ARTIGO

Gaijin II, Metamorfose e Psicoterapia.

Prof.Celso Lugão da Veiga (1)



O filme de Tizuka Yamasaki (2), Gaijin II – Ama-me como sou, e Metamorfose - estágios de uma vida, a autobiografia de David Suzuki (3) suscitam a questão fundamental da psicoterapia: até que ponto a mudança da personalidade é possível ?

A perspectiva da psicologia atual, um somatório das contribuições da história e da pesquisa desta ciência, incluindo especificamente os campos da personalidade e da psicoterapia, aponta que as mudanças são possíveis dentro de certos parâmetros que são definidos pela herança genética e pela aprendizagem, esta última fortemente moldada pelas interações no seio da família.

Geração após geração os sistemas familiares se comportam com uma flexibilidade peculiar, e portanto variável, gerando transformações que são percebidas através do comportamento dos membros da família, ou seja, algumas famílias são mais flexíveis e outras mais rígidas em relação ao grau de liberdade que seus membros podem exercer em função dos valores daquele grupo.

Em Gaijin II pode-se apreciar a saga de uma família através de cinco gerações passando por momentos históricos entre o Japão e o Brasil, desde a imigração à colonização de Londrina em 1939 ( a pequena Londres), das bombas que dizimaram Hiroshima e Nagasáqui ao plano Collor(1990) e o terremoto de Kobe (1995).

Além do entretenimento, das belas imagens e da música, o filme premiado no Festival de Gramado (melhor filme; direção; música e melhor atriz co-adjuvante: diga-se, um show a parte) inspira a perspectiva, ambiciosa mas possível, sobre projetos pedagógicos que poderiam utilizar esta poderosa mídia visual-auditiva que é o cinema para realizar um sonho da educação : “ aprender se divertindo”.

A autobiografia de D. Suzuki interpenetra-se com a saga descrita no filme.Assim, após o ataque à base naval de Pearl Harbor (dez/1941), Suzuki, então com seis anos, e toda a sua família foram mandados para os campos de prisioneiros no Canadá, aonde permaneceram até o fim da guerra, quando tiveram confiscados pelo governo a maior parte dos seus bens materiais. Portanto, no Canadá e nos EUA as famílias japonesas ficaram nestes campos durante três anos (1942-1945).

As repercussões da II Guerra Mundial (1939-1945) foram vivenciadas por todas as famílias, entretanto, talvez por sua fisionomia característica e identificável, as japonesas tenham sido mais discriminadas, fato análogo se repetiu em nossos dias, após o atentado de 11 de setembro, em relação aos muçulmanos.

O impacto destes eventos junto as tradições de cada família, a sua dinâmica para lidar com os acontecimentos externos e as regras internas de cada grupo familiar específico são fundamentais para a psicoterapia, aonde pelo menos quatro parâmetros são rigorosamente observados: a queixa ou sintoma (estado atual do cliente), a solução ( estado desejado), os obstáculos e os recursos para se chegar a “cura”, ou a um estado que permita “tocar a vida para a frente”.

Gaijin II e Metamorfose são pérolas pedagógicas em termos de psicologia e psicoterapia porque ilustram estes temas: tradição, fé, crenças, relacionamentos familiares e afetivos, a flexibilidade que pode surgir das interações entre a família e os eventos externos. No filme usa-se uma metáfora, o espírito gambarê, um impulso que estimula a continuar apesar das adversidades.

Na vida real, após o terremoto ( jan/1995) em Kobe foi construída naquela cidade (em dez/1995) uma luminária gigantesca, cobrindo um espaço de 500 metros, para levantar o ânimo dos cidadãos. Através de um jogo de luzes apresentam-se temas como “Sob a luz mais pura” ou “A via Láctea” e as pessoas transitam abaixo deste enorme símbolo do “espírito gambarê.”, certamente meditando sobre a condição humana.

Em Metamorfose, D. Suzuki escreve que salvar as aparências é uma coisa extremamente importante na cultura japonesa e observa também que os casamentos arranjados pelos interesses das famílias em preservar certos valores acabaram cedendo espaço para o amor. Os pais de Suzuki foram os primeiros na família a se casar “porque estavam apaixonados”, tema também mostrado pelo filme de Tizuka, que reúne cenas de humor e tragédia em torno deste argumento.

Uma das funções da psicoterapia é justamente auxiliar as pessoas através dos estágios da vida, muitas vezes resignificando através da etimologia ou da mudança de perspectiva das tradições históricas, das crenças e dos valores.Assim até que ponto é lícito se salvar as aparências?; na verdade o que significa isto ... “salvar as aparências” ?.

Historicamente pode-se entender que era muito importante para a sobrevivência dos grupos que eles se fechassem para se ajudar mutuamente através das dificuldades visando a segurança e a prosperidade, o amor era secundário à sobrevivência. Mas os tempos passam e aquilo que cabia num momento já não cabe em outro, acompanhar as mudanças é um sinal cada vez mais claro de que esta flexibilidade é determinante também para a sobrevivência.E aí reside uma das ações do psicólogo, auxiliar os sistemas familiares nestas transições pela vida, para que seus membros possam ampliar o sistema e garantir a continuidade e a qualidade da vida.

As aprendizagens familiares determinam temas, alguns graves: desde síndromes do pânico até suicídios e assassinatos. Mas também geram recursos poderosos, como a filosofia do perdão e do amor ao próximo.

Apenas para exemplificar, um estudo na Inglaterra aponta que os casais em fuga das rígidas normas das famílias de origem muçulmana, apresentam ansiedade, insônia e síndrome do pânico. Isto começou a ser pesquisado após a morte de uma jovem mulher em 1998.

Aos dezesseis anos de idade Rukhsana Naz foi enviada para o Paquistão e obrigada a se casar. Entretanto, no retorno à Inglaterra, já casada, continuou namorando o rapaz por quem estava apaixonada ; então foi estrangulada pelo irmão, enquanto a mãe a imobilizava.

Depois disto as autoridades britânicas criaram, no ano de 2000, um órgão de proteção às mulheres muçulmanas vítimas de casamentos forçados. Até 1998 a polícia britânica não sabia por que a taxa de suicídio entre as jovens mulheres muçulmanas era três vezes maior do que a de não muçulmanas na mesma faixa etária, a partir daí passou a suspeitar que um percentual destes suicídios tenham sido assassinatos, e os profissionais de saúde compreenderam alguns dos motivos que levavam outras jovens ao suicídio; as rígidas normas da família.

Quanto aos recursos as famílias perpetuam símbolos e metáforas, que atravessam gerações e séculos, é o caso da filosofia do perdão e do amor ao próximo.

A psicoterapia sabe que a raiva é uma emoção passageira enquanto o ressentimento é um processo repetitivo de estresse a longo prazo, não importa pois se os sentimentos são justificados ou não em relação a alguém que nos ofendeu, o que se deve entender é que mantendo o ressentimento eu estou sendo a minha própria fonte de “stress”.

É nisto que repousa a filosofia do perdão, se você guarda ressentimento, rancor, você debilita e compromete o seu sistema psiconeuroimunológico.

Mas como amar ao próximo, incluindo os inimigos, os estupradores, assassinos ou aqueles que te ofenderam?

Muitas famílias têm em Jesus a referência para este mandamento, então talvez fosse útil pensar na hipótese da implicação de o Novo Testamento ter sido escrito originalmente em grego. Citam os filólogos que o termo grego usado no Novo Testamento para amor significava comportamento e escolha e não sentimento. Isto é, amai seu inimigo não seria nutrir um sentimento de amor, como hoje entenderíamos, por quem nos prejudicou, ou tentar fazer de conta que as pessoas ruins não são ruins; significa que deveríamos tentar nos manter em nosso caminho, isto é, o termo grego apontava para uma perspectiva específica do fenômeno do amor, aquela ligada à satisfação de um desejo ou o prazer de fazer coisas agradáveis sem sairmos da nossa linha de conduta e princípios. Algo que os psicoterapeutas conhecem pelo termo “amor incondicional”, e que os pais que freqüentam grupos de apoio por causa das drogas aprendem a diferenciar para estarem aptos a seguir na vida, “nós amamos nosso filho mas não iremos junto com ele para a morte, se ele não fizer a sua parte no tratamento de seus vícios. Manteremos nossa compaixão por ele e seguiremos em nosso caminho usufruindo o lado agradável da vida que podemos continuar construindo.”

Certamente os espectadores de Gaijin II e os leitores da autobiografia de D. Suzuki poderão apreciar e refletir sobre os temas acima que são relevantes para a psicoterapia e para a qualidade de vida de modo geral, inclusive para a formação da cidadania e dos conceitos de justiça social e tolerância com as diferentes culturas .

Finalizando e fazendo uma pequena digressão, quando o ministro da cultura Gilberto Gil cita, em entrevista recente (O Globo, 2º caderno, 31/ago/05), que a cultura é estratégica ao lado de outras áreas que buscam reconhecimento como meio ambiente e inclusão social e que tem um papel fundamental em questões como coesão social, cidadania, qualificação da subjetividade para aplicação em vários campos, e aponta que a compreensão do próprio conceito de cultura precisa ser trabalhada, posto que é mais do que produção cultural que poderia ser medida por números, ele levanta argumentos para uma velha reflexão: a educação, tendo como base a flexibilidade, precisa se atualizar e utilizar os meios de influência mais eficazes.

Logo o cinema, além de divertir, pode multiplicar e sintetizar muitas informações abrindo caminho para os livros através da curiosidade gerada, principalmente se os professores fizerem um trabalho paralelo e integrado, aí teremos muitas sementes para permitir mudanças em prol de uma consciência e personalidade saudáveis.


(1) Celso Lugão da Veiga, nascido em 07 de outubro de 1954, no Rio de Janeiro, Brasil, é Supervisor em Psicoterapia Estratégica do Serviço de Psicologia Aplicada e professor de Percepção, Personalidade e Tanatologia – estudos sobre a morte, no Instituto de Psicologia da Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ.

(2) Tizuka Yamasaki, nascida em 12 de maio de 1949, no Rio Grande do Sul, Brasil, gaúcha de origem japonesa, tem um longa trajetória no cinema brasileiro, tendo em 1980 realizado Gaijin – Caminhos da Liberdade, filme vencedor de vários prêmios em Gramado, além de vasta filmografia (Parahyba, Mulher Macho,1983; Patriamada, 1984,etc).

(3) David Suzuki, nascido em 24 de março de 1936, em Marpole, perto de Vancouver, canadense de origem japonesa é o conhecido apresentador do programa “A Natureza das Coisas” e defende, através da David Suzuki Foundation, questões ligadas à sustentabilidade do planeta.