sou a pessoa que está no espaço destinado ao exercício do papel filha-irmã, atuando a partir da função profissional. Sou a psicóloga dentro de casa e também a filha durante o atendimento, pois, quando preciso negociar o uso da internet e dos espaços domésticos ou então percebo algum barulho da realidade doméstica que pode chegar diretamente no meu exercício profissional, eu me dirijo aos membros da família a partir da figura profissional que sou e das necessidades que tenho, mas o meu apelo também se dá a partir da filha e irmã que sou.

Da mesma maneira, quando meus pais e irmão chegam com as suas demandas, eles se dirigem à filha ou a irmã, mas eu preciso considerar a profissional que sou ao mesmo tempo em que reconheço meu papel e função no sistema familiar. "Tá tudo junto e misturado" por uma condicionante externa e que imprime uma nova maneira de ser psicóloga, filha e irmã; o profissional e o pessoal acontecem juntos numa nova configuração.

Dado o exposto, compreendemos que, ao considerar a confluência como forma de interação onde o laboral e o familiar são um em termos relacionais e espaciais, temos um convite ao exercício saudável da alteridade, partindo das diferentes necessidades e agindo pelo bem comum. Conforme aponta Pinto (2015), a confluência viabiliza a compreensão do outro e a união empática com quem nos cerca numa postura de acolhimento e apoio, ela possibilita a construção do "nós", que se contrapõe ao "eu", sendo fundamental para o nosso desenvolvimento. Neste sentido, enfatizamos que o mecanismo de defesa confluência não é saudável ou neurótico por si só, depende do seu ajustamento às circunstâncias. Partindo desse pressuposto, compreendemos que existir em conjunto no respeito às diferenças é uma maneira funcional de viver a confluência no cenário atual.  Está posto mais um desafio ao psicólogo clínico em tempos de pandemia: continuar pertencendo e se diferenciando; sustentar as necessidades individuais para que, quando for preciso atendê-las, as multiplicidades de papéis e funções não impeçam o pleno exercício do que emergir como figura dentro daquele campo vivencial.

 

CONDIÇÕES MATERIAIS E CONTEXTO CRIATIVO PARA O EXERCÍCIO DA CLÍNICA PSICOLÓGICA

Com a mudança do local de trabalho para dentro do lar, muitos desafios surgiram para o profissional de psicologia clínica. Embora seu principal recurso de trabalho seja si mesmo, as condições materiais interferem na ergonomia, no bem-estar e, consequentemente, na qualidade do trabalho desempenhado. Diante do exponencial avanço da pandemia, não houve tempo hábil para uma preparação adequada para essa transição e foi necessário corresponder às demandas impostas com ousadia e criatividade.

O espaço físico em si, assim como os móveis e outros recursos disponíveis e utilizados no processo de psicoterapia, fazem parte de como organizamos o nosso local de trabalho e constitui o espaço terapêutico, conforme aponta Aguiar (2015). Esse espaço é o receptáculo de tudo que surgir no encontro e por isso deve ser facilitador desta relação. Considerando que a mudança do local de trabalho na situação de pandemia se deu num prazo tão curto pela urgência, se faz importante diferenciar o desejável do possível e apostar no que mais faz diferença no processo terapêutico, que é a relação estabelecida com o cliente. Apesar de mais importante que os recursos materiais ser a capacidade de inventividade do psicoterapeuta, isso não os tornam irrelevantes. O espaço terapêutico precisa ser congruente com a metodologia de trabalho para favorecer o contato, o compartilhar da experiência, a construção da relação.

Quando a casa possui um ambiente próprio para o trabalho, seu uso pode ser potencializado. Mas, quando não há, o atendimento se torna ainda mais desafiador, pela necessidade de encontrar alternativas para demarcar o espaço disponível e promover uma distinção entre os outros espaços da casa, dedicados ao funcionamento geral do lar e à convivência familiar. Na minha experiência isso foi primordial, pois o espaço e a distribuição dos cômodos não são favoráveis à prática clínica e ainda há outro membro da família trabalhando em casa. Nesse caso, como ajuste precisamos negociar a utilização dos ambientes pensando nas necessidades de cada um para o trabalho e para o uso pessoal.

A negociação não foi só quanto ao espaço, mas também quanto aos recursos materiais. Cada um se estabelece em um cômodo distinto da casa e o uso do computador fica restrito a alguns horários mediante a possibilidade ou não do uso do celular para a correspondente demanda de trabalho de cada um. Também se fez necessário o aumento da velocidade da internet diante do crescente uso e a compra de fones de ouvido de melhor qualidade para facilitar a audição, garantir o sigilo e diminuir o barulho no ambiente.

Todas essas mudanças e negociações - a delimitação do espaço físico, dos recursos e do tempo - foram fundamentais para a construção de um espaço terapêutico conveniente dentro do ambiente da casa. A partir disso, pude me sentir mais confortável e então consegui ofertar para mim e para os meus clientes um espaço adequado - não o desejável, mas o possível - para a construção da relação terapêutica. O ajuste criativo se deu na medida em que eu atualizei o meu modo de me relacionar com o meio ao escolher a melhor forma de ocupar o espaço, levando em consideração as minhas necessidades e as exigências externas.

Outro desafio com o qual tivemos que lidar foi a falta de diferenciação entre o momento de trabalho e o do descanso, do lazer, da espiritualidade, etc, mediante a unificação dos ambientes. Não existe mais ir ao trabalho, ir para casa, ir para a aula de dança, para a igreja, academia e tantos outros espaços que antes faziam parte da rotina. Mas ainda existe trabalhar, descansar, dançar, orar, se exercitar, etc. Muitas atividades seguem fazendo parte da rotina, embora agora todas aconteçam num mesmo ambiente - a casa. Na mesma medida em que há o ganho de tempo pela falta da necessidade de deslocamento, há também a dificuldade de estabelecer limites para que as fronteiras sejam fluidas e não difusas a fim de que possamos satisfazer plenamente as nossas necessidades.

Minha estratégia de enfrentamento foi uma reorganização da agenda de atendimentos e a construção de uma nova rotina pensada no ambiente doméstico, levando em consideração a mudança de prioridades, projetos, necessidades e desejos. Meus horários de atendimento quando atuava no consultório eram definidos a partir da minha disponibilidade, a do cliente e a do espaço. Com a pandemia, foi possível uma flexibilização muito maior e com isso pude fazer alterações que antes não eram possíveis. Se antes eu atendia quatro clientes seguidos com intervalo de apenas dez minutos entre eles, hoje eu atendo no máximo dois. Se antes eu iniciava meu dia de trabalho às sete horas da manhã, hoje a maioria dos atendimentos são na parte da tarde e tenho a manhã livre para outras atividades da minha rotina. Do mesmo modo, a atividade física que antes era feita somente no horário da aula de dança que eu praticava,hoje ganhou novos moldes ao ser realizada mais vezes na semana e em diferentes modalidades de exercícios.

Mais uma vez a delimitação do tempo foi fundamental para minimizar os transtornos e potencializar os ganhos. É importante aqui destacar que não se trata de uma solução  simplista, mas de um processo, de um exercício contínuo de contato consigo mesma e disponibilidade emocional, porque a todo momento podem surgir novas necessidades e a demanda de alterações nas transformações antes realizadas. Embora a rotina fale de algo que se repete, ela não é estanque na medida em que não está dissociada da experiência presente e é isso que a determina saudável, ajustada. Afinal, "caso a interação na fronteira de contato seja relativamente simples, há pouca ‘awareness' (...), mas onde a interação é difícil e complicada, há uma consciência intensificada" (PERLS, HEFFERLINE, GOODMAN, 1997, p. 69). Somente a partir desse diálogo consigo, com os outros e com o mundo que há ampliação da consciência e então é possível viver essa experiência e percebê-la como oportunidade para atualizar o sentido do trabalho, do descanso, do lazer, da espiritualidade, etc - o que foi fundamental para mim num momento de vivência de medos e incertezas. Um desafio que inicialmente me fez experimentar a impotência e o sofrimento foi também capaz de me fazer transfigurá-los em potência e transformação.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ser psicoterapeuta durante a pandemia tem sido uma experiência de múltiplos sentidos e significados. Salomão, Frazão e Fukumitsu (2014) descrevem que "crescimento e desenvolvimento implicam trocas entre o indivíduo e seu meio, surgindo por meio dessas trocas a possibilidade de entrar em contato com o novo e com o diferente" (p. 49). Estar ciente da dimensão de uma pandemia, reorganizar fronteiras relacionais e limites nos papéis existenciais que nos constituem e re-conhecer a potência do exercício da clínica psicológica são vivências desafiadoras, mas decerto igualmente transformadoras.

Dado os limites deste artigo, nos debruçamos sobre este fenômeno a partir de um recorte específico de conceitos e de experiências. Entretanto, entendemos que as articulações teóricas podem ser múltiplas e que as possibilidades de viver a pandemia enquanto profissional de psicologia clínica, também. Nosso olhar, nossos relatos de experiência e bibliografia utilizada não esgotam o assunto nem se propõe a contemplar essa situação em sua totalidade, mas acreditamos que auxilie na construção de reflexões relevantes acerca do tema.

Ao concluir este artigo salientamos que não defendemos um enaltecimento do atendimento online em detrimento do presencial ao passo em que também não idealizamos as sessões psicoterapêuticas que acontecem presencialmente. Não há meio pior ou melhor que outro para a prática psicológica, mas há um contexto que nos permitiu expandir nosso horizonte acerca do ofício em questão. A partir da partilha do nosso relato de experiência conseguimos fazer emergir para nós uma percepção mais ampliada da nossa vivência profissional nesse momento de medos, incertezas e riscos, o que nos fez construir novas possibilidades, novas formas de ser.

A criação de novas formas de exercer a psicologia clínica vem sendo um movimento muito potente de ajustamento criativo em nossa profissão. Trazer o consultório para a casa, conhecer a casa do cliente, esbarrar em nossos limites e recuar diante deles, ultrapassar fronteiras e construir novas pontes… Enfim, tudo isso para cuidar, acolher e mediar o processo de transformação das pessoas que confiam a nós essa preciosa tarefa num contexto tão adverso.

Esperamos que com essa contribuição outros psicólogos clínicos também possam aceitar o convite que esse momento nos impõe de rever os sentidos e significados do trabalho, colocando à prova a capacidade de ajuste e nos possibilitando seguir num constante processo de autorregulação, construindo novas percepções e elaborações do fazer profissional, encontrando potências em meio à fragilidade, transformações em meio ao sofrimento.

 

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NOTAS

* Franciellen Amorim da Silva – Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2015) e Pós graduada Lato Sensu em Psicologia Clínica com ênfase em Gestalt-Terapia pelo Centro Universitário Celso Lisboa (2019).
** Nádhia Williane de Lima Ramos – Psicóloga Clínica, Mestranda em Psicologia pelo Programa de Pós Graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Graduada em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2015) e Licenciatura em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense (2019). Pós Graduação Latus Senso em Psicologia Clínica com ênfase em Gestalt-Terapia(2019).Tem experiência na área de Psicologia Clínica, Educação, Licenciatura em Sociologia e Orientação Profissional.

 

Endereço para correspondência
Franciellen Amorim da Silva
Endereço eletrônico:franciellen.amorim@gmail.com
Nádhia Williane de Lima Ramos
Endereço eletrônico:nwilliane@gmail.com

 

Recebido em: 22/07/2020
Aprovado em: 16/09/2020