ARTIGO

Impactos do sofrimento na história de vida de uma psicóloga: relato da experiência da construção de uma Gestalt-terapeuta

Impacts of suffering on the life history of a psychologist: report of the experience of building a Gestalt-therapist

 

Andréa Reis de Souza*

IGT - Instituto de Gestalt-terapia e Atendimento Familiar - Rio de Janeiro, RJ.

Endereço para correspondência

 


RESUMO

Este artigo visa provocar uma reflexão e contribuição aos psicólogos atuantes na área clínica acerca dos impactos produzidos pelo sofrimento no âmbito pessoal e profissional, a partir do relato de minha história pessoal no percurso de minha formação como Gestalt-terapeuta. O sofrimento é inevitável durante a existência humana, o fato de ter uma graduação em psicologia não nos isenta de passar por sofrimentos. O cuidado pessoal com psicoterapia e supervisões são de extrema relevância para o desenvolvimento pessoal e profissional do indivíduo, podendo ser uma via facilitadora do processo de ressignificação promovendo portanto, crescimento e aprendizado. A partir disto, o artigo busca desconstruir a imagem negativa da palavra sofrimento, bem como a do psicólogo como um "super-herói", salientando a importância deste profissional olhar para as suas questões internas, a fim de que as mesmas não se misturem com as do cliente atendido por ele.

Palavras-chaves: Sofrimento; Crescimento; Dor; Gestalt-terapia; Construção.


ABSTRACT

This article aims to provoke a reflection and contribution to the clinical psychologists about the impacts produced by the suffering in the personal and professional scope, from the account of my personal history in the course of my formation as a Gestalt therapist. Suffering is inevitable during human existence; having a degree in psychology does not exempt us from suffering. Personal care with psychotherapy and supervision are extremely relevant to the personal and professional development of the individual, and can be a facilitating path of the reframing process thus promoting growth and learning. From this, the article seeks to deconstruct the negative image of the word suffering, as well as that of the psychologist as a "superhero", stressing the importance of this professional looking at his internal issues, so that they do not mix with those of the client served by him.

Keywords: Suffering; Growth; Pain; Gestalt-therapy; Construction.

 

INTRODUÇÃO

É notório que o sofrimento é inerente a vida de qualquer ser humano. Durante o percurso da nossa existência inevitavelmente passaremos por situações delicadas. Sofrimento pode ser definido de uma forma mais geral, segundo o dicionário online1,como ato ou efeito de sentir dor física ou moral, padecimento, amargura, desgraça, desastre. Podemos acrescentar ainda de uma maneira mais negativa a definição de sofrimento ligada a angústia, ao medo, a tristeza e ao desespero, trazendo consigo efeitos altamente destrutivos e de desconforto.É extremamente difícil para uma sociedade que nos ensina a sermos fortes todo o tempo, lidar com os impactos da vida que levam ao sofrimento.

"A alma é um cenário. Por vezes, ela é como manhã brilhante e fresca, inundada de alegria. Por vezes ela é como um pôr do sol, triste e nostálgico. A vida é assim. Mas se é manhã brilhante o tempo todo, alguma coisa está errada. Tristeza é preciso. A tristeza torna as pessoas mais ternas. Se é crepúsculo o tempo todo, alguma coisa não está bem. Alegria é preciso. Alegria é a chama que dá vontade de viver" (ALVES, 2012, p.64).

Não existe uma linearidade na vida. Desde que nascemos e somos lançados no mundo, vivenciamos inúmeras perdas, transformando e sendo transformados por elas. De acordo com Ginger (1995, p.163),somos ensinados desde a infância a nos afastar do que sentimos.Esta maneira de ser acaba nos afastando do nosso crescimento interior, pois entendo que o sofrimento e a dor são partes importantes para o amadurecimento emocional e pessoal.

"(...) tempos de crise oferecem oportunidades e desafios para o crescimento, a transformação, a ampliação da consciência humana, na direção da plenitude e da auto-realização. Se soubermos utilizar a tensão criativa da crise, poderemos dar um salto qualitativo na ampliação da nossa consciência individual e coletiva e transformaremos o estado atual do mundo em que vivemos" (CARDELLA, 2006, p.110).

A postura enrijecida e distanciada, experienciada por algumas pessoas é levada ao longo da vida, sendo adotada então, uma posição de fortaleza diante dos mais variados conflitos.É interessante ressaltar que a gestalt-terapia é uma abordagem que trabalha não só o todo, mas as partes presentes no mesmo e juntamente com elas estão todas as expressões do indivíduo na relação dele consigo mesmo e com o mundo.

"A gestalt é principalmente uma postura diante da vida, que implica um contato vivo com o mundo, com a pessoa do outro, na sua singularidade, sem pré-concepção de qualquer ordem. Esse contato apóia-se sobre a vivência, na experiência de primeira mão, no aqui e agora, o que estimula uma presença constante e atenta, com ênfase na percepção sensorial, focaliza o fluxo e a direção da energia corporal" (JULIANO, 2010, p.25).

Aproveitei o ensejo para ressaltar o sofrimento vivenciado por psicólogos em sua prática clínica e os impactos produzidos por ele na vida pessoal e profissional. Afinal, quem é o psicólogo senão um ser humano, cheio de dores, amores, delícias e mazelas? Existe uma crença de que ter uma graduação em psicologia nos torna imunizado do sofrimento. Esta crença transcende o outro e chega muitas vezes ao psicólogo clínico que acaba por assumir uma postura dessensibilizada,caindo na armadilha de que pode dar conta de tudo o que lhe advêm.

"A dessensibilização como o próprio termo diz, é um processo pelo qual a pessoa se esfria, se atonia, diminui sua percepção sensorial com o fim de descontinuar um contato vivido como arriscado ou perturbador [...] Como estado, a dessensibilização aparece como certa negação do corpo quando precisa enfrentar angústias mais profundas. Como estilo de personalidade, a dessensibilização se caracteriza, entre outras peculiaridades, por evitação ao contato mais efusivo, preferência pelo isolamento e certo distanciamento do próprio corpo e do corpo do outro" (PINTO, 2015, p.58).

Busquei, com este artigo, compartilhar a temática do sofrimento e da vulnerabilidade que não é separada do psicólogo em sua prática profissional, sendo algo que faz parte da natureza humana. Não quero com isto oferecer respostas prontas, mas mostrar a relevância deste tema e aguçar o olhar dos psicólogos principalmente os atuantes na clínica acerca do cuidado pessoal e acima de tudo mostrar que o sofrimento é algo que não podemos evitar, mas que ele pode ser um momento de crescimento pessoal, profissional e um grande aprendizado no relacionamento conosco e com o outro.

"O objetivo da Gestalt-terapia é o "continuum da awareness", a formação continuada e livre de Gestalt, onde aquilo que for o principal interesse e ocupação do organismo, do relacionamento, do grupo ou da sociedade se torne gestalt, que venha para o primeiro plano, e que possa ser integralmente experienciado e lidado (reconhecido, trabalhado, selecionado, mudado ou jogado fora, etc.) para que então possa fundir-se com o segundo plano (ser esquecido, ou assimilado e integrado) e deixar o primeiro plano livre para a próxima gestalt relevante" (PERLS, 1973, apud YONTEF, 1998, p.31).

À medida em que me torno consciente da forma como sou e estou, como afeto e sou afetado no mundo, vou me apropriando de quem eu sou. Segundo Yontef (1998, p.32), somos agentes responsáveis pela determinação de nossos comportamentos e quanto mais consciente estou do que me advêm, posso então reconhecer e trabalhar estas questões, além de poder atuar na clínica mais livre de intercorrências advindas da minha própria história.

Durante grande parte da minha construção enquanto psicóloga e gestalt-terapeuta, estive submersa em profundos conflitos pessoais, estava vulnerável demais e o sofrimento era algo que estava muito presente naqueles dias. Percebi também, que não somente eu vivenciava coisas do tipo, mas amigos da formação, colegas de profissão e até mesmo os coordenadores do curso vivenciavam suas dores buscando dar conta do que sentiam, cada um de sua maneira.

Esta vivência tão pessoal, fez com que aguçasse a minha curiosidade acerca desta temática e com o findar do curso de especialização em psicologia clínica (Indivíduo, Grupo e Família) do IGT - Instituto de Gestalt-terapia e Atendimento Familiar2 e a exigência da produção de um artigo, desejei partilhar minhas vivências e reflexões sobre as dificuldades vividas pelo psicólogo no âmbito pessoal.Resolvi então me debruçar sobre o sofrimento pessoal do psicólogo clínico. Como os psicólogos lidam com suas intercorrências pessoais no âmbito clínico? Como em meio as suas dores mais abissais precisam exercer o ofício profissional? Senti falta de material bibliográfico e discussões mais aprofundadas que abordassem essa temática.

Sendo assim, acredito na relevância do cuidado com a saúde mental, não apenas das pessoas em nossa volta ou a quem cuidamos, mais a nós psicólogos atuantes na clínica, pois é pura utopia pensar que nós psicólogos podemos dar conta de nosso sofrimento. Acredito que devemos sim, como qualquer outra pessoa, cuidar da saúde mental. Pensar na desconstrução da imagem pejorativa advinda da palavra sofrimento e ressignificá-la é um grande desafio. É de suma importância, que possamos pensar na transcendência do sofrimento seja ele no âmbito pessoal ou até mesmo do cliente que se encontra a nossa frente, no "setting" terapêutico, buscando a compreensão do que se é, apesar das mazelas que advindas. Esta percepção pode aguçar a sensibilidade e humanidade frente a estas demandas e melhorar a relação conosco e com o outro.

 

METODOLOGIA

Para a redação do presente artigo escolhi o relato de experiência, como instrumento de pesquisa. A partir da narração de meu percurso pessoal, em especial no que tange à minha carreira como psicológa, busquei contribuir para a discussão, a troca e a proposição de ideias para a melhoria do cuidado na saúde do psicólogo. O artigo conta de forma contextualizada sobre o sofrimento e os impactos vividos por mim e a importância destes em minha prática clínica.

Fo realizado um breve levantamento bibliográfico de alguns livros degestalt-terapia que constavam na bibliografia do curso de especializaçãodo IGT, com as seguintes palavras-chaves: sofrimento, gestalt-terapia, construção, dor, crescimento. Os principais autores que contribuíram para este trabalho foram Cardella (2010), Hycner (1995), Juliano (1999, 2010), Mendonça (2007), Pinto (2015), Polster (2001), Ribeiro (1994), Viorst (2005), alguns artigos da revista IGT na redeforam escolhidos a partir das palavras-chaves acima e me serviram como inspiração, bem como a minha própria vivência pessoal.

Discorri primeiramente de onde parte o meu interesse pela temática; desconstruí a ideia de que psicólogo é um ser imune ao sofrimento. Em seguida relatei momentos onde pude experienciar o sofrimento durante a minha construção enquanto gestalt- terapeuta e os impactos do mesmo refletidos na clínica. Enfim, busquei salientar a postura do gestalt-terapeuta frente a esta problemática. Por último, já nas considerações finais, busquei trazer ao leitor  a grande importância dessaexperiência. A relevância que cada profissional deve adotar ao cuidado pessoal e profissional, diante dos conflitos existenciais.

 

E TUDO COMEÇA ASSIM...

Olhando para a minha trajetória de vida, esbarrei com tantas coisas que por mim foram vivenciadas, sejam boas ou não, mas todas elas marcam quem eu sou hoje e acredito que cada um de nós possui uma imensidão dentro de si que nos traz um mundo de significações. As coisas boas são mais aceitáveis em uma sociedade que preza o "ser forte" e o "não olhar para o que não é tão agradável", sendo que, muito pude aprender vivenciando os meus conflitos.

Ao perceber a não linearidade da vida ao longo da existência e observar a forma como cada pessoa lida com seus conflitos, sempre me foi algo instigante, mas o meu interesse maior ao escrever este artigo foi a partir de minha própria experiência com o sofrimento durante a minha construção enquanto gestalt-terapeuta.

Durante este período, tive que manter os atendimentos clínicos e pude constatar que a dor não se afasta no encontro com o outro e me perguntava a mim mesma:O que se pode fazer com o que me deixa tão impotente?Na relação com os nossos clientestendemos a esbarrar todo o tempo com as nossas questões e isto me faz refletir sobre o nosso papel enquanto psicólogo clínico e da responsabilidade que temos diante da pessoa que se encontra em nossa frente.

"A necessidade em si não é prejudicial. Só se torna danosa quando não é reconhecida, quando fica relegada à sombra do processo terapêutico. Corro o risco de tentar encaixar o outro num papel que não lhe cabe ao qual ele não foi destinado. Pois se eu for o pai, ele terá de ser meu filho; se eu tiver de curar ele precisará estar doente; e se por um acaso eu for um iluminado, só poderei entendê-lo como alguém perdido na escuridão" (JULIANO, 2010, p.62).

Quando a fragilidade é reconhecida, um potencial talvez desconhecido por nós surge do interior. O conflito possibilita novos desafios e enfrentamentos. Segundo Juliano (1999, p.138), na vida de todos nós ocorrem eventos que trazem em si embriões de novas direções. Sendo assim, é importante a compreensão de que o sofrimento nos impulsiona à criatividade, a fim de adotarmos novos caminhos. Viver implica em ganhos e perdas e o mais importante é não perder a fé e a esperança de que sempre existe um jeito, uma forma de se reinventar, e de vislumbrar outras possibilidades.

Como descrito anteriormente, constatamos que o conceito de sofrimento segue envolto de palavras que não são inspiradoras e talvez não estimulem algo de positivo, de modo que causam rechaço nas pessoas de um modo geral. Se esquivar da dor não faz com que a mesma seja amenizada.O psicólogo não é um "super herói", ao contrário, é um ser que sente, que afeta e é afetado e precisa se responsabilizar por suas queixas (no sentido de cuidar delas) seja com a sua psicoterapia pessoal, supervisão clínica, estando atento durante o encontro com o outro, das suas próprias sensações e o que estas podem dizer de si mesmo, questionando assim a sua própria atuação.

 

O IR E VIR DA VIDA

Ingressar em uma universidade sempre foi um sonho, mas essa era uma realidade inviável para uma família humilde e com pouca instrução como a minha. Não tive o apoio nem ao menos orientação em relação a estudo e profissão. Casei ainda na adolescência, mas não foi um impedimento, muito pelo contrário, a vontade em realizar um curso superior crescia e ardia cada vez mais dentro de mim. É claro que havia outras figuras no momento mais emergentes, mas no fundo estava o meu sonho, bem vivo dentro de mim.

"A boa percepção, envolvendo todos os órgãos dos sentidos, é um processo de formação de figura e fundo. Trata-se de um sistema binário. Figura é a sensação que predomina, tornando-se cada vez mais nítida, e, quando chega a ficar completa, complexa, cheia de detalhes, reflui para um fundo, de onde germina uma nova figura e assim sucessivamente" (JULIANO, 2010, p.22).

Há um tempo, não tínhamos tantas possibilidades para ingressar em uma universidade como existe hoje: ENEM, FIES, SISU, PROUNI. Pelo contrário, tudo era muito difícil.Ou se fazia o vestibular para uma universidade pública, concorrendo com milhares de pessoas muito bem preparadas, arriscando assim uma vaga, ou realizava um vestibular interno em uma universidade privada. Dentre as minhas possibilidades da época, resolvi fazer biologia em uma faculdade particular, ainda não havia me encontrado com a psicologia.

Enfim, lá estava eu na tão sonhada universidade.Me sentia nas nuvens ao escutar os professores e conhecer um pouco sobre a origem da vida. Porém, não tive como dar continuidade, devido às dificuldades financeiras da época, foi um momento muito difícil ter que parar algo que era tão desejado, mas acredito não ter sido por um acaso, pois este desencontro me possibilitou o encontrar-me com a psicologia,um tempo depois.

Tenho a impressão por muitas vezes que a vida é igual a uma roda gigante, conforme ela gira temos a possibilidade de vislumbrar a paisagem por vários  ângulos, nem todos agradam, às vezes vem o medo, a vontade de desistir e a necessidade de mudar a direção do olhar, ressignificar e descobrir novas formas. Percebo que no girar da roda da vida é possível encantar-se novamente. De acordo com Juliano (2010, p.59), o encontro acontece quando paramos de procurar e tendo calma e discernimento conseguimos nos desfazer de tudo o que nos machuca, pesa e ocupa espaço indevido.

Pouco tempo depois, meu esposo passou em um concurso público e fomos morar numa cidade no litoral do Rio de Janeiro e eis que surgem novos desafios e enfrentamentos. Existem as mudanças planejadas e as imprevistas, independente do jeito que for, estas situações nos levam a buscar novas formas de adaptação e assim ajustamo-nos criativamente, ampliamos nossas experiências e alcançamos um amadurecimento pessoal e emocional. Segundo Mendonça (2007,p.20), o conceito de "ajustamento criativo" foi usado por Frederick Perls para descrever a forma como o indivíduo mantém contato na fronteira do campo organismo/ambiente, com o objetivo de buscar a sua autorregulação, sob condições diversas.

 

A PSICOLOGIA EM MINHA VIDA

Com a mudança de cidade, retomei o meu sonho de me graduar, pois havia um pólo da UFF bem próximo à minha residência. Ao buscar os cursos no site da universidade não encontrei graduação em biologia, dentre os poucos cursos que havia,nenhum deles me interessava e por fim, vi o curso de psicologia como uma possibilidade. Nunca havia passado pela minha cabeça fazer esta graduação, não era uma realidade para mim, não conhecia e nem sequer imaginava como seria o trabalho dentro desta profissão. A princípio me causou um estranhamento, talvez pelo medo do desconhecido, preconceito, ignorância, quem sabe? Mas resolvi arriscar, dando a mim mesma a possibilidade de conhecer mais.

O primeiro desafio que encarei foi a realização do vestibular. Digo desafio, pois sempre estudei em escola pública e não tive oportunidade de fazer um curso preparatório. Concorrer com jovens recém-saídos do ensino médio e cursinhos. Qual seria a minha chance diante dessa realidade? Assim pensei e me deparei com esta inquietação, mas arrisquei. Chequei a minha impotência mas não desmereci a minha força em nenhum momento e para minha surpresa passei no vestibular, ingressando no primeiro semestre do ano de 2009, aos 34 anos.

Este início não foi nada fácil, a minha idade na época e o curso em si foram fatores que contribuíram para os meus dilemas mais emergentes, cheguei a pensar em desistir. Não conhecia, não sabia do que se tratava, mas tão educadamente a psicologia foi chegando em minha vida, se apresentando, desmistificando e desconstruindo certas coisas.

 

O PRIMEIRO CONTATO COM A GESTALT-TERAPIA:

Segui a minha graduação em psicologia e as inquietações estavam menores, mas ainda haviam muitas dúvidas sobre qual caminho seguir dentro da psicologia. Iniciei a minha terapia pessoal e neste momento tive o meu primeiro contato com a Gestalt- terapia, encantada com a forma como a terapia era conduzida, com o espaço, com o contato e cada detalhe do processo terapêutico e assim quis saber mais sobre a abordagem. Busquei literatura que falasse a respeito, comecei a estudar e me encantar pela Gestalt-terapia.

Na universidade pude fazer uma disciplina optativa em Gestalt-terapia, tendo então a oportunidade de uma maior aproximação com a abordagem. A cada leitura, entendia que estava no lugar certo, as coisas começavam a fazer sentido, algo diferente acontecia quando lia os textos. Incentivada por minha psicóloga, ainda estudante de psicologia no 9º período, fui fazer um curso de introdução em Gestalt- terapia em Botafogo com a Gestalt-terapeuta Sandra Salomão, a fim de buscar um maior conhecimento e uma confirmação se era isso mesmo que eu queria e o amor pela Gestalt-terapia foi aumentando a cada encontro.

A Gestalt-terapia para mim é muito mais que uma maneira de atuar clinicamente, é uma filosofia de vida que me convida o tempo todo a entrar em contato comigo, com o outro e com o mundo. Através das minhas sensações e emoções, posso experimentar, sentir, ela prioriza o agora, o presente mágico diário, nos lembrando que somos responsáveis por nossas escolhas, pelo nosso modo de ser e estar no mundo, assim podemos nos atualizar diante dos conflitos e era exatamente isso que eu buscava.

 

O INÍCIO DA CLÍNICA

Me graduei como psicóloga em 2013 sem ter tido a experiência de atender em um SPA (Serviço de Psicologia Aplicada), pois no pólo Universitário em que estudei o SPA não estava em funcionamento. Com noções de Gestalt-terapia e incentivo da minha psicóloga, iniciei a prática clínica em uma empresa que prestava serviços de atendimento "homecare", atendendo uma cliente a domicílio. Cabe ressaltar aqui, que durante este percurso fui supervisionada o que fez total diferença em minha atuação na clínica.

Neste início, achava que podia dar conta de todas as dificuldades que me eram trazidas. Esbarrei com a Srª R, cliente do atendimento "homecare", diante da fragilidade delae de sua desesperança, olho para a minha onipotência de psicólogo iniciante e tento buscar instrumentos que pudessem dar conta do sofrimento da cliente. A Srª R era acamada, tinha uma patologia grave e seu prognóstico médico não era favorável. Neste momento me dou conta da minha impotência e descubro que posso ser meu próprio instrumento e aos poucos o sentimento de onipotência foi sendo desconstruído. Segundo Polster (2001, p.35), o terapeuta também, como o artista, age a partir dos seus próprios sentimentos, usando o seu próprio estado psicológico como um instrumento da terapia.

Neste encontro não existem mágicas, técnicas mirabolantes, recursos especializados, só precisamos estar disponíveis, ter presença, respeito pelo outro, por sua dor, por seu momento difícil. É preciso olhar para si mesmo, para as próprias dores, entendendo que não somos feitos de ferro, e sim gente que sente e treme diante das dores, gente que afeta e é afetada a cada encontro. Segundo Juliano (1999, p.26) a qualidade da presença revela uma atitude descontraída, atenta, inteira, disponível e energizada, ficando com o fenômeno tal como ele se apresenta. Presença não pode se confundida com carisma, antes é estar consciente de si mesmo, de suas sensações e o uso de si próprio mesmo como instrumento.

Com o atendimento da Srª R tive que lidar com alguns enfrentamentos, quais sejam,o fato de ser recém-formada, o "setting" terapêutico não era habitual, ou seja, realizava os atendimentos na residência onde um cômodo fora transformado em um quarto de "hospital", tive que lidar com uma equipe multidisciplinar, com a família da cliente, além de ter que lidar com as dores físicas e emocionais que aquela senhora enfrentava naqueles dias, isto gerava em mim extrema angústia e desconforto e só aos poucos pude compreender que grande parte do que sentia dizia mais a meu respeito do que da própria srª R, afinal desde a infância vivenciei inúmeras perdas, olhar para isso fez com que a relação terapêutica ficasse mais leve e pude então ressignificar as minhas próprias dores.

Diante disso, entendia cada vez mais a importância de investir na carreira, pois já tinha certeza do caminho que queria seguir.Percebi então, a necessidade de iniciar uma formação em Gestalt-terapia, bem como realizar supervisões dos meus atendimentos,como dito acima. É de suma importância que o processo de aprendizagem não cesse com o findar da graduação, pois este é contínuo. O psicólogo deve buscar sempre atualizar-se, fazer sua psicoterapia pessoal, bem como investir em supervisão no decorrer da sua carreira profissional.

Segundo Boris (2008, p.165-180), poucos são os psicoterapeutas iniciantes que realizam uma formação específica com o findar da graduação e dos poucos que fazem, deixam de acreditar na supervisão como algo de relevância para um aprimoramento profissional. O autor salienta também a importância da psicoterapia pessoal e o prejuízo que a falta da mesma acarreta no manejo do atendimento clínico. Acredito que a formação, a psicoterapia pessoal e a supervisão são investimentos profissionais de extrema relevância para um bom desempenho profissional.

 

ESPECIALIZAÇÃO

Percebendo a necessidade de iniciar a especialização em Gestalt-terapia, a fim de obter um melhor embasamento teórico e vivencial em meus atendimentos, iniciei uma busca por locais onde eram oferecidos cursos de especialização. Observei que estes não existiam por onde morava, nem em cidades vizinhas, sendo o local mais próximo no Rio de Janeiro. Sendo assim, no ano seguinte, mais precisamente em 2014, iniciei a formação no IGT.

A escolha pelo Instituto se deu devido ao início da especialização que era mais próximo em vista de outros que já havia procurado, também pela proposta dos "workshops", que fazem parte da grade curricular e possuem uma carga horária de 97 horas. Outro fator de importância é que os "workshops" dividem-se entre residenciais e locais. Entendi que os mesmos são de suma importância para a formação do Gestalt-terapeuta, uma vez que, aprimora a prática clínica com as vivencias, além de trabalhar as questões internas. Segundo JULIANO (1999, p.280), o experimento tem por finalidade afinar, sublinhar, focalizar, amplificar, clarear o tema emergente.

"O experimento é a pedra fundamental da aprendizagem experiencial. Transforma o falar sobre em fazer, o recordar inócuo e o teorizar em se tornar presente, com toda a imaginação, energia e excitação [...] pode envolver muitas esferas do comportamento humano, mas tem uma proposta comum: trazer para o aqui e agora os materiais que surgiram do lá e então, presentificando, energizando e, principalmente, dando ao cliente a chance de tomar posse de seus temas, que antes estavam dispersos e muitas vezes sem possibilidade de serem administrados" (JULIANO, 2010. p.29).

Tudo parecia estar em seus devidos lugares, estava formada, trabalhando na clínica e com uma quantidade razoável de clientes, fazia terapia, supervisão clínica dos meus atendimentos, já havia realizado o curso de introdução em Gestalt-terapia e agora estava no IGT construindo o meu ser psicoterapeuta, mas nada na vida é linear e como já citado anteriormente o sofrimento é inerente à existência.

 

MOMENTOS DELICADOS DA VIDA

No início da minha especialização me deparo com situações difíceis, meu esposo foi demitido do trabalho. Tive que assumir papéis e responsabilidades que cabem em uma família que outrora não me cabia e novamente a minha vida vira de "cabeça para baixo". As bruscas mudanças iam de encontro com as minhas fronteiras, estava totalmente vulnerável e pensava comigo mesma em como lidar com o outro se um "tsunami existencial" acontecia dentro de mim. Por fronteiras entendemos que:

"As fronteiras do ser humano, as fronteiras do eu, são determinadas por toda amplitude de suas experiências na vida e por suas capacidades internas de assimilar a experiência nova ou intensificada. A fronteira do eu de uma pessoa e a fronteira daquilo em que, para ela, o contato permissível" (POLSTER, 2001, p.120).

Continuar com a especialização estava sendo muito difícil, pois além do valor da mensalidade, havia o dispêndio com a passagem e a distância. Não queria interromper o meu sonho, conversei com a Márcia Estarque Pinheiro, uma das responsáveis pelo IGT que no ensejo me sugeriu ser bolsista do CDGB - Centro de Documentação da Gestalt-terapia Brasileira, trabalhando na edição das filmagens dos congressos de Gestalt-terapia3 para abater horas no pagamento da mensalidade e assim o fiz na tentativa de prosseguir rumo ao meu sonho - ser uma Gestalt- terapeuta.

Era extremamente difícil para mim a situação em que me encontrava ir para a especialização, ter que lidar com os clientes que atendia no IGT e também na clínica particular. Além disso havia um turbilhão de coisas que naquele momento, precisava enfrentar. Infelizmente não pude dar continuidade como bolsista do CDGB, pois para trabalhar teria que abdicar de dois dias do trabalho na clínica particular e no momento precisava de dinheiro para manter a minha família que financeiramente naquele momento dependia unicamente de mim, uma vez que meu esposo seguia desempregado, tive que trancar o curso.

A decisão de parar com a especialização me trouxe as mais infinitas angústias, afinal era um sonho que estava sendo interrompido. Entendo que, viver no agora é viver com o que se tem: tristeza, raiva, alegria, medo e tudo mais que faz parte da vida. Viver requer coragem, é levantar a cabeça, é aprender com a dor e sobre a dor, é ter a certeza de que quando a tempestade passar, é certo chegar o sol. De acordo com Juliano (2010,p.156), é muito raro um terapeuta compartilhar suas dores e acaba comportando-se como Deus pairando em cima das tempestades, não se atentando para o que se passa aqui e agora, em seu interior.

Fiquei com a matrícula trancada no curso de especialização aproximadamente um ano. Durante este tempo me sentia incompleta, faltava algo. Em gestalt-terapia entendemos este processo por "gestalten" incompleta. De acordo com Ribeiro (1994, p.21) lidamos muito mal com o incompleto, com o inacabado, porque provoca em nós a sensação do não-eu, de uma identidade buscada e nunca encontrada. Devido a tamanha angústia que sentia em meu ser,entro em contato com a Márcia Estarque e retorno em agosto de 2017.

 

OS IMPACTOS DO SOFRIMENTO NA CLÍNICA

A forma como lidamos com os nossos conflitos pessoais, indubitavelmente poderá atrapalhar o manejo do atendimento clínico, de certo que precisamos estar atentos as nossas necessidades, a fim de evitar que isso aconteça. Segundo Juliano (2010), a necessidade não é prejudicial, só é danosa quando não reconhecida, daí corremos o risco de encaixar o outro num papel que não lhe cabe. Os meus conflitos em alguns momentos me transcendiam que de certa forma por algumas vezes me via impossibilitada de exercer o meu ofício profissional e tamanha era a devastação existencial na qual me encontrava.

Havia retomado a minha formação, mas ainda estava tendo que lidar com a administração do meu lar e os papéis de supridora do sustento da minha família, me encontrava feliz por estar novamente no IGT, estruturando o meu ser terapeuta e de certa forma estava fazendo o que eu podia naquele dado momento.

Dois meses após ter retomado a formação e com a falsa ilusão de controle, me deparei com novas situações que me deixaram extremamente abalada, que envolvia uso abusivo de drogas e conflitos com a lei em minha família. De certo que a dependência química gera impactos destrutivos em toda família, afetando áreas biopsicossociais da parentela, promovendo um grande desgaste emocional. Segundo Paladini (2008, p.9), familiares envolvidos com a dependência química de um ente querido sofrem desordens física, psicológica, social, financeira entre outras, além de terem um papel fundamental na manutenção como no tratamento da doença.

Junto a questão da dependência química, todo sofrimento e desgaste emocional advindo da mesma, tive que lidar com processo de encarceramento, onde me deparei com uma outra realidade. Tive de suportar a ausência, visitas, constrangimentos, além de encarar as despedidas, uma vez que as visitas eram limitadas. Quanta dor, confesso que este momento me deixou muito desestabilizada emocionalmente, pensei em trancar novamente a formação e apresentei dificuldades em estar com meus clientes, precisando por inúmeras vezes desmarcar os atendimentos.

 

OS ATENDIMENTOS

Devido a dificuldade que estava tendo com os atendimentos clínicos por conta dos meus conflitos pessoais, me questionei e cheguei a pensar em desistir da minha profissão, pensava comigo mesma, como poderia ajudar alguém se me sentia naquele estado, parecia que havia uma "pedra pesada" sobre o meu corpo. Diversas vezes ao chegar no consultório, antes de cada atendimento, deitava no sofá, abraçava as minhas pernas, me encolhia, como se quisesse retornar ao útero materno, me embalava, chorava, pensava comigo mesma que não conseguiria dar conta do cliente que aparecesse, chegando até mesmo torcer para que ele não viesse, devido tamanha vulnerabilidade pela qual me encontrava. Em algumas situações tive que desmarcar, outras consegui encarar os problemas buscando dar o melhor de mim. Sentia-me impotente, frustrada e com uma tristeza que transcendia a minha'lma. De acordo com Viorst (2005, p.19), somos lançados para fora do útero, sentimo-nos indefesos e muitas vezes necessitamos que alguém se interponha entre nós para nos proteger.

Como citado anteriormente pensei em desistir da minha profissão, mas logo em minha mente aparecia todos os meus clientes, eles contavam comigo, isto me deu forças para prosseguir.Juliano (2010, p.67) afirma que não precisamos ser perfeitos e bem resolvidos para o ofício de terapeuta. Mas sem dúvida devemos ser muito persistentes em nossas buscas internas.

 

ATENDIMENTOS PELO IGT

Além dos atendimentos na clínica particular, precisava realizar os atendimentos pelo Instituto. Os atendimentos pelo IGT fazem parte do processo curricular para a formação do futuro gestalt-terapeuta, sendo de extrema importância para a formação profissional. Pelo Instituto pude experienciar diversas modalidades de atendimento clínico: individual, família, grupo e casal. Cada atendimento realizado pelo IGT fez com que eu fosse amadurecendo profissionalmente ao mesmo tempo em que comecei a lidar com a minha dor e os impactos advindos dela na clínica. Ao me aproximar do sofrimento do outro aprendo mais de mim mesma.

Da mesma maneira que enfrentava as minhas dores, percebi que meus amigos de turma e até mesmo os coordenadores do curso também enfrentavam os mais infinitos conflitos e tendo que ressignificá-los, cada um ao seu próprio tempo e da maneira como podiam. Durante a formação, seja nas aulas, "workshops" ou mesmo nos atendimentos em equipe nos dávamos suporte e acolhíamos uns aos outros.Cardella (2006, p.115) nos diz que quando passamos a entender o sofrimento como travessia, ou seja, como algo que é inerente a vida e nos responsabilizamos por ele, consequentemente somos despertados e assim transformamos o nosso caminho.

Com o atendimento individual que realizei pelo IGT, aprendi a importância de olhar para os sentimentos, sejam eles por nós vistos como os ruins ou não, é de extrema importância estar em contato com o que sentimos, pois em gestalt-terapia aprendemos a importância de estarmos atentos ao processo de "awareness". De acordo com Yontef (1998), "awareness" é o processo de estar vigilante aos eventos importantes do sujeito com ele, com o outro e com o mundo, estando em contato com aquilo que é. E foi a partir da dor da minha cliente, fazendo-a contatar seus "monstros internos", que eu pensei que também precisaria disso.

O atendimento individual me possibilitou a compreensão dos perigos que podem surgir na prática clínica, no que diz respeito a demanda que não é somente do cliente, pois vivenciei concomitantemente a este os meus conflitos pessoais, me vi pouco curiosa e impaciente para algumas questões da cliente, visto que percebi que a impaciência era comigo mesma diante minhas próprias questões, lembro em um dos atendimentos a referência da mesma em ter um peso nas costas e me deparo naquele momento com o meu próprio peso e dor, tudo que vivi com esta cliente me possibilitou o cuidado com a relação e o cuidado comigo mesma trabalhados em terapia pessoal e supervisão.

Avançando o módulo tive que viver o atendimento de casal. Esta modalidade de atuação clínica oferecida pelo IGT é realizada com equipes de campo e reflexiva, o que proporciona um rendimento muito grande ao atendimento, devido aos diferentes olhares, além do suporte que dávamos uns aos outros.

"A equipe de campo é, geralmente, composta por dois psicólogos que atuam em co-terapia diretamente com a família que está em tratamento. A equipe reflexiva, composta pelos outros profissionais da equipe, estabelece-se fora da sala de atendimento e acompanha as sessões através de um espelho unidirecional" (SANTOS, 2008, p.159).

O atendimento realizado em equipe, fez total diferença para que eu pudesse dar conta do meu sofrimento existencial. A minha equipe e supervisora sempre iam checando como eu estava diante do atendimento, pois conheciam a minha história e tudo o que vinha enfrentando, me fazendo cada vez mais acreditar na postura cuidadosa e respeitosa do gestalt-terapeuta.

Realizei também um atendimento familiar e o curioso foi me deparar com a história desta família, nela havia elementos que eram idênticos aos que eu estava vivenciando, por vezes me vi atônita, comovida com que escutava. Juliano (1999, p.118), afirma que ao exercermos nosso ofício de psicoterapeuta, somos conduzidos a temas e lugares doloridos da nossa própria história, portanto, vejo a extrema necessidade de fazermos a nossa psicoterapia pessoal. Eu me identificava com a dor daquela mãe e com o seu sofrimento, quando a mesma chorava ao relatar eu chorava por dentro e dizia a mim mesma, eu sei o que é isso, conheço esta dor.

De acordo com o dicionário On line, empatia é a identificação de um sujeito com outro, quando alguém, através de suas próprias especulações e sensações, se coloca no lugar da outra pessoa, tentando entendê-la, este atendimento me trouxe um grande impacto visto que a demanda era muito semelhante ao que eu estava vivenciando, era como se estivesse despida diante de mim mesma. Neste momento verifico a importância de estarmos atentos as nossas necessidades, diferenciando- se do cliente para então poder dar-lhe suporte.

No atendimento com o grupo também realizado com equipe, me esbarro com o sofrimento humano. As dores dos clientes me fizeram repensar o lugar onde me encontrava no mundo e a olhar para o meu próprio sofrimento. Estando atenta e disponível, não somente para o outro, mas também para as minhas necessidades.Dentre todos os atendimentos que realizei tanto pelo IGT como os da clínica particular, os de ontem e os de hoje contemplo pessoas singulares e ao mesmo tempo plurais. São seres humanos complexos e repletos de medos, angústias, tristezas, alegrias, êxtase, desafios, toda uma gama de coisas que fazem parte não apenas de nossos clientes, mas de todo ser humano.

 

A POSTURA DO GESTALT-TERAPEUTA, FRENTE AOS IMPACTOS DO SOFRIMENTO

Não podemos negar que o gestalt-terapeuta trabalha com o foco na percepção sensorial do cliente. Seu olhar deve estar atento não apenas no que é dito, mas ao conteúdo que está sendo narrado, bem como em todas as sensações e movimentos envolvidos com a demanda do mesmo. Além de estar atento para as sensações do cliente, o gestalt-terapeuta deve estar ligado durante o encontro as suas próprias sensações. Segundo Juliano (1999), é preciso estar num contínuo ir e vir, ou seja, estar com o outro sem perder o foco em si mesmo.

Como já mencionado anteriormente a psicoterapia pessoal do psicólogo clínico torna-se de extrema importância bem como a supervisão clínica em alguns casos, este cuidado pessoal vem ser de extrema relevância para o andamento do processo terapêutico do cliente.

"Esse compromisso com o próprio crescimento advém da consciência de que não poderemos levar o cliente além do ponto aonde nós mesmos chegamos; não há como favorecer o resgate do processo de crescimento do outro se somos reféns dos nossos próprios bloqueios e impedimentos. Se estamos perdidos no nosso próprio labirinto não estaremos disponíveis para oferecer companhia. Só podemos ajudar alguém quando aprendemos, num nível básico, a ajudarmos a nós mesmos" (CARDELLA, 2006, p.111).

É interessante salientar que o cuidado com o outro passa primeiramente pelo cuidado pessoal, não podemos passar despercebidos de nós mesmos. Como andam as suas questões internas?É um convite que proponho ao leitor.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista os aspectos observados, é notório o quanto o sofrimento vem sendo rechaçado e infelizmente não costuma ser visto como fonte de crescimento e ressignificação pessoal. Como mencionado neste artigo a palavra sofrimento já pressupõe afastamento em virtude de toda uma gama negativa que é atribuída à palavra. Somos treinados desde muito cedo a ignorar as nossas dores e sentimentos,a achar que não estar bem seria um sinal de fraqueza e isso,infelizmente, se não olhado,acaba sendo levado para a vida pessoal e profissional.

Durante a minha formação acadêmica e profissional me deparei com uma avalanche de sucessivos conflitos pessoais, tive a compreensão dos rastros que deixaram no meu trabalho enquanto psicóloga clínica e do quanto eu precisava me cuidar para poder cuidar do outro. Os conflitos externos me fizeram a olhar para o interior. O meu sofrimento me trouxe uma melhor compreensão a respeito dos meus clientes e da singularidade de cada ser humano.

Ao tirar o foco apenas da minha dor, indo e vindo no balanço das ondas, pude verificar que não somente eu estava vivenciando um turbilhão de conflitos, mas colegas de profissão também tinham suas dores. É imprescindível que nos conscientizemos da humanidade existente em nosso interior, ela engloba a nossa história,dores e delícias e que assim possamos cuidar de todo este "arsenal" de coisas que fazem parte de nossa história, além de compreender o que se pode fazer com ela.

E em meio a devastação existencial, percebo que é possível florescer, não perdendo de vista a potência interior, buscando entender sempre que trememos diante da dor, do medo, da solidão e acima de tudo que não somos perfeitos. Termino estas linhas com a reflexão do poeta e compositor Renato Russo. que nos diz assim:

 

Mas é claro que o sol vai voltar amanhã
Mais uma vez, eu sei
Escuridão já vi pior, de endoidecer gente sã
 Espera que o sol já vem
Tem gente que está do mesmo lado que você
Mas deveria estar do lado de lá
Tem gente que machuca os outros
Tem gente que não sabe amar Tem gente enganando a gente
Veja a nossa vida como está
Mas eu sei que um dia a gente aprende
Se você quiser alguém em quem confiar
Confie em si mesmo
Quem acredita sempre alcança!
Mas é claro que o sol vai voltar amanhã
 Mais uma vez, eu sei
Escuridão já vi pior, de endoidecer gente sã
Espera que o sol já vem
Nunca deixe que lhe digam que não vale a pena
Acreditar no sonho que se tem
Ou que seus planos nunca vão dar certo
Ou que você nunca vai ser alguém
Tem gente que machuca os outros
Tem gente que não sabe amar
Mas eu sei que um dia a gente aprende
Se você quiser alguém em quem confiar
Confie em si mesmo
Quem acredita sempre alcança!

 

Espero que as reflexões propostas neste artigo possam aguçar a importância do profissional de psicologia de ter um olhar cuidadoso para as suas dores, buscando conhecê-las bem de perto. Levá-lo ao entendimento que a necessidade não é só do cliente e por fim que psicólogo sente, chora, treme diante os adventos da vida e por isso insisto na importância do investimento em terapia pessoal e supervisões, pois o cuidado deve passar por nós profissionais primeiramente.

 

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NOTAS

* Andréa Reis de Souza – Psicóloga graduada pela Universidade Federal Fluminense 2013, Gestalt-terapeuta pelo Instituto de Gestalt-terapia e atendimento Familiar.
1 [SOFRIMENTO]. In: DICIO, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus, 2018. Disponível em:https://www.dicio.com.br/sobre.html. Acesso em: 05/03/20
2 Em todo restante do presente artigo será utilizada a sigla IGT para fazer referência ao Instituto de Gestalt-terapia e Atendimento Familiar
3 Em todo artigo será utilizada a sigla CDGB para fazer referência ao Centro de Documentação da Gestalt-terapia Brasileira

 

Endereço para correspondência
Andréa Reis de Souza
Endereço eletrônico:psiandrea41@gmail.com

 

Recebido em: 02/09/2019
Aprovado em: 29/04/2020