ARTIGO

A Criança com Transtorno do Espectro Autista na Perspectiva da Gestalt-terapia: uma revisão integrativa

The Child with Autism Spectrum Disorder in the Gestalt-therapy Perspective: a integrative review

 

Maria Andréia da Nóbrega Marques*; Fernanda Pessoas Cardoso**; Sandra Almeida Costa Gomes***; Bruna Bezerra Marques****

Centro Universitário Santo Agostinho; Centro Universitário UniFACID/Wyden - Campus Horto, Teresina – PI.

Endereço para correspondência

 


RESUMO

Objetivo: Descrever o conhecimento produzido na literatura sobre a criança com TEA na perspectiva da Gestalt-terapia. Metodologia: Revisão integrativa, realizada de março a junho de 2017, nas bases de dados PePSIC, SciELO e LILACS; em livros sobre Gestalt-terapia publicados no Brasil e na revista "IGT na Rede", com os descritores: Gestalt e criança; autismo e Gestalt; e psicoterapia infantil. Resultados e Discussão: Características da relação terapêutica com a criança com TEA: suporte seguro; entrega do psicoterapeuta; ajuda aos pais e cuidadores; e congruência do terapeuta. Intervenções psicoterápicas: atividadespsicoeducacionais e voltadas ao desenvolvimento da linguagem; orientação familiar; trabalho em equipe multidisciplinar; incentivo de apoio psicológico para família; avaliação psicológica; atividades sensórias. No brincar, os comportamentos são repetitivos e estereotipados, focados em apenas um estímulo. Considerações Finais: A abordagem gestáltica instrumentaliza o profissional a compreender, interagir e ajudar a criança, pois, mesmo com a suspeita ou o diagnóstico de TEA, cada criança é singular.

Palavras-chave: Transtorno do Espectro Autista; Gestalt-terapia; Relação terapêutica.


ABSTRACT

Objective: To describe the produced knowledge in the literature about children with ASD in the Gestalt-therapy Perspective. Methodology: Integrative review, performed from march to june 2017, in PePSIC, SciELO) and LILACS; in books about Gestalt-theory published in Brazil and in the "IGT na Rede", with descriptors: Gestat and child; autism and Gestalt; and infantil psychotherapy. Results and Discussion: Characteristics of the therapeutic relationship with the child with TEA: secure support; surrend of the psychotherapist; the aid to the parents and caretakers who will understand the child; and the congruence of the therapist. Psychotherapies interventions: psychoeducational activities; family orientation; activities aiming to the language development; multidisciplinary teamwork; encouragement of psychological support for the family; psychological evaluation; sensory activities. About way of play, it were identified repetitive and stereotyped behaviors. Final Conclusions: The gestaltic approach instrumentalize to comprehend, to interact and to aid the child. Even with the suspicion or diagnosis of ASD, each child is singular.

Keywords: Autism Spectrum Disorder. Gestalt-therapy. Therapeutic relationship.

 

1 - CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Para a Gestalt-terapia, cada cliente é único e faz parte de um contexto, de um campo também único. Essa abordagem formula uma relação campo-organismo-meio que constitui uma totalidade singular, indissociável e em constante movimento. Conforme assevera Ribeiro (2007, p. 25), a Gestalt-terapia "[...] pode ser definida como uma terapia do contato em ação, no sentido de que terapeuta e cliente estão atentos aos modos pelos quais o cliente procura satisfazer suas necessidades, em dado campo".

A experiência da terapia ocorre no campo-organismo-meio, do qual cliente e gestalt-terapeuta fazem parte. O cliente é uma totalidade composta de partes que se inter-relacionam dinamicamente entre si e com o meio em que está o terapeuta. Desse modo, a relação terapêutica é considerada como possibilidade de encontro e caminho de crescimento, na busca de autoeregulação, de equilíbrio dinâmico (CARDELLA, 2002).

Em se tratando da Gestalt-terapia com criança, essa abordagem implica na consideração da sua singularidade existencial, como parte integrante da relação campo-organismo-meio, relação também singular. Nesse contexto clínico, há a procura por atendimento para criança que tem a suspeita ou o diagnóstico do Transtorno do Espectro Autista (TEA). Tornam-se, pois, relevantes os conhecimentos sobre peculiaridades da criança com TEA na perspectiva da Gestalt-terapia e como se dá a relação terapêutica com essa criança.

De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) (APA, 2014), os critérios diagnósticos do TEA são: A. Déficits persistentes na comunicação social e na interação social em múltiplos contextos; B. Padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades; C. Os sintomas devem estar presentes precocemente no período do desenvolvimento; D. Os sintomas causam prejuízo clinicamente significativo no funcionamento social, profissional ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo no presente; E. Essas perturbações não são mais bem explicadas por deficiência intelectual ou por atraso global do desenvolvimento.

Na perspectiva gestáltica, o TEA pode ser considerado um problema ao nível da fronteira de contato e do self, no qual a criança está aprisionada na fronteira. Portanto, é um "enrijecimento" dos limites das fronteiras de contato que bloqueia a comunicação do organismo com o seu ambiente, deixando a criança isolada, no sentido de que sua capacidade para estabelecer relacionamentos é largamente diminuída (AMESCUA, 1999).

Considerando o problema da criança com TEA de estabelecer relacionamentos, torna-se relevante o conhecimento sobre essa criança no que se refere à psicoterapia na abordagem gestáltica. Nessa direção, o presente estudo objetivou descrever o conhecimento produzido na literatura sobre a criança com TEA na perspectiva da Gestalt-terapia. 

 

2 - METODOLOGIA

Trata-se de uma revisão integrativa de literatura sobre a criança com Transtorno do Espectro Autista (TEA) na perspectiva da Gestalt-terapia, realizada de março até junho de 2017. Esse tipo de revisão tem a finalidade de reunir e sintetizar resultados de estudos sobre um determinado tema, de maneira sistemática e ordenada, contribuindo para o aprofundamento do conhecimento na temática de interesse (MENDES; SILVEIRA; GALVAO, 2008). É uma revisão planejada que utiliza métodos explícitos e sistemáticos para analisar tendências, sintetizar resultados, identificar, selecionar e avaliar estudos de diferentes delineamentos (primários e teóricos).

Nesse sentido, na primeira etapa do estudo foram estabelecidas as seguintes questões norteadoras no que se refere à criança com TEA na perspectiva da Gestalt-terapia: Quais as características da relação terapêutica com a criança com TEA? Quais as intervenções psicoterápicas utilizadas com a criança com TEA? Qual a forma do brincar da criança com TEA?

Em seguida, na segunda etapa da revisão, procedeu-se a busca nas bases de dados: Periódicos Eletrônicos de Psicologia (PePSIC), "Scientific Electronic Library Online" (SciELO) e Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS). Também foram realizadas buscas em livros teóricos sobre Gestalt-terapia publicados no Brasil e nas publicações eletrônicas da revista brasileira "IGT na Rede". Os descritores estabelecidos para busca dos estudos foram: Gestalt e criança; autismo e Gestalt; e psicoterapia infantil. Como critérios de inclusão, observaram-se: artigos completos disponíveis nas bases de dados, em revista eletrônica ou em livro impresso no idioma português e que abordassem a criança com TEA na perspectiva da Gestalt-terapia, independentemente do seu período de publicação. Constituíram critérios de exclusão: artigos em outros idiomas, pois o objetivo era priorizar a literatura publicada em português sobre o tema; teses e dissertações; e artigos em duplicidade.

Na terceira etapa, selecionaram-se as informações a serem extraídas das publicações: título, autoria e ano de publicação, quando se tratasse de artigo publicado em revista eletrônica, livro impresso ou em base de dados. A seleção dos textos ocorreu a partir da leitura seletiva dos resumos e da leitura integral dos artigos, quando as informações contidas no resumo não eram suficientes. Na quarta, na quinta e na sexta etapas, as publicações foram analisadas, interpretadas e sintetizadas para realizar a apresentação desta revisão. A apresentação e a discussão dos resultados obtidos foram feitas de forma descritiva, possibilitando a avaliação da aplicabilidade da revisão integrativa elaborada, de forma a atingir o objetivo deste estudo.

 

3 - RESULTADOS

Obtiveram-se 6 publicações na plataforma PePSIC, a partir do descritor "Gestalt e criança"; e 55 publicações a partir do descritor psicoterapia "infantil". Quanto à busca realizada na plataforma SciELO, a partir do descritor "Gestalt e criança", seis publicações foram identificadas; e 24 publicações foram identificadas a partir do descritor "psicoterapia infantil". Em relação à plataforma LiLACS, foram identificadas duas publicações, a partir da busca com o descritor "Gestalt e criança"; e 19 publicações com o descritor "psicoterapia infantil". A partir do descritor "autismo e Gestalt"; na busca realizada nas três plataformas utilizadas para a pesquisa (PePSIC, SciELO e LiLACS) não foram encontras publicações.

Realizou-se leitura seletiva dos resumos das 112 publicações selecionadas para verificar sua pertinência com a temática: criança com TEA na perspectiva da Gestalt-terapia. Quando as informações contidas no resumo não eram suficientes, realizou-se leitura integral da publicação. Dessa leitura, após análises, nenhuma publicação atendeu integralmente ao critério de inclusão "abordar a criança com TEA na perspectiva da Gestalt-terapia" (Figura 1).

Figura 1 - Fluxograma representativo das publicações identificadas nas plataformas pesquisadas

Fonte: Dados da pesquisa.

Em busca realizada na revista "IGT na Rede", utilizando o descritor "Gestalt e criança", foram identificados 20 artigos; com o descritor "autismo e Gestalt", quatro; e com o descritor "psicoterapia infantil", 48. Realizando a análise do resumo de cada artigo e utilizando os critérios de inclusão, foram identificados quatro artigos que permaneceram na revisão.

Quadro 1 – Artigos publicados na revista "IGT na Rede" sobre criança com TEA na perspectiva da Gestalt-terapia

Título do artigo

Autoria

Ano

Clínica dos ajustamentos psicóticos: uma proposta a partir da Gestalt-terapia.

Marcos José Müller-Granzotto e Rosane Lorena Müller-Granzotto

2008

O psicoterapeuta invisível: reflexões sobre a prática Gestáltica com ajustamentos autistas.

Marina Nogueira de Barros

2014

Um olhar Gestáltico para as relações em famílias de crianças que têm autismo.

Márcio Antônio Giansante Martins

2015

Avaliação psicológica no atendimento infantil: Uma perspectiva gestáltica.

Tatiana Queiroz de Almeida Santos

2015

Fonte: Dados da pesquisa.

No Quadro 1 estão apresentadas informações (o título, a autoria e o ano de publicação) dos artigos publicados na revista eletrônica "IGT na Rede" e que permaneceram nessa revisão integrativa da literatura.

Quanto aos livros impressos publicados em português, optou-se por realizar a leitura seletiva das obras mais referenciadas na literatura sobre Gestalt-terapia com crianças, na busca de identificar se abordavam a criança com TEA. Os livros que abordam Gestalt-terapia com crianças e que foram analisados estão apresentados no Quadro 2.

Quadro 2 – Livros analisados que abordam o tema criança na Gestalt-terapia

Título do livro

Autoria

Ano

Descobrindo crianças: a abordagem gestáltica com crianças e adolescentes.

Violet Oaklander

1980

Nutrição psicológica – Desenvolvimento emocional infantil.

Adelma Pimentel

2005

A clínica gestáltica com crianças: caminhos de crescimento.

Sheila Maria da Rocha Antony

2010

Gestalt-terapia: cuidando de crianças – teoria e arte.

Sheila Maria da Rocha Antony

2012

A clínica gestáltica com adolescentes: caminhos clínicos e institucionais.

Rosana Zanella

2013

Gestalt-terapia com crianças – teoria e práticas.

Luciana Aguiar

2015

Fonte: Dados da pesquisa.

Após a análise de seis livros, foi identificado que somente um aborda a criança com TEA na perspectiva da Gestalt-terapia e permaneceu na revisão, que é o livro "Descobrindo crianças: a abordagem gestáltica com crianças e adolescentes", de Violet Oaklander, publicado em 1980.

 

4 - DISCUSSÃO

Foram selecionadas cinco publicações que atenderam aos critérios e permaneceram na revisão, quatro artigos publicados na revista "IGT na Rede" e um livro impresso. Com a análise na íntegra desses artigos e desse único livro, que permaneceram na revisão, foi possível averiguar respostas às três questões norteadoras do estudo: Quais as características da relação terapêutica com a criança com Transtorno do Espectro Autista (TEA)? Quais as intervenções psicoterápicas utilizadas com a criança com TEA? Qual a forma do brincar da criança com TEA? As características de cada uma dessas obras e o que foi identificado, como resposta às questões averiguadas, estão descritos a seguir. 

A revista virtual "IGT na Rede" trata de temas ligados ao desenvolvimento humano, em especial no que tange ao referencial gestáltico; aborda as várias expressões filosóficas, teóricas e práticas da Gestalt-Terapia (https://www.igt.psc.br/ojs/policies.php#focus). O Qualis Periódicos é uma classificação instituída pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) para avaliar os periódicos científicos nas diferentes áreas de pesquisa no Brasil, com adoção de vários estratos de classificação. Nessa classificação, a revista "IGT na Rede" é classificada na área da Psicologia e com Qualis B4, considerado um estrato intermediário1.

O artigo "Clínica dos ajustamentos psicóticos: uma proposta a partir da Gestalt terapia", de Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2008), tem como objetivo apresentar uma experiência clínica de acompanhamento terapêutico de pessoas que se ajustam psicoticamente. É um trabalho que relata uma intervenção gestáltica, considerada pedagógica, que visou assegurar, às pessoas terapeuticamente acompanhadas, suporte para a constituição de laços sociais necessários às elaborações alucinatórias e delirantes, na forma das quais essas pessoas tentavam preencher e articular cada qual seu próprio fundo de excitamentos.

Em relação às intervenções terapêuticas com crianças com TEA, as propostas foram: colaborar para a ampliação do corpo daquele que se ajusta de maneira autista; e contribuir para a ampliação da forma mais elementar da função de ego na criança com autismo. Segundo os autores, a partir dessas intervenções, a criança tem a chance de responder, não a partir de um fundo de excitamentos intercorporais, mas com base que foi fabricado, produzido pedagogicamente como linguagem. Os autores ressaltam que, nesses ajustamentos psicóticos, dificilmente essas intervenções conseguem agregar algum valor afetivo, mas existe a possibilidade de criar um laço social.

Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2008) ressaltam que a função de ego (aprender, preencher e articular) caracteriza um tipo de ajustamento, o qual sempre depende do laço social para poder se efetivar. A função do terapeuta é assegurar direito de cidadania aos ajustamentos psicóticos produzidos pelas crianças – estejam estas ou não em surto. Para tanto, o terapeuta deve buscar promover o deslocamento seguro dos ajustamentos com menor poder de contratualidade para ajustamentos com maior aceitação social, o que, de forma alguma, se confunde com a eliminação dos ajustamentos psicóticos em proveito de um padrão de comportamento adaptado.

A obra "O psicoterapeuta invisível: reflexões sobre a prática Gestáltica com ajustamentos autistas", de Barros (2014), tem por objetivo revisar conhecimentos sobre os ajustamentos de defesa contra a demanda ou isolamentos (ajustamentos autistas), compartilhar o conhecimento que foi pesquisado bibliograficamente, e a vivência do psicólogo e as implicações que esse tipo de prática causa a este profissional. Um dos pontos principais abordados neste trabalho é de que os ajustamentos de defesa contra a demanda ou os isolamentos são muito mais frequentes em pessoas diagnosticadas com TEA. Esse posicionamento é ratificado pela autora:

O campo social em que a pessoa está inserida está diretamente ligado ao fato da mesma precisar fazer estes tipos de ajustamentos. O que talvez explique por que, em determinados momentos, o embotamento afetivo, a agressividade inespecífica (sem motivação aparente), a forma pueril (hebefrênica) de lidar com afetos e pensamentos, ou o comportamento autista, sem qualquer tipo de interação social, tornem-se mais frequentes do que em outros momentos. (BARROS, 2014, p. 219).

Segundo ela, a intervenção nos ajustamentos de isolamento não é somente favorecer o processo de socialização, mas também reconhecer os sintomas e as formas de defesa e, a partir disto, identificar as possibilidades de aprendizado que possibilitam o desenvolvimento da personalidade. Explica que, para isso, é necessário observar o meio social em que o cliente está inserido, ou seja, onde estão as principais demandas de afeto para aquele cliente (rotina familiar, no trabalho, na escola e na própria relação terapêutica) e tentar neutralizá-las ao máximo, para que, assim, ele não se isole. Relata intervenções psicoeducacionais, orientação familiar, desenvolvimento da linguagem e/ou comunicação. Refere que o ideal é que exista uma equipe multidisciplinar que avalie e proponha um programa de intervenção. Dentre os profissionais que podem ser necessários, cita: psiquiatra, psicólogo, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional, fisioterapeuta e educador físico.

A relação terapêutica é caracterizada por Barros (2014) como de espera pelo tempo do cliente, acompanhá-lo, acolhê-lo, e vivenciar o encontro terapêutico das mais diversas maneiras possíveis. A autora diz que entender e interagir com uma pessoa com TEA não é um "bicho de sete cabeças", mas, sim, um exercício de enxergar novas perspectivas de interação que são totalmente diferentes das costumeiras. Fala que é preciso entregar-se à relação, sentir o que vem dela e, assim, atuar, seguir em frente.

A autora conclui ressaltando que tornar-se invisível ao outro foi a maneira mais genuína encontrada de estar mais próxima e de, assim, tornar-se presente um pouco a cada dia: ganhar um abraço, ter a resposta a uma pergunta e poder experimentar as formas mais imagináveis de interação. Para tanto, para trabalhar com esses ajustamentos, o psicoterapeuta precisa estar preparado teórico e pessoalmente para conseguir identificar as demandas, tentando, assim, neutralizá-las na medida do possível e buscando proporcionar aos indivíduos que fazem ajustamentos de isolamento um mundo mais tranquilo de ser vivido e menos demandante daquilo que não tem resposta.

O artigo intitulado "Um olhar gestáltico para as relações em famílias de crianças que têm autismo", de Martins (2015), tem como objetivos: apresentar uma visão sobre as relações familiares nas quais há uma criança com quadro de TEA; refletir sobre a importância da psicoterapia para os pais (ou responsáveis); e compartilhar com outros psicólogos, principalmente gestalt-terapeutas, aspectos específicos sobre a terapia para essas crianças.

Conforme esse autor, uma das principais intervenções, no que se refere à criança com TEA na perspectiva da Gestalt-terapia, é a inclusão da família no processo psicoterápico da criança e o incentivo para que essa família também obtenha apoio psicológico, pois isso irá ajudá-la a lidar da melhor forma com o filho nas situações que se apresentarão, enxergando as limitações e as potencialidades que possui. Justifica que isso é necessário, pois é por meio da família que o sujeito amplia suas relações com mundo.

Sobre o brincar da criança com TEA, é explicado, primeiramente, que, em geral, essa criança não consegue filtrar os estímulos do ambiente externo, o que influi no seu modo de brincar.

O cérebro de quem tem autismo recebe uma "enxurrada de informações", ou seja, não consegue separar o que é mais importante para cada momento – todos os estímulos se tornam primários ao mesmo tempo. Como resultado, as crianças sentem que não têm controle e nem previsibilidade sobre o ambiente. O sistema nervoso delas precisa criar alguma maneira de devolver à criança o controle e a previsibilidade. A maneira que o cérebro encontra de fazer isso é criando os comportamentos repetitivos e estereotipados - estes são os chamados comportamentos "típicos" dos autistas, como balançar objetos, alinhar carrinhos, balançar o próprio corpo etc. Fazendo a mesma coisa inúmeras vezes, a criança consegue ficar focada em apenas um estímulo que não irá mudar, conseguindo uma sensação de alívio sensorial, assim como controle e previsibilidade, já que irá fazer a mesma coisa com o mesmo objeto muitas vezes. Desta forma, ela poderá se sentir segura e protegida. (AYRES, 2005 apud MARTINS, 2015, p. 346).

Sintetizando sobre a forma de brincar, ao invés de usar um carrinho de forma convencional, a criança com TEA poderá ficar horas e horas apenas mexendo nas suas rodinhas ou alinhando diversos carrinhos. Torna-se uma brincadeira repetitiva, demonstrando ausência de simbolização e de imaginação. Em muitos casos, a criança não permite a inclusão de outras pessoas na situação, enquanto permanece nesses comportamentos, diminuindo muito a possibilidade de interação. Em uma perspectiva gestáltica, os comportamentos repetitivos e estereotipados podem ser vistos como um ajustamento criativo – um ajustamento criativo disfuncional, mas não deixa de ser um ajustamento criativo (MARTINS, 2015).

O autor enfatiza a importância da psicoterapia também para os pais/cuidadores, com o objetivo de ajudá-los a perceber/entender com clareza suas dificuldades e facilidades, para, enfim, ter melhor relação com o filho que tem TEA. Além disso, os pais vão se conhecer melhor, encontrando, dentro de si mesmos, potências e capacidades que lhes ajudarão a lidar com a criança e com as adversidades.

O estudo de Santos (2015), com o título "Avaliação psicológica no atendimento infantil: uma perspectiva gestáltica", tem por objetivo refletir sobre como esta prática pode ser realizada de forma coerente com os pressupostos epistemológicos da Gestalt-terapia. O artigo apresenta reflexões que surgem a partir da experiência clínica com crianças e com a construção do Curso de Avaliação Psicológica Infantil, realizado no Instituto de Gestalt-Terapia e Atendimento Familiar (IGT). A experiência clínica relatada envolve uma criança com suspeita de TEA devido a algumas características, como atrasos no desenvolvimento, dificuldade em se relacionar com pessoas, fazer movimentos repetitivos etc. Antes de descrever sua experiência, a autora aborda, no artigo, vários aspectos da avaliação psicológica, sua diferença em relação ao psicodiagnóstico e sua importância dentro do processo psicoterápico, além de enfatizar o olhar da Gestalt-terapia sobre esse processo.

Em relação ao caso clínico, a autora focaliza o brincar da criança, descrevendo que, inicialmente, não fixava sua atenção em nada em especial, não incluía a terapeuta em suas brincadeiras e ficava sempre de costas para a profissional. Na sessão com o uso do teste da casa, árvore e pessoa (HTP), a criança apenas fez rabiscos, com traços fracos que ajudou a perceber que ela não conseguia simbolizar, tinha dificuldades de compreender o que era uma casa, uma árvore ou uma pessoa. Só conseguia descrever o que via, sem conseguir acrescentar elementos novos. O teste serviu para perceber que a criança conseguia manter a atenção em uma atividade, desde que tivesse interesse, e foi por meio do teste que, pela primeira vez, ela interagiu com a terapeuta.

Segundo a autora, após cinco sessões de atendimento, o contato da criança com a terapeuta havia melhorado muito, até mesmo passando a incluí-la nas brincadeiras. À medida que a terapeuta foi estabelecendo uma relação com a criança, compreendeu melhor a forma dela se comunicar. Concluiu afirmando que a avaliação psicológica é um processo complexo que envolve variadas técnicas, e não somente testagem; que os testes, embora carregados de pré-conceitos, podem favorecer nosso cliente e até mesmo contribuir para o diálogo com os pais, a escola e com outros profissionais, desde que sejam utilizados de maneira coerente e que esteja como qualquer outra técnica, a serviço da relação com nossos clientes.

O único livro que permaneceu na revisão, "Descobrindo crianças: abordagem gestáltica com crianças e adolescentes", de Oaklander (1980), foi escrito originalmente em 1978. No ano de 1980, foi realizada a tradução do livro, uma edição brasileira, por George Schlesinger. Segundo a autora, a obra é direcionada a todos os que trabalham e vivem com crianças e adolescentes e objetiva compartilhar "[...] formas efetivas de ajudar as crianças a atravessar com mais facilidade algumas passagens difíceis de suas vidas" (p. 15).

A autora demonstra, na obra, algumas articulações entre suas propostas técnicas e os objetivos básicos da psicoterapia com crianças, tal como ajudar a criança a reconhecer suas necessidades, desenvolver autossuporte, identificar introjeções e expressar seus sentimentos, como tristeza e raiva, por meio da projeção. Destaca como foi construindo, ao longo das suas experiências com crianças no consultório, vários experimentos, utilizando mesa de areia, histórias, sonhos, desenhos, dentre outros recursos.

Oaklander (1980) enfatiza a importância de demostrar sentimentos verdadeiros para a criança, ou seja, ser congruente na relação terapêutica e aceitar os sentimentos da criança. Explica que ao aceitar esses sentimentos, ela pode voltar a familiarizar-se com seus sentidos e com seu corpo e com tudo que pode fazer com eles, pode aprender acerca de si mesma e da sua individualidade, em vez de aprender por meio de julgamentos e opiniões dos outros. Nessa direção, poderá sentir bem-estar – ser quem ela é.

Na relação terapêutica com a criança com TEA, a autora explica ser importante ficar em sintonia com aquilo que ela queira fazer, a cada momento, em vez de insistir para que faça algo planejado. Nessa perspectiva, o terapeuta deve colocar-se disponível para experimentar "ficar com a criança" e, assim, compreendê-la, pois, por meio desse método, é possível obter pistas da criança, e facilitar o novo para a consciência de si mesma. Deve-se estar em alerta para seus interesses, oferecendo muitas atividades sensórias (OAKLANDER, 1980).

Segundo a autora gestalt-terapeuta, observando a linguagem corporal e as expressões faciais, pode-se compreender o que a criança com TEA está sentindo e expressar verbalmente a ela sua compreensão em relação a esses sentimentos. Assim, a linguagem deve ser integrada a todas as atividades, de modo que a criança possa ver a relação que existe entre a comunicação verbal e tudo aquilo que faz. Por meio da linguagem, ela aprenderá que pode ter algum controle sobre si, tornar suas necessidades conhecidas claramente e assim por diante. Portanto, para a autora, o aspecto mais importante do processo psicoterápico é a criança familiarizar-se consigo mesma, pois quanto mais as crianças entram em contato com seus sentidos, seus corpos, mais ocorre a autodescoberta, mais calmas essas crianças ficam, mais os movimentos inquietos desaparecem e mais a hiperatividade reduz (OAKLANDER, 1980).

Esta revisão integrativa de literatura buscava também respostas às três questões norteadoras acerca da criança com TEA na perspectiva da Gestalt-terapia. Quanto à primeira questão, sobre quais são as características da relação terapêutica com a criança com TEA, foi identificada a possibilidade da criação de uma relação caracterizada por suporte seguro para a criança, possibilitando a esta a constituição de laços sociais (MÜLLER-GRANZOTTO; MÜLLER-GRANZOTTO, 2008).

Outra característica verificada na relação terapêutica com a criança com TEA foi a entrega do psicoterapeuta a essa relação, com espera pelo tempo da criança, acompanhando-a, acolhendo-a e vivenciando o encontro terapêutico das mais diversas maneiras possíveis. Nessa perspectiva, podem existir intervenções psicoeducacionais, orientação familiar, desenvolvimento da linguagem e/ou comunicação, e a proposta pode ser de intervenção por psicoterapeuta em equipe multidisciplinar com psiquiatra, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional, fisioterapeuta e educador físico (BARROS, 2014).

A ajuda aos pais e cuidadores a fim de que percebam/entendam com clareza como a criança com TEA precisa se ajustar diante dos estímulos, bem como que conheçam suas dificuldades e facilidades para ter uma melhor relação com o filho, também é uma característica da relação terapêutica com a criança TEA e sua família. Nessa direção, indicação da psicoterapia aos pais/cuidadores faz parte desse processo terapêutico (MARTINS, 2015).

Outra característica identificada na relação terapêutica com criança com TEA foi a utilização da avaliação psicológica como promotora de conhecimento da criança, de sua forma de comunicação, e da construção da relação entre terapeuta e criança. Também a avaliação foi enfatizada como facilitadora de comunicação com outras pessoas que convivem com a criança, como familiares, outros profissionais, etc. (MARTINS, 2015).

A congruência foi outra característica enfatizada como importante na relação terapêutica com a criança com TEA, demostrando sentimentos para a criança e aceitando os que ela expressa. Ficar em sintonia com aquilo que ela queira fazer, a cada momento, ou seja, o terapeuta colocar-se disponível para identificar e experimentar os interesses da criança (OAKLANDER, 1980).

A segunda questão norteadora desta revisão integrativa buscava identificar quais as intervenções psicoterápicas utilizadas com a criança com TEA na perspectiva gestáltica. Foram citadas como possibilidades de intervenções psicoterápicas, nas publicações analisadas, o trabalho voltado para colaborar com a ampliação do corpo (MÜLLER-GRANZOTTO; MÜLLER-GRANZOTTO, 2008); intervenção nos ajustamentos de isolamento tentando neutralizá-los na medida do possível, com atividades psicoeducacionais, orientação familiar, desenvolvimento da linguagem e/ou comunicação e trabalho em equipe multidisciplinar (BARROS, 2014); inclusão da família no processo psicoterápico da criança e o incentivo para que essa família também obtenha apoio psicológico (MARTINS, 2015); e avaliação psicológica favorecendo melhor compreensão do funcionamento e da comunicação com a criança e com adultos que interagem com ela (SANTOS, 2015).

Ainda em resposta à segunda questão norteadora e tratando da obra de Oaklander (1980), essa autora demonstra várias propostas de intervenções psicoterápicas. Mais especificamente das intervenções com crianças com TEA, refere as que incluem atividades sensórias, como brincar com água, pintar com os dedos, brincar com areia e trabalhar com argila. Realça que a linguagem deve ser integrada a todas as atividades psicoterápicas.

 Sobre qual a forma do brincar da criança com TEA na perspectiva gestáltica, foi a terceira questão norteadora dessa revisão integrativa. As publicações analisadas, de autoria de Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2008) e de Barros (2014), não abordaram a forma de brincar da criança com TEA. Já Martins (2015) refere que o modo de brincar da criança com TEA representa a maneira que a criança encontra para ter o controle e a previsibilidade, prejudicados por déficit do sistema nervoso central. A partir de ajustamento criativo, criando comportamentos repetitivos e estereotipados no brincar, como balançar objetos, alinhar carrinhos, balançar o próprio corpo etc., a criança com TEA consegue uma sensação de alívio sensorial, já que, fazendo a mesma coisa inúmeras vezes, ela consegue ficar focada em apenas um estímulo. O brincar da criança com TEA é abordado também como forma de incluir o terapeuta no campo relacional da criança no processo psicoterápico, inclusive com a avaliação psicológica. Essa inclusão do terapeuta não ocorre de forma imediata e a brincadeira favorece esse processo (SANTOS, 2015).

Oaklander (1980), sobre o brincar com a criança com TEA, refere experiências em que o primordial é fazer o que a criança quer fazer, ou seja, acompanhar a criança e seus interesses. Cita as brincadeiras das crianças no espelho olhando seu próprio corpo. Dessa forma, o brincar pode favorecer que a criança com TEA conheça a si mesma.

 

5 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando este estudo foi planejado pelas autoras (também por Ana Claudia Silva Gomes, "in memoriam"), uma das inquietações que o conduziram se referia à necessidade de conhecer mais sobre a relação e as intervenções terapêuticas em Gestalt-terapia com a criança com Transtorno do Espectro Autista (TEA), a partir da literatura nacional. No entanto, com base nos resultados, foi identificada a escassez de publicações sobre a temática disponíveis nas fontes pesquisadas.

Os artigos e o livro analisados nesta revisão são valiosas contribuições disponíveis aos interessados na prática clínica em Gestalt-terapia junto às crianças com TEA. Porém, considera-se que são algumas possibilidades para conhecimento, diante de uma gama de opções a serem descobertas, construídas e experimentadas por cada terapeuta. A abordagem gestáltica possui pressupostos e teoria que instrumentalizam o gestalt-terapeuta a compreender, a interagir e a ajudar a criança, considerando seu estilo próprio de ser terapeuta e que, mesmo com a suspeita ou o diagnóstico de TEA, cada criança funciona com sua forma singular de ser.

Contudo, a partir das publicações analisadas, entende-se que se faz necessário ao gestalt-terapeuta a atenção para uma atitude fenomenológica, ficando com o que é presente, na atualidade e na singularidade de cada encontro terapêutico, que se constrói na disponibilidade, na paciência e na flexibilidade para construir intervenções que possam atender às necessidades da criança. Especialmente com a criança com TEA, na perspectiva gestáltica, a psicoterapia deve buscar favorecer a cada criança um contato nutritivo consigo e com o meio, mediante o despertar da consciência de seus sentidos, de seu corpo, de aspectos de sua identidade, de forma que possa efetuar uma ação-interação coerente com suas peculiaridades.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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AMESCUA, Guardalupe. Autismo na Teoria Gestalt: em direção a uma teoria Gestalt da personalidade. México: Gestalt Review, 1999.

ANTONY, Sheila Maria da Rocha. Gestalt-terapia: cuidando de crianças – teoria e arte. Curitiba: Juruá, 2012.

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NOTAS

* Maria Andréia da Nóbrega Marques – Psicóloga. Doutora e Pós-doutora em Psicologia (Avaliação Psicológica), Mestre em Educação, Especialista em Neuropsicologia, Especialista em Gestalt-terapia e Especialista em Magistério Superior. Professora da Universidade Estadual do Piauí (UESPI) e do Centro Universitário Santo Agostinho (UNIFSA). Psicóloga e Gerente de Reabilitação Intelectual do Centro Integrado de Reabilitação (CEIR).
** Fernanda Pessoa Cardoso – Graduada em Psicologia pelo Centro Universitário Santo Agostinho.
*** Sandra Almeida Costa Gomes – Graduada em Psicologia pelo Centro Universitário Santo Agostinho.
**** Bruna Bezerra Marques – Graduada em Psicologia, Especialização em Neuropsicologia, Especialização em Psicologia Organizacional e do Trabalho. Mestranda em Biotecnologia na UNIFACID/Wyden, Teresina-PI. Atualmente trabalha como psicóloga clínica e neuropsicóloga.
1 https://sucupira.capes.gov.br/sucupira/public/consultas/coleta/veiculoPublicacaoQualis/listaConsultaGeralPeriodicos.jsf

 

Endereço para correspondência
Maria Andréia da Nóbrega Marques
Endereço eletrônico:mandreiamarques@yahoo.com.br
Fernanda Pessoa Cardoso
Endereço eletrônico:fernanda_dapf@hotmail.com
Sandra Almeida Costa Gomes
Endereço eletrônico:sandracgomes.psi@gmail.com
Bruna Bezerra Marques
Endereço eletrônico:bruna_b_marques@hotmail.com

 

Recebido em: 17/05/2019
Aprovado em: 28/04/2020