ARTIGO

Caminho do credenciamento: abrindo a trilha...

Rosane Lorena Granzotto (1)

A autora é mestre em Filosofia, especialista em Psicologia Clínica e gestalt-terapeuta desde 1985. Diretora do Instituto Gestalten em Florianópolis – SC, onde desenvolve a clínica privada com adultos e casais e ministra cursos de Especialização em Gestalt-terapia, atividade esta exercida desde 1989. É autora de “Dialogando com a Gestalt-terapia”, Programa de formação continuada em Psicologia, Módulo 7, Revista Psicologia Brasil, 2004, “Uma psicoterapia do entre”, Jornal do CRP-SC – Ano IV, nº 40. Co-autora dos artigos “Gênese fenomenológica da noção de gestalt” e “Self e temporalidade”, ambos publicados na Revista do X Encontro Goiano da Abordagem Gestáltica, 10, Goiânia, 2004. Revisou e prefaciou a edição brasileira do livro Gestalt Terapia Integrada de Erving e Mirian Polster (Summus, 2000).


A trajetória da Gestalt-terapia em Santa Catarina coincide com o processo de construção de um trabalho clínico e de ensino dessa abordagem que culminou na criação do Instituto Gestalten, em 2001, na cidade de Florianópolis. Já naquele ano a Gestalt-terapia estava estabelecida no Estado como uma abordagem clínica respeitada e muito procurada pelos psicólogos catarinenses. O curso de formação em Gestalt-terapia oferecido pelo Instituto Gestalten já possuía credibilidade suficiente para garantir a formação de novas turmas a cada ano. Já podíamos pensar em tratá-lo como uma especialidade clínica, porém não queríamos nos submeter ao perfil eminentemente acadêmico do MEC.

As resoluções 014/00 e 007/01 do Conselho Federal de Psicologia, instituindo o título profissional de Especialista em Psicologia e aprovando as normas de credenciamento de cursos com finalidade de concessão do título de especialista, ofereceram algo pertinente aos nossos propósitos, precisamente: a regulamentação de uma formação pensada a partir das práticas profissionais e da singularidade das diversas orientações teóricas em psicologia. Não perderíamos nossas características de um ensino gestáltico, tão peculiar à nossa abordagem, e poderíamos oferecer aos nossos alunos um registro de especialista reconhecido pelos psicólogos e pela sociedade.

Ao nos interarmos da resolução iniciamos um processo de crescimento, reformulação e apropriação de nossa história que nos colocou em muitos momentos diante de questões polêmicas, as quais passo a relatar como uma contribuição aos colegas que se ocupam de ensinar a Gestalt-terapia.

A primeira delas e, talvez, a mais polêmica se refere à polarização entre ensino acadêmico (meramente teórico) e “treinamento” da prática clínica. Participamos de muitas discussões a respeito, afinal qual a necessidade de trinta por cento de mestres e doutores num curso que prepara para a prática clínica? Um psicoterapeuta precisa de uma formação acadêmica dita “científica” para estabelecer uma relação terapêutica? Mas esta era e continua sendo a condição para se credenciar cursos de formação junto ao Conselho Federal de Psicologia. Frente ao que nos perguntávamos: quem estabeleceu estas regras? A partir de que prática? Acadêmica ou clínica?

Sinceramente, não sei se encontramos a resposta, porém, como alguém que se ocupa integralmente da Gestalt-terapia e da Fenomenologia, vou responder a partir de meus vividos, melhor dizendo, daquilo que me inquietava no final dos anos 90. Apesar de exercer a lida terapêutica há quase 20 anos e de ter ido buscar conhecer as melhores referências na nossa abordagem, eu queria mais. Queria pensar, repensar, integrar partes às vezes desconexas num novo todo, ou talvez descobrir um novo todo ou recriá-lo a partir de minha experiência clínica. Voltei para a universidade, achei que lá eu encontraria os meios de transformar esta inquietação em uma criação. Poderia ter feito outra coisa, me tornado um autodidata talvez. Mas, por sorte, não me enganei. Hoje, depois do mestrado concluído, sou diferente como ensinante de Gestalt-terapia e também como gestat-terapeuta. É claro, não atribuo isto à academia, nem às aulas que tive ou aos livros que li, mas à experiência de recriação de velhos modos de ver a teoria e a prática retomando um fundo consistente, no meu caso, a Fenomenologia. Por esta razão passei a considerar a experiência acadêmica, mais precisamente de pós-graduação, não suficiente, mas um complemento essencial na formação do “coordenador de formações em psicoterapia”; e isto não significa transformar o curso em pura teorização, mesmo porque, se há uma teoria gestáltica ou uma filosofia da gestalt, essa nos mostra que toda teoria é apenas uma objetivação dos vividos essenciais, de nossas experiências sensíveis, motóricas e linguageiras. Não há necessidade de negarmos a teoria para sermos gestálticos ou fenomenológicos, apenas temos que entender qual é o seu lugar em nossa abordagem.

Portanto tal polêmica não chegou a ser um obstáculo no processo de credenciamento de nosso curso. Pudemos respeitar este requisito sem nos fazer refém dele.

Outra polêmica que enfrentamos tratou da caracterização do formato das tais monografias. No entender dos avaliadores, elas deveriam caracterizar uma peça estritamente acadêmica. Nesse sentido, elas não poderiam incluir descrições referentes às experiências “subjetivas” do próprio autor, não poderiam falar de sentimentos sem o devido rigor científico. Aqui foi necessário pontuar que a tradição de dissertar sobre as próprias vivências não é um descaso pela teoria, mas a adesão a um estilo fenomenológico de reflexão. Por conta disso, tivemos de mostrar, aos avaliadores, que o reconhecimento do primado das vivências é não só um postulado fundamental de uma certa filosofia fenomenológica, como também a razão pela qual os fundadores da Gestalt-terapia elegeram tal filosofia como modelo formal – e apenas isso - da nossa abordagem psicoterapêutica. Assim sendo, nossos registros teóricos não poderiam ignorar nossos fundamentos, não poderiam partir de especulações. Isso significaria: escrever sobre o que fazemos de uma forma contraditória ao que fazemos. Portanto abolimos objetivos gerais e específicos, tabelas, linguagem impessoal e todos os expedientes concebidos a partir do “pré-juízo” que afirma ser possível explicarmos nossa existência a partir de um modelo consistente. Em contrapartida desse prejuízo, definimos a monografia como a elaboração formal de uma determinada vivência, seja ela pessoal, clínica ou social, em favor da sedimentação de um modo gestáltico de pensar a existência. Para tanto, é exigido do aluno o reconhecimento e a crítica dos prejuízos clássicos em torno da vivência estudada, o emprego da literatura gestáltica na descrição da vivência, bem como a respectiva crítica dessa literatura.

Prática clínica com “supervisão relatada” versus prática clínica com “supervisão presencial”. Eis aqui outro ponto polêmico. A resolução só considera prática clínica (total de 120 horas aproximadamente) apenas aquela realizada em atendimentos “reais”, seja em clínica social ou privada, desde que supervisionada via relato do terapeuta. Esta prática é realmente importante, porém é reconhecido em nossa forma de ensinar a Gestalt-terapia o que alguns chamam de tríades ou quartetos, onde um aluno realiza um “episódio de contato terapêutico real” e é supervisionado in loco. Todos que passamos por isso ou que supervisionamos desta forma sabemos da eficácia deste trabalho. Porém isto não tem o valor de prática clínica para fins de credenciamento. Não abrindo mão desta metodologia, acrescentamos a outra modalidade e sem dúvida o curso enriqueceu muito, pois acabamos desenvolvendo uma técnica gestáltica de supervisão relatada.

Outra questão significativa nesse processo de credenciamento de nosso curso foi a limitação do público alvo. O Conselho Federal de Psicologia não permitiu que admitíssemos alunos não psicólogos em nosso curso (inclusive formandos, como era nossa prática anterior). Admiti-los implicaria ensinar técnicas psicológicas a não-psicólogos e, conseqüentemente, infringir o código de ética da categoria. Trata-se de um assunto difícil, pois, em primeiro lugar: até que ponto nós podemos considerar a Gestalt-terapia uma empresa exclusivamente psicológica? Para dar conta dessa dificuldade, respaldamo-nos na história de nossa comunidade aqui no Brasil, que há muito faz a distinção entre as diversas “clínicas” da Gestalt-terapia e a Abordagem Gestáltica (a qual inclui outras formas de intervenção que não as clínicas). Nossos congressos nacionais distinguem, pelo menos formalmente, essas duas modalidades, razão pela qual julgamos pertinente aplicar tal distinção à questão em tela. Nosso entendimento foi o de que o curso de especialização que propomos destina-se a formar clínicos e não se ocupa de outras formas de intervenção gestáltica. Por isso, não obstante não acreditarmos que a postura gestáltica possa ser reduzida a uma categoria ou prática profissional, o certo é que a Psicologia Ciência e Profissão, melhor do que qualquer outra organização em nosso país, luta por preservar as características específicas da intervenção clínica junto a fenômenos psíquicos, oferecendo respaldo legal a esse tipo de prática, bem como a quem a ele se submete. A criação das especializações e o reconhecimento da existência de uma especialidade clínica são prova disso. Mais ainda, o Conselho Federal de Psicologia tem promovido uma discussão ampla sobre a definição e a regulamentação da prática analítica e psicoterapêutica em nosso país. Razão pela qual, julgamos adequada a vinculação de nosso curso à modalidade de curso de especialização chancelado pela categoria profissional dos psicólogos. Conseqüentemente, julgamos pertinente acatar as exigências estabelecidas por essa categoria (como a da não aceitação de não-psicólogos), na certeza de que isso não implica, de forma alguma, uma limitação de nossa liberdade para praticar e discutir nossa prática clínica e, muito especialmente, nossa abordagem.

Vivemos o processo de credenciamento como um processo organizador de nosso curso, a avaliação a que nos submetemos checou as exigências da resolução e foi rigorosa quanto à qualidade e a efetividade das ações propostas no projeto entrevistando professores e alunos. Não perdemos nenhuma das características fundamentais que fizeram de nosso curso de formação um curso respeitado e procurado pelos psicólogos mesmo antes do credenciamento. Em setembro de 2004, nos termos do processo administrativo CFP nº 034/03, nosso curso foi credenciado, o primeiro curso em Gestalt-terapia do Brasil e o primeiro curso de Especialização credenciado pelo Conselho Federal de Psicologia em Santa Catarina. Sem dúvida todos ganhamos, nós porque crescemos neste processo, nossos alunos porque hoje além de passar pela “trans-formação” em gestalt-terapeutas têm sua abordagem reconhecida como especialidade clínica e trazem em seu currículo um título de especialista em Psicologia Clínica. Este diferencial tem sido considerado muito importante pelos psicólogos que procuram um curso de formação. Estamos falando de algo que conta no mercado de trabalho, que amplia possibilidades, que gera credibilidade, que nos motiva a crescer. Só desta forma vale a pena.



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Resolução CFP nº 014/00 (Conselho Federal de Psicologia), in: www.pol.org.br


Resolução CFP nº 010/00 (Conselho Federal de Psicologia), in: www.pol.org.br


Resolução CFP nº 007/01 (Conselho Federal de Psicologia), in: www.pol.org.br


Processo Credenciamento de Curso de Especialização CFP nº 034/03


(1) Psicóloga clínica, gestalt terapeuta, mestranda em filosofia, diretora do Instituto Gestalten, Florianópolis – SC, mullergranzotto@gestalten.com.br