ARTIGO

Contribuições Fenomenológicas para os modos contemporâneos de lida com a violência: Possibilidades para além do controle

Phenomenological Contributions to contemporary modes of dealing with violence: Possibilities beyond control

 

Letícia Reis de Andrade Souza*

IBMR – Instituto Brasileiro de Medicina de Reabilitação – RJ.

Endereço para correspondência

 "Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevoaltere qualquer coisa. Não altera em nada. Porque no fundo, a gente não está querendo alterar as coisas. Agente está querendo desabrochar de um modo ou de outro..." (CLARICE LISPECTOR)

 


RESUMO

Diante do incontestável crescimento da violência, hegemônicas compreensões metafísicas sobre o homem sustentam modelos explicativo-causais que visam controlar e eliminar a violência a partir de determinadas técnicas, tanto através dos conhecimentos produzidos pela Psicologia, quanto por demais saberes sociais. Compreendendo este caminho como insuficiente para se pensar a violência sob um caráter ontológico mais originário, busca-se na fenomenologia hermenêutica de Martin Heidegger uma perspectiva não dual da existência, a partir da qual este tema possa se desvelar em sua relação com o modo de ser do homem. As práticas de cuidado atuais já apreendem e situam previamente o homem enquanto substância, sustentando a correção como conduta principal, de forma consonante às discussões heideggerianas acerca da questão da técnica. Este artigo busca tematizar fenomenologicamente a violência, possibilitando ampliar o pensamento que fundamenta esta lida para além das práticas de tutela e de controle.

Palavras-chave: Violência; Fenomenologia; Técnica; Psicologia.


ABSTRACT

Faced with the unquestionable growth of violence, hegemonic metaphysical comprehensions about man sustain explanatory-causal models that aim to control and eliminate violence through certain techniques, both through the knowledge produced by Psychology and by other social knowledge. Seeing this path as insufficient to promote a reflection about violence in its more original ontological character, Martin Heidegger's hermeneutic phenomenology seeks a non-dual perspective of existence, from which this theme can be revealed in its relation to the way of being of man. Current practices already apprehend and situate man as substance, sustaining correction as the main conduct, in a way wich is consonant with heideggerian discussions about the technique. This research seeks to unveil phenomenologically the violence, allowing to amplify the ideas that sustain this beyond the practices of guardianship and control.

Keywords: Violence; Phenomenology; Technique; Psychologic.

 

INTRODUÇÃO

Segundo o Mapa da Violência de 2014 (WEISELFISZ, 2014), produzido em parceria com a Secretaria Geral da Presidência da República, nos últimos 35 anos houve um crescimento de mais 132% de mortes violentas no Brasil, um número que posiciona o tema presente no gabarito das urgências. Torna premente a abertura de uma possibilidade reflexiva às práticas correntes de lida com a violência, tais como a do encarceramento e dos enfrentamentos policiais, que se mostram hegemônicas e insuficientes. O aumento apontado da violência é acompanhado de um ainda maior crescimento da população carcerária no país, que, segundo o Conselho Nacional de Justiça (2014), contava em 2014 com 711.463 presos. O sistema de dados integrados dos órgãos de administração penitenciária do Brasil, o InfoPen, informa que em 1990 esse número era de 90.000, apontando um crescimento de cerca de 700% no número de detentos em um período de 24 anos.

O crescimento da violência concomitante ao crescimento dos encarceramentos denota a insuficiência desta dominante prática social enquanto via régia de controle e tentativa de eliminação da violência, tal como pondera o jurista e diretor-presidente do Instituto Brasil Avante, Luiz Flávio Gomes (2015). Faz-se então necessário pensar de que forma esses dados dialogam com o pensamento fenomenológico.

Tradicionalmente, os conhecimentos produzidos pela Psicologia se constroem, majoritariamente, a partir da pressuposição do homem como um núcleo fundamental, entendido como interioridade individual passível de estudo. Tais modos de pensar guardam uma herança iluminista ou romântica: "(...) o sujeito tal como foi pensado nas filosofias da subjetividade acabou por definir e determinar o modo como a Psicologia e as clínicas daí derivadas se estabeleceram" (FEIJOO, 2011, p. 13). Guardam também relação como uma noção dicotômica entre sujeito e objeto, servindo assim de lastro e condição de possibilidade para uma aproximação sempre explicativa dos fenômenos, em geral fundada na noção de subjetividade.

Esta herança metafísica da tradição é amplamente discutida por Martin Heidegger em Ser e Tempo (2005), onde aponta que toda a história do pensamento ocidental se baseia em pressupostos não questionados acerca do ser e, consequentemente, acerca do ente humano. Tais pressupostos contam sempre com reducionismos e substancializações acerca de uma "natureza humana", fundamentando também as ciências, principalmente a Psicologia. Como Feijoo (2011) ressalta acima, a Psicologia acaba por lidar com uma visão de homem oriunda de modos encurtados de pensar, tomando o homem como coisa já conhecida, apenas restando a tarefa de descrever suas propriedades.

Debruçando-se sobre temas específicos, como a violência, no caso do presente exercício, tal herança inquestionada guiará as conclusões e formas de lida correspondentes, mantendo velados os pressupostos metafísicos que as sustentam. Deste modo, faz-se necessário discutir fenomenologia para que se alcance a sustentação tanto daquilo que se entende contemporaneamente por violência, como também das práticas de lida com a mesma.

Ainda, nosso tempo é marcado pela hegemonia do pensamento técnico e calculante, que se coloca diante das coisas do mundo como se já as conhecesse de antemão, e como se a natureza de todas elas fossem substanciais e passíveis de explicação causal (HEIDEGGER, 2007). Há um nivelamento do ente humano à natureza das coisas simplesmente dadas, tais como as máquinas, permitindo, assim, sob esta ótica, que se trace uma espécie de manual acerca de um "funcionamento" e de um proceder adequado para o homem, a partir dos quais se criam formas de intervenção para solução dos eventuais problemas que venham a se apresentar. É sob este modo que a violência é vista hoje, tanto sob a ótica do senso comum, quanto das ciências: como um defeito a ser resolvido através do mapeamento de suas causas, como um simples erro de conduta individual a ser reparado, tal como se repara uma máquina escangalhada, exemplar a exemplar.

No presente artigo, no entanto, toma-se a via de compreensão do fenômeno da violência com o olhar do desvelamento existencial dos acontecimentos, que encobre e descobre os fenômenos. Abandona-se, assim, a hipostasia do sujeito encapsulado e parte-se do rigor fenomenológico da compreensão de ser-aí como ser-no-mundo-com-os-outros, tal como proposto por Heidegger (2005). Este se refere à apreensão do modo de ser do homem como "Dasein", em que o ser se encontra sempre em abertura em relação a mundo, a que é co-originário em sua respectiva historicidade.

Pretende-se sustentar a reflexão sobre a violência para além da estrutura usual do maniqueísmo, este aqui compreendido como uma visão de mundo baseada em poderes opostos e incompatíveis, tal como o bem e o mal, ou Deus e o Diabo (HOUAISS, 2001). Este modo solapa a tensão de pensar demoradamente sobre o assunto, pois precipita-se em encontrar vítimas e algozes. Somado ao pensamento causalista, esta vereda desemboca no desenvolvimento de técnicas, meios e métodos de conserto e controle de tais algozes. Este modelo contemporaneamente hegemônico sustenta as práticas corretivas e interventivas em relação à violência, práticas cujos resultados não têm alcançado os objetivos a que as mesmas se propõem, ou seja, a redução da violência. Faz-se, portanto, necessário o desencobrir dos modos vigentes de aproximação ao fenômeno da violência, através de um pensamento que vá para além das dualidades supracitadas.

Articula-se, desta forma, um posicionamento de uma psicologia fenomenológica, que não pretende gerar expectativas interventivas gerais nem específicas, mas contribuir para uma compreensão mais originária dos fenômenos tais como acontecem, ampliando os horizontes por meio dos quais já são, de início, tomados. Não se visa, portanto, alcançar uma nova técnica para extirpar a violência, mas exercitar a possibilidade de se sair do registro em que as técnicas são tomadas como as únicas vias para lidar com os fenômenos. Para tanto, faz-se necessário suspender os conceitos enraizados sobre a violência, que ao restringirem o pensamento e a compreensão sobre o fenômeno, acabam limitando o modo como as situações de violência já inicialmente se apresentam.

 

FENOMENOLOGIA E VIOLÊNCIA

Uma leitura da fenomenologia-hermenêutica sobre o fenômeno da violência objetiva uma reapropriação temática e crítica da apreensão prévia pela qual sempre já se está situado diante dos fenômenos. E para elaborar tematicamente a pré-compreensão em que o fenômeno da violência vem se desvelando, bem como suas consequências ônticas na contemporaneidade, é profícuo tomar referência no modo pessoalizado, individualizado e subjetivo que a Psicologia tende a tomar em seus apontamentos, bem como compreender historicamente como estes conceitos se tornaram hegemônicos e naturalizados em seu cerne.

Tais compreensões hegemônicas dialogam com as noções de violência derivadas do latim "violentia", referente à ação de violentar e ao abuso de força, presentes nas definições leiga e jurídica do Dicionário Houaiss (2001), e também naquela proposta pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em seu "Relatório mundial sobre violência e saúde" (KRUG, 2002), documento que aparece como um exemplar do modo de compreensão específico do nosso tempo em relação à violência, e que pode explicitar as questões a serem discutidas referentes ao modo a partir do qual já se posiciona a questão da violência.

A pressuposição da existência de um sujeito nuclear e encapsulado, dotado de atributos próprios a interagir de uma ou outra forma com o ambiente considerado externo, aparece como pressuposto comum tanto no saber científico, apontado pelo documento da OMS (KRUG, 2002), quanto pelo senso comum, explícito em exemplos cotidianos e no entendimento leigo do dicionário (HOUAISS, 2001). Tal convergência afina-se com o que Husserl (1992) descreve como uma atitude ingênua diante do mundo: a atitude natural, que toma as coisas como existentes em si mesmas, independentemente de sua relação intencional. Husserl ainda ressalta que a atitude natural é característica tanto pelas ciências, quanto do senso comum. O fenômeno da violência, é então, de início e na maior parte das vezes, assim tomado: como existente em si mesmo independente dos pressupostos de que se parte para compreendê-lo.

Na Psicologia, costuma-se tomar a violência como um ato volitivo de um sujeito que é senhor de suas vontades e posicionador de mundo - ou justamente porque perdeu suas senhoria e razão -, alocando na perspectiva subjetivista o ato da violência, tal como uma produção individual, com causas direcionadas a desvios de personalidade, a comportamentos mal ajustados, a pulsões inatas descontroladas ou a lapsos biográficos que o justifiquem. Todos coincidem em uma visão de homem como ente racional e separado de mundo, e dotado de determinações prévias.

Uma outra forma de tratar a violência dentro da Psicologia é através dos determinantes sociais, e não mais individuais. Ao invés de alocar no sujeito nuclear os motivos da violência, os mesmos são direcionados ao "social". Nesta perspectiva, toma-se este "social" como algo existente em si, com dinâmica própria capaz de direcionar ações e de determinar atos a partir de certas circunstâncias. Aparentemente opostas, estas duas vias têm em comum a manutenção dos pressupostos da existência de algo a priori, seja o "sujeito", seja o "social", e também dos dualismos cindidos entre sujeito-objeto ou social-biológico. Vela-se, assim, qualquer possibilidade compreensiva para além do conceito maniqueísta igualmente dual do binômio bem "versus" mal, apenas modificando a instância em que estes valores serão alocados: no sujeito ou na sociedade. Neles se instalarão o "mal" que se quer erradicar, e em seus pares opostos, o "bem" que se deseja engendrar.

Para Husserl (1992), um caminho distinto da atitude natural seria a atitude fenomenológica, aquela que colocaria em suspensão as noções hipostasiadas pela atitude natural, propondo-se a ser atinente apenas àquilo que se dá à experiência, tal como se dá: ou seja, ao fenômeno. À suspensão destes atributos da atitude natural, de modo que se torne "atinente às próprias coisas" (HUSSERL, 1992, p.10), dá-se o nome de "epochè", termo resgatado da filosofia grega, trazendo o sentido aqui de suspensão fenomenológica: uma"distância em relação às validações naturais ingênuas" (HUSSERL, 1989, p.154).

Na psicologia fenomenológica, o "caminho para" o desenvolvimento de uma ideia, correspondendo ao sentido epistemológico da palavra "método", difere-se de uma perspectiva predominante da ciência, que procuraria assegurar que o ponto de chegada de diversas investigações fosse sempre convergente, uma vez mantendo-se os mesmos passos, pressupondo sentidos previamente dados e inalterados sobres as coisas, bem como sua possibilidade de controle. Sob a compreensão fenomenológica, porém, coerente ao propósito de aproximar-se dos fenômenos e deixá-los aparecer tais como são, é preciso pensar o caminho em relação à hermenêutica em sua compreensão circular. Atinente não mais ao rigor científico oriundo de um positivismo, mas ao rigor fenomenológico de emergência dos fenômenos e à circularidade hermenêutica que possibilitam a aproximação e o retorno às coisas mesmas, o caminho constitui-se muito mais como uma retirada daquilo que não é próprio ao fenômeno, para que ele se desvele como tal, do que uma técnica que possa produzir conceitos e conclusões sintéticas acerca de algo a partir de conhecimentos previamente dados. Desta forma, busca-se o aproximar da violência, retirando-lhe o que não lhe é próprio para que possa surgir algo a partir da coisa mesma.

Portanto, o caminho fenomenológico não resguarda a intenção de encontrar pretensas causas mais verdadeiras, ou a enclausurar supostas razões para as manifestações de violência em sujeitos solipsistas ou em determinantes sociais, nem tampouco criar uma nova técnica para controle. Pretende-se, ao contrário, engajar o debate sobre o tema em uma perspectiva para além daquela que toma a produção de técnicas de controle como modelo exclusivo de lida com a violência, suspendendo os pressupostos sobre a mesma, que acabam por modelar o pensamento e restringir o aparecimento dos fenômenos. Ao desvelar as bases das quais as falas atuais sobre a violência já partem, permite-se aparecer novos modos de lida com ela através da indissociabilidade entre homem e mundo, explícita no pensamento de Martin Heidegger (2005).

A busca por uma compreensão mais fundamental acerca daquilo que se entende cotidianamente por violência, bem como as interlocuções destas compreensões com o campo de saber da Psicologia, possibilita tornar manifesto em que grau a Psicologia se aprofundou ontologicamente ou não na apropriação do entendimento dos fenômenos de violência, bem como em que proporção os saberes produzidos neste campo epistemológico possam ser utilizados de modo a ratificar e dar ainda mais consistência ao posicionamento impessoal que sustenta a compreensão de violência comumente, tanto no senso comum, como nas ciências, através do pensamento de tradição metafísica. Tal tradição acaba então por questionar temas fundamentais de forma encurtada, obnubilando a questão do ser, mediando a lida atual com estas questões sempre através de um modo de aproximação que vela seu caráter mais originário, seu caráter ontológico.

De início e na maior parte das vezes, esta marca angular da metafísica no campo da Psicologia verte sobre as compreensões do fenômeno que nos é tema um caráter explicativo-causal que busca justificar em algum fundamento essencial a suposta causalidade da violência, tomando-a já como simplesmente fruto de um condicionamento indesejável ou de arranjos pulsionais disfuncionais; ambos passíveis de controle, regras e leis a partir das quais se pode basear uma intervenção. Tal vereda se assenta no pressuposto do sujeito cartesiano, que compreende o homem enquanto indivíduo dotado de razão, vontades e autonomia decisória. É possível também que o modelo explicativo-causal enverede pela perspectiva do social, recaindo este no lugar de essência universal, compreendendo então o homem como resultante de forças sociais que em muito o superam e o excedem e que exercem sobre ele, e independentemente do mesmo, inevitável poder e governo. A divergência dos caminhos compartilha a fonte comum da busca por fundamentações estáveis e determinações essencialistas que possam, ao ser conhecidas, ser igualmente controladas e manipuladas de modo a extinguir aquilo que se toma por indesejável: no presente caso, a violência.

Ao basear-se em fundamentos inerciais que se encontram para além da experiência, tais sistemas e modos de aproximação dos fenômenos estabilizam conceitos e campos de sentido que sirvam de referências fixas e estruturas contínuas a produzir conceitos e formas de interpretação dos fenômenos a partir desses "pré-supostos". A estruturação destes sistemas elabora regras de funcionamento e leis gerais que funcionam como uma posição prévia a partir da qual acontecem deduções corretas em relação a estes conceitos pré-estabelecidos, tomados como presença constante a referenciar suas posições derivadas. Fenomenologicamente, a procura não se dá por uma elaboração correta em relação à violência, dado que para estar correta, precisa apenas corresponder a esta posição previamente estabelecida, mas sim por uma compreensão verdadeira sobre o tema, que possa colocar em suspensão os sistemas da tradição que mediam nosso encontro com a violência e deixá-la aparecer tal como é, assim como se mostra, recuperando a temporalidade dos fenômenos e a pergunta pelo ser dos entes, especialmente do ente para o qual tal pergunta aparece.

A diferença primordial entre o correto e o verdadeiro é a diferença ontológica. Enquanto o correto se dá no âmbito da adequação de representações ônticas, o verdadeiro mira o desvelamento do ser das coisas, e não apenas as coisas já tomadas como coisas em si. As representações sobre a violência podem se adequar a um ou outro sistema de pensamento, sem nunca, no entanto, alcançar o ser mais próprio do violar; sem nunca alcançar a verdade sobre ela. A tal verdade, Martin Heidegger (2007) denomina "alethéia", que nada tem a ver com correspondência precisa a um conceito essencial da coisa, mas com desvelamento ontológico da mesma, como o movimento de poder deixar ver e a aparecer o ser das coisas, o modo como existem. Este caminho visa possibilitar uma lida mais livre com a violência, em que apareça seu caráter mais originário através da abertura do "Dasein". O correto é mera adequação àquilo que se tem a frente; somente o verdadeiro desoculta a essência e o ser daquilo que aparece (HEIDEGGER, 2007, p.375).

Em suma, tomar o homem como substância dotada de funcionamento causal sobre o qual se pode operar correções, tal como o faz a Psicologia por sua herança metafísica, parece estar no cerne da compreensão hegemônica sobre a violência enquanto manifestação errônea individual. Este sistema explicativo hermético possui uma lógica própria, mas não uma atinência à experiência. Deste modo, a fenomenologia se apresenta como caminho para questionar tais pressupostos, de modo que seja possível ver os filtros que condicionam as compreensões vigentes, apontando para algo anterior a tais compreensões: a experiência.

 

Compreensões cotidianas sobre o violar

Em seu conto escrito em 1969, "Mineirinho", Clarice Lispector (1999) retrata a ambiguidade de sentimentos diante dos treze tiros recebidos pelo criminoso que concede nome ao conto durante um tiroteio com a polícia carioca em 1962. Em entrevista concedida à TV Cultura em 1977, Lispector deixa aparecer novamente sua perplexidade com o excesso dos 12 tiros. Excesso porque "qualquer que tivesse sido o crime dele, uma bala bastava. O resto, era vontade de matar. Era prepotência".

O conto de Lispector escancara aquilo que podemos entender como um "paradoxo" da posição hegemonicamente tomada diante das situações de violência, que é responder a elas com igual ou maior violência, reagir àquilo que se critica com ações da mesma natureza da ação criticada. Compreender a aniquilação como violência paradoxalmente leva um defensor da paz a querer aniquilar a violência que maldiz. A atitude violenta que visa extinguir o outro, comumente se torna alvo de correção através de igual extinção. A tautologia se baseia em querer extinguir e apagar determinada pessoa justamente porque ela foi violenta ao extinguir e apagar sua alteridade em momento anterior.

A noção de que um assassino, porque matou, deve ser morto, funciona como uma espécie de tautologia que obscurece o surgimento de qualquer outra possibilidade de lida, um arremate que se auto justifica sem muito pensar e se demorar sobre o fundamento, a direção e a abertura que estão em jogo em tais acontecimentos. O excesso das 12 balas acertadas em Mineirinho nada tem a ver com a gravidade do mal que o mesmo possa ter gerado em vida, mas explicita, sim, um certo modo contemporâneo de corresponder às situações de violência, modo marcado por ações afirmativas de valores impessoais, tidos como naturalmente dados e aos quais se atribui a carga atemporal e definitiva da moralidade; ações que se reproduzem sempre na via única de extermínio das diferenças e de aniquilação de tudo o que possa suscitar alteridade. Subjaz, ainda, a ideia de que aniquilando-se o indivíduo, aniquila-se a violência. Percebe-se aí a força das raízes metafísicas que essencializam no sujeito as causas dos acontecimentos.

Diante dessa atmosfera compreensiva, em que a violência é tomada sempre como fruto de um indivíduo ou de estruturas sociais, sustenta-se a ideia de que ela pode ser então extirpada da experiência humana, uma vez localizada sua causa. Trata-se do passo inicial rumo ao paradoxo da violência, pois o ato de extirpar é, por definição, um ato de violação, um ato de "violentia". Extirpar a violência recai no lugar de um pleonasmo semântico e existencial, numa circularidade viciosa e redundante em que, para dar cabo da violência (A), aplica-se a violência (B). Mas para que o mote da ação (B) seja mantido, mote esse de extinguir ações de violência, deve a própria violência (B) ser igualmente eliminada, possivelmente através da ação da violência (C). Assim, ações que visavam o fim de uma determinada conduta, guardam, em suas intenções, o mesmo princípio de aniquilação da conduta que visavam combater. (Imagem 1).

Sátira sobre o usual modo violento de solucionar a violência.
Fonte: cartunfolio.blogstpot.com

Tal circularidade infrutífera denota o encurtamento compreensivo citado anteriormente, bem como aponta, ainda incipientemente, para a necessidade de se pensar aquilo que está em jogo quando se fala em "violência". De início e na maior parte das vezes, fala-se de violência em relação aos malefícios de ações invasivas, desruptoras  e  violadoras,  noções  relativas  a   uma  certa  ideia de "invasão". Esse modo de pensar a violência encobre tantas outras possibilidades igualmente relevantes na experiência cotidiana, nas quais muitas vezes está em jogo, inclusive, uma forma positiva do ato de violar, como por exemplo: o ato sexual e o movimento da concepção humana, atos médicos cirúrgicos invasivos, como a extração de um órgão adoecido, intervenções drásticas de amigos ou parentes na direção de seus entes queridos em situações delicadas, como em internações de dependentes químicos, a força bruta de um tutor que precisa arrancar do focinho de seu cão espinhos que ele possa ter encontrado, e até mesmo algo que se tornou um espetáculo de lazer contemporâneo, o MMA – "Mixed Marcial Arts". Todas essas ações são disruptivas, e nenhuma delas se caracteriza como violência a ser corrigida ou extinta.

O que parece diferir este último grupo de atitudes violadoras das atitudes presentes em um assassinato, um estupro ou um assalto, a exemplo, é que as primeiras se dão sob um horizonte que norteia a ação que viola em benefício daquele que a recebe – e talvez daquele que a desfere também -, ou contam com o consentimento do recebedor, enquanto que o segundo grupo de ações guarda a semelhança de serem dirigidas em uma suposição de benefício para uma das partes sobre o prejuízo da outra, como se deste dependesse o êxito da primeira.

Os policiais que prosseguiram do segundo ao décimo terceiro tiro já não visavam controlar os danos causados por Mineirinho. Como aponta Lispector, isso se garantiu na primeira bala. Os tiros seguintes não irromperam o corpo do criminoso para garantir a extinção dos atos praticados por Mineirinho. Os tiros seguintes apenas repetiram a violência de Mineirinho, a violência que se prevalece do extermínio da alteridade como forma necessária para afirmação ou concretização de um propósito. O motor de "combate" à violência presente nos tiros dos policiais apenas engrandeceu o montante de assassinatos que estariam combatendo.

Que se possa diminuir atos de violência extrema geradores de uma carga de dor e sofrimento que pareçam, a princípio, evitáveis, parece um desejo óbvio de grande parte das pessoas e inclusive dos governos ao traçar rotas de controle. Não se trata de questionar tal desejo, mas sim, as compreensões encurtadas sobre o homem, a vida e as relações nas quais este norte se funda. Diminuir o desconforto, o incômodo, a dor e o sofrer são o mote principal de uma moralidade utilitarista1 que parece nortear as compreensões do senso comum e também os atos governamentais através de suas políticas públicas de saúde. Elas são diretrizes tomadas por concepções irrefletidas sobre a existência, sedimentadas historicamente e que direcionam a ação e a compreensão de modo encurtado e aligeirado a uma dimensão utensiliar, na qual se lida com as coisas de modo a já saber o que são, o que fazer, como fazer e como se portar.

Esta é uma absorção tão profunda nesta capa fática de preconceitos, que se torna invisível enquanto tal, desaparecendo enquanto possibilidade de lida com as coisas, para se consolidar como conduta única e óbvia, inquestionável, da qual sequer faz sentido duvidar. Esta absorção remete ao caráter de esquecimento e fuga da pergunta pelo ser, pergunta que remeteria à condição existencial de abertura do "Dasein", abertura esta capaz de reconduzir o pensar de volta às coisas mesmas, à sua dação mais originária. Para tanto, será preciso descrever fenomenologicamente os modos de compreensão da violência absorvidos e encurtados pela medianidade, e para tanto será tomado como referência um documento central de um dos órgãos globais de maior importância na contemporaneidade: o Relatório Mundial de Violência e Saúde, publicado pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

 

Diretrizes para uma paz intangível

Na mencionada absorção utensiliar, o que dirige as ações que buscam diminuir a violência? Cabe aqui reservar atenção para refletir acerca do que move e em que se funda a perspectiva da prevenção e da correção, de modo a explicitar o campo fático correlato ao aparecimento do fenômeno da violência tal como é hoje compreendido. Com vistas a quê a prevenção e a correção aparecem como tônica central, e de que se trata a paz buscada?

Irrefletidamente, essa paz surge, de início, como a ausência de conflito, a ausência de dor. Há aí uma convergência interessante entre o conceito negativo de paz, enquanto ausência de violência, com o fato deste tema se encontrar no interior das políticas públicas da área da "saúde", conceito esse por tanto tempo definido também através da negativa da ausência de doença. Interessante no sentido de colaborar com a busca por compreender a atmosfera em jogo nas políticas aplicadas à violência quando se instauram no campo da saúde. A partir da modernidade, através do pensamento de René Descartes que cindiu "res cogitans" e "res extensa", dessacralizando o corpo e permitindo sua investigação; do consequente desenvolvimento da anatomia com François Bichat que considerava a saúde como o silêncio dos órgãos, ou seja, como ausência de defeitos; e das descobertas microscópicas de Louis Pasteur que isolaram germes causadores de patologias, permitindo sua eliminação; a saúde foi vista como ausência de doença – de sintomas, de problemas, de enguiços da máquina corpórea. Da mesma forma, parece surgir um conceito de paz semelhante ao conceito de saúde, ou baseado em premissas equivalentes: uma paz do silêncio, como a paz dos cemitérios, dos leitos hospitalares sedados ou da Guerra Fria. Uma "paz-maceira2" apática, como o grande retorno ao nada que move o que Sigmund Freud denomina de pulsão de morte.

A apropriação e tutela do tema da violência pela área da saúde se deu através do principal órgão decisório da Organização Mundial de Saúde (OMS), a Assembléia Mundial de Saúde (WHA – "World Health Assembly"), composta por delegações de todos os seus Estados-Membro, quando declarou em 1996, em sua Quadragésima Nona Assembléia, através da Resolução WHA 49.25, "que a violência é um dos principais problemas mundiais de saúde pública" (KRUG, 2002, p. XX)3. Na mesma Resolução, é requerido o início de campanhas de saúde pública que "ataquem este problema" (KRUG, 2002, p. XX), encontrando soluções eficazes e elaborando programas de prevenção.

Em acatamento à Resolução WHA 49.25, a OMS publicou em 2002 o primeiro, e ainda único, Relatório Mundial de Violência e Saúde, cuja tônica central é, em atinência ao valores fixados na Resolução, apresentar a violência como um problema mundial de saúde pública, e a partir de então, oferecer métodos de prevenção e evitação, bem como caminhos corretivos para as situações em curso, os quais serão apresentados no presente capítulo.

Alocar o tema da violência no gabarito da saúde denota um modo de aproximação deste fenômeno através do olhar científico-positivista de localização de sintomas e problemas para consequente aplicação de tratamentos. Esta é a visada predominante que já de início faz com que as situações de violência sejam sempre vistas da mesma forma cartesiana e causalista. Deste modo, outras perspectivas sobre o tema ficam obscurecidas, impedindo que os debates se enriqueçam e apontem outros e novos elementos para se fazer pensar e questionar a lida contemporânea para com a questão da violência.

Propõe-se aqui então pensar a questão da violência, e não o problema da violência, tal como apontado pela OMS, compreendendo que esta última forma já localiza o horizonte de sentido no qual os fenômenos de violência podem se desvelar, em uma determinada perspectiva histórica de causalidade e controle metodológico científico. Não se trata, portanto, de negar que a violência se configura como problema em diversas situações pelo montante de dor que pode gerar, mas sim de dar um passo atrás e ressaltar que a configuração da violência enquanto problema, e obviamente enquanto problema que demanda solução, já nos coloca diante da mesma através de um movimento preventivo-corretivo que toma a violência como algo que se produz pelo erro, como algo da ordem do evitável, como manifestação quem vem de fora e invade - viola - e paz inerente. No preâmbulo do Relatório Mundial de Violência e Saúde, a Diretora Geral da OMS Gro Harlem Brundtland afirma que é preciso utilizar "as mesmas ferramentas que têm sido utilizadas com êxito para atacar outros problemas de saúde. (...) A violência é, em geral, previsível e evitável" (KRUG, 2002, preâmbulo).

As noções que baseiam a compreensão da violência enquanto problema assemelhado à patologia se tornam invisíveis enquanto fundamento da perspectiva preventiva-corretiva, e torna-las manifestas é justo o que pode propiciar a apropriação do lugar mais originário de manifestação da violência; ela enquanto tema e questão, antes de ser tomada como problema. Tomá-la como obstáculo significa também tomar a vida como somente equilíbrio e harmonia. O obstáculo precisa ser obstáculo contra algo, mesmo que este algo fique, na maioria das vezes, velado. Através de uma atitude natural, nos engajamos no movimento de combate à violência, sem talvez possivelmente refletir sobre a condição de possibilidade daquilo que estamos defendendo e buscando. Se a violência é problema, obstáculo a uma vida de paz, seria necessário conferir a possibilidade existencial de uma vida linear e hermética, sem conflitos nem violações.

Para isso, atravessaremos os conceitos de paz, de violação, de conflito e de excesso, entre outros, que parecem estar em jogo nas diretrizes gerais sobre violência, de modo a descrever a capa fática que já posiciona o tema neste gabarito, de modo que a descrição possa fazer aparecer esta camada mediadora da compreensão usual. Descrição esta que, por sua vez, abre espaço para olhar tal questão sob outra ótica para além da usualmente tomada, ampliando o espaço para que outras possibilidades possam surgir, uma vez que o modo atual de lida corretivo e preventivo tem se mostrado insuficiente em alcançar seus próprios objetivos de diminuição da violência.

O primeiro capítulo do Relatório Mundial de Violência e Saúde (KRUG, 2002) intitula-se: "Violência – um problema mundial de saúde pública", contando com subtítulos tais como: "Um problema que pode ser evitado", "Medindo a violência e seu impacto" e "Como a violência pode ser evitada". Tal tônica revela objetivos pautados por um modo técnico de controle, e pode ainda, com maior aproximação, revelar as ideias com vistas a que tais diretrizes existem, bem como o cunho que se busca na proposta de controle e prevenção.

O texto inicia reconhecendo, paradoxalmente, que a violência sempre esteve presente na história do homem, e que todos os sistemas desenvolvidos para extinguí-la não foram bem-sucedidos nessa tarefa, mas que "o mundo não tem de aceita-la como parte inevitável da condição humana" (KRUG, 2002, p.3), tomando para a área da saúde a tarefa de "entender as raízes da violência e evitar que ela ocorra" (KRUG, 2002, p.3). Diz fundar-se nas bases científicas de disciplinas diversas, tais como: "medicina, epidemiologia, sociologia, psicologia, criminologia, educação economia" (KRUG, 2002, p.3). Fica claro então, que a discussão sobre violência tomará como base a compreensão do homem como sujeito da ciência, passível de análise e mapeamento de seu comportamento, possibilitando, por isso, o controle de seus atos. É essa premissa do homem enquanto substância atemporal que queremos colocar em xeque, de modo a explicitar que tipo de compreensões decorrem desta visada científico-natural sobre o homem.

A seção inicial do documento da OMS considera que a área da saúde está capacitada a lidar com a violência através da interdisciplinaridade devido a ser um campo "inovador e responsivo a uma ampla gama de doenças, enfermidades e lesões no mundo todo" (KRUG, 2002, p.3). Aponta para a tomada da violência sob a mesma ótica da doença ao buscar dados, questionar os porquês e propor intervenções para evitação e controle: "A abordagem da saúde pública em relação à violência baseia-se nas rigorosas exigências do método científico" (KRUG, 2002, p.3).

Conta ainda com uma relevante conceituação da violência fundada na noção de intenção, bem como com uma tipologia que adota como critério a direção do ato de violência e, por fim, apresenta um modelo ecológico que explicite os variados níveis das raízes da violência.

O conceito apresentado para violência é o de: "Uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação" (KRUG, 2002, p.5). Curiosamente, tal definição é cabível para um esporte de luta, por exemplo, embora os mesmos não sejam considerados como um problema de saúde pública.

O cerne desta conceituação parece residir na noção do que o documento chama de "intencional", excluindo da violência os incidentes não intencionais, que seriam categorizados no Direito como crimes com culpa, mas sem dolo. A intenção, ainda cabe ressaltar, é a de gerar dano, pois há ações com intenção de uso de força que não intentam necessariamente danar a outrem (KRUG, 2002, p.5). O documento ainda aponta que há culturas em que existe a intenção do uso de força, intenção de causar dano, mas que não compreendem tais atos como violentos, pois são culturalmente aceitáveis, como bater na esposa, a título de exemplo. Para a OMS, no entanto, como há implicações para a saúde da pessoa, o ato é considerado violento. Sejam proativos ou reativos, criminosos ou não criminosos, a avaliação presente no documento diz respeito a querer danar a saúde alheia.

Já a tipologia apresentada (KRUG, 2002, p.6) divide a violência em três categorias, a depender de a quem o ato violento se dirige: 1) a si próprio: suicídio e automutilação; 2) interpessoal: com parentes ou pessoas sem laço sanguíneo; e 3) coletiva: dirigida a grandes grupos, ganhando ainda uma subdivisão já estabelecida por outro critério, o de motivos: 3.1) social: terrorismos e crimes de ódio; 3.2) política: guerras; 3.3) econômica: ataques que visam interrupção de atividade econômica ou serviço. As três categorias ainda são atravessadas com o tipo de dano causado: físico, sexual, psicológico ou privação/negligência. Tal divisão parece não desvelar ainda nenhum tipo aspecto fundamental sobre a violência, mas cumpre o papel de organizar as estatísticas de modo a estruturar um mapeamento dos padrões de violência, abastecendo a impressão de que se tem algum tipo de controle sobre o fenômeno, simplesmente por saber onde e como ele mais ocorre. São descrições tardias em relação ao acontecimento do fenômeno ele mesmo, e que se pretendem prever acontecimentos futuros.

As estatísticas dos crimes registrados apontam, por exemplo (KRUG, 2002, p.9), que no ano de 2000 a maior parte das mortes resultantes de violência aconteceu em países de renda baixa ou média. Rapidamente, poderia se deduzir daí que a falta de renda é uma das causas da violência. A mesma estatística que dá relevância à maioria, carrega consigo o dado de que em países de alta renda também há mortes por violência. Tal dado pode fazer pensar que estes fatores tidos como causas, tal como o fator da renda, podem aparecer nas situações de violência como motivos, como presenças que naquelas circunstâncias constituíram o ato violento. Porém, fraquejam em funcionar como causas, dado que uma relação causal é compromissada em deter as propriedades de resultar na respectiva consequência sempre, e dentro dos países de baixa renda há diversas situações de conflito que não são resolvidas através da violência, bem como há violência em países cuja renda é elevada.

O mesmo acontece com a faixa etária daqueles que agem violentamente (KRUG, 2002, p.10): a maioria dos homicídios é cometida por homens de 15 a 19 anos, seguidos por homens de 30 a 44 anos. Novamente, faz-se preciso esclarecer a possível relação entre gênero, idade e criminalidade. Gênero e tempo de vida são atributos utilizados para identificar as pessoas em determinadas categorias, não havendo, em nosso tempo, ninguém sem idade nem sem classificação de gênero, pois mesmo os recentes questionamentos sobre o binarismo de gênero e a expansão de seu espectro, ainda localizarão as pessoas em algum tipo de classificação. Assim sendo, todo ato violento será cometido por alguém de alguma idade, de algum gênero, desde que seja cometido por uma pessoa. Daí a tomar esses dados como causadores, fatores de risco e promotores de violência, como se no fato de ser homem e ter 23 anos residisse a motivação do ato violento, há lonjura abismal.

Em mais uma categorização, aponta-se que nos Estados Unidos (KRUG, 2002, p.10), jovens afrodescendentes apresentam índice de homicídio duas vezes maior que o de jovens hispânicos e doze vezes maior que o de jovens caucasianos. A busca enfática pelas causas da violência raramente reflete sobre a essência que a relação de causalidade guarda, pelo contrário, já toma essa busca como tarefa e segue, irrefletida, a angariar dados compreendendo-se enquanto cientifica e matematicamente neutra. Tomar a etnia como critério para cálculo de homicídios, por exemplo, acaba por ratificar preconceitos de forma desavisada, podendo aumentar rivalidades e possíveis outras violências. A boa intenção da busca causal de reduzir a violência, pode acabar acirrando aquilo que visava combater.

A irreflexão já mostra seus primeiros sinais na pretensão de neutralidade estatística. Em que se funda a tomada da etnia, do gênero ou da idade como critério? Por que não há pesquisas tabelando a altura, o peso ou o gosto musical dos assassinos? De certo modo, há de início a premissa de que estes últimos não influenciariam em nada, mas a etnia, a idade e o gênero sim. Subjaz então uma visão de homem definido por estas características.

A visão de homem em jogo é aquela do ser biológico individual, visão que sustenta todas essas conclusões prévias. Se tomarmos como base a compreensão do homem enquanto abertura de sentido (HEIDEGGER, 2005), seria necessário desenvolver outros tipos de pesquisas, possivelmente na direção de ampliar as perspectivas e de abrir mão de conceeitos prévios, os quais seriam mais atinente enveredar pela compreensão da relação de motivo nas situações de violência, ao invés de causas. Motivos guardam mais liberdade, pois não buscam determinantes eternos, mas concebem os acontecimentos como situacionais, ao invés de expressões exemplares de regras gerais, tais como as causas (HEIDEGGER, 2001). A busca por regras gerais comumente visa o controle. Reconhecer a relação de motivo seria também reconhecer a indeterminação e negatividade existencial fundadoras da experiência do ser-aí, deixando em voga que os fenômenos não possuem substrato controlável ou preditivo.

Por fim, nesta seção inicial do Relatório, reconhecendo que os modelos apresentados não contemplam todas as situações, nem tampouco conseguem explicar a fundo a ocorrência da violência, ela é definida como "o resultado de uma complexa interação de fatores individuais, de relacionamento, sociais, culturais e ambientais" (KRUG, 2001, p.34), de onde se elabora o modelo ecológico das raízes da violência, visando melhoria na tentativa de evitá-la. O nível individual aponta para fatores biológicos e características de personalidade "que aumentam a possibilidade" (KRUG, 2001, p.34) da pessoa ser violenta. Tangencia-se aí as hegemônicas concepções de homem vigentes na tradição da Psicologia relativas às determinações metafísicas biologizantes e subjetivistas, que perpetram o sujeito como fundamento das experiências, e a noção de homem como substância que pode ser controlada para alcance de fins previamente dados, tais como o bem comum e o bom comportamento.

Para controle da violência, aponta-se ainda os níveis relacional, considerando a exposição de vítimas a pessoas com histórico violento; comunitário, correlacionado o risco a características iminentemente perigosas dos cenários de escola, locais de trabalho e vizinhança; e social, representado pela desigualdade e normas ratificadoras de paternalismo, de uso de força e de conflitos políticos.

A gama de elementos tomados como causas é enorme, e o documento deixa claro que elas mudam de situação para situação. A intenção do mapeamento é, no entanto, de descrever padrões. Padrões esses sempre tardios em relação à violência já ocorrida, pois buscam exercer prevenção baseados nas situações que já aconteceram. Há dados de campanhas que realmente conseguiram diminuir índices de violência (KRUG, 2001, p.35), mas não erradicá-la, apontando para o fato de que existe no fundamento dos atos de violência uma certa indeterminação. Que por mais que se possa descrever tipos, fatores e supostas raízes, a violência, tal como todo acontecimento da vida, escapa das mãos da regra e da regularidade, deixando a tentativa de controle sempre no lugar do perseguidor que nunca alcança seu perseguido. A indeterminação da vida está sempre um passo a frente, por melhor que seja a técnica. Não se trata de inventar uma técnica melhor, mas de encontrar uma outra ponte para o fenômeno para além da técnica, dado que, muitas vezes, como mencionado anteriormente, o afã do cumprimento da tarefa não cuida de olhar seus pressupostos e pode acarretar no recrudescimento de novas violências.

As propostas de paz de nosso tempo são, muitas vezes, temerárias. Nas tentativas cegas do controle, a violência não aparece como grito explícito, mas esconde-se no implícito silêncio. Há uma citação popularmente atribuída a Tom Jobim de que a música não se faz ouvir pelas notas, mas pelo silêncio entre elas. Do mesmo modo, a violência calada escapa das mãos por tamanha sutileza, faz-se camuflar, e por isso, temerária, não se sabe violenta por ignorar a si mesma, e assim, é tautológica4.

 

Insuficiência compreensiva

Como incialmente tematizado, este artigo não se propunha a compartilhar da tarefa da OMS de prevenção e correção da violência, mas sim, tomar como caminho a necessidade de que outras formas para além das hegemônicas pudessem ter situação para surgir, para que haja um movimento mais livre no trato da questão. A correção e a prevenção muitas vezes fazem uso de mais violência na busca pela extinção da mesma, como um cão que corre atrás da própria cauda, como bombeiros a utilizar gasolina, ao invés de água. A insuficiência deste modelo não se reflete apenas nos números crescentes de mortes e agressões, nem no reconhecimento da falência das tentativas de extinção, mas igual, ou talvez, principalmente, na infertilidade de seus modos de aproximação do fenômeno. O automatismo da tautológica "guerra à violência" impede formas férteis de pensamento e de ação, aprisionando-se a invólucros que protegem a todo custo um mote oco, sem raízes nem direções.

Insuficiente não no sentido de controle e redução dos números, mas insuficiente no sentido de que a lida hegemônica não faz pensar, não desvela possibilidades, não restaura o caráter originário da violência de modo que possa aparecer nos fenômenos aquilo que lhes é mais fundamental; uma vez que já são, de início, tomados como erros, como exceção, como defeito. Como sintoma a ser curado, como obstáculo a ser ultrapassado.

Os números crescentes denotam a insuficiência porque revelam, consigo, um certo modo de pensar a violência e de falar da mesma. O crescimento é acompanhado de tentativas de controle e prevenção em larga escala, e essas sim, impedem modos mais livres de se tomar e de se aproximar da questão da violência. Um primeiro passo no caminho de abordá-la a partir de um prisma com maior angulação provém da atitude de aceita-la como manifestação possível de nossa existência. A atmosfera predominante se direciona no sentido de compreender a violência como um "erro do sistema" ou um defeito de fábrica. Como um apêndice que pode ser extirpado para que se fique, então, com uma versão pura e correta do homem, em que caiba apenas a paz. Mas que paz?

Aceitar a violência como uma das possibilidades, sempre uma possibilidade, não significa instiga-la nem tampouco relevá-la. Igualmente não se trata de exercer tal aceitação como uma técnica estratégica para alcançar a diminuição da violência. Os ganhos que a aceitação pode nos dar não se medem nem são de tal ordem: são ganhos compreensivos que podem fundamentar atitudes com maior mobilidade existencial.

Atualmente, tal liberdade se faz escassa através das posturas automáticas e imediatas de repressão, correção, controle e prevenção. Este método se esgota tanto em termos práticos, por sua insuficiência em alcançar os objetivos pretendidos de redução da violência, quanto em termos compreensivos, por limitar os muitos modos possíveis de nos aproximarmos da violência a apenas um só: o modo da técnica.

A compreensão de técnica é aqui tomada na perspectiva heideggeriana de um horizonte nos quais os fenômenos já sempre se mostram a nós enquanto meios para fins, reduzidos a combustível disponível para o funcionamento de sistemas. Propor uma compreensão ampla nada tem a ver com exercitar o aprendizado de novas sinapses ou angariar processos cognitivos variados. Não se trata de um ganho racional, mas de uma abertura existencial na qual toda e qualquer compreensão ôntica pode se dar. Ontologicamente, busca-se um espaço existencial para que possibilidades compreensivas, na direção da diminuição da violência, encontrem solo para brotar.

Deste modo, a compreensão é genitora de toda ideia, progenitora de toda ação. Retrocede-se a ela para compreender o que doou fertilidade a determinada conduta, qual o mote que sustenta e dirige suas diretrizes, discursos e propostas. Heidegger ressalta que o mote principal de nosso tempo se funda naquilo que descreve como a era da técnica: um tempo que toma as coisas como simplesmente dadas, desprovidas de mundo e de historicidade, podendo ser descritas e discriminadas por seus atributos técnicos, racionais e objetivos, e, por isso, passíveis de controle através de tal descrição das relações causais e instrumentais em jogo. Controle este que trabalha para a palavra de ordem da produtividade, de um movimento contínuo que apresente resultados adequados às expectativas concebidas antes do tempo de mostração das coisas.

A concepção corrente de técnica que, segundo Heidegger (2007, p.376), é a "de determinação instrumental e antropológica", volta-se para uma relação da produção de determinados resultados, em que se desenvolve, independente da maior ou menor complexidade, um instrumento que se possa dominar enquanto o meio para alcance de determinado fim. Na pretensão do domínio, "O querer dominar se torna tão mais iminente quanto mais a técnica ameaça escapar do domínio dos homens" (HEIDEGGER, 2007, p.376). A partir das considerações anteriores explicitadas pelo Relatório Mundial de Violência e Saúde, é possível compreender que é através da técnica que a violência hoje é tratada, tanto através de políticas públicas de controle, quanto através do pensamento do senso comum que demanda por tal domínio. O senso comum alocando este domínio como função do Estado ou, como aparece de forma forte na atualidade, na figura de "vingadores" que façam justiça "com as próprias mãos", e de forma mais pontual e direta, controlem e solucionem o que se compreende como um problema de funcionalidade social ou de saúde pública.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quanto mais a violência aumenta, mais se tenta lidar com ela sob o modo do domínio e do controle da técnica, compreendendo a aplicação dos mecanismos corretivos como meios para alcance de fins previamente desejados, tal qual uma máquina que apresenta determinado "output" ao receber o respectivo "input". A presença da técnica enquanto filtro que tinge toda e qualquer compreensão hegemônica de nosso tempo, e precisa vir à tona para que possa ser lembrada - de outro modo, simplesmente utiliza-se esse filtro, sem nunca percebê-lo. Como nossos olhos estão para nossa visão: vemos já aquilo que o olho possibilita enxergar, mas nunca o olho em si, embora seja ele fundamento da possibilidade do ver. A técnica é presença constante, mas raramente se faz manifesta. Como aponta Heidegger (2007, p.376):

"(...) de modo mais triste estamos entregues à técnica quando a consideramos como algo neutro, pois nessa representação, à qual hoje em dia especialmente se adora prestar homenagem, nos torna completamente cegos perante a essência da técnica".

O esquecimento e a invisibilidade calcificam modos de lida e de surgimento dos fenômenos, que precisam ser reconduzidos ao sentido ontológico através da reconquista da pergunta pelo ser e da temporalidade, para que possam assim, fenomenologicamente, mostrar-se de modo mais próprio. A calcificação se funda em uma compreensão da vida como substância, e ainda, substância atemporal. Reinscrever a vida no tempo, no acontecimento, é recuperar seu caráter fugaz e finito, recuperar sua fragilidade, da qual tanto tentamos nos afastar.

É, porém, nos traços frágeis da vida que se encontra o lugar do acontecimento, onde é possível acompanhar as possibilidades do próprio viver. É da fragilidade da existência que se abre a possibilidade da lida própria, enquanto um modo de desvelamento atento à condição inexorável de impropriedade e do decaimento na norma utensiliar. É, mais fortemente, da relação tensionada entre estes movimentos existenciais que emerge a possibilidade de reflexão, esta que buscou-se aqui exercitar. Como o caminho da serenidade que ao dizer sim e não à técnica concomitantemente, possibilita que ela se mostre mais originariamente, é possível trilhar em seguida um caminho de dizer sim e não à violência ao mesmo tempo, de modo a não atar nem negar as questões em voga.

Na matemática da segunda à décima terceira bala dirigidas à Mineirinho, ficam velados o paradoxo da extinção da violência, as frágeis compreensões cotidianas sobre o violar, a busca pela paz intangível, e a sua irrefutável insuficiência. É caminho futuro verter olhares sobre os elementos presentes, porém não manifestos nas demais práticas relacionadas à violência na contemporaneidade. Trazê-los ao brilho da experiência é também ampliar a compreensão e desvelar possibilidades, tarefa que se impõe a pensamentos vindouros.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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HEIDEGGER, M. A questão da técnica. Tradução de Marco Aurélio Werle. Revista Scientiae Studia. São Paulo, v. 5, n. 3, p. 375-98, 2007. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ss/article/view/11117/0. Acesso em 13/03/2016.

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______. Entrevista à TV Cultura. Disponível em: https://br.video.search.yahoo.com/search/video?fr=mcafee&p=youtube+lispector#id=1&vid=cc9ade0fd3892edf4356c7194bb9e569&action=click. 1977. Acesso em 24/02/2018.

WAISELFISZ, J. J. Mapa da violência 2014: homicídios e juventude no Brasil. Brasília: Qualidade, 2014.

 

NOTAS:

* Letícia Reis de Andrade Souza – Especialista em Psicologia Clínica pelo Instituto Carioca de Gestalt-Terapia (ICGT/pós-graduação) e graduada em Psicologia (Bacharel e Psicólogo) pela Universidade Federal Fluminense (UFF), onde foi pesquisadora de Iniciação Científica na área de Fenomenologia por 3 anos, sendo 2 com apoio da FAPERJ. Atualmente, é Professora na graduação de Psicologia no Instituto Brasileiro de Medicina de Reabilitação (IBMR), Mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGPS-UERJ), com enfoque em fenomenologia e violência, e psicóloga clínica.
1 A doutrina ética utilitarista, que tem no séc. XIX em Jeremy Bentham e em John Stuart Mill dois de seus expoentes, profere que toda ação deve maximizar a utilidade, ou seja, produzir o maior bem para a maioria, a partir do raciocínio moral consequencial, que valora as ações estritamente pelas consequências que produzem.
2 Comparação à palavra "pasmaceira" que indica apatia, falta de movimento ou interesse.
3 O documento referido numera algumas páginas em algarismos romanos.

 

Endereço para correspondência
Letícia Reis de Andrade Souza
Endereço eletrônico:leticia.souza@ibmr.br

 

Recebido em: 24/02/2018
Aprovado em: 26/11/2019