ARTIGO

Contribuições do método cartográfico para a Escolha Profissional

Contributions of the cartographic method for vocational guidance

Ângela Maria Carneiro Silva*

Intituto Grupo Entre-redes UERJ - Rio de Janeiro, Brasil

Endereço para correspondência


RESUMO

A escolha profissional dos jovens na contemporaneidade é um grande desafio. Um campo de tensão se forma entre uma espetacular transformação do mundo, com as novas tecnologias que promovem acessibilidade, distribuição, produção de conhecimento e bem estar e uma profunda desigualdade social agravada nas relações socioeconômicas, no mundo do trabalho e no limite dos recursos do planeta. Fazer escolhas dentro desse contexto é atravessar a crise de valores que vivemos, na invenção de outros modos de se fazer e fazer mundo. Um desafio que se coloca para o profissional que trabalha com jovens nesse campo de complexidades. O método cartográfico é apresentado como uma ferramenta que contribui para atravessar as dúvidas dos jovens nos seus processos de escolhas.

Palavras chave: escolha profissional; cartografia; produção de subjetividades.


ABSTRACT

The career choice of young people in contemporary society becomes a major challenge. A field of tension is formed between a spectacular transformation of the world, with new technologies that promote accessibility, distribution, production of knowledge and well-being and a deep social inequality exacerbated the socio-economic relations in the workplace and on the planet's resources limit. To decide between choices within this context is to go through the crisis of values in which we live, in the invention of other ways of doing and making world. A challenge that arises for the professional who works with young complexities in this field. Introduce the use of cartographic method as a tool that contributes to cross the concerns of young people in their choices processes.

Keywords: professional guidance; cartography; production of subjectivities.


Desafio

Este artigo trata do uso do método cartográfico como ferramenta para o trabalho de orientação profissional. Pesquisadores brasileiros, inspirados na Filosofia da Diferença (Deleuze, Guattari, 1996), tomaram a cartografia como metodologia (Passos, Kastrup, Escóssia, 2009).

A cartografia mostra-se uma valiosa ferramenta para acompanhar os processos que atravessam uma escolha profissional e suas articulações com a produção de subjetividades na cena contemporânea, de mudanças no mundo do trabalho, e com as questões que envolvem o próprio trabalho do orientador. Duas escolas públicas foram o campo de experiências que ampliaram o questionamento sobre o trabalho do orientador. A primeira, na cidade do Rio de Janeiro, e a segunda, em Lisboa (Portugal).

Nosso ponto de partida, no entanto, foi muito antes, na fala de um jovem da zona sul do da cidade do Rio de Janeiro, em uma primeira entrevista: “Agora está na hora de saber o que eu vou ser, vamos ver se você vai acertar”. Espantosa a naturalidade com que o jovem transfere a sua questão para o especialista. Ele espera que alguém lhe garanta a escolha certa, ela existe e o outro sabe. Alguém sabe o caminho certo.

Diante da percepção do jovem quanto à orientação profissional, nos perguntamos o que o faz precisar de um intérprete para seus caminhos. Onde ele perdeu a capacidade de se questionar e de se implicar com a sua própria vida? De que forma os processos de formação, a convivência na escola, os livros que leu, a conversa com professores, amigos, o acesso às informações, os usos de recursos tecnológicos contribuem para essa posição diante de si e diante do outro? Como essa fala se produz, quais as forças que a atravessam? O que ela carrega de questões que podem nos ajudar a pensar as práticas de orientação profissional na contemporaneidade?

O mundo contemporâneo nos coloca desafios. Se por um lado temos uma qualidade de vida pelos avanços tecnológicos, que rapidamente nos permitem estar em vários lugares simultaneamente, diminuir distâncias, ter acesso a informações e culturas diferentes, compartilhar conhecimentos, agir de forma rápida diante de situações graves e urgentes, ao mesmo tempo ainda convivemos com desigualdades e conflitos que beiram o absurdo: a fome, a violência contra as mulheres, a impossibilidade de vida em muitas regiões, que resulta num êxodo de pessoas pelo mundo. As barcas dos loucos de antigamente transformam-se nas barcas dos imigrantes, que, quando conseguem aportar, são encaminhados para os acampamentos de refugiados. O número de refugiados em dezembro de 2013, registrado pela Organização das Nações Unidas é de 51, 2 milhões (http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2014/06/140619_refugiados_entrevista_hb, acesso em 20 jun. 2014).

No Brasil, o Mapa da Violência 2015 revela que 42.416 pessoas morreram em 2012 vítimas de arma de fogo, o equivalente a 116 óbitos por dia. Essa cifra é ainda mais acentuada entre os jovens, que correspondem a cerca de 59% das estatísticas (http://nacoesunidas.org/unesco-mapa-da-violencia-revela-que-116-brasileiros-morrem-todos-os-dias-por-arma-de-fogo/, acesso em 20 ago. 2015).

E, de maneira grave, o esgotamento dos recursos naturais nos confronta com o modo de vida que rege o mundo numa lógica do mercado, do descartável, do imediato, em relações competitivas, tendo no consumo desenfreado a base de sustentação. Logo, estamos falando de uma profunda crise de valores que pede um esforço coletivo de pensamento e de gestos, numa invenção de outras posições diante de si e do mundo.

O volume e o descompasso dessas realidades atingem todos de maneira contundente, mas, nos jovens, como transformar esse momento numa possibilidade de criação de modos de vida com sentidos, quiçá dignos, solidários, intensos e belos, no momento em que estão mudando a sua condição de presença no mundo, em busca de mais autonomia e responsabilidade, de escolher uma profissão e trabalhar?

Retomo a palavra do jovem, “Agora está na hora de saber o que eu vou ser, vamos ver se você vai acertar”, para ampliar a escuta. Ele pede certezas, garantias de que existe um caminho linear, sem riscos nem desvios, e pede na fé a alguém que sabe(ria), o especialista. Mas, o que mais espanta é como ele chega a esse momento tão apartado de si mesmo, como as marcas dos encontros, da escola, da cidade, dos afetos não lhe deixam marcas que o façam se reconhecer e tomar direções.

Olhar para o modo de vida dos jovens foi a lupa do nosso percurso.

Escolhemos acompanhar os modos de vida que entram em cena quando os jovens nos colocam suas dúvidas e que mostram que os caminhos não são tão óbvios e naturais. Isso por que:

“[...] é no modo de vida que está o segredo de qualquer coisa. A pedra de toque da liberdade, da escravidão, do pensamento, da submissão à sabedoria, está sempre no modo de vida. O modo de viver é simultaneamente ético e estético. Ele cria regras éticas, que podem até ser regras morais, e ao mesmo tempo ele expressa um modo da energia ou do desejo atravessar o corpo que faz do corpo e da alma uma expressão estética, uma obra de arte. Ou um trapo”. (FUGANTI, 2001, p. 2).

Essas questões começaram a ganhar corpo com as nossas leituras de Baumam (1998), Sennett (2006), Ehrenberg (2000) e Bezerra (2010), que têm em comum as transformações do mundo contemporâneo e os seus efeitos nos processos de subjetividade. Vivemos em tempos acelerados, milimetricamente mensurados. A fórmula time is money é expandida para espaços inimagináveis de produção e precariedade, a ponto de caber a pergunta: “Será útil viver quando não se é útil ao capital?” (FORRESTER, 1997, p.16).

Se somos feitos de tempo (MACIEL JÚNIOR, 2007), o capitalismo, em suas novas lógicas e modos de relações sociais, faz do projeto de tornar-se a si mesmo uma meta geral, global e constante. A iniciativa individual adquire um estatuto de valor, “o direito de escolher sua vida e a injunção de tornar-se a si mesmo investe a individualidade num movimento permanente.” (EHRENBERG, 2000, p.15). A responsabilidade de se produzir a qualquer preço faz do homem contemporâneo o empreendedor e o gerente de seus recursos e conflitos, contra a insuficiência, que tem na depressão o seu maior fantasma:

“A cultura hoje não é mais regulada pela repressão do gozo excessivo, mas sim por uma espécie de incitação ao gozo constante. Porque essa é a base do consumismo e do que poderíamos chamar de ideologia da autonomia: a crença difundida e a percepção compartilhada de que somos mais autônomos do que nunca, justo numa época em que nos tornamos cada vez mais dependentes de artefatos tecnológicos e discursos que se dizem científicos para nos guiar no cotidiano” (BEZERRA, 2010, p. 42).

Nesse caldeirão de produções, os efeitos de uma escolha cada vez mais se enredam:

“Não é uma questão de saber a profissão, acho que sei o que eu gosto, mas como fazer meus pais entenderem que eu não quero? Uma correria, um mau humor, a gente não consegue ficar junto, porque eles estão sempre reclamando, chateados. Entendo a lenha que eles passam – contas, compromissos –, mas não quero ficar assim, isso me grila. Afinal tudo isso... cara, minha mãe fica louca quando eu digo... tá mãe trabalhar é pra quê?” (Paula, 18 anos).

A dúvida da jovem coloca em questão um modo de vida, mas também um modo de trabalho. Abre a possibilidade de problematizar a vida, em suas articulações com uma concepção de trabalho, que forja, para além da técnica, competências e procedimentos prescritivos, outros modos de fazer e de se fazer. Uma concepção de trabalho como elemento de conexões das relações sociais, que afirma a orientação profissional como uma maneira de inserção e invenção de mundo.

De que maneira? Deslocando de uma orientação profissional como um caminho linear, resultado de um desenvolvimento, para a concepção de uma orientação como processo. Um percurso que está em acontecimentos atravessados por uma série de componentes históricos, econômicos e culturais.

As pressões do mercado, que pede produção, exatidão, flexibilidade, competitividade, transformam o tempo no cobrador. A entrada e a saída da universidade, quanto mais lineares, mais confirmariam um bom prognóstico. Entretanto, os percursos pela vida acadêmica tornam-se cada vez mais labirínticos, com mudanças de cursos, desistências e reinícios.

Na urgência de uma resposta, busca-se uma orientação vocacional que dê garantias, aplaque angústias e garanta um futuro. São expectativas que crescem dentro de uma concepção de que a vida se faz por etapas, na conquista de uma passagem bem sucedida da adolescência para a vida adulta e, nessa premência, achar a resposta é urgente.

Por isso, numa outra direção, fazer contratempo e seguir os não sei dos jovens pode nos abrir a questões potentes e expansivas pelas múltiplas conexões. Uma proposta de fazer um contratempo diante de uma série de coisas colocadas muito naturalmente. Sair de uma acomodada posição do conhecido. Experimentar a vida como crise, numa aventura singular e radical de invenção de mundos, já que a vida, como muitas vezes tem sido tratada, vai se constrangendo, ficando pouca, pouquinha, a dos jovens, a nossa, do entorno. Parodiando o próprio Deleuze, trata-se não da experiência pessoal de juventude, pois a vida é mais que pessoal, mas da juventude do mundo. Então, buscamos processos que, apesar de não terem visibilidade, estão presentes.

O que a cartografia pode fazer por nós?

A cartografia é um método que permite acompanhar processos. Tem seus fundamentos filosóficos na obra de Deleuze e Guattari (1995), que nos ajudam a pensar o nosso trabalho como um campo de forças. Forças que, em tensão pelas diferenças de intensidade, ganham formas, se estabilizam e configuram de forma parcial e provisória um registro. O pensamento acompanha as marcas dessas forças, atento aos percursos que se desenham e não às suas representações. E são esses os deslocamentos, conexões que se sucedem e ganham visibilidade, que serão registrados pela cartografia.

Estabelece-se uma distinção interessante que nos ajuda a distinguir as características da cartografia, por exemplo, quando dizemos que cartografar não é mapear. O mapa apresenta o registro fechado de si mesmo, o retrato da região, os pontos de reconhecimento, acidentes geográficos, sinais de referências, localização, acessos. Já a cartografia quer mais, quer acompanhar os movimentos, não só do que está consolidado, mas do que está por vir, do que se anuncia, num contínuo acontecer, no átimo do que é e do que não é mais. A cartografia é o registro dos deslocamentos aberto ao presente, construído através de relações afetivas e efetivas, de maneira singular e local.

Dessa forma, podemos dizer que a cartografia é fruto de um desvio da tradição do pensamento hegemônico ocidental que busca desvelar a verdade do mundo que está para ser descoberto. É construção, numa constante busca de invenção de sentidos.

É na dobra das esquinas que encontro uma porção de gente mergulhada tanto na pesquisa quanto na vida, experimentando o “se fazer” e “fazer mundo” nas práticas do “pesquisar com” (MORAES, 2011). É assim que a cartografia chega para mim, como um método que permite acompanhar processos de feituras dos laços formados pelos afetos que passam. Chega como um desvio da tradição do pensamento hegemônico ocidental do ato de pesquisar, como uma possibilidade de desvelar mundos, de produzir percursos.

Ora, se os esquecimentos e os sonhos nos arrastam para o indescritível, então o barulho da vida, sempre aberta e inesperada, recusa o texto pronto. Se na cartografia somos feitos de tempo em contínuo processo, a invenção nos habita. Para nós, isso é fundamental, já que o fascinante e desafiador é manter as passagens livres para que novos mundos quiçá mais interessantes se tornem possíveis. Não tão leves e soltos assim. Diante dos tristes encontros na vida, em que murcham as intensidades, a cartografia busca as bifurcações que potencializam novas rotas.

O encontro com esse campo forjou um espaço entre nós. A vida ganhou uma velocidade estonteante pelos interstícios do tempo. Saio da posição das intersubjetividades e trocas para o plano das passagens e conexões.

Escolhas de vida

Numa pequena vila de natureza exuberante, tendo a Mata Atlântica como cenário, na região serrana do Rio de Janeiro, a escola pública passa a ter pela primeira vez o ensino médio. Até então a opção era estudar em lugares distantes ou em escola particular, o que não necessariamente era uma opção e levava à evasão escolar. Se não se estuda, passa-se a trabalhar, e as opções são restritas para quem não tem qualificação. A oferta é para garçom, auxiliar de cozinha, arrumadeira nas pousadas e restaurantes, jardineiro, caseiro nos sítios dos veranistas ou empregado no pequeno comércio da região. Com a ampliação do ensino médio, houve uma certa euforia no ar, da possibilidade de muitos avançarem nos estudos e serem a primeira geração de muitas famílias a terem um trabalho diferente, e até pensar na continuação dos estudos.

Muitos jovens já não tinham interesse em repetir a maneira como a geração dos pais vivia e trabalhava. Uma vida sempre difícil e precária. E, com o acesso às novas tecnologias de comunicação, produziam novos anseios de modos de vida e circulação e novos interesses. Com isso, a dúvida do que fazer ao término do segundo grau ganha lugar entre os adolescentes. Mas não só! Ganha lugar também entre os professores e também entre os familiares, preocupados com as incertezas e dificuldades crescentes do mundo do trabalho e da apropriação do conhecimento. Na maior parte das vezes, a serialização escolar não anda passo a passo com a absorção do conteúdo, que fica sem sentido e muito distante do centro da vida dos alunos.

Como potencializar esse momento de dúvidas para abrir novas possibilidades de vida? E quais as reais condições de formação, de trabalho, de recursos da região que comporiam com a realização do jovem? Dentro desse contexto, desenvolvemos uma oficina como um espaço para pensar essas questões e cartografar os processos que estariam ocorrendo. Quem sou, em que o mundo vivo, como quero viver.

Durante um ano, acompanhamos um grupo de 25 jovens da 8ª série e do 1º ano do ensino médio. Usando cinema, música, pesquisa na internet, jornais, revistas, entrevistando pessoas, visitando lugares, tudo que ajudasse a dar visibilidade aos processos que ali aconteciam. No nível da informação, mas principalmente no modo como esses encontros reverberavam em cada um. Portanto, um trabalho de experiência de si, numa leitura de mundo, dos encontros marcantes porque fizeram diferença, da mudança que se produziu, das atividades que desenvolveu, do tamanho da curiosidade, da confiança nos outros, da maneira como se comporta quando quer alguma coisa ou quando encontra dificuldades, na forma como se relaciona com os outros, enfim uma proposta de dar visibilidade a tantas coisas que muitas vezes ficam sem lugar.

Trago o momento em que resolvemos sair da escola e irmos para a rua conhecer como, nesse bairro, as pessoas encarnam seus ofícios e produzem modos de vida. Acompanhar os processos e caminhos que vão se fazendo no grupo de jovens. Logo, pousamos nossa atenção nas dúvidas e curiosidades, uma atenção que não busca um foco, mas é abertura ao inesperado, atenta ao que pode surpreender.

Pulamos os muros da escola, caímos na rua, encarnamos o próprio movimento que as dúvidas produziam. O limite do espaço pedia para habitar movimentos, atravessar e ser atravessado por caminhadas, distâncias, entrevistas, eventos. Entrar em movimento concretamente permitiu ao grupo se apropriar das riquezas culturais de sua comunidade, com as práticas de fazer do corpo, lugar e história, e criar conexões, expor as redes que os atravessavam e atravessavam suas vidas. Ao circular e interferir na paisagem da cidade e no universo cultural de seus habitantes, o espaço se transfigurava, criava-se a inexistente praça, que fomos concretizando na escola, ONG, igreja, passantes, comércio, floresta... Um território feito de um coletivo de forças foi se constituindo.

Saímos à rua para conhecer o trabalho das pessoas, o que e como faziam em que condições, se gostavam, quanto se ganhava. Combinávamos quem conduziria o encontro, deixando as perguntas em aberto para todos. Assim, fomos à clínica veterinária e conversamos com a secretária, a veterinária, o tosador. Depois, no restaurante mais ‘badalado’, fomos do auxiliar de cozinha à proprietária, passando por garçom, barwoman, cozinheiro, pizzaiolo. Depois, no comércio: videolocadora, farmácia, açougue, pousada, associação. Igrejas, lojas material de construção, delicatessen. No dentista, no fisioterapeuta. Algumas pessoas não trabalham em nenhum estabelecimento, mas são reconhecidas: o Dezoito (dizem que ele brigou e bateu em dezoito de uma vez; ele diz que uma cobra mordeu seu pé quando tinha 18 anos, e o ferimento nunca mais sarou), a parteira, a artesã, o foguista, o guia de trilhas, que também é bancário, o fotógrafo, a agente de saúde, a enfermeira, a parteira. E retornamos à escola, às professoras de História, Educação Física, ao professor de capoeira, à cozinheira, ao inspetor.

O que fazer com esse material? Tantas informações, histórias, mas também tantas conversas que ocorrem no ponto do ônibus, nas idas e vindas da escola. Aos poucos, alguns pontos foram se organizando no quadro e estabelecendo uma classificação.

Quadro 1 - Movimentos cartográficos de ocupações

Saúde

Serviços

Educação

Cultura

Lazer

Médico
Dentista
Veterinário
Lixeiro
Merendeira

Parteira
Agente de saúde
Farmacêutico
Técnico de informática
Motoboy
Advogado
Comerciante
Engenheiro
Arquiteto
Faxineira
Arrumadeira
Capinador
Pedreiro

Psicólogo
Professor (a)
Padre
Pastor
Professor de capoeira

Marceneiro
Jardineiro
Guia de turismo
Artesão
Cinema
Futebol
Barman
Foguista
Pizzaiolo
Cozinheiro

Promotor de festas
Organizador de passeios

O mais interessante era ver o movimento com que essas informações se articulavam e mudavam. No quadro, a cozinheira passava para saúde ou para cultura, outros perdiam um lugar definitivo e determinado. Curioso como cada um encarou os desdobramentos:

“Realmente eu acho bacana a cozinha, é um mundo né? Os temperos, as panelas, como se misturam... o barato de como servir o lugar, tô achando uma coisa meio de bruxa... Minha mãe é cozinheira e eu sempre gostei, mas … E a coisa que eu decidi é que eu achava que tinha que sair de Araras, e descobri que eu não tenho que sair de Araras. Eu amo Araras, mas achava que tinha... só se eu quiser” (Aline).

Aline vive o imperativo da mobilidade que a sociedade de capacitação engendra estar sempre em busca de novas habilidades, não se fixando, algo impensável para geração da avó, que nunca saiu do lugar em que nasceu. Mas, ao mesmo tempo, no trabalho com o grupo, se surpreende com a ideia de que sair pode ser uma possibilidade, e não a única. Pode se dar tempo para pensar se essa possibilidade é a que lhe interessa e se existem outras.

“Descobri que dançar é mais que pliê. Preciso conhecer tecidos, luz, de repente aprender a costurar, música. Os pontos de tensão do corpo, dominar shiatsu, olhar os quadros e ver as pinturas, fazer capoeira, fazer acrobacia. Emocionar os outros. Uma mistura, aí de repente o meu quadro junta muitas coisas... mistura muitas coisas”. (Flor tivera contato com o filme Isadora, sobre Isadora Duncan).

Flor juntou os diferentes elementos que fazem parte de um trabalho, o que trouxe uma ideia para todos que ali entre nós chamamos de cultura de uma profissão, a composição de diferentes conhecimentos, técnicas e habilidades que vão se cruzando e fazendo aquele ofício crescer. Isso provocou um exercício de se pensar a cultura dos ofícios, os elementos que podem se combinar de muitas maneiras e também os usos que cada um pode inventar para criar um estilo próprio de trabalhar. A partir dessa invenção de Flor, passei a prestar mais atenção nesse mundo, que pode ser uma profissão ou um ofício, pelos percursos que as pessoas vão compondo. Ou seja, você pode ser isso ou aquilo por diversos caminhos, de diversas maneiras.

Algumas atividades ficaram sem lugar, não se sabia o que fazer com elas: prostituta, aborteiro, traficante, benzedeira. E ficaram ali, flutuando no limbo.

Prostitutas, aborteiros, traficantes, benzedeiras…

Ficaram de fora? Mas fizeram um barulho! Porque colocaram em debate o que levaria uma pessoa a desempenhar tal ou qual trabalho. Como uma injunção de situações muitas vezes colhem as pessoas e as levam para lugares inimagináveis.

“Meu pai disse que eu não tenho jeito, porque, com esse estudo todo, eu continuo igual. Trabalho como pedreiro. Esse estudo é pra quê? É engraçado porque é verdade, mas também não tem graça nenhuma, né? Ele não tem estudo, mas eu... aí... eu acho que eu sou burro, não dou pra nada mesmo”... (Rafael).

A fala de Rafael coloca na roda o atravessamento que se reduz a uma identidade que engessa, efeito de uma trama discursiva: o aluno burro, o professor incompetente, a psicóloga especialista, o pai omisso, o jovem delinquente. Não tem jeito, o problema sou eu... O estudo, as expectativas de mudança de vida e a relação com o trabalho se apoiam na impossibilidade. O aluno fala da decepção de não alcançar o lugar esperado. Pelo contrário, isso tudo só confirma o seu fracasso. Mas, onde deveria levá-lo? Sua fala se espalha:

“Eu sinto um medo de acontecer... o que aconteceu com minha irmã... ela tá aí na vida... antes ela ainda vinha e ajudava depois... nunca mais voltou em casa... eu sei que minha mãe tem medo... mas... prostituta é trabalho? Quando ela ajudava em casa, era” (Ana).

Burburinho de coisas que se atropelam: roubar, traficar... Mas “quando ela ajudava em casa, era”. Dinheiro limpo, dinheiro sujo, “a pessoa já nasce ruim”, “mas tem gente que entra p’ra igreja e se remenda”, “mas, ela continua minha irmã”. Identidades definidas a priori, espremidas pela profusão de questões.

Lá em casa todo mundo deu errado... O que ela quer dizer com isso? Que cresceu numa casa em que a família teve muitas lutas e viveu muitas tristezas: o assassinato do irmão, as constantes brigas por conta do pai alcoólatra, a luta da mãe para sustentar a casa com seu trabalho, a irmã mais velha que deixou o filho e foi embora. Ana, a filha que ajuda, toma conta da casa e carrega o enorme fardo de endireitar a vida de todos, escreve outra história. Uma aposta em que os estudos vão redimir a família por um título, um trabalho e ao mesmo tempo a precariedade de manter esse projeto.

Ao se apresentar como a única que pode estudar, reconhece a importância dos estudos, um valor em nossa sociedade e, em sua vida, um privilégio. Diz, contudo, que essa mesma escola que pode frequentar é insuficiente para fazer um curso de Direito, quer ser advogada. Se quiser continuar os estudos, terá que ter dinheiro para pagar uma universidade particular, já que não tem condições de passar para uma universidade pública. Então, estudar é para quê? Ou para quem?

Ao mesmo tempo diz: Eu não tenho a menor ideia... Por aqui faz análise de sua força, pois, apesar de todo o projeto de expectativas e de histórias que a atravessam, há um ponto sobre o qual não tem a menor ideia, que algo ainda não se inscreve. Há, portanto, uma abertura.

Será que a escola pode ser porta passagem e cúmplice nessa travessia? De que maneira o espaço da oficina pode fazer das questões um celeiro de outras ideias, numa implicação de todos? O quanto a presença de Ana toca essa instituição? O quanto o corpo da escola se afeta pelos atravessamentos do projeto de se tornar nos efeitos de seus relacionamentos, na sua forma de aprender, nas suas dificuldades, na sua alegria? O quanto Damiana pode afetar a oficina, qual escuta estabelecemos para que as intensidades ganhem palavras? Como suas escolhas são constrangidas por esse projeto de vida? Como problematizar o dar certo e o seu contrário, e expandir para forças que ali em presença fazem mais vida? A atenção aqui é fundamental. Criar olhos, ouvidos, tatos para as pistas que desestabilizam e abrem passagens no turbilhão das experiências e instaure possibilidades.

Outras fronteiras, áreas de invenção.

Foi em Lisboa que tive a oportunidade de realizar uma oficina numa escola pública de formação técnica artística de muito prestígio. A escola oferece cursos de fotografia, desenho, ourivesaria, tecelagem, maquetes, cenografia, figurinos, adereços (chapéus, máscaras), artes gráficas (digital, em papel), cerâmica. Em conversa com o serviço de orientação profissional da escola, surgiu uma oportunidade de aproximação com os alunos para entender o modo como lidam com a questão da escolha de um ofício. Particularmente no momento que o país vive uma crise econômica e social grave. Essa oficina acontece no auge do período de austeridade. Conseguimos uma brecha no calendário da escola com uma turma da professora de Inglês. A turma escolhida apresentava dificuldades com o aprendizado da língua inglesa. A expectativa era de uma pessoa de fora, com outra abordagem trouxesse alguma contribuição. Assim, chegamos lá:

“Eu venho do Brasil, sou psicóloga e estou aqui para saber se vocês aceitam conversar sobre esse momento da vida de vocês: esse momento que estão definindo um caminho profissional. Como foi a entrada nessa escola técnica, o que acharam desse primeiro ano que se completa, o que acham que vai ajudar a entrar no mercado de trabalho. É isso mesmo, estão gostando? Essa conversa me interessa porque é o que venho estudando, no Brasil e agora aqui em Portugal, como os jovens trabalham, vivem o que estão achando do mundo, enfim, conversar”.

E de repente ouço: “Graxas a Dieus qui a senhora está a falar em Portuguêxs! Pienxávamos que seria tudo em Anglêxs!”.

Uma risada só. Descontraímos: eu, eles e a professora.

“Você tem toda razão, a língua que vamos falar tem que ser uma língua que nos aproxime, concordo. Então, em português, podemos tentar? Vamos tentar, porque acho que também não vai ser fácil. Vamos devagar, pode ser?”

Abriu-se a porta para uma negociação. Nada como a graça de um susto. Tem que haver espaço para a diferença dos sotaques, das escutas, dos equívocos, das histórias, das culturas, dos preconceitos, tem que haver confiança, afiançar um espaço entre nós. É o que propõe a cartografia, que não é um método pronto. Os caminhos vão se fazendo pelas conexões que acontecem, e por isso é fundamental estar disponível aos acontecimentos que nos acontecem e se anunciam como promissores.

Proponho escrever na lousa as palavras que se destacarem das suas falas. Concordam, e prosseguimos até o quadro ser tomado de palavras, que carreiam ideias, experiências, descobertas e promessas. No princípio timidamente, depois a participação vai aumentando nas histórias.

Muito fortemente aparece a importância da escola como um lugar que mudou as suas vidas. A ida para escola produz uma mudança e entra a questão de como uma escolha provoca mudanças. Primeiro, porque a escola os acolheu e porque eles a transformaram num território. Os relatos das experiências nas escolas anteriores revelam a pecha de maus alunos, reprovações, questões familiares. Depois, aparece o quanto uma mudança implica num choque. Não é fácil. Para alguns dali, havia o preconceito entre familiares e amigos de que frequentar uma escola artística é a alternativa, por incompetência, de fazer outra coisa de mais valor e de garantia de futuro. O que seria de mais valor? As carreiras tradicionais associadas a empregos (“se pelo menos fosse um politécnico”, comentário do pai de um aluno). O valor da escolha está associado ao valor das carreiras a que ainda se creditam sucesso, estabilidade e retorno financeiro, mesmo com os jornais mostrando outra realidade.

Uma aluna conta que brigou muito para vir estudar nessa escola. Os pais não aceitaram quando, há dois anos, ela passou para a escola e interferiram junto ao serviço de orientação. Ela havia passado para Biologia numa outra escola. A aluna acatou a pressão dos pais, cedeu, e fez dois anos de Biologia para provar que o queria mesmo estudar era Arte, nessa escola. Os pais reconheceram que ela tinha razão e ela veio pleitear a vaga novamente e conseguiu. Aqui temos uma pista para pensar uma orientação como processo que pode acolher o trabalho do tempo, que põe em tensão a escolha do aluno, mas a dos pais também, e sustenta uma negociação difícil. Quando a aluna volta, as circunstâncias permitem uma reintegração ao curso. Diz que adora a escola e ali se encontra. Mas, segundo ela, muitos não conseguem, pois é muito difícil fazer o que se quer.

O trabalho de orientação se apresenta aqui como um espaço de experimentações, inclusive quanto ao papel do orientador, que se vê diante dos conflitos do aluno, dos pais. O sistema educacional português, em particular, rege a avaliação escolar que orienta os percursos profissionais, principalmente os de longo prazo, pelo sistema numerus clausus, que é um mecanismo de limitação do acesso aos diferentes cursos, em vigor desde meados dos anos 1970. Pauta-se por um modelo meritocrático de escola, ou seja, os alunos são hierarquizados em função do seu mérito. O modelo, assente no princípio da “igualdade meritocrática de oportunidades”, é reputado como sendo socialmente justo.

Outro aluno diz que a escola é um pouco sua casa. O que seria fazer da escola sua casa? Poder sugerir ideias e ser ouvido. Por exemplo, as atividades de tutoria feitas pelos colegas que têm melhor resultado e a proposta de um cineclube. A escola acatou as sugestões e isso tem feito diferença na vida deles. Assim, a escola se torna um espaço de troca, em que os professores são muito exigentes, mas os alunos entendem as exigências como um sinal de dedicação. Uma aposta de que vão fazer bom uso disso. Dizem que dá confiança a eles de que serão bons profissionais. Pergunto se isso ajuda a fazer do mundo mais a casa deles, por exemplo, e o quanto o ofício que aprendem pode contribuir.

Silêncio e mais silêncio.

Diz um aluno que, quando a gente gosta do que faz, a gente vai ocupando os lugares de uma forma boa. Ele é de outra cidade, mas hoje se sente de Lisboa também. A cidade e a escola foram mudando, bem como ele.

Esse modo de juntar as coisas, a capacitação técnica e a mudança de vida, coloca de um modo muito claro um processo que criava sentido, com o trabalho sendo concebido como uso de si, em que “O que é convocado no trabalho são recursos, capacidades vastas, competências, o que não se identifica com a capacidade para realizar a tarefa [...] Portanto, a competência não se separa das condições que, no dia-a-dia, dão conta da nossa capacidade de viver [...]” (FONSECA, 2003).

Os alunos hoje percebem que vir para a escola foi um bom movimento, mas que, no momento em que decidiram, foi puro risco, nada garantia que daria certo. Escolha é sempre um risco, mas é um caminho, e a orientação como processo lida com isso o tempo inteiro. O ano foi muito difícil, porque envolveu uma série de adaptações: não só estudar, mas ser assíduo e pontual, dominar técnicas por meio de muitas aulas práticas, superar dificuldades. Para alguns, aprender a habitar na cidade, longe da família, e lidar com a expectativa familiar de ser a última chance para encontrar um caminho na escolaridade. Alguns falam do orgulho de fazer parte da escola, que, mais do que ensinar, prepara para a vida. Gostam do trabalho de experimentação do primeiro ano. Nesse sentido, destacam a disciplina chamada Projeto, disciplina chave, que costura todas as outras. A matéria tem como objetivo acompanhar o surgimento, desenvolvimento e realização de uma ideia, e torna-se um exercício de ver as coisas aparecendo e acontecendo:

“Se calhar, tens uma ideia, que começa a concretizar e vai por aqui, vai por ali, ela ganha uma forma e põe-se a crescer. E você fala com um, fala com outro que dá um palpite, acorda com uma inspiração e pronto: finaliza uma coisa e é muito bom, porque você criou aquilo, descobre que pode”.

“Aprendi a usar isso na minha vida, estava a fazer um trabalho a usar metal. Toda hora que estava a chegar num ponto de dobra, o metal quebrava. Fiz várias tentativas, mas, quando estava a desistir, me veio uma ideia, mas se calhar a dobra é a pulseira (risos). Percebe então que ela não quebrava, era a própria pulseira, uma pulseira dobrada e não quebrada. Foi fixe”.

O lá do futuro, mesmo com tanta incerteza no agora, ganha lugar. Concretamente, essas experiências, fazer um “lá” num “aqui”, vão ganhando corpo, ao mexer com cerâmica, tecido, desenhos gráficos, pedras. O fazer que faça fazer a si vai se encarnando, ganhando sentido, história, ao deixar o tempo trabalhar, em que o lá e o cá se encontram, embaralhando passado, presente e porvir. E tem a potencialidade de desafiar uma forma-tempo de curso linear e inexorável. Ou seja, as previsibilidades encarceradoras são matérias a serem constantemente questionadas. Aos poucos, vou colhendo uma narrativa que é o próprio acontecer, o fazer e o fazer-se tramados nesse vai e vem são enlaçados pela palavra, mudam constantemente a direção, e a narrativa vai produzindo um campo entre nós.

Os alunos apontam a importância de um ano experimentando as diferentes oficinas para decidirem, ao final, sobre qual curso querem seguir. São as várias descobertas sobre os materiais e sobre as diferentes formas de utilizá-los que despertam interesses diferentes. Muitas vezes são surpreendidos no manuseio de um material que os leva a uma escolha antes nem pensada. Apropriam-se da disciplina Projeto como um processo.

Por fim, essa experiência afirmou uma orientação profissional como processo. Ao acompanharmos processos, e não representação de objetos, lidamos com os elos que foram sendo feitos com os jovens: jovem-escola, jovem-professores, jovem-colega, jovem-material (cerâmica, imagem, desenho), jovem-cidade, jovem-tempo, jovem-corpo, jovem-crise, todos processos inventivos de si, de modos de vida e de se fazer trabalho numa aprendizagem, numa rede de um comum, nas lides com o tempo.

Uma pista relevante para se pensar a orientação profissional como processo, a partir desse encontro, foi o modo “problematizante” com que me envolvi com a escola, a orientadora e os alunos. Mais do que o tempo cronológico, trabalhar no tempo das intensidades, dos acontecimentos em que “é preciso estar disponível para a exposição à novidade, quer se a encontre longe ou na vizinhança. Trata-se de uma atitude que se constrói no trabalho de campo. É que o estranhamento não está dado, é algo que se atinge, é um processo do trabalho de campo”, segundo Janice Caiafa (2007, p.149). É uma relação que deve ser de agenciamento, composição de heterogêneos (DELEUZE, PARNETT, 1977), que nos permita acompanhar suas articulações históricas, conexões com o mundo, em suas modulações e movimentos.

O falar como parte das artes do fazer (CERTEAU, 2007) funciona na invenção do cotidiano escolar. Ao tomarem a palavra, os alunos transformam a oficina num espaço de narrativas e de leitura do mundo, pelos sentidos que inventam, pela expressão oral expandida, pelas técnicas corporais e vocais, pelas artes plásticas, música e dança, pelas performances e combinações que se desdobram na invenção da escola, de si e da cidade. Um aluno conta do mapa da cidade de Lisboa, que foi redesenhando ao longo do ano e que será o seu projeto de final de ano: um projeto gráfico da cidade, que conheceu quando chegou, e da cidade que descobriu, com animação, percursos, dicas.

A professora entra na conversa. Conta que veio do interior e que também sentiu como foi difícil, na época, ficar longe da família. Fala dos domingos que eram enormes. Nessa hora, o lugar que mais gostava de estar era no Castelo de São Jorge, pela vista, que mostrava que a cidade não era tão grande assim.

No emaranhado de tantas lembranças e falas, fico a perguntar: estaria a trabalhar as oficinas como uma tática1 , subvertendo modos de relações entre os membros dessa comunidade, abrindo novas conexões? Seria a oficina um lugar que permitiria implodir as categorias de aluno inadaptado, de matéria inacessível, de impossibilidades, de professor assoberbado, com possibilidades para além das questões individuais? O quanto as coisas ditas até aqui reverberaram na professora de inglês? Que usos ela fará? Fará algum?

Da relação daquele que fala com aquele que ouve, surge um coletivo de partilha. Benjamin (1985) diz que somos todos historiadores quando produzimos histórias, quando relatamos os fatos, quando registramos nossas memórias; que o ato de contar uma história faz com que ela seja preservada, cria a possibilidade de ela ser contada novamente. A pergunta do jovem sobre o lugar desse trabalho, feita logo no primeiro momento, retorna e me remete a esse tempo. O tempo da oficina não estaria se referindo ao tempo de se constituir um comum de partilhas entre eles, pela certeza do jovem de que será ouvido, que não ficará no vazio?

Dessa compartilha, a crise financeira europeia entra na roda e aparece um dado muito importante: a ideia de que a crise é de Portugal, e não fruto de um movimento que atravessa o mundo. Isso gera a fala de que todos os (vinte) alunos pensam em sair do país. Há uma expectativa de que outros países estejam fora da crise [achei isso muito estranho, os jornais mostram outra realidade, do que eles estariam falando? Tive muita dificuldade de acompanhar essa história]. A oficina aqui se mostrou um dispositivo interessante para acompanhar as crenças de um grupo e o que ela faz fazer.

A professora de inglês aborda a crise, enfatizando as mudanças no mundo. Fala da formação como uma saída. Um menino questiona, porque há muitos profissionais sem emprego, mesmo engenheiros, que sempre teriam trabalho. Agora não é mais assim. Outro diz que o pai precisa saber disso, porque sempre fica falando que ele devia ter feito outra coisa para ganhar dinheiro. Outro fala da vontade de ter independência financeira e para isso imagina fazer coisas diferentes e ao mesmo tempo fazer o que gosta, fotografia, pintura, desenho. Outro diz que o importante é ser bom. Se você for competente, sempre vai se virar. Outro diz que tem muita gente que se dá bem, mas não necessariamente é bom. Uma menina fala do Van Gogh, que foi um artista superimportante, mas morreu como louco e não como artista. O reconhecimento veio depois. Outro questiona o reconhecimento, que, afinal, é o que tem importância. Então, tu tens é que estar ligado no que é fixe.

Que profusão de ideias aparecem na oficina! Sucesso, realização, escolha, crise, e o medo de como vai ser para eles. Como teria sido no tempo dos pais, dos avós? O que sabem? “Eles cresciam, casavam, trabalhavam e tinham almoço de domingo, a gente não sabe, pode isso, aquilo...”, grita outro!

Esse emaranhado de questões levantadas pelo grupo apresenta um aspecto muito importante da cartografia, o de que ela será sempre parcial e provisória. Os processos que emergem nesse grupo são situados nesse momento, nas práticas que aqui ocorreram, nos encontros que causaram impactos, desvios, novos conhecimentos, nas condições que o país atravessa, num mundo em crise. E ao mesmo tempo já anunciam as mudanças que virão com a saída da escola e questões sobre o que eles conseguirão fazer disso tudo.

Hora de acabar. Fica a constatação da professora e da turma de que esses assuntos são muito complicados, mas que conversar é uma coisa boa. Já ouvi isso antes. Não seria a potencialidade da orientação profissional fazer da oficina um dispositivo que abre a um polivox?

Por enquanto

Se cartografar é acompanhar processos, e não representar objetos, o cartógrafo acredita sempre que, mesmo onde parece que nada está acontecendo, é ali que deve colocar sua atenção. Acredita que é pelo meio que se entra em muitas coisas que buscam visibilidade. Diferentemente de mapear, cartografar é acompanhar os movimentos que fazem e desfazem a paisagem, num contínuo acontecer, num trabalho incansável de invenção de mundos. O cartógrafo aproveita tudo e de tudo faz linha para enredar as intensidades que o atravessam. Os encontros com jovens nos mostraram a riqueza dos processos que ocorriam ali no dia a dia de suas vidas e os múltiplos atravessamentos em que falar de uma decisão é colocar em análise vários planos da vida em sociedade na vida de cada um.

O cartógrafo, ao se haver com o outro, desconhecido e estranho, bordeja abismos, sempre no risco do abandono de si, para viver o inusitado de si mesmo. Por isso, em estado de abertura e em trânsito. O que nos fez colocar em análise o próprio nome da nossa função, orientação profissional. Experimentamos muito mais um estar ao lado, sustentando a tensão necessária para que um campo problemático se desenhe e contribua para abrir caminhos. Isso porque nossa concepção de trabalho é no plano intensivo, que não perde de vista que as formas sempre são forças em composição. Numa atenta vigília, num macro e micro indissociáveis da feitura dos mundos, o cartógrafo vive da coleta da invenção de sentidos, um aventureiro por terras desconhecidas. Numa sociedade em que a segurança é colocada como um valor, estamos a falar de uma profissão de risco.

O cartógrafo carrega em sua mochila recomendações que o mantêm atento e disponível aos ruídos e silêncios do campo. Cartografar é acompanhar fluxos e marcar as diferenças como efeitos, nas novas formas que ganham realidade (ESCÓSSIA, TEDESCO, 2010).

Na mochila há que se ter algumas ferramentas e cuidados para fazer o traçado cartográfico. Assim, algumas indicações:

A cartografia não é um método pronto. Ela traça o caminho que emerge das linhas que vão se compondo.

• A atenção do cartógrafo não busca um foco, é abertura ao inesperado.

• A cartografia é um acompanhamento de processos, e não uma representação de objetos.

• A cartografia transita por movimentos-funções: de referência (a repetição abre a possibilidade para o novo, no ritmo que se estabelece pela passagem do tempo, que marca em sua passagem os deslocamentos); de explicitação (a percepção sutil que leva ao coengendramento, que a realidade se produz na invenção constante, num espaço entre você e o objeto, entre você e o mundo); e de transformação-produção (invenção de novos modos).

• A cartografia é a construção de um plano coletivo de forças, uma maneira de sair da dicotomia indivíduo / sociedade, um plano que pense as formas como composição de forças.

• A cartografia trabalha com a dissolução do ponto de vista do observador, transita num plano de ação que evidencia a transversalidade, as implicações.

• Cartografar é habitar um território existencial, dar expressão a esse, fazer diferença que constituirá outras formas.

• Cartografar implica uma política de narratividade, efeito de uma tomada de posição diante de si mesmo e do mundo, um falar “com” e não “sobre” os acontecimentos.

Se a cartografia é puro processo, sem início nem fim, como método de pesquisa faculta que, de tempos em tempos, mapas sejam traçados e contornos definidos, porém sempre parciais e provisórios. Retrata a dinâmica de um momento, gera uma versão para o mundo a partir dos encontros, mas, como os encontros estão sempre a acontecer, a cartografia tem sua atenção nessas transformações. O que o jovem terá é sempre um percurso a fazer, desafios, oportunidades, mudanças no mundo, novos encontros e produção de modos de vida, conhecimentos e invenções de si.

Para quê?

Para inventar novas cartografias de mundo, quem sabe mais bonitos, justos e solidários.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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DELEUZE, G.; PARNETT, C. Diálogos. Trad. de Eloisa Araújo Ribeiro. São Paulo: Escuta, 1998. 184p.

DELEUZE, G. GUATARRI, F. Micropolítica e segmentaridade. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996. Mil Platôs: v.3, p.83-116.

____ Rizoma. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. Mil Platôs: v.1, 1995, p.11-38.

BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

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CAIAFA, J. Aventura das cidades: ensaios e etnografias. Rio de Janeiro: FGV, 2007. 184p.

EHRENBERG, A. La fatigue d'être soi – depression et société. Paris: Odile Jacob, 2000.

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Endereço para correspondência:
Angela Maria Carneiro Silva
Endereço eletrônico: angela.carneiro@gmail.com

Recebido em: 25/08/2015
Aprovado em: 22/08/2015

 

NOTAS

* Doutora em Psicologia Social pela UERJ (2013), Mestre em Saúde Coletiva pela UERJ (2000), graduada em Psicologia na PUC-Rio (1978). Membro associado do Grupo Entre-redes (UERJ), com pesquisas na área de micropolíticas de formação e produção de subjetividades com experiência em Psicologia Clínica e Educacional e orientação profissional.
1 Certeau (2007), quando se refere à arte da guerra cotidiana, distingue estratégias e táticas. Estratégia se refere ao que está circunscrito nas redes institucionais, ao instituído, ao que é visível, ao que é calculado, computável estatisticamente e classificado, como requer a modernidade científica, política ou militar. Só capta o material utilizado pelas práticas de consumo, mas não capta as artes e manhas, os movimentos diferentes chamados pelo autor de táticas.