A
criança em desenvolvimento no mundo: um olhar gestáltico.
Sheila Antony
O artigo tem como objetivo despertar reflexões sobre o desenvolvimento psicológico humano à luz do enfoque relacional e da teoria do ciclo do contato da Gestalt-Terapia. A Gestalt compreende o ser humano como um ser-de-relação cuja individualidade é constituída a partir de sua contínua e dinâmica interação com o mundo-outro. O ciclo do contato explicita como se processa toda experiência e manifestação comportamental, quer seja saudável ou patológica. O ciclo ocorre por meio de mecanismos auto-reguladores que buscam estabelecer uma harmoniosa interação entre o indivíduo e o ambiente.
Palavras-chave: gestalt, contato, criança, desenvolvimento.
Abstract
The objective of the article is to originate reflections about the human psychological development, considering relational perspective and contact cycle theory of Gestalt-Therapy. Gestalt has a comprehension about child as a being-of-relation whose individuality is formed on a continuum and dynamic interaction with the world-other. Contact cycle explains how is processed every human experience and behavior manifestation, healthy or pathological. The cycle is mediated by self-regulation mechanisms that reach for a creative adjustment between individual and environment.
Keywords: gestalt, contact, child, development.
A Gestalt-Terapia (GT) compreende o desenvolvimento humano como um processo permanente e contínuo de ajustamento criativo mediado pela capacidade inata de auto-regulação organísmica do indivíduo. A maioria dos autores e teorias psicológicas divide esse processo em fases, estágios, posições, organizações com a finalidade de introduzir a idéia de classificação e hierarquização.
A Gestalt assentada em teorias sistêmico-holísticas (Psicologia da Gestalt, Teoria Organísmica, Teoria Holística, Teoria do Campo) não compartilha da visão reducionista e determinista do existir humano que considera que toda criança se desenvolve e cresce obedecendo a fases sucessivas e fixamente definidas. A visão de totalidade do ser humano orienta a busca pela compreensão do desenvolvimento na sua multidimensionalidade (bio-psico-ambiental) que são interdependentes. Seu postulado principal enuncia que pessoa e meio ambiente formam uma unidade indissociável que mantém entre si uma influência mútua e uma constante interação dinâmica que propiciam múltiplas possibilidades de experiências, comportamentos e configurações psicológicas. Para Perls (1981, p. 31): “Não há eventos internos/externos, mas sim uma totalidade, um organismo e um meio que interagem e mantém uma relação de reciprocidade”.
Considerando-se ainda os pressupostos de seu campo filosófico (Humanismo, Fenomenologia, Existencialismo), a GT realça a imprevisibilidade e a singularidade das experiências, a possibilidade do novo, a incerteza do curso da vida frente às diversas situações do cotidiano e enfatiza a importância da relação como fundamento último da condição humana. A criança em desenvolvimento, portanto, é fruto das influências ambientais (sociais, culturais), da aleatoriedade dos acontecimentos e das potencialidades inatas herdadas.
O fato de ser dotada de um campo teórico e filosófico sólido possibilita a GT se insinuar na criação e construção de princípios organizadores que descortinem o desenvolvimento psicológico humano. Mesmo apoiando-se na atitude fenomenológica que prevê a transfenomenalização dos eventos mundanos, urge que o gestaltista venha reconhecer a necessidade de possuir um modelo de desenvolvimento para compreender, cuidar, tratar a criança. As palavras de Constant (citado por Ajuriaguerra e Marcelli, 1986, p. 16) vêm confirmar as diversas possibilidades de compreender o universo da criança:
“Não
é o mesmo olhar o que dirigem à criança Freud, Piaget,
Wallon e muitos outros. Não são os mesmos fatos os que vêem
nem os mesmos comportamentos os que descrevem. A maneira pela qual estudam seu
objeto, tanto pelo método quanto pela referência teórica,
dá a este objeto em todos os casos, uma significação diferente,
às vezes mesmo oposta”.
O processo desenvolvimental do ser humano mostra-se extremamente complexo ao
se transpor o nível da simples observação comportamental.
Devemos olhar a criança como uma gestalt neuropsicomotora em desenvolvimento
que irá seguir uma via de diferenciação única e
individual.
A maturacão do ser humano mostra a intrínseca interdependência entre os sistemas neurológico-fisiológico-psicológico na aquisição cronológica das habilidades motoras, cognitivas, de novos comportamentos e de novas reações afetivo-emocionais. As modificações estruturais da mente e do corpo conduzem a mudanças nas relações com o meio que, por sua vez, leva a um novo estado de desenvolvimento psicofísico. A criança muda, o ambiente muda; o ambiente muda, a criança muda numa relação de co-regulação diante das transformações inevitáveis. Não há parada no desenvolvimento, pois mesmo que o ambiente permaneça com pouca mudança, a criança está mudando em todas as suas dimensões.
Na medida em que a criança amadurece neurologicamente vai desenvolvendo a capacidade do pensamento, da linguagem, da percepção de si mesma no mundo sedimentando um processo de expansão crescente da consciência. Mudanças morfológicas no corpo ocorrem simultaneamente, a criança passa a adquirir maior domínio e equilíbrio corporal e, cada vez mais, amplia o desejo de explorar o espaço ao seu redor e o próprio corpo.
As modificações na forma e aparência do corpo vêm a exercer um impacto sobre o outro (e sobre si mesma). Há o início da exploração corporal (e da masturbação) aos 2 anos de idade. Ocorre o clássico treinamento do controle esfincteriano, em que alguns pais iniciam o ensinamento, logo após a criança completar 1 ano de idade desconhecendo a necessidade da maturação neurológica para o organismo tornar-se apto para a execução dessa atividade corporal. Observamos que tal conduta educativa revela características rígidas de personalidade em um dos pais que impõe uma disciplina precoce à criança por querer se ver livre da tarefa desagradável de ver, cheirar, tocar, lavar, limpar as fezes e urina de seu filho. Inicia-se, assim, um conflito psicológico que condensa a luta pelo poder sobre a criança e o impedimento de sua autonomia (tendo o corpo como objeto do conflito), ignorando sua capacidade de auto-regulação, suas aptidões e necessidades específicas. A enurese noturna e a encoprese podem aparecer como sintomas futuros de natureza regressiva, visando solucionar a gestalt aberta na relação mãe-criança pautada por sentimentos de raiva oculta que nutrem o conflito do controle, da dependência-independência.
É notório que em cada nível do desenvolvimento a criança ganha maestrias e domínios nas diversas áreas (cognitiva, motora, corporal) que contribuem para a construção da autoconfiança. Toda criança, ao longo de seu desenvolvimento, busca a auto-imagem de competência, capacidade e força para confirmar a noção de “eu”.
Na falta
de um modelo de desenvolvimento, o gestalt-terapeuta deve estudar teorias do
desenvolvimento compatíveis com a GT para saber como evolui o processo
de auto-regulação, auto-organização da criança
em cada idade que é responsável pela saúde, crescimento,
formação da personalidade. Ter noções sobre psicomotricidade
é fundamental para compreender que o movimento humano é o grande
iniciador da construção do psiquismo, pois reconhece a ação
recíproca entre corpo, emoção, indivíduo e ambiente.
A perspectiva desenvolvimental relacional da Gestalt-Terapia
As noções de contato e consciência embasam o solo teórico-prático da GT. Contato é o processo psíquico e/ou comportamental pelo qual o indivíduo entra em relação consigo, com o outro e com o mundo em busca do novo e diferente. Implica em união/separação, evitação/aproximação, identificação/alienação que representa a dialética do ritmo da vida.
Tellegen (1984) expressa a noção de contato a partir de uma concepção fenomenológico-existencial:
“A
noção de contato, assim entendida, como base relacional fundamental
e originária daquilo que se apresenta a nossa experiência como
eu-outro, sujeito-objeto, interno-externo, constitui a base fenomenológica
da abordagem gestáltica e é o cerne de sua metodologia”
(p. 50).
Ontologicamente, somos um ser-de-relação, ser do contato e para
o contato. Nascemos da interação, da comunicação,
do encontro com um outro ser. Desde o útero, estabelecemos uma relação
de reciprocidade em que somos afetados e afetamos; somos influenciados e influenciamos
um outro. O desenvolvimento humano entrelaça diversas histórias
de vida, sendo resultado de múltiplas coexistências, onde todo
fenômeno psicológico emerge da co-regulação entre
dois ou mais organismos, da troca emocional vivida no campo experiencial entre
eu-outro. O caminho do desenvolvimento do self, portanto, é o caminho
dos encontros e desencontros relacionais com um outro significativo.
Vayer (1986) aborda o desenvolvimento psicológico da criança como resultado de constantes interações da unidade criança-outro-mundo. Ressalta que em toda situação há sempre a criança, o mundo dos objetos e o mundo dos outros. A unidade dialética organismo/ambiente da GT observa a ocorrência dos eventos psicológicos na fronteira de contato, o que nos permite apontar três dilemas do contato que são ontológicos ao processo desenvolvimental de todo ser humano: 1o) união x separação; 2o) dependência x independência; 3o) individualidade x alteridade. Esses dilemas são vividos perpetuamente até a vida adulta, constituindo o drama existencial-relacional de cada um na procura da própria autodefinição, auto-afirmação que só se dá via confirmação, aceitação e reconhecimento por parte do outro.
O nascimento dá início ao drama da união/separação que constitui a gestalt original, inacabada. Antes de se separar do corpo acolhedor da mãe, o bebê esteve em um estado de fusão ou conexão quase absoluto, de dependência do organismo da mãe que tem a função de filtro emocional e nutricional das experiências do bebê. Ao nascer, rompe esse estado de confluência biológica primária, porém permanece a confluência psicológica, a indiferenciação entre eu-não eu, onde não há a consciência da existência psíquica de si mesmo ou do outro.
O bebê é puro corpo-sensação em troca com o meio. Agora tem um ambiente externo, está exposto aos estímulos ambientais (ar, cheiro, paladar, olhar, toque físico) que são experimentados e passam a ser registrados em seu corpo formando uma memória corporal carregada de afeto e sensações. Wallon cria o termo diálogo tônico para descrever as trocas tônico-afetivas que ocorrem na relação corpo a corpo entre mãe-bebê que formam a base das primeiras experiências emocionais. Outros autores franceses utilizam o termo bonding para especificar o contato visual e de pele entre mãe-bebê que dá a sensação de aconchego e segurança necessários para o estabelecimento de uma relação de confiança que é essencial na construção de um senso de eu saudável.
O processo de separação do corpo alheio impulsiona o processo de diferenciação do eu que acontece via tomada de consciência do corpo próprio (noção de eu corporal) que irá possibilitar o reconhecimento do corpo-eu do outro distinto rumo à constituição do eu subjetivo que é a tomada de consciência de si mesmo enquanto sujeito que habita um corpo (“Eu tenho um corpo e eu sou um corpo”) e está lançado no mundo em intercorporeidade com o outro. Esse processo de separação-individuação será bem sucedido na medida em que a mãe “deixar ir a sua identificação com a criança” (Winnicott, 1983, p. 52) e desejar se livrar da necessidade de permanecer fundida com a mesma.
Vemos que os três dilemas do contato estão intimamente entrelaçados. A união cria a dependência. A dependência mantém a indiferenciação, dificultando o processo de definição da individualidade. Ao longo desses processos existenciais, a criança vive angústias básicas inerentes a cada dilema: angústia de aniquilamento/destruição, angústia de separação, angústia da perda do amor, da morte. A angústia de aniquilamento é a experiência mais primitiva. Se o bebê não recebe um contato corporal suficiente que lhe dê um limite físico para seus movimentos reflexos de pernas e braços, experimenta o vazio espacial, a não existência, a angústia do nada. A angústia de separação gera o medo do abandono e da perda da proteção que ocorre em tenra idade quando não há recursos psicológicos disponíveis para o auto-suporte. Crianças que sofrem separação precoce ou que recebem ameaças de separação desenvolvem reações de medo, ansiedade, sentimentos de insegurança que resultam em condutas de apego ansioso (Bowlby citado por Ajuriaguerra e Marcelli, 1986, p.43).
Na linguagem gestáltica, crianças abandonadas ou ameaçadas desenvolvem a confluência como psicodinâmica representada pela necessidade de dependência, cuidado, proteção ocasionando confusão de fronteiras entre ela e o outro. A criança sofre da angústia da ausência da presença. Sem o outro ela não existe. Separação, afastamento, ausência são fatos traumáticos para a criança pequena. Desde cedo, tememos que nossos pais desapareçam ou se afastem.
O caminho da independência, que tem a sua 1a. crise aos 2 anos com o surgimento do não e do uso do eu (Gesell, 1987), exalta a luta da criança para auto-afirmar-se, autopossuir-se, reconhecer-se pessoa distinta do outro com direito a vontades e necessidades próprias. Nessa idade, o avanço do domínio motor permite a criança aumentar o seu espaço, afastar-se (dos olhos) da mãe, a linguagem se instala com mais desenvoltura (aumento do vocabulário), promovendo a posse de novos conceitos, o acesso à capacidade de simbolização (ausência-presença, concreto-abstrato, dentro-fora) que permite a separação e a diferenciação eu-mundo (Spitz citado por Ajuriaguerra e Marcelli, 1986).
Os percalços da independência anunciam a ruptura emocional com a mãe ou com aquele que cuida, gerando momentos de angústia da perda do amor. A criança deseja a autonomia, mas a teme também, pois ganhá-la a coloca em várias situações de confronto e risco com o outro significativo. A criança nessa fase ainda não entende que a obediência traz recompensas e “os adultos confundem com excessiva facilidade, obediência com crescimento” (Winnicott, 1983, p.96). A criança de 2-3 anos ao opor-se ao ambiente com seus nãos, desobedece aos pais. Quando a criança diz não aos pais e estes a punem e recriminam, gera a angústia e a raiva que são lançadas espontaneamente no ambiente, gerando novas reprimendas dos pais. A criança vive a ambivalência do amor e do ódio em relação às figuras parentais. A angústia, a raiva, a tristeza que a criança provoca nos pais produzem nela sentimentos de angústia (pelo medo de retaliação e rejeição) e culpa por seus atos. Pais que se fazem de vítima e utilizam “a retirada do amor” como estratégia punitiva, levam a criança a desenvolver fortes sentimentos de culpa pelo bem ou mal-estar do outro.
Rosanes-Berrett (1989) lembra que a criança em crescimento mantém uma estreita dependência emocional dos adultos e que pais que passaram por uma infância devastadora podem deformar a personalidade de seus filhos.
“Quando
nossos pais não conseguem tolerar nosso desenvolvimento normal, quando
eles não podem, por exemplo, tolerar nossa dependência ou crescente
independência, na medida em que aprendemos a nos separar e individualizar,
ou nossas emoções normais – incluindo raiva e entusiasmo
– nós captamos a mensagem, quer seja por violência explícita,
retraimento sutil, etc., de que nós não somos aceitos por ser
como somos” (p.33).
Segundo a autora, a criança com sua limitada consciência e capacidade
de reflexão apresenta uma reação de terror/desespero quando
os pais agem como se ela não fosse boa, temendo o abandono como punição.
Quando a criança passa por experiências de falta de suporte ambiental,
de cuidado e segurança parental introjeta pais negativos (punitivos,
desamorosos, negligentes) formando mitos negativos sobre o mundo e os outros,
dando origem a uma auto-imagem negativa e uma organização distorcida
de self que, por sua vez, produz padrões de contato não nutritivos.
Costumo dizer que o mais difícil em atender crianças é ter que lidar com os pais com seus dramas e tragédias infantis, suas gestalten abertas que são projetadas na criança, impedindo o desabrochar de suas potencialidades e o processo de individuação. Alice Miller (1997) ilustra com clareza essas projeções ao se referir aos pais que buscam o alívio da própria dor e frustração por carregarem ainda sentimentos de fraquezas, fracassos, impotências e/ou ódios: “Podemos nos livrar das velhas feridas ao delegá-las ao próprio filho” (p. 74). Assim, os distúrbios de comportamento e emocionais da criança surgem dos conflitos internos dos pais que são projetados, resultando em dilemas introjetados pela criança.
Em GT, entendemos que o distúrbio está no campo, a patologia é relacional, ninguém adoece sozinho. O mundo me adoece e eu adoeço o mundo. “Não existe doença em si, como dado existe em alguém, e não como realidade em si mesma” (Ribeiro, 1997, p.36). Doença significa interrupções ou bloqueios do contato que constituem mecanismos de defesa que visam inibir a consciência de sentimentos, pensamentos, comportamentos que geram dor, sofrimento, ansiedade e colocam sob ameaça a relação com as figuras parentais significativas. Após longa prática clínica, passei a considerar que as doenças psicológicas são doenças do AMOR: da falta de amor, do excesso de amor, do amor possessivo e egoísta, do amor deformado que gera o medo de amar e ser amado. Winnicott (1983) afirma que “há mais que se ganhar do amor do que com a educação. Amor significa a totalidade do cuidado com a criança que favorece o processo maturativo. Isto inclui o ódio” (p.94). Briggs (1986) ao tratar do desenvolvimento da autoconfiança como base de uma personalidade saudável afirma que a linguagem do amor é o respeito, a aceitação, a empatia, a compreensão, a confirmação da diferença, da individualidade e inclusive das deficiências. A criança saudável constrói um sólido sentimento de auto-estima, auto-respeito que lhe dá a crença: “Eu posso ser amada, eu tenho valor”.
Mesmo pais
bem intencionados impedem o desenvolvimento pleno das potencialidades da criança,
uma vez que intencionam transmitir seus próprios valores e adaptá-la
à cultura com suas normas e crenças. Isto fatalmente dá
origem a dois processos: mutilação/alienação de
algumas atitudes originais e o desenvolvimento artificial de outras. Esse é
o dilema existencial do indivíduo: ser o que sou ou ser o que esperam
que eu seja? Ter uma personalidade espontânea ou deliberada?
A criança em desenvolvimento no ciclo do contato
O processo do contato recebe várias denominações dentro da literatura gestáltica, como: “ciclo de excitação-consciência-contato” (Zinker, 1979), “ciclo do contato e retraimento” (Smith, 1998), “ciclo de formação e destruição de gestalt” (Clarkson, 1989), “ciclo de fatores de cura e bloqueios do contato” (Ribeiro, 1997) e outras. Esse processo representa o movimento inato de auto-regulação organísmica que tem origem numa vaga sensação que se delineia como figura, levando à mobilização de energia e, em seguida, a uma ação organizada que responde a uma necessidade emergente. A interrupção sistemática desse fluxo natural de formação e destruição de figuras da experiência humana produz disfunções do contato. Atualmente, são reconhecidos no meio gestáltico sete modos de interrupção ou bloqueio do contato que definem a dinâmica intra e interpessoal.
Ribeiro,
J. (1997), em sua obra “O Ciclo do Contato”, trata de nove mecanismos
psicológicos em relação à saúde mental do
indivíduo. Em um trecho de seu livro expõe que o ciclo (figura
1) fornece elementos para pensar uma teoria do desenvolvimento humano em etapas
de crescimento. Esses processos do contato funcionam também como psicodinâmicas
que definem um modo de sentir, agir e pensar de uma pessoa.
Figura 1: Ciclo dos fatores de cura e bloqueios do contato
Do ponto de vista desenvolvimental, a criança inicia na CONFLUÊNCIA em direção ao EGOTISMO. No meio desse percurso existencial, a criança realiza introjeções e assimilações identificativas que irão formar (ou deformar) a base de sua personalidade e organizar um modo de interação com o mundo. Segundo Perls, Hefferline e Goodman (1951/1997), a CONFLUÊNCIA é a condição de não-contato, onde nenhuma fronteira de self existe, onde “as partes e o todo são indistinguíveis entre si” (Perls, 1981, p.51), é o momento da indiferenciação quase absoluta, da fusão plena. O bebê não sabe de sua existência psíquica. Tem uma vaga e rudimentar consciência de suas sensações e excitações corporais. As necessidades são confusamente percebidas como pertencentes a ambos os organismos. A vida psíquica do bebê é vivida por meio de excitações, tensões, desconfortos, dores físico-corporais que se expressam em reações de prazer, irritação e angústia que, por sua vez, serão registradas na memória do corpo. Bebês que constantemente têm adiado a sua satisfação de fome, respondem organismicamente com irritação, podendo vir a se tornarem crianças choronas, agressivas, irritadas e com baixa tolerância à frustração.
Com a maturação neuronal o bebê expande a consciência, os movimentos reflexos do corpo ganham forma de ação e assim amplia suas experiências emocionais com o ambiente. Algumas experiências são assimiladas quando experimentadas como aliviantes, prazerosas, gratificantes. Outras (necessárias e indispensáveis) são introjetadas quando sentidas como tóxicas ao bem-estar organísmico. A criança cresce absorvendo aquilo que a cerca. A INTROJEÇÃO é o processo primário de constituição do self e de formação dos distúrbios emocionais. Para os Polsters (1979), a introjeção é patológica quando a criança “engole” material sem assimilar, não se identificando com os valores e normas externos impostos. Pais que, desde cedo, começam a impor “deverias”, mensagens arbitrárias e proibições que são incongruentes com aquilo que a criança sente como sendo sua necessidade real, deflagram o bloqueio da excitação, do impulso e da ação espontânea, interferindo na auto-regulação natural da criança em identificar suas necessidades originais e organizar a ação necessária. Todos nós crescemos escutando aquilo que “temos que” ser em nome de agradar, ser amado, não decepcionar nossos pais com seus modelos de filho ideal criado a partir de uma história pessoal de frustrações e fracassos: “Seja obediente, não discuta. Seja boazinha, pense nos outros primeiro”. Seja perfeito, não erre, não me decepcione”.
A introjeção maciça prejudica a instalação do egotismo primário que representa o momento (aos 2-3 anos de idade) em que a criança se distingue EU, deixa de referir-se a si mesma pelo nome próprio, vê-se definitivamente como UM, uma unidade, uma pessoa separada do outro. O EGOTISMO é etapa indispensável na fundação do EU, para a aquisição do auto-suporte, da autoconfiança, do sentimento de valorização e amor próprio. No entanto, permanecer no EGOTISMO como padrão de funcionamento, impede a troca satisfatória com o outro, uma vez que o individuo quer ser o centro das atenções, ter unicamente as suas necessidades satisfeitas sem a preocupação em atender o outro. Pais egotistas ignoram as necessidades da criança por estarem centrados no próprio eu, inibindo o expandir pleno das potencialidades originais da criança.
A PROJEÇÃO é um mecanismo secundário ao surgimento dos citados anteriormente, uma vez que envolve o comportamento, a ação organizada que só é adquirida após a tomada de consciência sobre si como pessoa. Para Polster e Polster (1979), o projetor é um indivíduo que não pode aceitar seus sentimentos e ações porque não deveria sentir ou agir daquela forma. “O ‘não deveria’ é realmente o introjeto básico que rotula como intragável o sentimento ou a ação de quem a projeta” (p. 85). A criança por longos anos age como projetor (aliás, há adultos que permanecem fixados nessa dinâmica). Nunca é ela quem começa uma briga, é sempre o outro quem provoca. Não é ela quem derruba o copo no chão, é a sua mão que não segurou. Não assume a responsabilidade por seus atos por temer a punição, a condenação, a crítica ao seu frágil eu que continua em busca da auto-imagem de competência.
A RETROFLEXÃO é outro mecanismo que surge a posteriori com a maturidade e expansão da consciência. Consiste basicamente no processo de anular a tensão gerada por um impulso ameaçador, bloqueando as atividades músculos-esqueléticas e impedindo a exteriorização da ação em razão do medo de ferir ou ser ferido (Perls, Hefferline e Goodman, 1951/1997). Há o aparecimento da culpa, do arrependimento que gera a necessidade de condutas de reparação das ações. A criança ao integrar esse processo ao seu mundo psíquico adquire o autocontrole, a autoreflexão necessários para uma relação de cuidado e respeito consigo e com o outro.
O processo de DEFLEXÃO constitui um dos recursos comportamentais mais utilizados pela criança em sua interação com o mundo-outro. A criança é essencialmente sensório-motora, ao sentir age impulsivamente. Quer descobrir o mundo por meio dos movimentos corporais e movimenta o corpo para tomar consciência e assim ganhar domínio do próprio corpo. Tem na ação motora a válvula de escape para suas tensões, preocupações e seus impulsos por não ter ainda desenvolvido em sua plenitude a consciência reflexiva. Suas ações são aparentemente impensadas, seu contato é superficial, sua consciência é diluída. O drama da deflexão é a debilidade da consciência. A deflexão é definida como o processo pelo qual o indivíduo evita o contato direto com o ambiente pela contenção graduada ou pela mobilização excessiva de descarga de energia para reduzir a tensão e ansiedade experimentada no encontro (Polster e Polster, 1979). Caracteriza-se como um modo indireto de fazer contato e por uma consciência superficial de si e das situações. A criança deflete com freqüência porque não tolera ataques ao seu eu e não consegue enfrentar as tensões do mundo adulto. Quando vai ser repreendida, ela finge que não escuta; quando vai ser cobrada em suas obrigações, ela muda de assunto. A criança dificilmente fixa o olhar ao conversar com os outros (olha para baixo, para os lados desviando o foco da percepção).
A evolução
maturativa da criança mostra a crescente modificação dos
processos do contato que vêm organizar novas dinâmicas psicológicas.
A CONFLUÊNCIA, o EGOTISMO e a INTROJEÇÃO são os pilares
que orientam o percurso inicial do desenvolvimento humano. Por volta dos 4-5
anos, a PROJEÇÃO e a DEFLEXÃO passam a ser utilizadas como
defesa à própria afirmação de sua personalidade
em construção. Os demais recursos psicológicos do ciclo
emergem com o amadurecimento da criança, vindo a se combinar ou se alternar
(em uma relação de figura e fundo) conforme as potencialidades
e necessidades mutantes da criança e a demanda da situação.
Considerações finais
A Gestalt tem toda uma capacitação teórica para aprofundar-se mais nos dilemas de contato e impasses relacionais que permeiam o desenvolvimento psicológico humano. Há uma absoluta carência nas investigações dos processos intrapsíquicos (a origem da culpa, dos medos, das angústias, a razão dos pesadelos infantis, da masturbação, a formação da identidade sexual, etc.) vividos nos dilemas de contato, uma vez que se dá mais ênfase aos aspectos relacionais, aquilo que ocorre na fronteira de contato. Esse olhar fixado no “entre” cega e limita a Gestalt em apropriar-se de conhecimentos indispensáveis para entender a totalidade da existência humana. Como dito por Yontef (1989, p. 196) “A totalidade unificada pode e precisa ser diferenciada em partes para poder ser dinamicamente entendida”. Não é suficiente estudar o desenvolvimento humano, considerando-se apenas o campo organismo/ambiente e seus fenômenos relacionais, é necessário penetrar na complexidade do psiquismo humano que torna tão diversificados os comportamentos e singular a subjetividade. O mistério da vida psíquica reside na dança dialética que integra o singular e o universal, o interno e o externo, o visível e o invisível.
Aprofundar a compreensão de “corpo” para entender a constituição da subjetividade na intercorporeidade humana é fundamental, uma vez que o desenvolvimento da personalidade da criança é fruto da conscientização e conhecimento cada mais profundo do seu corpo vivido. O corpo, diz Rioux (citado por Vayer, 1983, p. 21), “é saber imediato de si, experiência interna de todo conhecimento”. Corpo representa presença-no-mundo. Revela uma pessoa e sua organização psíquica. A prática clínica no atendimento infantil deve tomar as noções de contato, consciência e corpo como referencial teórico.
O percurso
do desenvolvimento infantil encerra grandes conflitos internos e perturbações
relacionais que retratam o eterno drama entre as exigências ambientais
e as necessidades originais do indivíduo. Concluo com um poema de Carlos
Drumonnd de Andrade que reproduz com beleza esse grande dilema da existência
humana.
VERBO SER
Que vai ser quando crescer? Vivem perguntando em redor.
Que é ser? É ter um corpo, um jeito, um nome? Tenho os três.
E sou? Tenho de mudar quando crescer? Usar outro nome,
corpo e jeito? Ou a gente só principia a ser quando cresce?
É terrível ser? Dói? É bom? É triste? Ser:
pronunciado tão
Depressa e cabe tantas coisas? Repito: ser, ser, ser. Er. R.
Que vou ser quando crescer? Sou obrigado a?
Posso escolher? Não dá para entender. Não vou ser.
Não quero ser. Vou crescer assim mesmo. Sem ser. Esquecer.
REFERÊNCIAS
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