RESENHA

Além de Gloria: retratando a Gestalt-terapia contemporânea

Beyond Gloria: picturing contemporary Gestalt therapy

Más allá de Gloria: retratando la terapia Gestalt contemporánea

 

Fábio Nogueira Pereira

Faculdades Integradas São Pedro (FAESA)

Endereço para correspondência

 


RESNICK, R. (2016f, 15 Setembro). New contemporary Gestalt Therapy demonstration films. [Série de filmes]. Disponível em <https://vimeo.com/ondemand/gestaltfilms/>.

 


A série de oito vídeos produzidos por Robert Resnick é uma oportunidade para apresentar aos gestalt-terapeutas em treinamento que existem outras formas de prática clínica além das retratadas nos tão conhecidos vídeos de Fritz Perls disponíveis na internet. O atendimento de Gloria no filme que apresenta as contribuições de Carl Rogers, Fritz Perls e Albert Ellis (SHOSTROM, 1965) certamente é um dos mais divulgados e podem produzir reações as mais diversas daqueles que imaginam encontrar ali alguma orientação a respeito do fazer clínico gestáltico (DOLLIVER, 1991; NYSTUL, 2007; REILLY; JACOBUS, 2009; USAKLI, 2012). Talvez, o maior problema do vídeo de Fritz com Gloria seja o novato entender a Gestalt-terapia como um incessante desafiar e frustrar em detrimento do apoio que o cliente possa necessitar no "setting" terapêutico, como apontado por Dolliver (1991). Por diversas vezes precisei contextualizar teórica e historicamente esses vídeos para alunos de graduação quando usados em minhas disciplinas, haja visto o estranhamento diante do nome mais conhecido de nossa abordagem aparentemente colocando em evidência mais o aspecto técnico do que a relação estabelecida e a capacidade de assimilação da cliente. Zinker (1978) e Joyce e Sills (2016) nos lembram da importância de gradar o experimento a fim de que a experiência seja uma oportunidade de assimilar e integrar o que foi aprendido.

A questão da postura do terapeuta na relação com seu cliente é, de fato, uma questão relevante. O acesso a vídeos de atendimentos ou a participação em "workshops" de finais de semana podem passar a impressão errada de que a Gestalt-terapia é somente um conjunto disforme de técnicas. Cardella (1994) nos chama a atenção para este aspecto e adverte que a psicoterapia está além de seu uso. O ponto é também destacado por Bob no vídeo introdutório da série (RESNICK, 2016a), no qual comenta que, infelizmente, tal percepção da Gestalt-terapia nos idos dos anos 1960 ainda perdura no imaginário de terapeutas desinformados. Talvez, poderíamos nos arriscar a dizer que tal percepção não seja algo reservado aos terapeutas mais antigos, que tiveram contato com uma Gestalt-terapia com grande ênfase nos "truques" perlsianos, mas algo que habita o imaginário desta geração. Curiosamente, alguns anos após a gravação do tão falado vídeo, Fritz Perls (1977) adverte que devemos nos ocupar da existência total da pessoa. Compilações de técnicas (Stevens, 1977; e, Sheldon, 2013; por exemplo) podem passar a falsa impressão de que dispomos de um arsenal técnicas "mágicas", detemos pouco embasamento teórico e, quiçá, não temos qualquer comprometimento com o outro que nos pede ajuda.

"New Contemporary Gestalt Therapy Demonstration Films" (RESNICK, 2016f) oferecem uma perspectiva atualizada da clínica gestáltica. Os filmes de Resnick abordam questões diversas, tais como ansiedade, introjeções, suporte, dilemas familiares, deflexão, entre outros, e demonstram uma psicoterapia com influência notadamente processual e dialógica. O primeiro apresenta uma introdução à Gestalt-terapia e os demais registros trazem o atendimento de seis clientes (um deles atendido em duas oportunidades). Os vídeos possuem duração entre 15 e 39 minutos e oferecem legendas em sete idiomas, inclusive português brasileiro, e foram gravados ao longo de 15 anos de treinamentos intensivos da GATLA em diferentes países europeus. Os vídeos se iniciam com uma breve sinopse e alguns deles também possuem uma breve discussão ao final. Eles estão disponíveis para compra no formato de DVDs ou "streaming" para uso individual ou por instituições (preços diferenciados se aplicam). O filme de introdução, contudo, também é disponibilizado gratuitamente na plataforma Vimeo e faz parte de todos os DVDs juntamente com o registro de um atendimento.

No primeiro vídeo, Resnick (2016a) faz uma detalhada apresentação das bases da Gestalt-terapia, inclusive trazendo exemplos enriquecedores para o terapeuta iniciante. Bob traz um pouco de sua chegada à Gestalt-terapia e treinamento com Jim Simkin e Fritz Perls no final da década de 1960. A partir de 1969, Resnick passou a ir à Europa a cada verão para treinar terapeutas a pedido de Perls. Este vídeo perpassa aspectos da Fenomenologia, Teoria de Campo, e Dialogismo com linguagem acessível ainda que mantenha a profundidade e a complexidade dos conceitos. Esses três pilares também são reconhecidos por Mann (2010) e Yontef (1998) como pontos de apoio téorico presentes em diferentes autores e mantidos nas sucessivas gerações de gestalt-terapeutas ao longo do tempo. Apesar de sucinta, a introdução teórica oferecida é clara e de fácil compreensão, mesmo para alguém em início de treinamento na abordagem.

Um ponto relevante desta introdução é sua crítica à irresponsabilidade de algumas pessoas que entendiam a Gestalt-terapia como uma licença para fazer "o que quisessem" após participarem de um breve workshop de final de semana nos primórdios de nossa abordagem. Indo ao encontro das raízes dialógicas, e na contramão dos desavisados que acreditam ser a Gestalt-terapia apenas um bocado de técnicas, Resnick reafirma diversas vezes o encontro entre o que ele chama de "fenomenologia do cliente" e "fenomenologia do terapeuta" na relação Eu-Tu e destaca a procura pela figura mais energizada, que ele chama de "peixe fresco". Bob confirma por diversas vezes nos atendimentos registrados a potência do "entre" dialógico.

O cuidado didático nesta introdução é algo considerável. Resnick também delineia o conceito de experimento e o processamento das intervenções. Quanto ao experimento o autor explica que ele é uma oportunidade de acessar dados experienciais ao ter contato com o que se faz enquanto se está fazendo algo, sobretudo fazendo algo que nunca fizemos. Segundo Resnick, as intervenções promovem um movimento, que podemos compreender como novas formas de contato. O encontro das duas fenomenologias cria uma diferenciação (um contraste que delineia melhor a figura), fomentando a "awareness" e retomando a condição de escolha e mudança. Ele prossegue, então, distinguindo insight de "awareness", descrevendo como esta é mais próxima da experiência vivida e direciona o cliente para retomar a capacidade de escolha.

Mais adiante, Bob prossegue explicando sobre a concepção de saúde baseada nas noções de autorregulação e campo, e como o equilíbrio na relação horizontal entre o indivíduo e o ecossistema deve ser respeitado. Assim, se quisermos entender o presente, devemos olhar para o presente e reconhecer as interrupções de contato, as alterações desta relação. O autor afirma que adoecemos quando utilizamos respostas que funcionaram em uma determinada situação de forma descontextualizada e repetitiva, desenvolvendo hábitos que formam um "caráter" fixo, anacrônico e tóxico.

Nos atendimentos que vemos nos filmes que se seguem, Resnick coloca em prática aquilo que detalhou no vídeo introdutório. Os atendimentos são tocantes e não vemos Bob ceder à vaidade de ser filmado em ação, como às vezes temos a impressão no famoso atendimento de Gloria por Fritz. Diversas nuances da prática clínica são retratadas: os temas desafiadores, as esquivas do cliente, a autorrevelação do terapeuta, a modulação da velocidade da interação, o foco no corpo ao invés da verbalização, o uso do humor, o delineamento das figuras a partir das fenomenologias de ambos, entre tantas outras. Temos também a rara oportunidade de acompanhar dois atendimentos de um mesmo cliente e observar sua evolução num intervalo de dois anos (RESNICK, 2016c, 2016d).

Contudo, o leitor entusiasta dos vídeos de Fritz Perls pode experimentar qualquer estranhamento com uma dinâmica mais lenta e nenhuma experimentação mais estereotipada. Creio que caiba aqui considerar que assistir um vídeo de Perls tenha sua valia, não só pelo caráter histórico, mas, sobretudo, por suas intervenções serem delineadas de forma didática, bem como suas explicações anteriores e/ou posteriores aos atendimentos. Tais explicações e comentários aparecem apenas em três vídeos da série produzida por Resnick e podem fazer falta para o terapeuta iniciante. Mesmo profissionais mais experientes se beneficiariam com tais complementos. De fato, os comentários do vídeo "Melting Frames" (RESNICK, 2016e) são os mais detalhados quanto ao aspecto téorico, justificando as intervenções feitas por Bob. Os outros dois comentários, na introdução dos vídeos "A rose on the grave of my family" (RESNICK, 2016b) e "Sound of silence" (RESNICK, 2016g), abordam de maneira mais genérica a postura adotada ao longo dos atendimentos.

Certamente, os vídeos são uma importante ferramenta para que aqueles que conhecem a teoria possam ter a possibilidade de ver como colocar em prática o que sabem. Ao assistir aos filmes sozinho e com meus alunos, pudemos refletir sobre a forma como dialogamos com nosso cliente e criamos vícios na forma como realizamos nossas intervenções. Pudemos nos inspirar com a experiência de um terapeuta com mais de 45 anos de Gestalt-terapia e refrescar nosso ânimo para desenvolver uma prática clínica contemporânea e alinhada com os desafios que encontramos cotidianamente.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARDELLA, Beatriz Helena Paranhos. O amor na relação terapêutica. São Paulo: Summus, 1994.

DOLLIVER, R. H. Perls With Gloria Rereviewed: Gestalt Techniques and Perl's Practices. Journal of counseling & development, v. 69, n. 4, 1991, p. 299-304.

JOYCE, P.; SILLS, C. Técnicas em Gestalt: aconselhamento e psicoterapia. Petrópolis: Vozes, 2016.

MANN, Dave. Gestalt therapy: 100 key points and techniques. New York: Routledge, 2010.

NYSTUL, M. S.; ZURICH, A.; STEINER, R. The use of counseling videos in an undergraduate introduction to counseling course. International Journal of Instructional Media, v. 34, n. 4, 2007, p. 369-375.

PERLS, F. Gestalt-terapia explicada. São Paulo: 1977.

REILLY, J.; JACOBUS, V. Gestalt therapy: Student perceptions of Fritz Perls in Three approaches to psychotherapy. Journal of Psychologists and Counsellors in Schools, v. 19, n. 1, 2009, p. 14-24.

RESNICK, R. An introduction to Gestalt Therapy theory. 2016a. On-line. Duração: 33'55''. Disponível em: <https://vimeo.com/ondemand/gestaltfilms/181868433>. Acesso 10 de setembro de 2017.

RESNICK, R. A rose on the grave of my family. 2016b. On-line. Duração: 28'20''. Disponível em: <https://vimeo.com/ondemand/gestaltfilms/120733601>. Acesso 10 de setembro de 2017.

RESNICK, R. Coming home. 2016c. On-line. Duração: 28'31''. Disponível em: <https://vimeo.com/ondemand/gestaltfilms/126417973>. Acesso 10 de setembro de 2017.

RESNICK, R. Coming home, again. 2016d. On-line. Duração: 30'00''. Disponível em: < https://vimeo.com/ondemand/gestaltfilms/162403146>. Acesso 10 de setembro de 2017.

RESNICK, R. Melting frames. 2016e. On-line. Duração: 38'54''. Disponível em: <https://vimeo.com/ondemand/gestaltfilms/127886040>. Acesso 10 de setembro de 2017.

RESNICK, R. (2016f, 15 Setembro). New contemporary Gestalt Therapy demonstration films [Série de films online/DVD]. Recuperado em 1 junho, 2017, de <https://vimeo.com/ondemand/gestaltfilms/>.

RESNICK, R. Sound of silence. 2016g. On-line. Duração: 22'10''. Disponível em: <https://vimeo.com/ondemand/gestaltfilms/127886040>. Acesso 10 de setembro de 2017.

SHELDEN, C. Gestalt as a way of life: awareness practices. Bellingham, WA. SHOSTROM, E.L. (Produtor e Diretor). Three approaches to psychotherapy. [Série de filmes]. 1965. (Disponível em Psychological and Educational Films, Orange, CA).

STEVENS, J.O. Tornar-se presente. São Paulo: Summus, 1977.

USAKLI, H. Turkish University Students' Preference from Rogers, Perls, Ellis and Their Therapeutic Styles. Procedia-Social and Behavioral Sciences, v. 69, 2012, p. 967-976.

YONTEF, G.M. Processo, diálogo e awareness: ensaios em Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 1998.

ZINKER, J. Creative process in Gestalt therapy. New York: Random House, 1978.

 

Endereço para correspondência
Fábio Nogueira Pereira
Endereço eletrônico:fabio.nogueira@faesa.br

 

Recebido em: 26/11/2018
Aprovado em: 29/08/2019