ARTIGO

Contato, Virtualidade e Ciberespaço: Uma reflexão à luz da Gestalt-terapia

Contact, Virtuality and Cyberspace: A reflection in the light of Gestalt-therapy

 

Rodrigo Pinto Brasil*; Marcus César de Borba Belmino**

UNILEÃO – Centro Universitário Doutor Leão Sampaio, Diálogos - Centro de desenvolvimento humano e psicologia clínica – Lagoa Seca, Juazeiro do Norte – CE.

Endereço para correspondência

 


RESUMO

Este artigo busca estabelecer uma discussão entre o fenômeno da virtualidade no contexto do ciberespaço e a maneira como a Gestalt-terapia entende a experiência. Por meio de um levantamento bibliográfico em torno do tema, buscou-se estabelecer um diálogo entre teóricos da comunicação e a Gestalt-terapia. Tendo como base a teoria do "self" e seus desdobramentos, partiu-se da noção de contato para ressaltar o caráter virtual da experiência, implícito na leitura da Gestalt-terapia. Desta forma foi possível adentrar este novo campo das relações interpessoais com intuito de propor uma leitura acerca do avanço das mídias digitais e os fenômenos que o circundam. Constatou-se o ciberespaço enquanto um campo onde coabitam implicações materiais e virtuais que fomentam uma nova configuração para experiência e consequentemente um campo de ajustamento criativo. Por outro lado, se mostra evidente a necessidade de maiores discussões sobre esse fenômeno, o que revela também que mesmo com a atualidade da Gestalt-terapia, se faz necessário um maior aprofundamento sobre essa correlação.

Palavras chave: Gestalt-terapia; Contato; Virtualidade; Ciberespaço; "Self".


ABSTRACT

This article seeks to establish a discussion between the phenomenon of virtuality on cyberspace context and the way Gestalt-therapy understands experience. Through a bibliographical survey, it was sought through an epistemological tracing to establish a dialogue between communication theorists of phenomenological Gestalt-therapy approach. Based on the self-theory and it's unfolding, came from contact notion for to emphasize the virtual character of experience, implicit on Gestalt therapy reading. It was possible to get inside this brand new field of interpersonal relations in order to propose new ways that get to walk side by side with the constant crescent advance of social media and all the phenomenons around it. It is our understanding that the cyberspace as field where materials and virtual implications cohabits foments a new configuration for experience and eventually a new field of creative adjustment. On the other hand, it is evident the need for greater discussions in the understanding of its dynamics, which also reveals that even with the current Gestalt-therapy, a deeper understanding of this correlation is necessary.

Keyboards: Gestalt-therapy; Contact; Virtuality; Cyberspace; Self.

 

INTRODUÇÃO

A crescente ascensão das tecnologias da informação e comunicação trouxe mudanças significativas na maneira pela qual nos relacionamos. Hoje, somos capazes de nos relacionar através de uma rede de comunicação simultânea e global, o que nos permite interação sem a necessidade de dividirmos o mesmo espaço-tempo. Esta nova maneira de interagir tem sido a grande marca do início do século XXI.

Diante disso, uma série de transformações sociais e culturais tem fecundado questionamentos em diversas áreas de conhecimento, tais como a sociologia, a comunicação, a filosofia, a psicologia, entre outras. Desse contexto surge uma nova nomenclatura com intuito de definir esse novo "lugar" onde ocorre essa nova comunicação decorrente da interconexão mundial de computadores: o ciberespaço.  É no ciberespaço que estas transformações se estendem na formação de uma cultura própria da contemporaneidade, marcada principalmente pelo domínio global da interação humana via mídias digitais.

Levando em conta a tradição filosófica que remete ao virtual enquanto campo de inatualidade/possibilidade, estudiosos da comunicação e da filosofia como Almeida e Santos (2017), Thompson (1998), Lévi (1999), Santaella (2003) e Silva (2004) tem aflorado em meio a suas discussões a temática da virtualidade na cibercultura e seus impactos na forma como nos relacionamos com o mundo. Nesse sentido, o ciberespaço ressalta uma nova interface para experiência humana, onde a crescente circulação desenfreada de informações infere um campo novo, desconhecido e exacerbado em possibilidades.

Visto isto, o presente trabalho busca estabelecer uma discussão entre o fenômeno da virtualidade no contexto do ciberespaço e a maneira como a Gestalt-terapia entende a experiência. Ressaltando em um primeiro momento o caráter virtual do "self", intrínseco nas bases epistemológicas que compõem a teoria, para então através da noção de contato se pensar as implicações culturais e políticas manifestas neste contexto. Neste traçado, buscou-se explorar principalmente na obra Gestalt-terapia de Perls, Hefferline e Goodman (1997) e nos estudos de seus desdobramentos feitos por Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2004, 2007, 2012), as bases para se pensar o contato neste novo campo virtualizado da experiência. Também, procuramos nos basear em pesquisas que já vínhamos desenvolvendo (Belmino, 2010, 2014, 2017).

 

METODOLOGIA

O presente trabalho desenvolve-se como um levantamento bibliográfico na busca de uma reflexão teórica em torno da temática da virtualidade nas relações contemporâneas. Para isso, é utilizada como base a literatura da Gestalt-terapia para fundamentar uma análise pertinente acerca deste fenômeno. Segundo Gil (1999),a pesquisa de cunho bibliográfico é desenvolvida principalmente com base em documentos, pesquisas, monografias, teses, livros e artigos publicados em torno do tema, podendo também abranger todo o referencial tornado público que seja apropriado para tal. Nesse sentido, cabe aqui à descrição das fontes e métodos utilizados para o levantamento do referencial, foram eles: fontes de bancos de dados eletrônicos como: Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), Scientific Eletronic Library Online (SCIELO) e Periódicos Eletrônicos em Psicologia (PEPSIC); assim como livros e publicações que abordam a temática. Foram empregadas durante a procura nas bases de dados os descritores: Gestalt, Virtualidade, Contemporaneidade, Relações, Contato. Ao todo foram encontrados sete artigos, duas teses de mestrado e utilizados doze livros relacionados ao tema pesquisado.

A opção pelo levantamento bibliográfico fundamentou-se na sua importância para as pesquisas sociais, que segundo Gil (1999): "visa fornecer respostas tanto a problemas determinados por interesse intelectuais, quanto por interesse prático" (p.35). Nesse sentido, visto a amplitude da temática aqui explorada, optou-se por uma metodologia que suprisse a necessidade de propor uma reflexão sem perder a rigorosidade científica. Seguindo esta perspectiva, mais do que propor respostas práticas para o problema encontrado, visou-se estabelecer um diálogo entre diferentes produções científicas em torno do tema, com a proposta de revelar possíveis apontamentos na compreensão desses de fenômenos sociais complexos. O início da pesquisa até a estruturação do presente trabalho se deu entre Janeiro e Junho de 2018, foram utilizados publicações e livros produzidos entre 1998 e 2017. Os critérios utilizados para a escolha dos referenciais citados foram, além da correlação com o tema, o esclarecimento e o embasamento em torno do problema, que devido a sua atualidade constatou-se que ainda não predispõe de pesquisas mais amplas.

 

DE UMA LEITURA ORGANÍSMICA DE HOMEM PARA UMA LEITURA DA EXPERIÊNCIA

Em meados do século XX por meio da união entre propostas teóricas que abarcavam críticas aos modelos de construção de conhecimento e concepções antropológicas vigentes até então, a Gestalt-terapia surge primordialmente dos estudos e trabalhos de Fritz Perls (1893-1970), cuja crítica à psicanálise trouxe uma nova leitura de homem e de mundo. Influenciado pelos psicólogos da Gestalt Max Wertheimer (1880-1943), Wolfgang Köhler(1887-1967) e Kurt Koffka (1886-1941), Perls encontra na teoria de Kurt Goldstein (1878-1965) a base para formular uma proposta teórica que descontruísse a metapsicologia de Freud em prol de uma leitura organísmica (MULLER-GRANZOTTO & MULLER-GRANZOTTO, 2007).

 É nesse contexto que Paul Goodman (1911-1972) propõe uma releitura das propostas de Perls utilizando o método fenomenológico proposto por Edmund Husserl (1859-1938) juntamente com o pragmatismo de John Dewey (1859-1952), o qual propunha uma articulação entre os campos da filosofia, da clínica, da política e da educação(BELMINO, 2017). Tal direcionamento unido aos trabalhos de Laura Perls (1905-1990), e Ralph Hefferline (1910-1974), resulta no Gestalt Therapy: Excitement and Growth in the Human Personality publicado em 1951, obra emblemática que inaugura o que hoje chamamos de Gestalt-terapia.

Mas afinal qual o significado do termo Gestalt? Segundo Engelmann (2002): "O substantivo alemão ‘Gestalt', desde a época de Goethe, apresenta dois significados diferentes: (1) a forma; (2) uma entidade concreta que possui entre seus vários atributos a forma" (p.2). A opção majoritária de manter o termo original por parte dos gestaltistas ressalta a importância estética que o mesmo tem para a teoria, utilizado pelo próprio Goethe para descrever a "[...] auto-organização, do sentido e a expressividade presentes nos fenômenos da natureza" (CHOLFE, 2009, p.30).

Atualmente, a Gestalt-terapia se estabelece como uma abordagem que possibilita uma análise holística do ser humano através de uma forte base epistemológica, cujo ponto de partida é a primazia da relação entre o organismo e o meio. Nesse sentido, Perls, Hefferline e Goodman (1997) propõem, em seu livro Gestalt-terapia, algo além de uma leitura de homem, a saber, uma nova maneira de olhar para experiência. Desta forma, o homem passa a ser visto como parte atuante em um todo maior. Um constante campo interacional entre o organismo e o ambiente, no qual a manifestação das experiências vividas no passado e as expectativas geradas frente às possibilidades de futuro se fazem presentes transientemente no aqui-e-agora (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2004).

Para esclarecer melhor de que maneira se dá a direção da leitura proposta pela Gestalt-terapia, é preciso retomar algumas influências que a possibilitaram emergir. A psicologia da Gestalt, por exemplo, marca o abandono do método introspeccionista e dos conceitos clássicos de atenção, sensação e associação em valor do método fenomenológico, o que permitiu que Wertheimer e Köhler propusessem uma aproximação do pensamento em relação a uma experiência concreta (CHOLFE, 2009).

Tal contribuição permitiu também transcender o formato mentalista, até então predominante, de se fazer Psicologia. No entanto, o caráter experimental-genético-explicativo dos psicólogos da Gestalt fez com que Perls levantasse duras críticas a este método, uma vez que se pautava na busca por leis estruturais universais. O que fez ele se aproximar de uma concepção de Gestalt mais relativizada e particular (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2007). É ao adentrar neste campo que Perls vai beber da teoria de Kurt Goldstein, trocando o dualismo entre mente e corpo (fenômenos psicológicos versus fenômenos físicos) pela compreensão descritiva de um processo de funcionamento organísmico (BELMINO, 2014).

Goldstein traz a auto-regulação organísmica como uma característica fundamental do funcionamento de qualquer organismo, pela qual todos nós encontramos maneiras de nos atualizarmos frente a um meio externo em constante movimento (LIMA,2009). Como dito pelo próprio Perls (2002): "[...] as funções mais e menos do metabolismo representam a atividade da tendência básica de todo organismo de buscar equilíbrio" (p.71). Por outro lado, "nenhum organismo é auto-suficiente. Requer o mundo para a satisfação de suas necessidades" (p.75). Logo, podemos constatar a quebra de um pensamento dicotômico que separava o homem e a natureza em estâncias isoladas e o início de uma linguagem integradora pautada na compreensão de uma unidade do organismo e sua integração com o campo (unidade organismo/ambiente) (BELMINO, 2014).

Em consonância com a ideia de uma unidade do organismo com o ambiente, Perls encontra no pensamento de Salomon Friedlaender e nas noções de "pensamento diferencial" e "indiferença criativa" as ferramentas para propor "[...] uma descrição da experiência sem antecipar conteúdos que só ela, todavia, poderia revelar" (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2007, p.149). Ou seja, ao mesmo tempo em que aproximasse, mesmo que indiretamente, do método de investigação fenomenológico (a posteriori trazido na leitura do Gestalt-terapia), propõe a observação da experiência em si mesma, formulando assim uma noção de campo construído através de polaridades que nascem de noções contrárias (BELMINO, 2014). Tais noções partem do pressuposto de um ponto-zero no qual segundo Perls (2002) ocorre uma diferenciação em opostos: "somos indiferentes a tudo que é ‘não diferenciado' a partir de nosso ponto e vista subjetivo" (p.46). Logo, nosso interesse evocado possui um caráter duplo onde o início torna-se também o centro, ou em outros termos, a figura.

Este pensamento possibilitou a Perls a compreensão do ego não como um habitante do organismo, mas como uma função da experiência, um ego insubstancial e originário, visto que precede a linguagem. Desse modo, passa a ser entendido como uma função seletiva do organismo no campo, pela qual ele identifica-se e aliena-se em sua interface com o ambiente (PERLS, 2002).

Nesse sentido, o ego enquanto função da experiência é ativado a partir do encontro com o "estranho", exercendo a função de determinar os limites ou fronteiras entre o pessoal e o impessoal. Assim como a respiração é uma função do pulmão o ego é a função seletiva do organismo, fundamental para compreender suas próprias fronteiras (PERLS, 2002). A fluidez deste processo de diferenciação se dá por meio da dinâmica do contato/fuga, na qual o contato é o ato de identificação e alienação com o meio e a fuga o processo de retrair-se para que uma nova experiência possa emergir (BELMINO, 2014).

Esta nova perspectiva do ego insubstancial inaugurada por Perls une-se a leitura fenomenológica proposta por Goodman que se direciona, enquanto crítica, para o rompimento das interpretações dicotômicas da realidade e da natureza humana (interno/externo, consciente/inconsciente, sujeito/mundo, etc.) (BELMINO, 2014). Para Perls, Hefferline e Goodman (1997) o pensamento dicotômico proposto pelas teorias antropológicas anteriores na verdade são fragmentações da experiência, uma vez que não abarcam o "todo", apesar de serem estruturas unificadas e definidas. Nesse sentido, Perls, Hefferline e Goodman (1997) trazem que até "[...] a própria ideia de organismo ambiente, é uma abstração ou construção possível, ou uma potencialidade que se dá nessa experiência como indício de outra experiência" (p. 41). Logo, a proposta trazida pelo Gestalt-terapia transforma a investigação da experiência humana a partir da noção de campo organismo/ambiente para além da psicoterapia, propondo uma nova maneira de se pensar antropologicamente a natureza humana, sem recorrer a um recorte fixo, mas tomando como base o caráter transitório do contato (BELMINO, 2014).

Como resultado desta proposta temos uma nova maneira de se fazer Psicologia, mudando, portanto o seu próprio objeto de estudo, uma vez que Perls, Hefferline e Goodman (1997) propõem em sua leitura olhar para a psicologia enquanto um estudo dos ajustamentos criativos, que seriam "o processo de contatar no campo organismo/ambiente [...]" (p.100), ou seja "[...] o processo de assimilação da novidade e a rejeição do inassimilável" (BELMINO, 2014, p. 99).

Nesse sentido, como afirmam seus próprios autores, a Gestalt-terapia propõe, como tema da Psicologia, a experiência enquanto transição, sempre em movimento de renovação de forma a resultar assimilação e crescimento. Rompendo desta maneira com modelos dicotômicos de interpretação da experiência humana (PERLS, HEFFERLINE & GOODMAN, 1997). Tal leitura permite visualizar a experiência enquanto estruturas unificadas e definidas, sendo o contato e assimilação partes integrantes deste constante processo de ajustamento criativo no campo organismo/ambiente (PERLS, HEFFERLINE &GOODMAN, 1997).

 

A TEMPORALIDADE NA LEITURA DA TEORIA DO "SELF"

A proposta teórica de sintetizar os conceitos que formulam a noção de contato, "awareness", ajustamento criativo e consequentemente a maneira pela qual a Gestalt-terapia enxerga a experiência, denomina-se "teoria do self'" (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2004). Nessa perspectiva, para obter maior esclarecimento acerca desta proposta e de que maneira através de suas lentes é possível ler as relações contemporâneas e a virtualidade, é preciso primeiramente adentrá-la mais profundamente.

Tendo como base a noção de campo organismo/ambiente trazida por Perls (2002), no livro Gestalt-terapia o "self" passa a ser lido "[...] como a função de contatar o presente transiente concreto" (PERLS, HEFFERLINE & GOODMAN, 1997,p.177), função esta que é discutida/lida através de "[...] três principais sistemas parciais – ego, id e personalidade -, que em circunstâncias específicas parecem ser o self" (p.177). Enquanto aspectos funcionais do self estes três sistemas ou funções são ferramentas didáticas pelas quais é possível ler a experiência em um campo, já o processo do contato se faz como uma experiência temporal (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2007). Tal divisão nos permite averiguar a influência da fenomenologia na releitura feita por Goodman as psicologias do ego (BELMINO, 2017)1.

Para além da noção de constante interação entre organismo e ambiente, Goodman busca através da "[...] estratégia da redução fenomenológica alcançar a experiência como tal" (BELMINO, 2017, p. 187).  Utilizando a fenomenologia como principal ferramenta ele propõe usar a noção de campo como ponto de partida para fundamentar uma teoria crítica capaz de pensar a experiência sem cair em armadilhas dogmáticas (BELMINO, 2017). Nesse sentido as funções id, ego e personalidade são entendidos enquanto ferramentas descritivas do processo temporal que é o "self" (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2004).

O id "[...] surge como sendo passivo, disperso e irracional" (PERLS,HEFFERLINE E GOODMAN, 1997, p. 186), Ou seja, refere-se ao corpo ainda não representado frente a experiência, os tecidos e músculos que de tão integrados ao meio são indiferenciáveis, sendo "[...]vivido como volume, espessura, trânsito entre eu e o mundo" (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2004, p.3). A função de ego, por sua vez remete a deliberação, decisão, ação. É a função pela qual o "self" polariza as trocas energéticas em uma extremidade da relação (MÜLLER-GRANZOTTO E MÜLLER-GRANZOTTO, 2004). Nesse momento "[...] um interesse assume a dominância e as forças se mobilizam de modo espontâneo, determinadas imagens se avivam e as respostas motoras são iniciadas" (PERLS, HEFFERLINE &GOODMAN, 1997, p.184). Já a função personalidade é descrita por Perls, Hefferline e Goodman (1997) como sendo:

"[...]o sistema de atitudes adotadas nas relações interpessoais; é a admissão do que somos, que serve de fundamento pelo qual poderíamos explicar nosso comportamento, se nos pedissem uma explicação" (p.187).

Nesse sentido, a função personalidade pode ser entendida enquanto o modo pelo qual o "self" identifica-se frente à ação/deliberação (função ego) (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2004). Essa identificação "[...] corresponde à nossa capacidade de representar nossas próprias vivências de contato" (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2007, p.218). Cabe lembrar que tal leitura não propõe criar subdivisões do "self", mas sim abstrações acerca de modos distintos de olhar para o processo de contato. Visto isto, Perls, Hefferline e Goodman (1997) pegam emprestadas as categorias de figura e fundo da Psicologia da Gestalt, propondo descrever modos específicos de organização do "self" (funções id, ego, personalidade) de maneira a englobar todos os elementos envolvidos (tecidos celulares, experiências, valores culturais, etc.). Como dito por Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2004) o intuito é de: "[...] ressaltar o modo de funcionamento ou, simplesmente, a dinâmica própria do self" (p.4).

Para se elucidar esta dinâmica Müller-Granzotto e Müller-Granzzotto (2007), remetem ao fundamento dinâmico da vivência interna do tempo descrita por Husserl. Vivência esta evidenciada por Perls, Hefferline e Goodman (1997) na terceira parte da obra Gestalt-terapia, onde chegam a afirmar que: "é provável que a experiência metafísica do tempo seja primordialmente uma leitura do funcionamento do self" (p.180). Logo, o processo pelo qual o "self" se cria e se reinventa dinamicamente no fluxo temporal (passado, agora transiente, futuro) se dá por meio do contato, que pode ser entendido enquanto construção contínua, feita no presente, na busca de uma solução (futuro) para os obstáculos encontrados no campo (agora) que é orientada por um excitamento (passado) (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2007). Esta dinâmica, como dito por Belmino (2017): "[...] se constitui da emergência de uma figura até uma possível satisfação como base para uma nova experiência" (p.201).

Desse modo, Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2007), propõem a leitura do "self" enquanto um sistema temporal por meio de uma adaptação de um modelo de diagrama apresentado por Husserl em 1893 e adaptado por Merleau-Ponty em 1945. Utilizando este modelo enquanto ferramenta didática, é possível entender de forma mais elucidada a maneira pela qual Husserl concebia o tempo. Essa leitura temporal influenciou diretamente a concepção de "self" e o fluxo temporal da dinâmica de contato descritos no Gestalt-terapia (MÜLLER-GRANZOTTO E MÜLLER-GRANZOTTO, 2007). Nessa sequência o tempo em Husserl é retratado na figura 1 enquanto "[...] uma rede que se arma, a cada vez e em torno de um novo agora que surge" (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2007, p.227).

Figura 1: Fluxo dos vividos – Consciência interna do tempo (adaptado de Edmund Husserl por Merleau-Ponty – 1945)

Fonte: Extraído de Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2007,p.226).

O tempo enquanto rede para Husserl se faz compreender não enquanto uma sucessão causal, estabelecida do exterior como na física clássica, ou um conjunto de "agoras" enquanto totalidade simultânea, mas sim através de uma relação de vividos que só podem ser compreendidos do ponto de vista de cada vivido (MÜLLER-GRANZOTTO E MÜLLER-GRANZOTTO,2007). Logo o foco no presente da Gestalt-terapia não deve ser confundido como uma fixação, como ressaltado por Belmino (2017): "[...] um agora estático, em que nada apresenta do passado e do futuro, tal como se o agora fosse algo que pudesse ser vivido sem interferência dessas duas estâncias"(p.202). Mas sim enquanto um presente ampliado que contem a historicidade de seus perfis inatuais: o seu passado e o seu futuro em constante interação.

Podemos observar, nesse ínterim, a releitura feita por Goodman à dinâmica temporal de Husserl a partir da noção de dinâmica de contato. Segundo Belmino (2017, p. 202), a constituição do processo de contato se dá através:

"[...] daquilo que se atualiza e se apresenta como uma retenção das experiências passadas(pré-contato); o próprio ato que se constitui no presente(contatando) em direção ao futuro protendido, que se constitui como uma significação social (contato final)".

Nesse sentido o "self" pode ser entendido enquanto "o sistema de contato no momento presente" (PERLS, GOODMAN, HEFFERLINE, 1997, p.10), e não meramente enquanto organismo em interação com ambiente como ocorreu em Perls (2002) e na teoria de Goldstein (BELMINO, 2017). Logo a temporalidade enquanto fator predominante na leitura do livro Gestalt-terapia (PERLS, HEFFERLINE E GOODMAN, 1997), permite se pensar uma noção de crescimento do organismo a partir dos atos de contato, uma construção advinda da relação de ajustamento entre o organismo e o meio, ambos imersos na experiência do tempo.

 

CONTATO E O FLUXO EXPERIENCIAL NO CAMPO: O CARÁTER VIRTUAL DO SELF

Ao interpretarmos o "self" enquanto uma rede temporal, a fronteira de contato se evidencia como presente transiente, ou seja, se efetiva enquanto um campo de presença no qual coabitam nossas vivências passadas e expectativas de futuro (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2007). Logo se pode observar o caráter virtual do self, onde "o passado sempre é fundo para que o agora possibilite um futuro como criação" (BELMINO, 2014, p. 131). Nesse sentido, a fronteira de contato no campo se dá no limite virtual entre o organismo e o meio, onde o "self" é flexivelmente variável, alterando-se de acordo com as necessidades dominantes que emergem (PERLS, HEFFERLINE EGOODMAN, 1997). Esta configuração/funcionamento cuja atividade se direciona na formação de figuras e fundos, coloca a noção de ego insubstancial para além de uma função do organismo enquanto indivíduo, propondo uma leitura da experiência através da noção de um campo organismo/ambiente (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2007).

Partindo dessa perspectiva, Perls, Hefferline e Goodman (1997) descrevem a fisiologia enquanto um sistema de ajustamentos conservativos herdados na interação organismo/ambiente e não uma coleção de reflexos elementares, como interpretado nas ciências naturalistas, por exemplo. Visto isto, percebe-se que "toda função interna foi também uma função de contato, [...], por exemplo, o peristaltismo-locomoção, a tato-digestão osmótica, a mitose-sexualidade, etc." (p. 205). Logo, a leitura do "self" não se restringe somente à dimensão orgânica (fisiologia e instinto) da interação organismo/ambiente, mas também não ignora a habituação evolutiva. Posto o fator temporalidade, o "self" é lido através do entendimento de um campo experiencial. Um fluxo que só pode ser entendido, uma vez que é transiente, a partir da abstração descritiva de suas funções (id, ego, personalidade) (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2007).

Nesse sentido a leitura do "self" trazida pela Gestalt-terapia aproxima-se das ideias de Merleau-Ponty do campo enquanto um ser de indivisão (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2007). Segundo Alvim "et al". (2012), a perspectiva fenomenológica de Merleau-Ponty direciona-se no entendimento do campo das possibilidades enquanto fronteira pela qual nos relacionamos e significamos o mundo através da ação. Logo, o corpo passa a ser lido enquanto unidade integradora de sentido: "é nele que o sentido da experiência se expressa, e a expressão para Merleau-Ponty se define justamente por esse ato que institui concretude ou facticidade a uma virtualidade ou possibilidade" (ALVIM et al, 2012, p.176).

Apesar de não haver uma referência direta do Merleau-Ponty no Gestalt-terapia (1997) e na construção da teoria do "self", a partir do entendimento dessa noção do corpo enquanto campo indivisível da experiência é possível integrar seu pensamento a forma pela qual a Gestalt-terapia entende a unidade organismo/ambiente enquanto um campo experiencial. (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2007). Dessa maneira é possível fazer uma articulação entre a percepção fenomenológica trazida pelo Merleau-Ponty e a percepção da noção de contato na teoria do self, direcionando-se para seu caráter dinâmico-virtual, o que será devidamente discutido posteriormente.

Por hora, seguindo nessa direção é importante ressaltar que o termo virtual, ao contrário do que se entende no senso comum, não se refere aquilo que não existe ou é artificial. Virtual segundo Lévy (1999) remete a tradição filosófica definindo-se como aquilo que não é atual, que é possibilidade potencial. Conforme afirma Basso (2016):

"O virtual é aquilo que existe em potência e não em ato, sua tendência é atualizar-se. Por exemplo, uma árvore está virtualmente presente na semente. Virtual e atual não são contraditórios, mas sim modos diferentes de ser. Já o real é o que de fato existe" (p.276).

Nesse sentido, a dinâmica do "self" é descrita por meio de um processo de diferenciação temporal e contínuo (emergência figura/fundo), que é ao mesmo tempo orgânico enquanto excitamento que emerge na interação organismo/ambiente; e virtual enquanto possibilidade em potencial ou coexistência passado-presente transiente-futuro. Em meio a isto o contato pode ser entendido como "[...] toda função que tenha que ser considerada primordialmente ocorrendo na fronteira entre o organismo e o ambiente" (PERLS, HEFFERLINE &GOODMAN, 1997, p. 151), ou seja, toda ação do organismo no campo, que na atualidade busca uma solução para um obstáculo encontrado. Um conhecimento implícito e imediato que é acessado na medida em que "[...] o self cria e se reinventa na própria ação de desdobrar-se a partir do tempo" (BELMINO, 2017, p. 201).

Partindo dessa perspectiva de que maneira é possível através da leitura do processo de contato enquanto um fluxo experiencial discutir o campo das relações contemporâneas inseridas no ciberespaço? O fenômeno recente da virtualização das interações ressalta o caráter virtual do "self" e da experiência? A percepção que a Gestalt-terapia traz da experiência enquanto uma interface dinâmica e temporal possibilita elencar tais questões, no entanto mais importante do que a pretensão de respondê-las é fomentar uma discussão que proporcione possíveis direcionamentos para compreendê-las, sem perder o rigor fenomenológico. Logo, torna-se necessário adentrar o campo teórico em torno do fenômeno da cibercultura e suas implicações na forma como nos relacionamos.

 

CIBERCULTURA, CONTATO E VIRTUALIDADE

A Interação no Ciberespaço

Trazendo mudanças tão significativas e importantes quanto as da Revolução Industrial do século XVIII, o avanço tecnológico das últimas décadas do século XX traz como marca principal profundas transformações na maneira como nos comunicamos (CASTELLS, 1999). Por meio de um avanço demasiado no processamento e na circulação de informações percebe-se "um padrão de descontinuidade nas bases materiais da economia, sociedade e cultura" (CASTELLS, 1999, p.68). Este padrão proporcionou profundas mudanças na conjuntura cultural contemporânea, que através da convergência de diversas tecnologias de mídia, principalmente informática e telecomunicações, inaugurou uma nova forma descentralizada e universal para circulação de informações (LIMA, 2009).

No centro deste novo modelo de interação e cultura está a internet. Criada originalmente para fins militares nas pesquisas do departamento de defesa dos Estados Unidos, a internet ganhou força sendo utilizada com objetivo de troca de informações entre universidades (CASTELLS, 1999). No entanto, somente com o avanço da tecnologia e a popularização dos microcomputadores tornou-se um instrumento tão presente no cotidiano (BELMINO,2010).

Sendo um fenômeno cada vez mais comum relacionar-se de forma "online", Almeida e Santos (2017) trazem que devido a sua condição excessivamente virtual, no sentido de abundância e fluidez de possibilidades, esta nova interface da comunicação tem induzido diversas mudanças nas relações humanas, inclusive na própria maneira de conceber a realidade. Para entender como estas transformações tem se dado é importante primeiro compreender o que é o ciberespaço e a cibercultura. Segundo Lévy (1999) o ciberespaço pode ser entendido enquanto um espaço não físico pelo qual as informações circulam por meio de um conjunto de redes de computadores. Nesse sentido, Lima (2009) traz que "o ciberespaço não é uma realidade a parte, ou um não-lugar desconectado da realidade, mas uma expansão e um complexificador do real" (p.5), ou seja, para além da noção espacial/material o ciberespaço se refere a um ambiente simulado onde é possível interagir transmitindo informações e conteúdos simbólicos, proporcionando uma experiência conjunta de interação, mesmo deslocada em um tempo-espaço diferente ( CAPANEMA e AVANZA, 2013).

Este aspecto de deslocamento espaço-temporal das interações via ciberespaço, segundo Thompson (1998), é o ponto chave que diferencia a interação mediada da interação face a face, que contrastam entre si. Para Thompson (1998), a interação face a face remete a co-presença no mesmo espaço-tempo onde os participantes compartilham do mesmo sistema referencial (meio em que estão); enquanto a interação mediada refere-se à utilização de meios técnicos, materiais ou não: "[...] (papéis, fios elétricos, ondas eletromagnéticas etc.) que possibilitam a transmissão de informações e conteúdo simbólico para indivíduos situados remotamente no espaço, no tempo, ou em ambos" (p.78).

Logo, entende-se que macro transformações na maneira como interagimos implicam diretamente na organização social e na cultura como um todo (THOMPSON, 1998). Fomentando assim uma cibercultura, definida por Lévi (1999) como sendo "o conjunto de técnicas (materiais e intelectuais), de práticas, de atitudes, de modos de pensamento e de valores que se desenvolvem juntamente com o crescimento do ciberespaço" (p.16).

Nesse sentido, Santaella (2003) traz que o advento da cibercultura não tem mudado apenas a maneira como nos comunicamos, mas também a forma como produzimos, criamos, distribuímos e compartilhamos. Assim, as condições presentes no contexto da cibercultura favorecem a circulação de uma maior variedade de discursos e consequentemente novas formas de representação (LIMA, 2009). Santaella (2003) afirma que existem divergências quando se trata da visão em torno das mudanças trazidas pela cibercultura: de um lado os otimistas que vem no avanço tecnológico a ascensão da comodidade e da praticidade para as tarefas cotidianas e as criações humanas; do outro aqueles que tendem a afirmar que o crescimento da cibercultura tende a distanciar a maneira como nos relacionamos, uma vez que imersos na velocidade da circulação de informações no ciberespaço, as relações tendem a se fragilizar.

Deste contexto, no entanto, surgem também fenômenos que alimentam questões acerca dos limites que concebem a realidade ou mesmo o papel da virtualidade frente as transformações da cibercultura. Como trazem Almeida e Santos (2017): "Real e virtual travam um embate no imaginário social aditivado e fertilizado por dispositivos, sistemas, códigos, tecnologias e experiências de informação e comunicação" (p.53). Nesse sentido pode-se pensar em uma virtualização do sujeito, que imerso no ciberespaço desintegra-se em sua corporeidade em busca de um status virtualizado, colocando a si mesmo em um campo de inatualidade/possibilidade (SILVA, 2004). Mas de que maneira o rompimento fruto desta ambiguidade entre real e virtual desintegra-se ao ponto de inferir diretamente no núcleo experiência?

 

Virtualidade, Corpo e Contato

Como trazem Almeida e Santos (2017), o crescente impacto das manifestações da cibercultura não tem afetado apenas a comunicação, instaurando um estatuto do ser tele existente em uma tele realidade, mas a própria "[...] condição dos sujeitos se imiscui desse cenário de abstração e existência" (p.54). Logo, os cenários virtuais têm abarcado os indivíduos que neles "vivenciam" como um todo. Traçando assim uma nova interface, pela qual interagimos. Para além da interação mediada de Thompson (1998), pode-se propor em linguagem gestáltica, que a própria maneira de contatar é afetada neste processo, uma vez que o contato é descrito como "[...] um processo temporal, ou melhor, um movimento em curso ‘awareness' em um campo" (BASSO, 2016, p. 9), onde é levado em conta a materialidade do dado assim como as possibilidades que emergem pelas vivências retidas e projetadas enquanto co-dados no processo de autoatualização (MÜLLER-GRANZOTTO E MÜLLER-GRANZOTTO, 2007).

Visto isto, ressalta-se novamente o caráter virtual do "self" onde encontramos na função ego o princípio em que esta virtualidade desenvolve-se através da "[...] abertura para uma infinidade de possibilidades em um campo experiencial" (BELMINO, 2017, p. 220). Segundo Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2012) isto ocorre devido a função ego ser um campo do desejo, uma vez que o desejo é diferenciação do fluxo no campo, e não se atém apenas aquilo que se encontra presente, mas também ao que se apresenta enquanto possível. Logo, quando Silva (2004) e Almeida e Santos (2017) falam da virtualização das relações ou da desintegração da corporeidade em prol de um "status quo" virtualizado, assemelham-se ao que seria um exacerbação da função de ego que servido demasiadamente de dados, como afirma Basso(2016), encontra na virtualidade do ciberespaço "[...] um potencial quase que inesgotáve." (p.279).

Nesse sentido, como trazem Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2007), Perls, Hefferline e Goodman (1997) ao apresentarem uma leitura do "self" pautada em uma perspectiva fenomenológica- quando se trata do aspecto da comunicação com outrem - se assemelharam a leitura merleau-pontyana de campo. Como trouxe o próprio Merleau-Ponty (2014):

"Uma vez que vemos outros videntes não temos apenas diante de nós o olhar sem pupila, espelho sem estanho as coisas [...] doravante somos plenamente visíveis para nós mesmos, graças a outros olhos" (p.139).

O corpo como um campo de indivisão permite que diante do que é visível e material possamos no campo da percepção deslizar sobre sua condição e limite externo, incidindo sobre o invisível ou virtual (ALMEIDA E SANTOS, 2017). Nesse sentido, quando Perls, Hefferline e Goodman (1997) propõem no Gestalt-terapia uma leitura do campo organismo/ambiente enquanto fluxo experiencial, lançam um olhar fenomenológico que incide também no virtual (BELMINO,2017).

Dessa maneira, pode-se afirmar que a leitura de Merleau-Ponty (2014) juntamente com a análise proposta por Almeida e Santos (2017) e a leitura do "self" do Gestalt-terapia (1997) caminham para a compreensão da dimensão virtual como intrínseca a experiência humana, sendo, portanto, exaltada pelo ciberespaço. No entanto, com advento desta nova cultura também surgiram mudanças na maneira como nos relacionamos com o outro. Como apontam Belmino (2010), Almeida e Santos (2017), Basso (2016), e Santaella (2003) o campo das relações humanas nunca mais foi o mesmo após a explosão das tecnologias de comunicação e da cibercultura. O que apesar das diferentes perspectivas epistemológicas, ainda torna qualquer previsão em torno do impacto de seus fenômenos um campo de imprevisibilidade/possibilidade.

Dentro de uma perspectiva gestáltica, como aponta Basso (2016), a internet alterou a maneira como contatamos, uma vez que a experiência no "mundo virtual" se desintegra de espessura espacial e temporal, perdendo inclusive as dimensões e características que Merleau-Ponty (2014) descrevera. Nesse sentido, olhar para experiência nesta nova interface do campo organismo/ambiente implica também olhar para uma nova configuração cultural e política (função personalidade) do "self". A manifestação dessas mudanças, como aponta a pesquisa de Belmino (2010), evidenciam que as relações via ciberespaço não são de todo algo novo, uma vez que reproduzem características de outros tempos como a idealização do outro e a necessidade do reconhecimento social para oficializar um relacionamento.

Frente a este contraste, Basso (2016) traz que a internet nos colocou "[...] em atualização, reconfiguração de nossas fronteiras no campo organismo/ambiente" (p.294), sendo assim também se evidencia como um lugar de contato. Mas como trazem Perls, Hefferline e Goodman (1997) mesmo havendo contato, nem sempre há "awareness", portanto, a cibercultura pode reservar em sua condição certas limitações. Como apontam, em um aspecto incomum, Almeida e Santos (2017), Capanema e Avanza (2013) e Lima (2009) o ambiente virtual converge para uma exacerbação de representações, onde seus atores ao se enxergarem em um amplo campo de possibilidades trafegam em instabilidade e fluidez.

Nesse contexto, onde o corpo parece ficar como fundo, seja voluntaria ou involuntariamente, parece haver uma perda de "awareness" sensório-motora e consequentemente de espontaneidade, como aponta Basso (2016), há um empobrecimento da vivência corporal de um lado, mas por outro "a internet não deixa de ser um dado material e virtual pertencente à configuração de um campo, de um ajustamento criativo" (p.295). Logo, a Gestalt-terapia permanece atual enquanto instrumento teórico e metodológico para se olhar para este contexto, cabendo em consonância com a sua proposta política buscar inserir-se nesta nova "Gestalt" contemporânea.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O virtual enquanto um aspecto presente na experiência humana parece assumir no ciberespaço o lugar de figura frente a um fundo de imprevisibilidade. Pela primeira vez em nossa história tornamos possível o contato simultâneo com o outro sem necessidade nenhuma, mesmo que minimamente de presença do corpo na relação. No entanto, como trazem Almeida e Santos (2017), Santaella (2003) e Lima (2009) isto tem evidenciado uma complexidade de fenômenos que vão desde o rompimento da linearidade histórica até a contestação da realidade em contraposição com o virtual, causando uma exacerbação de relações instáveis e fluídas.

Nesse sentido, podemos afirmar que no ciberespaço o caráter virtual do "self" e da experiência se evidencia na explosão desenfreada de possibilidades, tornando a função de ego imersa em um circuito inassimilável e agigantado de informações. As implicações desta nova interface tendem a desintegração da corporeidade em prol de um status quo virtualizado, o que infere diretamente na dimensão cultural política de seus participantes. Nessa perspectiva, pode-se pensar em uma nova configuração da função personalidade, já que no ciberespaço há pouco esforço corporal e consequentemente menos investimento energético no contato. O que não necessariamente significa afirmar que o ciberespaço vincula-se a experiência como um ambiente de pouca produção criativa ou de confluência, uma vez que encontramos a possibilidade de dividir atualidade simultaneamente com milhões de pessoas.

Nesta perspectiva, podemos adentrar duas reflexões: 1) o contato, por ser um processo eminentemente temporal, possui um caráter virtual já que em seu curso coabitam as vivências retidas e projetadas (passado-futuro), o que em tese não colocaria a virtualidade presente no ciberespaço como um campo completamente novo da experiência humana; 2) pode se pensar que o fluxo insondável de trocas de informações e a pouca necessidade de investimento energético ou implicação frente as próprias ações, acaba tornando o ciberespaço um possível campo de cristalização. Destarte, como alertam Perls, Hefferline e Goodman (1997) onde há pouco investimento energético há pouca reflexão, pouco ajustamento motor e pouca deliberação, consequentemente pouco "awareness".

Afirmar isto, no entanto, seria recorrer a concepções fechadas e contrárias a proposta da leitura da Gestalt-terapia, uma vez que mesmo em uma dinâmica exacerbadamente fluída, cada experiência possui um caráter e potencial criativo único. Então, o que acaba sendo a nova característica da experiência no ciberespaço é a sua velocidade, que atinge diretamente a dinâmica do "self", já que tem se evidenciado como campo onde o autoconceito e as representações parecem operar sob o comando de um status quo virtualizado e excessivamente volátil.

O que incide na Gestalt-terapia enquanto uma proposta ética-política-antropológica de se olhar para experiência, é a necessidade de tornar mais presentes discussões em torno dessa nova interface virtualizada. Permeando dessa maneira, novas formas de se pensar a clínica, integrando novos fenômenos aos desdobramentos tanto da teoria quanto da prática.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALVIM, M. B; ARAÚJO, D. V; BAPTISTA, C. S; BARROSO, F. T. W; QUEIROZ, K. M. F; SILVA, T. C. D. Corpo, fala e expressão: Diálogos entre a Gestalt-Terapia e a filosofia de Merleau-Ponty. IGT na Rede, Rio de Janeiro, v. 9, n. 17, p. 171 -186, 2012.

ALMEIDA, T. A. G; SANTOS, G. S. Realidade Versus Virtualidade na cibercultura: leituras e cenários. Aurora, São Paulo, v. 10, n. 29, p. 52-70, 2017.

BASSO, F. S. Reflexões sobre a internet à luz da Gestalt-terapia. IGT na Rede, Rio de Janeiro, v. 13, n. 25, p. 273-297, 2016.

BELMINO, M. C. O amor na "rede": um estudo fenomenológico dos namoros virtuais. 137 f. Dissertação (mestrado em psicologia) - Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade de Fortaleza, Ceará, 2010.

______. Fritz Perls e Paul Goodman: duas faces da Gestalt-terapia. Fortaleza: Premius, 2014.

______. A ontologia gestáltica de Paul Goodman e seus desdobramentos clínicos, políticos e educacionais: Gestalt-terapia, anarquia e desescolarização. Rio de Janeiro: Via Verita, 2017.

CAPANEMA, L; AVANZA, M. F. Subjetividades contemporâneas: o "self" no ciberespaço. Revista Estudos de comunicação, Curitiba, v. 14, n. 34, p. 197-206, 2013.

CASTELLS, M. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.

CHOLFE, J.F. As Implicações Filosóficas da Teoria da Gestalt. 193f. Dissertação (mestrado em filosofia) - Programa de pós-graduação em filosofia, Universidade Federal de São Carlos, São Paulo, 2009.

ENGELMANN, A. A psicologia da Gestalt e a ciência empírica contemporânea. Psicologia teoria e pesquisa, Brasília, v. 18, n.1, p. 1-16, 2002.

Gil, A.C. Métodos e técnicas de pesquisa social. 5. ed. São Paulo: Atlas, 1999.

MERLEAU-PONTY, M.O visível e o invisível. 4 ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 2014.

MÜLLER-GRANZOTTO, M. J; MÜLLER-GRANZOTTO, R. L. "Self" e temporalidade. IGT na Rede, Rio de Janeiro, v. 1, n.1, p. 1-15, 2004.

______. Clínicas gestálticas: O sentido ético, político e antropológico da teoria o "self". São Paulo: Summus, 2012.

______. Fenomenologia e Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 2007.

LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.

LIMA, P. A. Criatividade na Gestalt-terapia. Estudos e pesquisas em psicologia. Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 87-97, 2009a.

LIMA, A. S. Da cultura de mídia à cibercultura: as representações do eu nas tramas do ciberespaço. Núcleo de Pesquisa em Comunicação e Cidadania - PUC/GO. Goiânia, 2009 b.

PERLS, F.; HEFFERLINE, R.; GOODMAN, P. Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 1997.

PERLS, F. Ego, fome e agressão: uma revisão da teoria e do método de Freud. São Paulo: Summus, 2002.

SANTAELLA, L. Culturas e artes do pós-humano: da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo: Paulos, 2003.

SILVA, L. O. A Internet: a geração de um novo espaço antropológico. In: Lemos, A; PALACIOS, M. (ORG). Janelas do Ciberespaço: comunicação e Cibercultura. 2 ed. Porto Alegre: Sulina, 2004

THOMPSON, J. B. A Mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1988.

 

NOTAS:

* Rodrigo Pinto Brasil – Psicólogo formado pelo Centro Universitário Doutor Leão Sampaio.
** Marcus Cézar de Borba Belmino – Psicólogo (CRP 11/05136) e Gestalt terapeuta (adolescentes, adultos e casais). Mestre em psicologia (Unifor) e Doutor em Filosofia (UFSC). Autor dos livros "A Ontologia gestáltica de Paul Goodman e seus desdobramentos clínicos, políticos e educacionais: Gestalt Terapia, anarquia e desescolarização" (ed. VIA VÉRITA, 2017) e "Fritz Perls e Paul Goodman duas faces da Gestalt Terapia" – 1a ed. Editora Premius (2014) e 2a ed. VIA VÉRITA, (2018) – E organizador do livro "Gestalt Terapia e atenção psicossocial" (ed. PREMIUS, 2015). Sócio-Diretor da Diálogos - Centro de desenvolvimento humano e psicologia clínica. Professor do curso de psicologia e do Mestrado em Ensino em Saúde da UNILEÃO. Professor convidados de várias formações e especializações em Gestalt Terapia no Brasil.
1 Vale ressaltar que o presente trabalho não tem como objetivo elencar uma discussão em torno da autoria principal da teoria do self, sendo a discussão teórica delimitada apenas a descrição das contribuições de cada autor com base nas referências utilizadas e no Gestalt-terapia (1997). Logo, considera-se a perspectiva em que tanto Fritz Perls através de sua proposta de uma releitura organísmica e crítica da psicanálise, quanto o Paul Goodman com sua releitura fenomenológica, contribuíram mutualmente para o desenvolvimento da teoria.

 

Endereço para correspondência
Rodrigo Pinto Brasil
Endereço eletrônico:rodrigop.brasil26@gmail.com
Marcus Cézar de Borba Belmino
Endereço eletrônico:marcuscezar@gmail.com

 

Recebido em: 12/06/2019
Aprovado em: 10/07/2020