ARTIGO

Gestalt-Terapia: O Ofício da Arte

Gestalt-Therapy: The Craft of Art

 

Lara M. Caruso*

IGT - Instituto de Gestalt-Terapia e Atendimento Familiar - Rio de Janeiro, RJ.

Endereço para correspondência

 


RESUMO

Nesse artigo realizo um levantamento bibliográfico em produções da Gestalt-Terapia, sobre possíveis influências e fundamentos para a afirmativa da mesma ser descrita tanto uma arte quanto uma ciência. Como se constrói esse conhecimento, em que lugar e como a Gestalt-Terapia se aproxima da arte alimentaram a curiosidade dessa busca. Com esse olhar tornam-se figura a fenomenologia de Husserl, o envolvimento artístico na vida de Fritz Perls e a arte que previamente acontece em cada encontro único, da pessoa do terapeuta com a pessoa do cliente.

Palavras-chave:Gestalt-Terapia; Fenomenologia; Encontro; Arte; Ciência.


ABSTRACT

In this article I perform a literature review in the productions of Gestalt-Therapy, on possible influences and grounds for the claim be described just as much an art as a science. How to build this knowledge , in what place and how Gestalt-Therapy approaches art fueled the curiosity of this search . With this look become figure Husserl's phenomenology , the artistic involvement in the life of Fritz Perls and art that previously happens in every single meeting, Therapist person to the customer's person.

Keywords:Gestalt-Therapy; Phenomenology; Meeting; Art; Science.

 

INTRODUÇÃO

O presente trabalho surge do meu encontro com a frase de Laura Perls sobre a Gestalt-Terapia ser tanto uma arte quanto uma ciência no aspecto intuitivo. Essa afirmativa sempre me despertou interesse (PERLS, 1992, p.20).

Partindo dessa provocação, minha intenção com esse artigo é refletir sobre o lugar da arte na Gestalt-Terapia. Como a arte floresce nessa abordagem e sob qual perspectiva ela se apresenta? Como o artístico acontece no dia a dia do Gestalt terapeuta? Estamos mesmo tão próximos da arte quanto da ciência?

Movida por essa curiosidade, busco em minha pesquisa fundamentos para a afirmativa da arte na Gestalt-Terapia. Para construir esse caminho e apresentar minhas conclusões, utilizei como método a pesquisa bibliográfica e o relato de dois encontros terapêuticos. Com intuito também de aproximar e elucidar teoria e prática pela perspectiva artística na Gestalt-Terapia.

Neste percurso, aparece como premissa desse encontro, a fenomenologia que evidencia o vivido e o experienciar único de cada ser, tanto quanto o envolvimento artístico de Fritz Perls, que ousou se experimentar de muitas formas e trouxe muito desse saborear como contribuição para sua grande obra, a Gestalt-Terapia.

Ressalto também, que mesmo a despeito das normas tradicionais científicas indicarem os artigos serem escritos de modo impessoal, em muitos momentos no decorrer deste trabalho estarei me colocando de maneira pessoal, o que considero coerente com a Gestalt-Terapia e a arte aqui destacada. Como versa Manoel de Barros (2010, p.340):

"A ciência pode classificar e nomear os órgãos de um sabiá
Mas não pode medir seus encantos. A ciência não pode calcular quantos cavalos de força existem .Nos encantos de um sabiá. Quem acumula muita informação perde o condão de adivinhar: divinare. Os sábias divinam".

 

FENOMENOLOGIA NA GESTALT-TERAPIA

"Sem consciência nãohá nada
Nem mesmo conhecimento do nada.
Não há encontro casual
De nada com nada.
Os sentidos não têm lugar
Para formar o conteúdo.
O sujeito e o objetivo.
Não podem se juntar num todo.
Consciência é o subjetivo
O "o quê" é o objeto.
E todos os meios do mundo
Visão, som, idéias, tato.
Repousam sobre base comum
Que, dando um nome, eu declaro:
O meio de todos os meios
Nada mais é do que consciência
Que diferencia – olhos e ouvidos
Toque e cinestesia
Perfume-fedor-perfume
A onipresença de Deus
É consciência que se espelha.
Experiência é fenômeno
Aparecendo sempre no agora,
Isto é lei para mim.
Um presente que apresenta a presença
Uma certeza que significa
Realmente a realidade.
Realidade nada mais é
Que a soma das consciências
Experienciadas aqui e agora.
Como a unidade do fenômeno
Que Husserl descreveu
E a descoberta
Que Ehrenfeld realizou:
O fenômeno irredutível
De toda consciência,
O nome que ele deu
Ainda hoje nós usamos:
GESTALT"
(PERLS, 1979, p.44)
.

Este poema de Fritz evidencia a grande influência de Husserl nessa nova proposta psicológica que a Gestalt-Terapia apresentou em 1951. O filósofo Edmund Husserl (1859-1938), considerado pai da fenomenologia, introduz uma mudança no procedimento metodológico da ciência com a crítica ao dualismo cartesiano e à concepção mecanicista da ciência. A fenomenologia contrapõe à visão positivista do século XIX que é presa à concepção objetiva do mundo e ao conhecimento científico neutro, cada vez mais distante do homem e de sua subjetividade. A fenomenologia defende a ruptura do dualismo psicofísico por uma relação inseparável entre corpo - mente e homem – mundo. Acredita que toda atividade científica se baseia em decisões subjetivas do cientista. (SURDI & KUNZ, 2009, p.191).

Para Husserl a consciência é intencional, ou seja, é sempre consciência de alguma coisa. A consciência é esse partir em direção às coisas que a ela aparecem como fenômenos. O fundamental para a fenomenologia é descrever o que se mostra à consciência. "Devemos nos lembrar de que Husserl mantinha a preocupação de garantir a objetividade desse conhecimento subjetivo, o que resolvia por meio da intersubjetividade" Husserl apud Ferreira (2009, p.144). A Gestalt-Terapia se nutre dessa forma de aproximação da realidade. Segundo Ribeiro (1994, p. 15):

"Trabalhar fenomenologicamente é tentar ficar com a realidade como é em si, é trabalhar a partir dela. A experiência única do sujeito precede toda tentativa de classificação ou julgamento. Descrever o processo é mais importante que interpretá-lo. A pessoa termina por encontrar seu próprio sentido através do seu processo vivido e escutado interiormente por ela".

Partindo dessa visão fenomenológica, o conhecimento é atribuído ao vivido, sem essa instância só é possível a especulação. O ser humano como um todo, seu gesto, sua voz, seu ritmo, sua expressão e espontaneidade são o que realmente o revelam. RIBEIRO (1985,p. 58) esclarece que:

"Somente o mundo visto e sentido, como vivido, como experienciado nos pode dar respostas mais adequadas e menos ambíguas. O homem todo e tudo no homem são o objeto da fenomenologia. Isto significa acabar com a dicotomia mente-corpo e passar o predomínio a pessoa como um todo".

Essa forma de construção de conhecimento acontece na prática da Gestalt-Terapia, não só pela observação do cliente como um todo, mas também pela consciência que o terapeuta tem de si mesmo naquele encontro. "O encontro deve ser baseado na espontaneidade, na fluidez, no presente, de tal modo que psicoterapeuta e cliente estejam numa postura de percepção crítica e real do mundo e de si próprios" (RIBEIRO, 1985, p. 58).

Ainda Ribeiro(1985):

"Diferente de outras abordagens não visa separar ou neutralizar a vivência e subjetividade do terapeuta em oficio, mas busca utiliza-la em favor do processo terapêutico. O Gestalt Terapeuta está atento ao seu cliente como um todo e também em si mesmo, no que aquele encontro lhe provoca"(p.58).

Assim a fenomenologia abre as portas para que a arte possa acontecer no espaço terapêutico, validando nesse encontrar de dois mundos, algo singular, novo, único. Como uma dança, onde dois parceiros juntos, vivos, com suas respectivas experiências e particularidades podem explorar sua capacidade criativa e descobrir no bailar um novo passo.

 

VIVÊNCIAS ARTÍSTICAS E SUAS INFLUÊNCIAS NA CONCEPÇÃO DA GESTALT-TERAPIA

Frederick Perls é geralmente reconhecido como o principal criador da Gestalt-Terapia. Integrava o "grupo dos sete", que se fez conhecer pelo questionamento aos códigos sociais vigentes na sociedade americana do pós II Guerra Mundial, através da busca de um estilo de vida e expressão mais autêntica. No âmbito desses questionamentos e produções, surgiu a Gestalt-terapia. Nascida oficialmente em 1951, após a publicação do livro "Gestalt-Terapia", de F. Perls, Ralph Hefferline e Paul Goodman, especialmente na década de 60, com o surgimento da contracultura, a Gestalt-Terapia encontrou espaço para se expandir. Isso trouxe uma nova possibilidade de psicoterapia, onde o conhecimento é construído a partir da interação do homem com o meio, sendo a realidade individual ou da sociedade percebida como um fruto relacional.

Muito do que foi explorado e saboreado pelos criadores da Gestalt-Terapia ao longo da vida, influencia a concepção de mundo e de ser humano defendido por eles. Como nos traz Alvim (2007), a musicalidade e o ritmo estão presentes na formação de Fritz e Laura Perls. Paul Goodman era escritor, PhD em literatura pela Universidade de Chicago, poeta, novelista e ensaísta. "Fritz" também foi poeta e foi ator, influenciado pelo teatro expressionista de Max Reinhardt. Faziam parte da comunidade boêmia de Berlim e conviveram com artistas e intelectuais de esquerda da época, respirando ares da Bauhaus, que difundia a arte e estética como expressões a serem exploradas para reintegrar o homem ao mundo social. Todas essas vivências influenciaram a construção da Gestalt-Terapia. A Gestalt-Terapia foi concebida por pensadores e clínicos que eram envolvidos em disciplinas artísticas: poesia, música, dança e teatro. Como nos reforça Alvim apud Miller (2007, p.14): "eles encontraram na arte uma visão de funcionamento ideal, a qual eles estenderam a toda atividade humana. Essa visão tornou-se a sua medida de saúde e doença e guiou sua prática em psicoterapia".

Perls se aproximou muito do teatro na adolescência e encantou-se com essa arte. Foi influenciado por Max Reinhardt, que primava pela verdade cênica, pelo teatro vivido, bastante revolucionário para época, já que o teatro falado, muito pautado na palavra, cheio de falas impostadas e elementos falsos era o que vigorava. Como ressalta Alvim (2007, p. 16):

O estilo de Reinhardt, que preconizava a harmonia e o ritmo na interpretação, enfatizava a comunicação não verbal, tendo influenciado Fritz e a Gestalt-Terapia, que toma a harmonia e o ritmo da forma como indicadores de que a ação em curso está saudável, é uma ação que envolve o organismo como um todo".

"Fritz" nos apresenta uma sensibilidade para com a percepção do ritmo, da integração e da comunicação do ser humano como um todo. Como relata Perls (1979, p.264) "o cliente não mente com seus movimentos, com a sua postura, com o seu comportamento e com a sua voz". Essa proposta é muito presente na Gestalt-Terapia, apontando que esse universo explorado por Perls no contato com o teatro de Max Reinhardt também floresceu na sua teoria.

Frederick Perls foi alguém que se entregou a muitas possibilidades, se experimentou de muitas formas, degustou vários sabores. Como ser criativo e inventivo que era, buscou transpor isso à sua grande obra de arte, que conhecemos como Gestalt-Terapia.

 

PSICOTERAPIA ENQUANTO ARTE

"Ao longo da história, nenhuma sociedade, por mais baixo que tenha sido seu nível de existência material, deixou de produzir arte. Representações e decorações, assim como a narração de histórias e a música, são tão naturais para o ser humano quanto à construção de ninhos é para os pássaros" (FARTHING, 2010, pag.8).

Quando abordo a arte, entendo estar falando também de uma forma de expressão do ser humano. Um filme, uma música, teatro, poesia... a arte é tantas vezes capaz de tocar a alma humana e comunicar, com uma exatidão e verdade, inexplicável a qualquer ciência. Como nos afirma Laura Perls apud Lima (2009 p.5/6):

"A terapia também é uma arte. Tem mais a ver com a arte do que com a ciência. Requer muita intuição e sensibilidade e uma visão geral... 'Ser artista supõe funcionar de uma maneira holística, e ser um bom terapeuta supõe o mesmo'".

Essa afirmação de Laura nos faz entrar em contato com uma nova possibilidade de psicoterapia, onde a sensibilidade e outros recursos não mensuráveis "cientificamente falando", podem e devem ser explorados pelo terapeuta. Ginger (1995, p.30) enfatizou que:

"Cada Gestaltista trabalha com o que ele é, tanto quanto com aquilo que sabe em seu próprio estilo, integrando sua experiência pessoal e profissional anterior, confiando em sua própria sensibilidade e criatividade específicas. Contrariamente à psicanálise, a Gestalt não reivindica o estatuto de ciência, mas tem a honra de permanecer uma arte".

A Gestalt-Terapia não é uma psicoterapia de encaixes, fôrmas ou moldes, é única com cada cliente, em cada sessão, construída em cada relação. Como uma obra de arte, acontece diferente para cada ser humano, como é cada digital. O terapeuta não se prende ao discurso, está também atento ao ritmo, aos sons, ao corpo, ao mínimo gesto e a toda respiração. Sabe que cada cliente é um todo e traz consigo um mundo. Está atento às sutilezas, aos detalhes, à poesia que é cada ser em si.

Como terapeuta tem a missão de contribuir para ampliação de consciência do cliente, de explorar a potência, o singular em cada ser humano. Psicoterapia enquanto arte valoriza o espontâneo e a capacidade criativa que permite ao homem poder sempre se reinventar, se experimentar de outro jeito, de outra forma. Como nos traz Fonseca (1989), parte do vivido, pois entende que é no caminhar que a vida acontece. A verdade reside no que é experimentado, vivenciado, degustado. Não existe um único caminho a seguir, mas um universo de possibilidades.

Diz PERLS (1979, p.137), "quero trazer uma teoria viva, que seja exata sem ser rígida". Quando o terapeuta se dispõe a encontrar o cliente sem receitas, deverias e porquês essa vida acontece. E o que realmente prevalece é o encontro e tudo que emerge dele. Como um ator que tem técnica, mas não é escravo dela, pode ser percebido em cena muito além de seu texto, gestos ou marcação. Sua sensibilidade e sua emoção são também seu ofício, não busca esconder, mas revelar, ser humano é presente. Assim, com o mesmo texto, cada espetáculo é novo, vivo e único.

Da mesma forma, cada encontro terapêutico vivido no presente, na relação, no espontâneo é arte. A técnica existe, mas não é o que se percebe, pois o terapeuta não está a serviço dela, é apenas um recurso. Fonseca (2005) esclarece que:

"A partir do esclarecimento desta vinculação entre existência afirmativa e arte, ressalto a perspectiva de orientação da metodologia de prática da psicoterapia fenomenológico existencial por este modo ser afirmativo da existência. Na pontualidade do instante vivido no curso da experiência terapêutica; na dialogicidade da relação do cliente com o seu mundo e com os seres de seu mundo; na dialogicidade Inter humana da relação entre as pessoas do cliente e do terapeuta. Daí o nexo entre psicoterapia e arte. O nexo necessário entre arte, existência e psicoterapia".

Partindo dessa perspectiva vou prosear um pouco algo de mim, de nós, que recheia a escolha por essa arte onde me sinto Gestalt e percebo possível estar disponível ao outro.

"Cair na imperfeição e no tempo,
talvez seja uma das maiores virtudes dessa vida.
A imperfeição nos torna de fato humanos, nos perdoa, é cúmplice,
desfaz castelos de vento,
as crenças irreais do plano perfeito.
Enquanto viver de verdade se faz plenamente e incessantemente mutante,
pois a gente se encontra e se perde no outro. Se encontra de novo, se
desencontra, cria e recria na gente e no outro.
Seriam os sonhos imutáveis?
Talvez sim, talvez não,pois eles circulam na gente e no tempo...
E nesses encontros de gente,gente é assim!
Gente muda de lugar, de idade,de gosto. Gente muda de modos, de jeito,
de cabelo, gente troca dente, gente passa com tempo....
Gente ri, gente chora, brinca, gasta, desgasta,
Gente passa com tempo...
Que tempo?
........
Meu amigo, meu inimigo, amante e traidor
Meu outro
Meu sonho, meu tempo
Nossa poesia inacabada"
(LARA LEMOS).

ENCONTROS

Relatarei alguns momentos de dois encontros terapêuticos vividos por mim em circunstâncias e lugares distintos com intuito de elucidar a crença de uma terapia enquanto arte, que acontece acima de qualquer técnica, no encontro da pessoa do terapeuta com a pessoa do cliente. Com o cuidado de preservá-las, usarei nomes fictícios e não relatarei o conteúdo de nossos encontros nem qualquer outra informação que possa identificá-las.

Até hoje não sei como Milene chegou até mim. Não consigo ter qualquer lembrança da pessoa por quem foi indicada a me procurar. Em nosso primeiro contato, Milene, uma bonita mulher de 30anos, entrou timidamente e sentou-se no canto do sofá. Com a postura curvada, olhos vibrantes e voz tímida, disse vir de um processo de 10 anos de terapia e buscar outra terapeuta agora por ter mudado de casa e não conseguir mais conciliar sua rotina com o local da antiga terapia.

Nesse primeiro encontro muitas coisas me chamaram atenção. Milene contou que agora seu objetivo era olhar para si. Essa colocação me deixou curiosa em como era estar dez anos em terapia e não olhar para si. O que ela havia experimentado, onde esteve nesse tempo? Quando devolvi a Milene à inquietação curiosa que reverberava em mim, ela disse: nesse tempo estive cuidando da minha relação com minha mãe, que foi sempre muito difícil, agora preciso cuidar de mim! Entendi que Milene não associava o cuidar dessa relação com o cuidar de si. Suas falas eram sempre cortadas por um enorme silêncio que assaltava a sala, como a distância entre o si mesmo e o outro, abordado por ela. Nossos olhares então pareciam ganhar espaço e dizer por nós. Sempre me emociono ao lembrar esse momento. Vivendo aquele silêncio com Milene, reportei-me a minha experiência, onde um misto de ansiedade, medo e expectativa eram presentes ao buscar outra terapeuta. Então perguntei a Milene o que ela estava experimentando, o que sentia naquele momento comigo. Ela me olhou com os olhos molhados e apenas disse não ser tarefa fácil encontrar outra terapeuta para seguir seu processo, já havia feito entrevista com outras três psicólogas. Entre pausas e alguns ruídos vindos do corredor, seguimos conversando.

Ao final do nosso encontro, Milene, com os olhos brilhantes e um sorriso nos lábios disse gostar de estar comigo, da forma com a qual eu me aproximei, sem formalidades e teorias. Aqueles olhos e aquelas palavras tocaram meu coração e uma lágrima correu meu rosto. Esse encontro reforça em mim a crença no que para Buber é a dimensão do inter-humano, que se manifesta no evento relacional – o diálogo – entre pessoas. Seu significado "não será encontrado em qualquer um dos dois parceiros, nem nos dois juntos, mas somente no diálogo entre eles, no entre que é vivido por ambos" (HYCNER, 1995, p.2).

Em outro encontro perguntei a Milene como era estar com uma terapeuta que se emociona. Milene sorriu e disse ser bom, diferente, que eu a provocava a experimentar outros lugares em si mesma. Trouxe então seu contato com as artes plásticas: "Quando estou diante de uma obra que mexe muito comigo, sempre penso na pessoa que a criou. Acredito que os sentimentos que o artista consegue me provocar com sua arte, só são possíveis porque existem também em algum lugar nele". Posso dizer que compartilho essa visão com ela, que isso faz muito sentido para mim.

Nossos encontros seguem e muitas vezes me percebo no lugar de frio na barriga e olhos marejados. É difícil colocar em palavras algo tão sutil, mas tentarei. Toca-me profundamente acompanha-la se abrindo, expondo seus sentimentos mais clandestinos. Lembro-me do dia em que Milene, estando muito emocionada ao relatar um fato marcante de sua vida, questionou se era possível entende-la, se era possível eu me aproximar daquela dor que a aprisionava. Então pude trocar sobre o humano em mim, sobre as sensações e sentimentos que ela me provoca. Desse lugar em que mergulho, volto a margem e posso estar junto dela.

Se eu pudesse traduzir nossos encontros em cor, seria predominante um azul anil intenso. Nessa atmosfera é figura a sensibilidade, intuição, respeito, o vivido é acolhido com generosidade. Tenho percebido ser esse um terreno fértil para atualizações e expansão de potencialidades.

Estar a serviço do outro como facilitador de sua "awareness"1, de sua integração, é para mim um privilégio. É igualmente estar a serviço da arte, pois acompanhar o ser na criação e reinvenção de si mesmo é viver com o outro a descoberta de novas possibilidades, é "transformar dor". E é no encontro que percebo isso possível.

Como terapeutas também nos criamos e reinventamos, descobrimos novas possibilidades em conjunto com o cliente. É um momento de criar "com". Essa possibilidade é mágica!

Conheci Felícia quando trabalhei em um CAPS2 no Rio de Janeiro. Felícia tinha 38 anos e era usuária do serviço há aproximadamente oito anos, diagnosticada com esquizofrenia.

Em seu primeiro contato comigo, ela ficou me olhando fixamente e se aproximou enquanto eu conversava com outra usuária. Disse que eu era bonita e começou a falar sobre seu interesse por música e objetos de beleza, mas percebi que sua higiene era precária. Com o passar do tempo, sempre que chegava a unidade, Felícia vinha ao meu encontro, abraçava-me forte e me olhava com uma cara de menina sapeca. Posso dizer que meu carinho por ela crescia. Aos poucos começou a se abrir e contar sua história. Estava sempre pedindo para eu pegar esmalte e maquiagem, para conversar com o pai e pedir para ele comprar isso ou aquilo. Nesses momentos conversávamos também sobre a importância do banho diário, de escovar os dentes, pentear os cabelos, etc. De forma lúdica abordávamos o assunto e ambas riamos muito quando ela contava que gostava de acumular lixo e guardar todas as embalagens de "Ana Maria" e refrigerante para enfeitar o seu quarto. Lembro-me de falar como poderia visitá-la dessa forma, que não haveria espaço nem para eu entrar no quarto, fora os ratinhos que deveriam estar à espreita. Ela ria, mas aos poucos foi se apresentando mais asseada e menos acumuladora. Quando chegava à unidade, vinha mostrar que estava cheirosa e que havia tomado banho. Eu apreciava muito acompanha-la!

Antes de qualquer sintoma ou diagnóstico, o que estava presente em nossos encontros era o humano, com suas inquietações, angústias, alegrias, incertezas e possibilidades. Em cada expressão e mesmo nos silêncios havia uma história ávida por ser compartilhada. É esse o lugar onde me sinto instigada e provocada. É desse estado humano, vivo e presente que também ouso compartilhar minha emoção, quando ela transborda o encontro. Costumo dizer que as lágrimas são emoções materializadas!

Certo dia perguntei se ela poderia dizer sua música favorita. Felícia então começou a cantar "Eu voltei" de Roberto Carlos. Não consegui conter minha emoção, a forma como se expressava através daquela canção surpreendeu meu coração. Muitos sentimentos me assaltaram naquele momento e fiz contato com as minhas idas e vindas, minhas buscas, as cidades em que vivi, os amigos que fiz e as possibilidades que deixei pelo caminho. Quando terminou, percebendo minha emoção, me disse com os olhos umedecidos, "essa canção mexe muito comigo, eu também sempre me emociono". Eu sorri pelo nosso encontro. Ela continuou, "eu gosto muito de você". Eu agradeci e abracei com um "eu também".

Era junho, iria acontecer uma quadrilha para os usuários do CAPS. Entre algumas doações recebidas havia um vestido de noiva de quadrilha. Quando vi o vestido, murmurei "uau"! Era lindo, me remeteu a minha infância e toda a expectativa com o vestido que eu usaria na quadrilha. E aquele que estava diante de mim era top! Transportei-me no tempo, em como era bom dançar aquela moda, como era sempre um momento mágico para mim! Naquele instante dançante, todos os problemas que me rodeavam pareciam não existir! Pensando bem, acho que até hoje é algo muito vivo em mim, pois a festa junina continua me trazendo grande entusiasmo e sempre estou caçando alguma pela cidade quando é chegada a época. Então, imediatamente Felícia veio em meu pensamento. Nossas conversas, sua alegria, seus anseios, desejos e o universo lúdico que sempre permeava nossos encontros, mesmo nos contextos mais áridos. Dentro de mim, uma voz ecoava que poderia ser uma oportunidade da Felícia experimentar esse lugar mágico, além de ser o manequim exato!

O dia da festa chegou, mostrei a ela o vestido e perguntei se gostaria de ser a noiva. Ela se mostrou deslumbrada com o vestido, mas ao mesmo tempo ficou ressabiada. Disse que seu pai poderia brigar e que aquilo não era para ela. Fui invadida por um misto de receio e decepção, mas algo em mim dizia que deveria ir adiante. Então busquei ouvi-la nesse lugar de aquilo não ser para ela. Conversamos muito sobre seus medos, receios e expectativas. Esclareci que quanto ao pai não precisava se preocupar, pois conversaria com ele. Pelo contato que tínhamos, eu realmente acreditava nisso! Felícia então sorriu e me olhou profundamente, como uma criança que pede autorização à mãe para pegar a bala que lhe foi oferecida. Senti um frio na barriga, mas algo em mim dizia para eu seguir confirmando a possibilidade dela viver aquela experiência. Após um tempo ela colocou o vestido, que parecia ter sido feito para ela! Foi para festa, dançou, brincou, casou, incorporou a noiva. Seu sorriso e animação eram contagiantes! Eu, é claro, também dancei, brinquei e me emocionei compartilhando aquele momento com ela. Não houve qualquer problema com o pai que, inclusive, chegou na hora do beijo do casório e acabou entrando na brincadeira da quadrilha. Confesso que o desfecho me gerou grande alívio! Eu fui muito feliz por acompanha-la naquele dia.

No final da festa fui ajudar Felícia a tirar o vestido. Foi então que ela parou, olhou-se no espelho profundamente e num minuto de silêncio quase cênico, me sorriu emocionada e disse: "Sabe como eu me senti hoje? [...] Eu me senti uma princesa!" Mais uma vez fui surpreendida e atravessada por alguns sentimentos. Havia uma imensa gratidão por estar ali, alegria, compaixão, além da confirmação do quanto é importante eu confiar na minha sensibilidade e intuição.

Meses depois, era dia do meu casamento e no final da festa quando uma amiga me perguntou como eu estava me sentindo, eu sorri e disse apenas: agora eu sei como é se sentir uma princesa!

Não trabalho mais no CAPS onde Felícia é usuária, mas nossos encontros seguem comigo, em um lugar onde o tempo não existe...

As trocas aqui descritas são fruto do encontrar, da disposição para transpor rótulos e experimentar o espontâneo. A preparação é para estar presente, disponível, acessível, possível às possibilidades.

Nesse lugar onde se abre espaço para o sensível, onde existe muito mais que palavras, algo mútuo acontece, se afeta e é afetado. Afeto e afetar no que considero sublime, na sutil arte de trocar existências, onde viver sobe ao pódio e a medalha de ouro é o que segue em ambos nesse a partir de possibilidades oriundas do encontro: onde a exatidão das certezas não cabe.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Desde que comecei a me aconchegar com a Gestalt-Terapia, essa referida aproximação ou comparação com a Arte me deixou curiosa. Eu queria entender exatamente onde estava essa Arte referida por Laura Perls. Logo, essa provocação me fez perceber que o lugar da arte na Gestalt-Terapia é justamente no encontro entre o terapeuta e cliente, no vínculo.

Quando iniciei minha pesquisa, muitos caminhos se abriram. O caminho da arte vivida pelos seus criadores, os recursos artísticos usados na Gestalt-Terapia, a arte como uma forma de aproximação da realidade. Muitas eram as possibilidades! Porém o que se tornou figura para mim foi essa sutil, mas poderosa, Arte criada no encontro terapêutico. Em nossa vida contemporânea, onde o "encontrar" é cada vez mais escasso, me sinto privilegiada por ter essa Arte como ofício.

Ela que eu procurava, já vinha comigo e eu sequer sabia. Pegando carona com Manoel de Barros eu escolho seguir apreciando os encantos do sabiá. Gestalt!

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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NOTAS

* Lara M. Caruso - Instituto de Gestalt-Terapia e Atendimento Familiar
1 "Awareness" refere-se à capacidade de aperceber-se do que se passa dentro de si e fora de si no momento presente, em nível corporal, mental e emocional. (PERLS, HEFFERLINE, GOODMAN. Gestalt-Terapia, pg 10.)
2 Centro de Atenção Psicossocial.

 

Endereço para correspondência
Lara M. Caruso
Endereço eletrônico:laralmcastro@yahoo.com.br

 

Recebido em: 12/09/2016
Aprovado em: 10/06/2020