ARTIGO

Tortura e suicídio a partir de uma perspectiva Gestáltica: o caso de Frei Tito de Alencar Lima.

Torture and suicide from a Gestalt perspective: the case of Frei Tito de Alencar Lima.

Maria Evonilde Assis*

IGT - Isntituto de Gestalt-Terapia e Atendimento Familiar, RJ

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo tem como propósito apresentar resultado de estudo sobre as relações entre tortura e suicídio a partir da perspectiva “Gestáltica”. Utilizamos para isso o caso de Frei Tito de Alencar Lima, contextualizando o período vivido por ele durante o regime ditatorial no Brasil, focando os impactos psicológicos decorrentes das torturas a que fora submetido. Buscamos também analisar, por intermédio de seus escritos o que lhe ocorreu, na tentativa de compreender o que o levou ao suicídio. Abordamos os temas da tortura e suicídio em Frei Tito, a partir da perspectiva da Gestalt-terapia. Nossa metodologia teve como fundamento a Pesquisa Bibliográfica, por meio da qual analisamos as biografias sobre Frei Tito, assim como seus próprios escritos e os relatos dos que com ele viveram, como o psiquiatra que o acompanhou em seu estado mental.

Palavras-chave: Gestalt-Terapia; Tortura; Suicídio; Frei Tito; Ditadura.


ABSTRACT

This article aims to present results of study on the relationship between torture and suicide from the Gestalt perspective. We use for it the case of Friar Tito contextualizing the period experienced by Friar Tito during the dictatorship in Brazil, focusing on the torture’s psychological impacts. We also seek to analyze, through his writings what happened to him, trying to understand what drove him to suicide. We address the issues of torture and suicide in Friar Tito, from the perspective of Gestalt Therapy. Our methodological approach was based on the bibliographical research, through which we analyze the biographies of Friar Tito, his own writings and the narrations of his friends, and the psychoanalytical analysis of the mental state of the Friar.

Keywords: Gestalt Therapy; Torture; Suicide; Friar Tito; Dictatorship.


 

Introdução

Propõe-se, por este artigo, apresentar elementos apreendidos no curso de especialização em Gestalt-terapia, articulando-os com a análise do caso de Frei Tito de Alencar Lima. Para isso, apresenta-se aqui um estudo a partir da perspectiva “Gestáltica” sobre as relações entre tortura e suicídio, tendo como base o caso de Frei Tito. Pretendemos ainda contextualizar o período vivido pelo Frei durante o regime ditatorial no Brasil, destacando os impactos psicológicos decorrentes das torturas. Buscamos também analisar, pelo enfoque da Gestalt-Terapia, escritos biográficos do próprio Frade, na tentativa de compreendermos fatores psicológicos em torno do desfecho de sua vida, pelo suicídio.

Segundo os relatos biográficos, Frei Tito de Alencar Lima era um individuo inteligente, estudioso das questões religiosas e sociais, sonhador e sensibilizado com a causa da justiça social e de modo particular com consequências da repressão disseminada pelos órgãos militares na época (1964-1985). Estudar os efeitos da tortura em sua psique, a partir do viés Gestáltico tornou-se um grande desafio e, ao mesmo tempo, uma oportunidade de transitar por essas duas temáticas. Uma delas diz respeito ao aprofundamento e entendimento do aporte gestáltico e a outra, diz respeito à possibilidade de aproximação da experiência vivida por frei Tito. Dessa forma, a principal justificativa para este trabalho está nas possibilidades de estudo das congruências entre a Gestalt e a experiência singular deste frade. A atualidade deste estudo está na possibilidade de refletirmos sobre questões políticas e sociais contemporâneas da sociedade brasileira. Passamos hoje por confrontos ideológicos em que forças (auto)identificadas como conservadoras pretendem realizar um revisionismo sobre o período ditatorial, minimizando os aspectos sombrios daquele contexto. A trajetória do Frei Tito alerta para o perigo desses revisionismos, os quais podem mascarar a real situação de tortura e sofrimento comuns à ditadura seu alastramento para os dias atuais.

Como metodologia para realização desse trabalho, buscamos inicialmente uma analise bibliográfica pautada em produções nacionais e internacionais sobre as consequências sócio psicológicas das torturas produzidas no período da ditadura civil militar. Foi necessário efetuar um levantamento e leitura dos escritos de Frei Tito, buscando identificar como o mesmo descreveu esses acontecimentos e as consequências psicológicas que isso acarretou em sua vida. A partir dessa perspectiva buscamos na Gestalt Terapia as bases epistemológicas que respaldam a correlação aqui apresentada. A linha de pesquisa escolhida foi: Fundamentos Epistemológicos da Gestalt-Terapia.

Por ser a Gestalt-Terapia o viés condutor deste estudo, sentimos necessidade de apresentar sua especificidade dentro da área da Psicologia. Aquela é uma abordagem que dá ao cliente a oportunidade de se perceber na totalidade de sua experiência, tendo como referência o que ele é como pessoa e o que almeja como propósito de vida. É uma abordagem existencial humanista e fenomenológica, pois está centrada na descrição subjetiva do sentimento, a “awareness”1 do indivíduo. Por este motivo, abordar a história de Tito que na singeleza de sua vida, mostrou a força de suas convicções e vocação, fez-nos perceber certa congruência com a temática defendida por Frederick Perls em sua busca por qualificar as coisas simples da vida humana.

Na defesa de suas ideias, Perls (1977) segue um encadeamento de ideias conexas, de modo a tornar perceptível o que pretendia defender. Inicia apresentando sua concepção de controle, dividindo-o em dois tipos: um que vem de fora, quando nos sentimos controlados pelos outros, por ordens e pelo ambiente e outro que é interior, que se incorpora em todo o organismo, em nossa própria natureza. Este autor entende organismo como sendo qualquer ser vivo que possua órgãos, que tenha uma organização, que se autorregule. Segundo ele, o organismo não se entende fora do ambiente. No ambiente físico, troca-se ar, comida, etc. No ambiente social, troca-se amizade, amor, raiva. Desse modo o autor apresenta o organismo com suas inúmeras interconexões de células, cujo resultado é um trabalho coeso.

Com a ideia de coesão concebida a partir da ideia de organismo, Perls diferencia o ter do ser. Ou seja, se tudo está interligado, numa rede única, então as partes não existem sem o todo. Logo, não temos um fígado, somos fígado, coração, cérebro, etc. Mas ao mesmo tempo não somos simplesmente o resultado da soma, e sim coordenação sutil dos diferentes elementos que compõem o organismo. Os diferentes órgãos e células são diversificados em sua especificidade e ao mesmo tempo interdependentes. Ampliando essa concepção, o autor chega à ideia de saúde como o equilíbrio apropriado da coordenação de tudo o que somos, ou seja, de todos os elementos que nos compõem. Existimos como organismo e nos relacionamos com o mundo exterior como qualquer outro organismo. “Temos sempre que considerar o segmento de mundo em que vivemos como parte de nós mesmos”. (PERLS, 1977, p. 21). Desse modo este autor propõe que não se separe o organismo do ambiente.

Uma das bases de estruturação da Gestalt-terapia é a fenomenologia, a qual propõe como metodologia o perceber, o sentir e o atuar. Nessa concepção, o que interessa é o fenômeno tal qual se apresenta. Por conta disso, objetiva-se “tornar os clientes conscientes ('aware') do que estão fazendo, como estão fazendo, como podem transformar-se e, ao mesmo tempo, aprender a conceituar-se e valorizar-se” (YONTEF, 1998, p. 16). Portanto, segundo este autor, a ênfase é dada no que está sendo feito, pensado e sentido no momento atual. Busca-se um olhar apurado sobre o que é sentido “subjetivamente” no presente, como o que é “objetivamente” observado como dados reais e importantes. Por isso, a pessoa deve aprender a ampliar sua “awareness”. E o que isso significa? Polster (2001) descreve a “awareness” como meio contínuo de atualização do próprio eu. Quando isso se dá em terapia, leva-se em conta o conjunto completo entre a fala e o conteúdo da pessoa. Porém, o foco principal está no modo como tudo isso acontece no momento em que se dá o processo. Segundo Perls, Hefferline e Goodman (1997, p. 46) trata-se da “maneira como o que está sendo relembrado é relembrado, feito, dito”. É a atualização no aqui e agora do que está acontecendo com a pessoa. Esse processo é dialógico e acontece por meio do contato.

Nas reflexões identificadas por nós neste estudo, estão presentes o que consideramos como ampliações de conhecimentos e qualificação para a escuta e a compreensão da realidade pessoal de indivíduos a partir de aspectos fenomenológicos próprios da análise “gestáltica”. A metodologia utilizada no curso de Gestalt-terapia do IGT viabiliza o olhar contínuo sobre o fazer próprio de cada formando. A congruência entre teoria e prática foi a tônica que persistiu durante o período de formação. Esse processo nos ajudou a, continuadamente revisitar as abordagens que trazíamos conosco, na tentativa de nos reinventar, cada um conforme suas próprias peculiaridades.

Outro propósito deste deste trabalho foi o de buscar conexão com a temática de investigação do grupo de pesquisa da UNIRIO ao qual estou vinculada como pesquisadora desde seu início, em 20092 . Nesse grupo estuda-se, entre outros aspectos, os efeitos da ditadura civil militar no Brasil3, em especial nos movimentos sociais. Tem sido significativo estudar esse período histórico que é muito revelador sobre nosso presente. Entramos na pesquisa sobre frei Tito com ressalvas e, diria até com algum preconceito, considerando tratar-se de uma pessoa fraca, sem muita convicção do que queria para si. Saímos convictos da força que Tito carregava consigo e dos inúmeros sonhos de liberdade e justiça presentes em seu projeto de vida.

O trabalho foi desenvolvido a partir da seguinte estrutura: um breve relato situando o contexto em que ocorreu o regime ditatorial no Brasil, com os anos e os governos correspondentes, assim como eventos relevantes ocorridos em tais períodos. Desenvolvemos um tópico bibliográfico sobre tortura e de modo especial como ela se deu durante a ditadura. Seguiu-se um breve olhar sobre o suicídio, no qual buscamos apresentar suscintamente como pensa e age uma pessoa suicida. Por fim, nos detivemos na história de vida de frei Tito, com alguns detalhes sobre quem foi e o que o levou a tomar uma medida tão radical sobre a própria vida.

 

Ditadura civil militar no Brasil

Com o intuito de situar o período da ditadura militar no Brasil, apresentamos breve relato sobre o período, com foco em 1964, data do Golpe de Estado. Alguns anos antes, o País vivia a transição de Getúlio Vargas para Juscelino Kubitschek. Conforme referido no livro Brasil: Nunca Mais (1987)4 , muito antes desse período, o governo de Getúlio Vargas sofria com pressões dos diferentes segmentos sociais. Entre 1950 e 1954, seu governo viveu ambiguidades, pois “nem se amoldava aos interesses dos monopólios estrangeiros, que crescentemente avassalavam a economia brasileira, nem ousava estimular abertamente a participação popular para impor medidas nacionalizantes” (BRASIL: Nunca Mais, 1987, p. 56). Por estes e outros motivos, chefes militares, forças norte-americanas, e parte das elites brasileiras reforçaram suas articulações em torno de uma pressão sobre o governo interino. Mediante o suicídio de Getúlio e as manifestações populares que se articularam com toda força em todo o país, “a direita militar se viu obrigada a interromper sua conspiração e aguardar nova oportunidade”. (Ibid., p. 57)

Em 1956, Juscelino Kubitschek foi empossado como presidente eleito. Esse fato não minimizou as tensões. No final do seu mandato, em 1961, assume o novo presidente Jânio-Quadros. Segundo obra acima citada, esse governo configurou-se em curto período definido como autoritário no plano interno, aberto em termos de política internacional, e conturbado por sua renúncia meses depois. Esse fato levou o então vice presidente, João Goulart (Partido Trabalhista Brasileiro) a assumir o cargo de presidente, apoiado em todo o país pelos movimentos populares, por tratar-se de um populista e herdeiro do nacionalismo getulista. Nos anos subsequentes, haverá intenso crescimento das lutas populares. Goulart conseguiu, via plebiscito popular, restaurar o regime presidencialista e as reformas de base. Segundo Araújo, Silva e Santos (2013) “Entre as principais reformas constavam a reforma fiscal, administrativa, universitária e, principalmente, a reforma agrária”.

Percebemos no recorte do discurso de João Goulart, as preocupações que impactavam o seu governo:

“Hoje, com o alto testemunho da Nação e com a solidariedade do povo, reunido na praça que só ao povo pertence, o governo, que é também o povo e que também só ao povo pertence, reafirma os seus propósitos inabaláveis de lutar com todas as suas forças pela reforma da sociedade brasileira. Não apenas pela reforma agrária, mas pela reforma tributária, pela reforma eleitoral ampla, pelo voto do analfabeto, pela elegibilidade de todos os brasileiros, pela pureza da vida democrática, pela emancipação econômica, pela justiça social e pelo progresso do Brasil”. (ARAÚJO, SILVA E SANTOS, 2013, p. 17)

Constavam ainda no programa de reformas, segundo as autoras, as políticas nacionalistas, como o controle sobre o capital estrangeiro e o monopólio de setores estratégicos da economia. Segundo ainda as mesmas autoras (2013), foi um período de intensa atividade política, com radicalização das esquerdas e das direitas, ampla discussão em torno dos projetos para o país e por fim o comício do presidente, realizado no centro do Rio de Janeiro, tudo isso compôs os ingredientes para, o que alguns historiadores denominam golpe civil-militar, por contar com o amplo apoio de setores da classe média e burguesia industrial.

Em 03 de abril de 1964, o general Castelo Branco assume como presidente do Brasil. Com os militares instalados no poder.

“Começava a temporada de punições e violência praticadas pelo Estado. A montagem de uma estrutura de vigilância e repressão, para recolher informações e afastar do território nacional os considerados “subversivos” dentro da ótica do regime, e a decretação de Atos Institucionais arbitrários estiveram presentes desde os primeiros meses de governo”. (ARAÚJO, SILVA, SANTOS, 2013, p. 17)

Estava instalada uma ditadura militar que permaneceria por mais de vinte anos no poder. Após o golpe, lideranças políticas e sindicais foram presas, parlamentares cassados, militantes políticos exilados. Os partidos políticos existentes foram fechados e dois novos foram criados, conforme exigência do governo ditatorial: Aliança Renovadora Nacional (ARENA) e Movimento Democrático Brasileiro (MDB). Segundo o Brasil: Nunca Mais (1987), a questão era reorganizar toda a estrutura governamental. Implantando um modelo econômico cuja essência era concentração da renda, achatamento dos salários e desnacionalização da economia, caracterizada pela “abertura das portas” para o capital estrangeiro. A medida impositiva do arrocho salarial foi o principal responsável pela forte deterioração das condições de vida do povo brasileiro: aumento no número defavelas, fome, enfermidades, marginalidade.

Esse modelo econômico não se sustentaria sem que houvesse alteração na estrutura jurídica do país. Segundo a obra acima citada, era necessário reforçar o aparato de repressão e controle, modificando o sistema de relação entre o Executivo, Legislativo e Judiciário. Surge o primeiro Ato Institucional, dando amplos poderes ao atual governo. Depois desse, vários outros se fizeram necessários. Dentre eles, o que teve maior destaque frente ao que aqui estamos focando, foi o Ato Institucional n. 5, ou mais amplamente conhecido como “AI-5”5 . O intuito desse Ato foi o fechamento do Congresso Nacional por tempo indeterminado, a cassação do mandato de deputados, senadores, prefeitos e governadores e a decretação do estado de sítio. A denominação usada pelos pesquisadores sobre esse período especifico é de “anos de chumbo”.

 

Movimentos de resistência

Ao longo desse período, segundo Araújo, Silva e Santos (op. cit., 2013), os estudantes, artistas e intelectuais que se manifestassem contrários à ditadura, eram presos e perseguidos. Mesmo com esse aparato repressivo, diferentes grupos continuaram atuando como elementos de resistência. Esses grupos foram bastante ativos e agiram de forma constante. Na pesquisa apresentada por Brasil: Nunca Mais (1987), o perfil dos atingidos pela repressão política, em torno de 88% eram do sexo masculino e 12% do sexo feminino. Quanto à idade dos atingidos, 38,9% tinham idade inferior a 25 anos e outros “sequer tinham atingido os 18 anos quando começou a ser formada a ação penal”. (BRASIL: Nunca mais, 1987, p. 86). Continuando, a pesquisa informa que os envolvidos eram predominante da classe média, isso pode ser observado a partir do referencial de escolaridade. Em um país com um alto índice de analfabetos foi verificado que, mais da metade dos réus detinham nível superior de escolaridade.

Os estudantes de diferentes segmentos estudantis, mobilizados pela União Nacional dos Estudantes (UNE) ou por diferentes Pastorais Religiosas, se voltaram para agrupamentos que lutavam contra o regime repressivo. Mesmo frente ao esquema montado pelo regime militar, de ampla vigilância e controle, eles encontravam meios para burlar o cerco e trocar informações. Entre os anos de 1966 e 1968 os estudantes realizaram inúmeras passeatas e manifestações políticas em várias cidades do país, levantando a bandeira “Abaixo a ditadura militar” (ARAÚJO, SILVA E SANTOS. 2013, p. 19).

O ápice da luta estudantil foi em outubro de 68, quando se encontraram para o trigésimo Congresso da UNE, (naquele período estava na ilegalidade) em Ibiúna, SP. Para esse evento, Frei Tito foi um dos articuladores, negociando o sitio que acolheu os estudantes. Segundo Duarte-Plon e Meireles (2014), na época Tito tinha 23 anos e era presidente do Diretório Acadêmico do Instituto de Filosofia e Teologia (IFT). Ele foi encarregado de “encontrar um espaço grande e isolado para o congresso clandestino” (DUARTE-PLON, MEIRELES, 2014, p. 98). Descobriu que o general Euryale de Jesus Zerbini e sua esposa Therezinha, contrários a ditadura e de quem os frades eram amigos, tinham contato com um senhor, o qual possuía um sítio no interior de São Paulo. Tito solicitou então que pudessem negociar o empréstimo do sítio. Informou que seria para uma reunião, sem apontar maiores detalhes. Aquele senhor teria aceitado emprestar o espaço, sem saber ao certo de que se tratava. Segundo Duarte-Plon e Meireles (2014), Ibiúna fica a 70 Km de São Paulo e o sítio, a 14 Km da pequena cidade. Logo, um lugar bem afastado do grande centro urbano, porém não oculto aos militares, que prenderam e ficharam 712 universitários de todo o país naquela reunião, e entre eles estava Tito.

 

Tortura pela tortura

No livro Brasil: Nunca Mais, há um destaque para a frase de Victor Hugo escrita em 1874 “a tortura deixou, para sempre, de existir” (1987, p. 281), o que parece contradição entre as pessoas que de alguma forma tomam consciência sobre essa barbárie, desejando profundamente que ela desapareça, seja exterminada, abolida da ação dos seres humanos. No mesmo livro são apresentados dados da Anistia Internacional sobre as torturas física, moral e psicológica, amplamente aplicadas, ou toleradas por governantes de sessenta países, segundo dados da época. Há destaque também para a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), realizada em dezembro de 1948, aprovando a Declaração Universal dos Direitos Humanos, onde se lê no artigo 5º: “Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”. (p. 281)

Trata-se de um tema que pode nos causar repulsa. Não é necessário passar pela experiência para entender a essência da palavra tortura. Porém, o contato com a palavra em si, não se dá da mesma forma entre os que viveram situações de tortura dos que nunca passaram por tal circunstância. Quando o assunto é a tortura no período da ditadura no Brasil, há discordâncias vindas de algumas pessoas que desconhecem tal contexto em nosso País6 . Em alguns casos, configura ignorância quanto à realidade. Outros são limitados à captação de notícias da grande mídia, a qual defendeu e se aliou ao regime ditatorial, deixando de lado o papel de esclarecer, contextualizar e informar o público de maneira geral sobre o que ocorria nos meandros e bastidores do regime militar. “Aí o discurso ideológico pode, por vezes, ter seu efeito doutrinário aumentado” (NETO, 1985, p. 22).

Segundo os autores do livro Brasil: Nunca Mais, a finalidade da tortura nos governos ditatoriais era “obter informações, humilhar, intimidar, aterrorizar, punir ou assassinar prisioneiros políticos e comuns”. (BRASIL: Nunca Mais, 1987, p. 281). Segundo este e outros estudos, o interesse dos militares no Brasil era saber onde encontrar os “rebeldes”. Em diferentes depoimentos consta que, mesmo diante da informação desejada, a tortura continuava. Não foi diferente com Frei Tito de Alencar Lima. Em entrevista, quando esteve exilado no Chile7 , ele descreve os três dias consecutivos de tortura e a seguir um período de vinte horas consecutivas. Mudavam-se os turnos e o tipo de tortura, a qual variava conforme o grupo de torturadores de plantão. Tempos depois de sua morte, o psicanalista que o acompanhou em Paris, Jean-Claude Rolland, em uma palestra afirma que o que “torna possível a tortura é a abolição prévia de qualquer intercâmbio, qualquer linguagem entre o torturador e sua vítima”. Em seus argumentos, constata-se que não há uma escuta por parte do torturador, apenas a interpretação. E que, por meio de insulto, ele faz falar, confessar. Diz ainda que na situação de tortura, inexiste a semelhança. Em tais circunstancias, a humanidade, que é o fator de identificação entre os humanos, é desviada com o intuito de segregar, excluir, banir e por fim, desumanizar. (ROLLAND, Palestra proferida em Paris, 2011)

Neto (1985), em sua pesquisa depara-se com a necessidade de estudo sobre esse tema, alegando falta de empenho para se compreender a tortura enquanto fenômeno humano, protagonizado por vários sujeitos e articulado por relações particulares, onde o “poder de subjugar o outro parece ser o motivo principal e onde vida e morte se debatem num jogo incessante de características existenciais muito próprias” (NETO, 1985, p.21). Esse poder é estruturado numa relação grupal em que o indivíduo só aparece responsável frente a seu superior hierárquico direto, desculpando suas condutas: “somos mandados, obedecemos ordens”(Ibid.). Quando o assunto é a obediência às regras, o autor descreve alguns depoimentos que apontam o treinamento militar como principal meio de despertar agressividade desmedida e irracional nos soldados, com intuito de anular os efeitos ou tendências emocionais positivas naturais ao ser humano. São adestrados para despertar a agressividade mais primária existente nos próprios indivíduos, segundo o autor.

Pelo estudo dos depoimentos de torturados, Neto (1985) averigua a existência de um prazer sádico por parte do torturador. Havia uma atmosfera de certo gozo pela violência e pelo poder de subjugar o outro, provavelmente desenvolvido no adestramento militar. Em um dos depoimentos descritos pelo autor, o entrevistado afirma: “deu pra sentir que eles não têm tristezas ou alegrias”. No mesmo trecho da entrevista, o entrevistado afirma que o torturador, no início da ação, precisa se dopar com algum alucinógeno e que depois se habitua a isso, fazendo o trabalho com naturalidade. Aquela forma de ação passa a ser entendida como seu ofício. Um trabalho como outro qualquer, onde o que interessa é cumprir a tarefa. No momento dessa afirmação, ele recorda a poesia: “Será a mão que tortura a mesma que afaga a cabeça de um filho?” (NETO, 1985, p. 93). A conotação é de certa normalização da maldade como obediência cega a uma ordem estabelecida.

É interessante nos reportarmos aos resultados obtidos pelo psicólogo social Stanley Milgram8 , estudioso do fenômeno da obediência à autoridade. Ele desenvolveu, no ano de 1961, importante experimento cujo foco era a disposição dos participantes em responder às ordens de um instrutor que os levava a realizar uma tarefa conflitante com a sua consciência e seus valores. Ele descobriu que pessoas comuns, na realização de seu trabalho, e sem qualquer animosidade pessoal, podem tornar-se agentes de processos terrivelmente destrutivos. Além disso, mesmo quando os efeitos nocivos do que fazem se tornam claros e eles recebem orientação para continuar as ações incompatíveis com seus padrões fundamentais de moralidade, muitos foram os que persistiram, denotando a falta de recursos internos necessários para resistir à autoridade9 .

Nos diferentes quadros mundiais onde a situação de tortura foi institucionalizada, ocorreu concomitantemente a disseminação do preconceito. Essa prática foi vista como meio eficaz para consolidação de certo consenso da população frente ao regime efetivo. Torna-se imprescindível que os inimigos potenciais do regime sejam identificados como inimigos da nação. Pessoas a quem é preciso destruir para que a paz possa ser restaurada. A história traz vários exemplos como no caso de Hitler que designou os judeus como parasitas, bacilos perigosos (NETO, op. cit., 1985.). Ao assinalar a identidade maligna do opositor, continua o autor, pode-se projetar sobre ele toda a agressividade e o temor por ele despertados, já que ele foi identificado como potencial inimigo. Logo, os atos de tortura justificam-se como atos de defesa.

 

Tortura psicológica

Para tratar esse ponto, trazemos a fala do próprio Frei Tito em sua experiência de tortura. Ele foi preso em novembro de 1969 e relata os atos violentos aplicados contra ele.

“Choques, pontapés nos órgãos genitais e no estomago palmatórias, pontas de cigarro no meu corpo. Durante cinco horas apanhei como um cachorro. No fim, fizeram-me passar pelo "corredor polonês". Avisaram que aquilo era a estreia do que iria ocorrer com os outros dominicanos. Quiseram me deixar dependurado toda a noite no "pau-de-arara". Mas o capitão Albernaz objetou: "não é preciso, vamos ficar com ele aqui mais dias. Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis". "Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia"”. (FREI TITO de Alencar Lima. 1970).

Ao longo da noite, ele buscou meios para tirar a própria vida. Alegou, mais tarde, que temia pela vida dos demais frades, pois não sabia se aguentariam os tormentos. Conseguiu que um soldado lhe emprestasse uma lâmina de barbear, argumentando que teria deixado incompleta e precisava terminar. Com a lâmina, cortou a dobra do braço, atingindo a artéria. Forçou para que o sangue saísse mais rápido. Ficou desacordado e quando recobrou os sentidos estava no leito médico. Segundo ele, o Exército temia a repercussão do que ocorrera. Por isso, tentaram assegurar que ninguém soubesse do ocorrido. Após os procedimentos de emergência, levaram-no para o Hospital Militar. Disse ter ouvido a voz desesperada do capitão Maurício pedindo aos médicos que não o deixassem morrer de jeito nenhum. Que fizessem de tudo, do contrário estariam “perdidos”. Relata que, ao longo da noite, seis soldados permaneceram de plantão em seu quarto. Dias mais tarde Tito foi encorajado a escrever secretamente seu relato sobre as torturas que sofreu. Esse depoimento saiu clandestinamente do presídio e foi veiculado em diversos meios de comunicação fora do país. Esse fato sensibilizou a opinião pública internacional sobre os casos de abusos de poder e atentado aos direitos humanos cometidos pelos órgãos de repressão. Segue mais um trecho de seu relato sobre o que viveu:

“Teve início a tortura psicológica. Diziam: ‘A situação agora vai piorar para você, que é um padre suicida e terrorista. A Igreja vai expulsá-lo’. Não deixavam que eu repousasse. Falavam o tempo todo, jogavam, contavam-me estranhas histórias. Percebi logo que, a fim de fugirem à responsabilidade de meu ato e o justificarem, queriam que eu enlouquecesse.” (FREI TITO de Alencar Lima, 1970)

Este é um exemplo clássico de tortura psicológica. Martín (2005), estudando a obra do psicanalista Marcelo Viñar, traduz a tortura como “demolição” ou processo composto de três etapas: na primeira, o alvo é a destruição da pessoa, seus valores e convicções. Na segunda, o intuito é desorganizar o sujeito consigo mesmo e com o mundo, ou ainda causar um “esvaziamento narcisista”, retirando dele sua identidade e história. Na terceira, surge como “resolução” da crise instaurada, uma conduta substitutiva de maior ou menor consonância com os valores do torturador. Ambos concordam que as sequelas produzem sintomas crônicos e duram para além das gerações por se tratar de uma experiência que “atua reformulando o destino da pessoa e quebrando para sempre um ser humano na sua subjetividade” (MARTÍN, 2005, p. 440). É o mesmo que descreve Foucault (2014, p. 37) ao especificar que o suplício causado na vítima tem o intuito de “tornar infame aquele que é sua vítima”. Deixando marcas que não serão apagadas, mantendo-se na memória das pessoas que passaram por processos de imputação de violência.

 

Olhar sobre o suicídio

O que nos faz destacar um espaço para o tema do suicídio é exatamente o peso deste assunto no contexto vivido por Frei Tito. O suicídio é um tema de pouca visibilidade, com uma considerável carga de rejeição e tabu. O termo suicídio carrega em si uma aura misteriosa, referido “àquilo que não deve ser pronunciado”, como uma epidemia capaz de contaminar todos os que dela se aproximam. Fato é que pouco se divulga e se estuda os índices ocorridos nos diferentes países. Embora a suicidologia tenha surgido recentemente em Portugal, o suicídio é uma prática que remonta à história da humanidade.

Cassorla (1985), conta que em Mileto, na Grécia antiga, as moças decidiram enforcar-se gerando uma epidemia de suicídio entre as jovens. A população tentou de tudo e nada conseguia conter tal surto, até que alguém propôs que os cadáveres fossem conduzidos nus, em passeata até o cemitério. Essa medida fez cessar a epidemia. Ficou claro que as moças em suas fantasias, visualizavam a reação das pessoas, como que percebendo os sentimentos de tristeza, remorso ou culpa dos sobreviventes. Segundo ele, o prazer em imaginar como será a reação dos outros à própria morte é comum no ser humano e se acentua nos momentos de frustração, impotência e raiva. Segundo este autor, foi o que aconteceu com Getúlio Vargas. Ele não só se vingou dos inimigos inculcando neles a culpa e responsabilidade pelo seu ato, como seu suicídio tornou-se um meio de sua permanência entre os sobreviventes: “saio da vida para entrar na história”. Em sua fantasia, permaneceria mais vivo do que nunca. (CASSORLA, 1985, p. 32)

Em suas pesquisas, o autor percebe que a mente do suicida não é diferente da mente de qualquer pessoa; apenas alguns mecanismos se tornam mais intensos, ou interagem mutuamente causando sofrimento. Ele traduz a palavra suicídio como a morte de si mesmo. Busca embasar-se em Freud ao afirmar que há em todos nós, instintos de vida e de morte, Eros e Tânatos. Isso representa a vida nas suas várias fases de desenvolvimento e involução, e a morte, como resultado da interação desses dois instintos. Porém, o mais interessante é que o autor propõe que o suicida não está querendo necessariamente matar-se, mas matar uma parte de si mesmo. A parte com a qual ele não está conseguindo conviver ou tolerar. Contudo, “isso não é possível e ele termina matando-se por inteiro” (CASSORLA, 1985, p. 18).

Conforme o autor acima, a pessoa se mata porque fantasia ou deseja outra forma de vida, não importando onde ou como. Essa outra forma de vida encontra-se em sua mente. Nessa outra vida a pessoa encontraria amor, proteção e acima de tudo, vingança dos inimigos, punição para seus pecados, ou pensa ir ao encontro das pessoas queridas. Particularmente pude perceber toda essa angustia com um de meus clientes, enquanto me deparava com essa literatura. Não percebi nele características suicidas ao longo dos atendimentos. Porém, por conta de problemas emocionais muito intensos, ele se deparou com desejos e pensamentos iguais aos aqui relatados. Foi então que pude perceber a dimensão aproximada de sua angústia. Havia em sua fala uma tristeza profunda pela rejeição sentida por parte do grupo do qual faz parte. Relatou o desejo de vingança, seguido da fantasia de como reagiriam as pessoas diante da notícia, caso ele se suicidasse. Em sua fantasia, esse seria o meio lícito de se livrar da angústia que lhe atormentava. Afirmou ter ficado um dia inteiro consumido por esses pensamentos e desejos. Esse cliente não radicalizou suas fantasias e pudemos buscar meios de sanar a crise.

Um dos motivos geradores de interdição e tabu sobre o suicídio é o campo religioso, com destaque para o Cristianismo. Segundo Cassorla (op. cit., 1985), os suicidas eram privados de funerais religiosos e os que tentavam suicídio eram excomungados. Por sua vez, a Igreja Católica incentivava o martírio como porta para o reino do céu. Porém, o suicida era considerado um discípulo de Judas, um traidor da humanidade e não um mártir. O ato em si era visto como vitória do diabo ou como pura falta de crença na misericórdia divina. Essa concepção sofreu modificações, e segundo o mesmo autor, passou-se a perceber a tendência em compreender a pessoa do suicida e não o ato, o qual permanece condenando.

Em um artigo recente, "A leste do éden: loucura, feitiço e suicídio", Cassorla (2010) descreve o suicídio como o momento em que cessam os suplícios e os demônios são derrotados. Seria o último recurso dos torturados, que escapam do Inferno, frustrando seus torturadores. O suicida acredita que estará num outro mundo, oposto ao Inferno, no caso o Paraíso, onde não há sofrimento, necessidade ou desejo, porque a satisfação é completa. O Paraíso, neste caso, é o protótipo de Tudo. É o mundo pleno. “Dessa forma o suicida parece fazer um ótimo negócio: livra-se do Inferno e da ameaça do Nada para conquistar o Tudo”. (CASSORLA, 2010, p. 148)

Nesse mesmo artigo, o autor descreve o mito da criação, onde Adão e Eva se deparam com a realidade ao desobedecer a Deus, provando do fruto proibido. Abrem-se os olhos e veem a realidade. Mas qual realidade eles passam a ver? A que condiz com o status de quem sai da fantasia e entra na realidade nua e crua. O interessante aqui apontado é a ideia de passagem de um estágio para outro, ou seja, a saída do Paraíso para conhecer o Inferno, o que ocorre simultaneamente. Sobre isso, o autor cita Franco Filho (2006, apud CASSORLA, 2010, p. 150), “A experiência mostra que o homem pode se manter na loucura, para não ter contato com a verdade, e pode enlouquecer, porque tomou contato com ela”. Por isso, muitas vezes ao cair em si e contatar a realidade vivida como algo insuportável, surge para os suicidas a saída de cena como opção viável. O autor aponta para a necessidade da aquisição de recursos subjetivos para que o suicida possa lidar com a culpa e a reparação. Do contrário, a catástrofe se impõe incluindo sentimentos de fracasso e humilhação terríveis.

Saraiva (2010) faz uma descrição sobre o suicídio com base na “visão macro por fora” de Durkheim, em seu trabalho do final do Século XIX, conjuntamente com outras abordagens, apresentando ampla trajetória da suicidologia em Portugal. Durkheim (1897, apud SARAIVA, 2010) apresenta o suicídio como fruto do progresso, da industrialização, da instrução, da civilização. Alega que para se compreender o fenômeno suicida, pelo viés sociológico, há que se ter em conta as dimensões da integração e da regulação. A integração demanda das relações sociais, pelas quais o individuo se conecta ao grupo. Por regulação entende-se os requisitos normativos ou morais exigidos para a pertença ao grupo.. Para Durkheim o comportamento humano, desde o sentir, o pensar, o agir, seriam determinados pela sociedade. Segundo esse cientista social, o suicídio é o resultado da morte direta ou indireta a partir de um ato positivo (ex.: enforcamento) ou negativo (ex.: greve de fome) praticado pelo indivíduo, ato cujo resultado não era desconhecido para a vítima.

Durkheim apresenta diferentes forças que atuam sobre o indivíduo, no intuito de proteção do suicídio. Porém a força de coesão da religião pode ser identificada como a que apresenta maior ênfase no normativo e integração no coletivo. O que modifica esse quadro, no olhar do cientista social, é o que ele denomina de anomia. Saraiva especifica esse conceito como perda de normas, segurança, estabilidade e amparo, consequência de um estado patológico da sociedade ou seja, o quadro de abandono, no qual o indivíduo sente-se ignorado, excluído, marginalizado, numa sociedade que lhe exige deveres e em troca lhe concede alguns poucos direitos. Surge o sentimento de exclusão do todo. Ele não é parte integral, como um membro que não faz parte do corpo.

Ainda segundo Saraiva (2010), desde a década de 60 que os fatores neurobiológicos de agressão e impulsividade relacionados com o suicídio são conhecidos, assim como suas repercussões sobre o hipocampo, a amígdala, o córtex pré-frontal, como também as influencias apontadas pela disfunção da serotonina e da hiperatividade do eixo hipotálamo-hipófise-suprarrenais. Para além destas interferências neuronais, a família tem fundamental influencia. Quem está na casa? Ou com quem vive o indivíduo? Faz-se necessário que esse histórico seja devidamente valorizado. Completa o autor que o empirismo clínico ensina que perante um suicida ou para-suicida é frequente a existência de uma família-problema ou disfuncional. São inúmeras as designações para esse tipo de família como rígidas, obstinadas, conflituosas, desagregadas, distantes, frias. Por apresentarem essas características, essas famílias não percebem o peso que teria o afeto, acolhimento, compreensão e o quanto esses fatores são essenciais ao bom desenvolvimento de seus membros.

A comunicação afetiva e normativa na família deve ter uma fluência clara, transparente e extensiva a todos os seus membros. Do contrário seria nefasto, no entender do autor. Os ruídos nessa comunicação trazem à tona as famosas expressões comuns “ninguém me entende”, “sou um peso”, “qualquer dia eu desapareço”. Quando, por intermédio da clínica, nos debruçamos sobre tais porquês, detectamos não haver alguém que os escute, fator que o autor estende para o social. “Uma sociedade não muito dada ao amparo ou à compaixão, sempre apressada, em fúrias de tudo ou nada, egoísta, demasiado hedonista, dificilmente consegue exercitar tolerâncias e concórdias”.10

 

Frei Tito de Alencar Lima: tortura e suicídio

Tito de Alencar Lima nasceu na cidade de Fortaleza CE, no dia 14 de setembro de 1945. Ele foi o mais novo de quatorze irmãos. Duarte-Plon e Meireles (2014) descrevem que não foi fácil para os pais do Tito manter uma família tão numerosa. Seu pai, embora gerente de uma companhia de ônibus, não ganhava o suficiente para arcar completamente com as demandas dos filhos. Para lidar com as despesas da casa, foi necessário que os filhos mais velhos buscassem trabalho. Com esta distribuição coube a irmã Nildes e outras irmãs, cuidar do irmão que acabara de nascer. Porém, o maior cuidado ficou mesmo por conta de Nildes que o “assumiu como um filho precoce de uma menina de 12 anos”. (DUARTE-PLON E MEIRELES, 2014, p. 34). Afirmam que foi dado a ele o nome de imperador, embora a mãe quisesse homenagear seu irmão. Nas lembranças da irmã, Tito era esperto e gostava de dançar, parecia um anjinho barroco. Ele gostava de cantar e logo cedo aprendeu a tocar violão.

As autoras em questão apontam que o ambiente familiar, embora pobre, era alimentado por ampla leitura. Nildes recorda seu pai lendo de dois a três jornais por dia, além de livros. Apesar de poucos estudos, o pai tinha interesse por política, além de defender ideias de justiça e liberdade. Era uma família muito católica. Tito foi inscrito pela mãe na Congregação Mariana. Desde muito cedo iniciou o estudo da Bíblia e sua irmã Nildes apresentou a ele a doutrina social da Igreja, que trata dos problemas sociais. Aos doze anos ele ingressa na Juventude Estudantil Católica – JEC, o que lhe dá impulso para a vida de engajamento social futuro.

Ainda segundo Duarte-Plon e Meireles (2014), nas reuniões da JEC os jovens ampliavam suas leituras, observavam acontecimentos sociais, refletiam para depois se colocarem em ação concreta. Eles tinham 15 minutos de meditação diária. Porém, Tito não lia só literatura religiosa. Ele lia também filosofia e ciências sociais, como Jean-Paul Sartre, Tolstói, Camus, entre outros. Aos poucos ia se politizando. Ele fez muitas leituras sobre o comunismo e cristianismo. Foi dito em um depoimento que ele era muito preparado intelectualmente, estudioso e rigoroso. Segundo Nildes, o ideal dos jovens militantes era tornar-se um “Cristo novo no meio do povo”. (DUARTE-PLON, MEIRELES, 2014, p. 39). Com 18 anos ele segue para Recife como representante regional da JEC no Nordeste. Conhece a congregação religiosa dos Irmãozinhos de Foucault e posteriormente, por intermédio de Frei Betto, que na época não era frei, ele conhece os Dominicanos, denominada como Ordem dos Pregadores. Dessa forma, o anjo barroco, como apelidado pela irmã ao se reportar a infância do Tito, “tornou-se um místico tentado pelo ideal revolucionário da justiça social” (DUARTE-PLON, MEIRELES, 2014, p.41).

Conforme os relatos apresentados pelas autoras em foco, Tito mostrou-se coerente com os ideais de seu pai, também defensor da justiça social. Ele preparou os pais para a sua entrada na Ordem Dominicana. O pai ficou surpreso, pois pretendia que fosse médico ou advogado, porém a mãe acatou sua decisão com agrado. Depois de algum tempo, a ideia de ter um filho padre teria se tornado uma realidade bem vinda para a família Alencar Lima. Em 1966, com vinte e um anos, ele segue para o convento dominicano em Belo Horizonte, para o primeiro ano de formação. No ano seguinte foi transferido para o convento do bairro de Perdizes, na cidade de São Paulo, onde começou a participar de articulações políticas juntamente com outros frades. Em 1968 foi preso, fichado e solto, como citado anteriormente junto com vários estudantes em Ibiúna.

No ano seguinte, na madrugada de quatro de novembro, os frades foram acordados pelo delegado Fleury com os policiais fortemente armados, para prender frei Tito, o provincial da Ordem, frei Domingos Maia Leite e outros frades. A ordem dada por Fleury11 foi para que frei Tito seguisse no camburão dos presos, enquanto os demais seguiriam em outro carro. A operação que prendeu os freis foi denominada de “Operação Batina Branca”. Ao chegar ao Deops12 , os freis foram postos enfileirados junto a outros frades da mesma congregação, presos no Rio de Janeiro e levados para São Paulo. Eles estavam com os rostos totalmente deformados pela tortura, sendo reconhecidos pela roupa. O delegado Fleury ao prender Frei Tito lhe disse: “Com gente da tua estirpe não temos piedade nenhuma. Somos pagos para isso. Sabemos que você tem muito para contar. Se não quiser falar, será pior. Te torturaremos” (DUARTE-PLON, MEIRELES, 2014, op. cit. p. 144).

Na perspectiva de melhor entendermos o sofrimento de frei Tito, no processo de prisão e tortura, apresentamos seu próprio relato.

“Fui conduzido à sala de interrogatórios. A equipe do capitão Maurício passou a acarear-me com duas pessoas. O assunto era o Congresso da UNE em Ibiúna, em outubro de 1968. Queriam que eu esclarecesse fatos ocorridos naquela época. Apesar de declarar nada saber, insistiam para que eu “confessasse”. Pouco depois levaram-me para o “pau-de-arara”. Dependurado nu, com mãos e pés amarrados, recebi choques elétricos, de pilha seca, nos tendões dos pés e na cabeça. Eram seis os torturadores, comandados pelo capitão Maurício. Davam-me "telefones" (tapas nos ouvidos) e berravam impropérios. Isto durou cerca de uma hora. Descansei quinze minutos ao ser retirado do "pau-de-arara". O interrogatório reiniciou. As mesmas perguntas, sob cutiladas e ameaças. Quanto mais eu negava mais fortes as pancadas. A tortura, alternada de perguntas, prosseguiu até às 20 horas. Ao sair da sala, tinha o corpo marcado de hematomas, o rosto inchado, a cabeça pesada e dolorida”13 .

Nesse depoimento fica a sensação de como era a “sucursal do inferno”, denominação dada pelos próprios militares, para o lugar onde ocorriam as torturas. É o relato de uma verdadeira história de terror, experienciada por vários dos que se colocaram em posição de contraposição e resistência ao regime vigente. Pensando bem, há um total despropósito no processo prisional dos ditos “rebeldes”. Eles eram levados com o fim último de serem torturados, “quebrados”, em um processo inquisitorial. Coimbra (2001), afirma que a verdade desejada pelos torturadores não absolve e nem redime o torturado. “Ela inclusive, não é garantia para a manutenção da vida; ao contrário, muitos após terem ‘confessado’ foram – e continuam sendo – mortos ou dados como desaparecidos” (COIMBRA, 2001, p. 14).

Como identificar cada pessoa presente naquele holocausto? A desfiguração do corpo era a marca registrada dos que ali adentravam. O clima de agressão perpassava o lugar físico. Estava na própria forma de abordar as vítimas. O delegado Fleury e seus policiais chegaram ao convento fortemente armados, imbuídos da aura do poder, do medo, da intimidação. Nas palavras da autora, “se não existissem profissionais – quaisquer que sejam eles, em quaisquer áreas – que com suas práticas respaldaram a repressão, esta não teria funcionado tão bem como funcionou” (COIMBRA, 2001, op. cit., p. 16). As pessoas não eram aprisionadas para serem ouvidas e sim para serem exterminadas de alguma forma. Se não fosse com a morte física, seria pela psíquica. No relato do próprio Tito, destacado acima, ele conta que foi despido, a princípio das próprias vestes e aos poucos, dos diferentes papéis que o contexto de sua opção de vida lhe proporcionou. Arrancado de seu ambiente natural de convívio e desenvolvimento. Deixa de ser um ser integrado ao seu ambiente, como propõe Perls (1977) ao se referir à interação do indivíduo com o meio que o constitui.

Os diferentes relatos das pessoas que conviveram com Tito antes da prisão, colhidos por Duarte-Plon e Meireles (2014), dito por sua irmã Nildes e respaldado por outros depoimentos, afirmam que ele era “estudioso, dedicado, introspectivo, mas também tinha momentos de efusão e alegria. Gostava de escrever poemas” (DUARTE-PLON, MEIRELES, 2014, p.327). Ávido por conhecimento, em especial sociológico, filosófico e teológico. Obstinado pela causa social, talvez pela prática remota desde os tempos de colégio, na militância juvenil. Segundo o confrade João Antônio, Tito era “alegre, bem humorado e cheio de energia. Ele tinha um lado cômico, lúdico, até jocoso. Era mestre em tiradas de humor” (Ibid., p. 32).

Porém, nem todos percebiam que ele estivesse claramente decidido a combater a ditadura no caminho de união entre cristãos e marxistas revolucionários. Por outro lado, era visível seu pleno engajamento ao ponto dos frades temerem que fosse pego a qualquer momento pelos militares, por seu envolvimento com a Ação Libertadora Nacional – ALN. A ação dos frades militantes nesse período era de apoio e acolhimento dos feridos e perseguidos. Cuidavam deles para que se recuperassem e assim, pudessem fugir do país. Frei Fernando de Brito, enquanto esteve preso escreveu um diário no qual denominou a ação dos religiosos de “pau para toda obra. Só não apertavam o gatilho” (Ibid., p.51). Esse tipo de envolvimento e engajamento vivido por muitos religiosos, entre eles o Tito e de muitos cristãos, foi amplamente motivado pelas mudanças propostas pela Igreja Católica no Concilio Vaticano II14 . Frei Betto declara em entrevista que “os conventos dos Dominicanos tornaram-se oficinas de novas ideias e propostas”. (Ibid., p. 71)

De um modo sucinto expusemos a trajetória de Tito até a prisão e parte dos inúmeros tormentos vividos pela tortura. Conforme os registros, Tito saiu da prisão para o exílio, em decorrência da troca de setenta presos políticos pela captura do Embaixador suíço Giovanni Enrico Bücher (DUARTE-PLON, MEIRELES, 2014, p.211). E como exigência expressa no Ato Constitucional nº. 13, para aqueles que fossem trocados por um diplomata, perderiam automaticamente a nacionalidade. Desse modo, ele e mais alguns escolheram abrigarem-se na cidade de Santiago, no Chile. Escolha não muito feliz, pois em pouco tempo aconteceu o golpe contra Allende e os brasileiros que lá estavam abrigados, se viram desprotegidos, tendo que buscar novo espaço de acolhida. Tito seguiu para Roma, mas não foi ali acolhido. Então ele apelou ao convento de Paris, onde foi recebido pelos frades Dominicanos de Saint-Jacques. Segundo as autoras (DUARTE-PLON E MEIRELES op. cit., 2014), viver em Paris naquela época não trazia glamour para os exilados brasileiros. Muitas dificuldades aguardavam Tito, como o desafio da língua, o clima frio de inverno, a saudade dos que ficaram para trás, a difícil luta pela sobrevivência. Em Paris, os frades viviam conforme o voto de pobreza que professavam, tendo que lutar pelo próprio sustento. “Muitos não conseguiam senão ocupações muito aquém de sua formação” (Ibid., p. 256).

Tito chega a Paris animado e disposto a continuar seus estudos e manter diferentes contatos. Frei Osvaldo descreve Tito como um ser comunicativo e pronto pra recomeçar a nova vida. Com ideias de dizer para o mundo o que se passava no Brasil, por meio da ditadura, “uma vez que a imprensa brasileira estava submetida à censura” (Ibid., p. 259). Escreveu muitas cartas para diferentes contatos, encontrou pessoas e viajou. Com o passar do tempo, Tito foi mostrando-se isolado e deprimido. Um confrade em seu relato disse ver o brasileiro “sentado na cama, um pouco perdido” (p. 262). Inúmeras possibilidades surgiam, segundo o que ele sonhara no novo mundo. Porém, sua atitude era de reclusão, mostrando-se cada vez mais instável psiquicamente. Segundo Duarte-Plon e Meireles (2014), aos poucos ele foi se sentindo desencorajado, não conseguia concentração suficiente para os estudos, “oscilava entre um estado de desânimo e uma decisão para lutar e superar as dificuldades de adaptação” (p. 270). Mesmo com esse quadro, ele não desistia do intuito de denunciar as torturas no Brasil. Insistia no contato com os companheiros e por intermédio deles sabia o que se passava nos meandros da ditadura brasileira, também sobre os que morriam ou eram presos. Nesse período em que ele se deparava com sua crise, ocorreram boatos de que o delegado Fleury receberia condecoração do governo da França. Por mais que os frades tentassem esconder dele essas notícias, é bem provável que ele tenha sabido, já que essa informação foi divulgada amplamente nas mídias locais.

Nildes ficou sabendo do estado em que o irmão se encontrava e decidiu visita-lo. Ao chegar ao convento percebeu que não era o mesmo Tito. A comunicação com ele não foi imediata. Após algumas tentativas, “um dia ele se queixou que os amigos do Brasil, presos com ele, não respondiam suas cartas” (Ibidem, p. 329). Sem que ele soubesse, ela solicitou uma reunião com os frades para contar-lhes tudo o que seu irmão havia sofrido e aproveitou para sugerir algumas atividades, por vê-lo com muito tempo ocioso. Propôs inclusive a troca de convento, por perceber que o convento em que ele se encontrava era amplo e pouco aconchegante. Provavelmente em outro menor, ele se sentisse mais protegido e com uma convivência mais aproximada com frades. Em uma das conversas com o irmão, Nildes sugeriu que ele buscasse um trabalho para custear suas despesas, pois havia percebido certo temor da parte dele em ser um peso para os frades. Sugeriu que ele procurasse algo junto aos pobres da região, mas ele reagiu dizendo que aquele não era seu povo. Ela foi com ele ao psiquiatra e agendou uma sessão, sem a ciência de Tito, para saber detalhes do processo em que ele se encontrava.

Por mais resistente que ele tenha sido, foi pesaroso continuar no exílio. Um confrade encontrou um papel rabiscado por Tito e usado como marca texto: “melhor morrer que perder a vida”. (DUARTE-PLON, MEIRELES, 2014, op. cit., p. 17) O responsável pelo convento em seu depoimento posterior, descreve o que viveram e tudo o que fizeram para que Tito superasse seus “fantasmas”. Ele recorda as muitas conversas que tiveram, as inúmeras vezes em que o viu andando à noite pelos corredores e ao aborda-lo ouvia sua queixa do quão difícil estava sendo sair daquele estado, como se o descontrole tivesse tomando conta de si. Segundo o frei, era como se o “Tito A olhasse o Tito B”, tal qual um pêndulo, oscilando entre o “sim e o não, o afastamento e a reaproximação, a desistência da vida e a vontade de lutar” (Idem., p. 314). Nos momentos de crise e alucinação, era sempre Fleury o seu interlocutor. Esse relato assemelha-se ao que propõem Perls, Hefferline e Goodman (1997) “uma ‘awareness’ que não tem nenhum fundo ambiental e corporal, já que a ‘awareness’ é uma figura em contraste com um fundo” (HEFFERLINE e GOODMAN, 1997, p. 221). Como se Tito quisesse ver a si mesmo como figura e fundo, só que ao buscar-se não conseguia se encontrar, pois o Tito buscado não estava mais lá. Ou como se ele não reconhecesse o eu encontrado e se descontrolasse.

A frase registrada no papel encontrado pelo frade denota a luta interior vivida por Tito. O sonho de uma vida regada pelos ideais anteriormente vislumbrados, parecia distante demais do que estava conseguindo viver. Os autores acima elucidam esse momento como desejo de aniquilação da dor sentida. “Aniquilar é transformar em nada, rejeitar o objeto e suprimir sua existência” (Ibidem, p. 148). A sensação é de repulsa do hospedeiro Fleury, como vimos acima sobre suicídio. Para libertar-se da dor, mata-se a si mesmo. Conforme a literatura, o suicida geralmente elabora um ritual, o que nesse caso específico não fugiu à regra, uma vez que o lugar escolhido para o enforcamento foi um lixão na periferia da pequena cidade de Lyon. Não há registro do dia exato, conforme anotações do frei Magno, pois quando encontrado por um camponês local, dependurado numa árvore, já estava sem vida há pelo menos dois dias. Portanto presume-se que deva ter morrido no dia 08 de agosto de 1974, com idade de 28 anos. (DUARTE-PLON, MEIRELES, 2014, p. 342).

Trazemos aqui uma amostra da análise feita pelo psiquiatra que acompanhou Frei Tito na França. Nossa intenção é partirmos desse relato privilegiado sobre Tito, fazendo ao mesmo tempo correlação e confronto com os fundamentos da Gestalt-Terapia, sendo esta a base conceitual desta pesquisa. Por que nominamos como “relatos privilegiados”? Exatamente porque foi o profissional que acompanhou o Frade, no momento em que este esteve em crise, tendo acesso direto a realidade vivida por Tito no dado momento. Não há relatos de que tenha havido o acompanhamento de outro profissional, como comumente veríamos, como um psicólogo, por exemplo.

Segundo depoimento do psiquiatra, Jean Claude Rolland15 , foi por querer fugir das torturas que frei Tito morreu, numa tentativa desesperada de se livrar do torturador que se instalou dentro dele. Podemos entender aqui uma perspectiva de causalidade, comum ao olhar psicanalítico. No caso de uma possível compreensão Gestáltica, teríamos uma perspectiva diferenciada sobre esse fato, cuja tentativa seria de perceber o Tito enquanto ser em busca de ressignificação do que lhe era possível naquele momento. Muito mais que fugir das torturas, ele carecia de referências ao que lhe era salutar como família, calor humano, ser amplamente escutado e entendido na dor que trazia consigo.

Pela análise do psiquiatra, os delírios de Tito eram muito mais um testemunho do que uma patologia; uma espécie de comunicação inconsciente com o que foi trocado entre ele e seus algozes. Aqui, novamente temos expressões que demarcam as fronteiras entre o olhar psicanalítico e o gestáltico. Enquanto o psiquiatra busca respostas de causalidade, uma atuação “Gestáltica” possivelmente se colocasse com curiosidade sobre a forma como Tito deixava vir à tona o conteúdo do vivido. Como fazer-se entender numa terra estranha? Em que linguagem expressar o que verdadeiramente sentia? Quem o entenderia nas coisas mais minuciosas de seu novo processo?

Em seu texto, o psiquiatra relata que no desfecho do acompanhamento, pôde perceber que a ideia do torturador era causar um mal a posteriori, longe do ambiente de causa e efeito da tortura. Jean Claude Rolland afirma que a loucura instalada dessa forma, passaria a provar apenas uma constituição doentia do sujeito. Este se sentiria também responsável por seus erros de luta e pelas falhas no engajamento político. Nesse sentido, possivelmente focaríamos em acolher a pessoa com a sua dor, colocando-nos ao seu lado, no intuito de lhe apoiar na busca do que lhe fazia sentido. Checaríamos seus atuais contatos. “Todo contato é ajustamento criativo entre o organismo e o ambiente. Resposta consciente no campo (como orientação e como manipulação) é o instrumento de crescimento no campo.” (PERLS, HEFFERLINE E GOODMAN, 1997, p. 45). Esse olhar possibilita à pessoa apropriar-se do campo (contexto individual) de modo criativo, nutrindo-se do ambiente em que se encontra ao mesmo tempo em que se aproxima da figura (o que é destacado no momento presente) estampada no aqui e agora.

Pela Gestalt, segundo Ribeiro, percebemos o ser humano como “um ser particular, concreto, com vontade e liberdade pessoais, consciente e responsável” (RIBEIRO, 2012, p. 48). Dentro dessa perspectiva, o autor inclui a subjetividade e a singularidade que fazem com que cada pessoa se perceba única naquilo que lhe diz respeito e por esse motivo, sinta-se inquieta, não acomodada à “procura da realidade própria e pessoal” (Idem, p. 49). Outra vertente teórica da Gestalt-Terapia é a fenomenologia, a qual respalda a “Gestalt” metodologicamente, implicando-lhe, segundo o mesmo autor, uma específica visão de mundo.

Trazendo para a análise do caso de Tito a conceituação de organismo, como proposto por Perls (2011), pode-se perceber que ali, o organismo é estranho a si mesmo, assim como o ambiente não consegue fazer conexão, por se encontrar rompido no interior do próprio indivíduo, tal qual afirmam Perls, Hefferline e Goodman “agora considero a neurose não uma doença, mas um dos vários sintomas de estagnação do crescimento” (PERLS, HEFFERLINE E GOODMAN, 1997, p. 11); como se a retomada dos sonhos fosse exterminada pelos pesadelos sofridos na tortura. Ao mesmo tempo era como se faltasse interlocutor para compartilhar com Tito a desestrutura que experimentava. Os autores acima, ao descreverem o crescimento, apontam para a necessidade de contatos no ajustamento do organismo. Esses contatos são parte de um sistema complexo, denominado de “self”. Segundo esses autores, podemos considerar o “self” como estando na fronteira do organismo. “A própria fronteira não está isolada do ambiente; entra em contato com este e pertence a ambos, ao ambiente e ao organismo” (Ibidem, p. 179). O resultado disso seria um ajustamento criativo. Podemos dizer que o "'self’ é o processo de figura/fundo em situações de contato” (Ibidem, p. 180). Como processo de ajustamento, ele é flexível. Quanto mais próximo o organismo estiver da obtenção daquilo que deseja, menor o "self" se apresenta. O mesmo ocorre no desejo de destruição ou aniquilação; o organismo estaria repleto de “self”.

A sensação transmitida pelos que conviveram com Tito era a de que ele não poderia mais olhar para fora sem ser atravessado pela figura torturante que mantinha em sua memória, como se essa figura incorporasse “todo o interesse do 'self’” (PERLS, HEFFERLINE E GOODMAN, 1997, p. 220). Ao longo do exílio, Tito passou elaborando hipóteses de como seria sua nova vida, abrindo-se para tentativas de adequação ao ambiente em que se encontrava; porém, não foi o suficiente. “É melhor morrer que perder a vida”, escreveu ele. No exílio, Tito teria que abrir mão do que alimentou como perspectiva de vida religiosa e por meio dessa, às causas sociais. É complexa a mensuração da experiência de dor vivida por ele. “O homem é um organismo de grande força e eficiência, mas é também um organismo que pode aguentar um tratamento grosseiro e épocas ruins”. (Ibidem, 1997, p. 119). Apesar do fim trágico de sua vida, pelo suicídio, os testemunhos colhidos e apresentados ao longo deste trabalho apontam para o esforço de Tito em reassumir o autocontrole e retomar sua vida.

 

Considerações finais

Ao finalizar as observações que considero interessantes constar, como resultado desse estudo, percebi o quanto me aproximei das temáticas da tortura e suicídio e da vida de Frei Tito de Alencar Lima, buscando conexões com a amplitude da formação recebida no IGT. Olhar para o panorama de dor e sofrimento descrito aqui, ao mesmo tempo em que entrei em contato com o campo teórico para além do curso, me ajudou a perceber as contribuições advindas do estudo da Gestalt-Terapia. Percebo que é justamente essa uma das muitas visões da "Gestalt", um ser em constante construção.

Estudar a vida do Frei Tito foi como entrar em contato com as diferentes facetas humanas. Descobri que, como organismos pertencentes a uma mesma espécie, somos portadores de forças. Dependendo da condução que tomarmos, poderemos seguir rumos antagônicos, tanto para o bem quanto para o mal de nós mesmos. Isso está explícito na história aqui resumida. Os representantes dos grupos descritos (torturadores e torturados) passaram por longos períodos de formação, estruturação de bases vivenciais. É o que pode ser observado nos relatos referidos, por um lado, aos militares aguerridos na defesa do regime ditatorial e de outro, aos militantes com o propósito de se rebelar contra as imposições de tal regime. Os primeiros, imbuídos da “legalidade” atribuída pelo sistema, foram capazes de cometer crimes hediondos, respaldados no refinamento do tecnicismo científico e do desenvolvimento de “práticas” e “sistemas” de tortura, inclusive psicológicas. Os segundos, representados em nosso estudo pelos freis dominicanos, foram alimentados pelos ideais do evangelho e do marxismo. Acreditaram que seriam capazes de implantar as reformas sociais que privilegiariam as classes menos favorecidas, social, política e economicamente. No encontro desses dois paradigmas, Tito sofreu drasticamente.

Ao buscar informações sobre os processos de tortura, deparamo-nos com vários depoimentos de pessoas que, ao fazerem exposições de tais experiências, o fizeram, apontando o receio de que tais práticas caíssem no esquecimento. Essa é também uma preocupação apresentada pelos teóricos que se debruçam sobre a tortura. Cassorla, em sua obra, sugere que o tema “tortura” fosse incluído nos currículos escolares. Esse não é um tema da história recente. Trata-se de uma realidade percebida desde os antigos registros feitos por povos que, por longas décadas, conviveram com essa barbárie e não faltou quem severamente a denunciasse. No entanto, percebemos a ironia, uma vez que ao invés de desaparecer, a tortura cresce em refinamento e perspicácia nas sociedades contemporâneas.

Quanto ao tema do suicídio, não é menos impactante que o anterior; com a ressalva de que a tortura tem o propósito de causar dor no outro, enquanto no suicídio, o indivíduo quer sanar a dor que traz dentro de si. Perece ter sido assim com Tito. Ficamos com a sensação de que sua dor não teve interlocução a não ser com a realidade que lhe causava ainda mais dor. Nossa curiosidade paira na questão da conexão entre sua subjetividade, singularidade e a experiência de dor que ele carregava consigo. Como terão sido os meios buscados para contatar o vivido? Cremos que não possamos desprezar o contexto ressaltado por seu psiquiatra sobre a atitude tomada para dar cabo da própria vida como testemunho das barbáries cometidas nos ambientes de tortura. Entretanto, nos interessou observar nesse relato as conexões possíveis de serem destacadas na abordagem “gestáltica”. Vimos na literatura estudada, que o suicida tem a crença de que seu ato é, por natureza, propagador da denúncia da realidade por ele contestada. Seria essa a força máxima, propulsora de energia que, somada a tantas outras, tenha levado Tito a se determinar pelo que fez? Conforme afirma Ribeiro, “a intencionalidade do ato é a figura-desejo, na qual estão presentes vontade e liberdade”. (2012, p. 49).

Correlacionar a Gestalt-terapia com esse tema, a princípio foi um tanto árido, por se tratar de um contexto não muito explorado por esta vertente da psicologia. Foi necessário fazer, por diversas vezes, o exercício da presentificação, e detectar em mim mesma, o que me causava tanta repulsa sobre o tema, sendo essa uma das técnicas vividas pelos Gestaltistas. Confesso que foi árduo acomodar os sentimentos, controlar a emoção e por inúmeras vezes me ausentar da atmosfera contida no enredo aqui registrado, sem me deixar contaminar pelo teor literário e me perceber portadora de significativas descobertas. O mesmo posso dizer do que ocorre no espaço clínico, no acompanhamento de cada pessoa, procurando estar ao seu lado, conforme afirma Karina Okajima Fukumitsu (FUKUMITSU, 2014), com a disponibilidade de colocar minha “habilidade técnica à disposição e direcionar essa habilidade para dispor de amor, ternura, acolhimento e compaixão pelo ser humano que compartilha seu sofrimento” (p. 274).

Tratar dessa problemática foi como visitar exposições com as mais variadas temáticas. Com o diferencial de que nas visitas, olhamos, tentamos capturar a sutileza do artista naquilo que vemos, sabendo que a “leitura” feita estará atravessada em nós pelo cruzamento de nossa subjetividade. Porém, no trabalho acadêmico, vários outros sentidos são utilizados. Não paramos no fascínio do que aquilo nos provoca. Temos que, de algum modo, transcrever o que foi visto, buscando um sentido para o recorte que queremos registrar. O sentido que penso despertar em quem ler este trabalho é o de que, embora os temas aqui trazidos não sejam apaixonantes, eles nos remetam a um encontro conosco mesmos, porque dizem da potencialidade daquilo que nos constitui como seres humanos: a busca pela vida, em contínua interação com o mundo que nos congrega. De certa forma, buscamos com este trabalho refletir também sobre os aspectos sociais que nos rodeiam. Como pudemos perceber as torturas, as ações e omissões contra os Direitos Humanos continuam sendo uma realidade. Em um cenário nacional e internacional de abusos de poder, de fragilização de instituições democráticas, a história de Frei Tito nos coloca diante dos esforços pela discussão sobre processos de participação e de respeito às condições amplas de dignidade da pessoa humana.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BENDER André. Frei Tito, o frade dominicano que lutou contra a ditadura. http://blog.zequinhabarreto.org.br/2008/09/17/frei-tito-o-frade-dominicano-que-lutou-contra-a-ditadura/ . Acesso em: 10/01/2011.

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CARTA CAPITAL. A lição de Stanley Milgram. http://www.cartacapital.com.br/revista/895/a-licao-de-stanley-milgram. Acesso em: 12/05/2016.

CASSORLA, R. M. S. O que é suicídio. São Paulo: Abril Cultural/ Brasiliense, 1985.

CASSORLA, R.M.S. A leste do éden: loucura, feitiço e suicídio. Revista Brasileira de Psicanálise. Volume 44, n. 2, 147-157. 2010. Pp. 147-157. http://pepsic.bvsalud.org/pdf/rbp/v44n2/a16.pdf

COIMBRA, Cecília Maria Bouças. Tortura ontem e hoje: Resgatando uma certa História. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 6, n. 2, p. 11-19, jul./dez. 2001.

DUARTE-PLON, Leneide e MEIRELES, Clarisse. Um homem torturado. Nos passos de frei Tito de Alencar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

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FUKUMITSU, Karina Okajima. O psicoterapeuta diante do comportamento suicida. Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. 2014. Volume 25, número 03, p. 270-275.

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TITO, Frei. As próprias pedras gritarão. http://www.adital.com.br/freitito/por/pedras.html. Acesso em: 10/05/2010.

YONTEF, Gary M. Processo, diálogo, "awareness". São Paulo: Summus, 1998.

 

 

NOTAS

* Psicóloga, Pedagoga e Psicopedagoga. Formanda em Gestalt-Terapia pelo IGT. Pesquisadora do Grupo Cultura Documental, Religião e Movimentos Sociais (CDOC-ARREMOS/UNIRIO), desde 2009
1 Awareness é um termo alemão que designa, nos estudos da Gestalt, a presentificação do indivíduo. Estudaremos essa conceituação mais adiante neste texto.
2 Referimo-nos ao Grupo de Pesquisa Cultura Documental, Religião e Movimentos Sociais (CDOC-ARREMOS), vinculado à Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).
3 Alguns autores utilizam a denominação ditadura empresarial-militar ou somente ditadura militar.
4 “Este livro é a reportagem sobre uma investigação no campo dos direitos Humanos. É uma radiografia inédita da repressão política que se abateu sobre milhares de brasileiros considerados pelos militares como adversários do regime inaugurado em abril de 1964. É também a anatomia da resistência” (p. 21). No silêncio necessário da descrição e do sigilo, o Projeto de Pesquisa “BRASIL: NUNCA MAIS” foi produzido por uma equipe de especialistas, num período superior a cinco anos (p. 22). O projeto foi desenvolvido pelo Conselho Mundial de Igrejas e pela Arquidiocese de São Paulo nos anos oitenta, sob a coordenação do Rev. Jaime Wright e de Dom Paulo Evaristo Arns. A iniciativa teve três principais objetivos: evitar que os processos judiciais por crimes políticos fossem destruídos com o fim da ditadura militar, tal como ocorreu ao final do Estado Novo, obter informações sobre torturas praticadas pela repressão política e que sua divulgação cumprisse um papel educativo junto à sociedade brasileira. http://bnmdigital.mpf.mp.br/#!/o-que-e-o-bnm
5 O “golpe dentro do golpe” se deu quando da edição do Ato Institucional n º 5 (AI-5), de 13 de dezembro de 1968, que foi a vitória da “linha dura”. Desde o golpe, em 1964, começaram a surgir divisões no segmento dirigente, em especial entre os militares: a ala representada por Castelo Branco (o primeiro presidente militar) e uma outra, que ficou conhecida como “linha dura”. Esta propugnava a radicalização e o avanço de medidas repressivas. Com o AI-5, este pensamento tornou-se hegemônico entre os militares e civis que estavam no governo; daí dizer-se que o AI-5 instituiu a ditadura sem disfarces. Confira: COIMBRA, Cecília. Tortura ontem e hoje. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 6, n. 2, p. 13, jul./dez. 2001.
6 No debate político atual, fica notória a verificação de que a tortura ressurge em alguns campos como algo a ser questionado e que não deveria ser entendida de forma negativa. Muitos confirmam hoje, na figura do Deputado Federal Jair Bolsonaro, por exemplo, a defesa tanto da ditadura civil-militar, quanto de métodos violentos para a manutenção da “lei e da ordem”.
7 Verificar vídeo amplamente divulgado na internet: https://youtu.be/dPcnQ8vg4oc
8 Cf. http://www.stanleymilgram.com/
9 The Experimenter, filme que representa essas experiências. Cf.: http://experimentermovie.com/synopsis
10 Conferir em: http://www.spsuicidologia.pt/generalidades/biblioteca/artigos-cientificos/82-suicidio-de-durkheim-a-shneidman-do-determinismo-social-a-dor-psicologica-individual - Sociedade Portuguesa de suicidologia.
11 Sérgio Paranhos Fleury foi um dos mais sanguinários agentes da repressão. Chefiou o Esquadrão da Morte, que assassinava pobres supostamente criminosos, comandou o Dops em São Paulo e atuou na Operação Bandeirante e no DOI-Codi. Conferir: http://www.memorialdademocracia.com.br/card/morte-de-fleury-e-cercada-de-misterio
12 Departamento Estadual de Ordem Política e Social.
13 Conferir: TITO, Frei. As próprias pedras gritarão. Disponível em: http://www.adital.com.br/freitito/por/pedras.html . Acesso em: 10/05/2010.
14 Concílio é a reunião dos cardeais e bispos representantes das regiões e países onde a Igreja Católica Apostólica Romana se encontra presente, para discutir seus rumos, assim como questões doutrinais ou pastorais. O Concílio Vaticano II (CV-II) foi o vigésimo segundo Concílio e aconteceu entre os anos de 1962 e 1965. (FISCHER-WOLLPERT, Rudolf. Léxico dos Papas: de Pedro a João Paulo II. Petrópolis: Vozes, 1991, pp. 239-241).
15 Testemunho de Jean Claude Rolland. Documento do Arquivo da província de S. Tomas de Aquino Brasil. Um homem torturado: Tito de Alencar. Testemunho do psiquiatra que o acompanhou enquanto esteve em Lyon – França. 1971 – 1974.

 

 

Endereço para correspondência
Maria Evonilde Assis
Endereço eletrônico: evoassis@yahoo.com.br

 

Recebido em: 03/11/2016
Aprovado em: 09/11/2016