Um
convite para pensar sobre desenvolvimento em Gestalt-Terapia
Luciana Loyola Madeira Soares
Psicóloga- CRP:05/6821
Em muitos textos encontramos referências à importância de se estudar o desenvolvimento humano por ser uma matéria indispensável ao estudo da psicopatologia. Pergunto se é a isso que se resume a importância da perspectiva do desenvolvimento. Especialmente nós, Gestalt-terapeutas, precisamos pensar em que momento de nossa permanente formação como terapeutas (aqui não limito-me aos cursos) estudamos desenvolvimento e, se o fizermos, a que nos serve este estudo? Qual é o propósito do estudo do desenvolvimento para o Gestalt-terapeuta?
Como dedico-me a essas indagações, divido-as com vocês, como forma de ampliar o debate, abrindo novas questões, e nem sempre obtendo respostas, mas novas dúvidas e questões. Abrindo, fechando, abrindo gestalten...
Penso que não é possível em nossa abordagem pensar desenvolvimento de modo cartesianamente compartimentado, dividido, naturalizado, previsível e predizível, como consta na maioria dos textos clássicos de desenvolvimento. Tal perspectiva pressupõe um caminho pontilhado de marcos a serem alcançados estabelecidos com base em padrões e generalizações, o que embute a idéia de que o ser humano pode alcançar um ponto de término ou conclusão de desenvolvimento. Isso faz pensar em resolução, ganha um tom de fato definitivo e idealizado como ponto de realização de uma existência. Se nos conduzirmos nesta linha, equivaleria a dizer que a criança e o adolescente seriam incompletos e, o ancião o ser que se encontraria no patamar máximo da plenitude existencial, o que sabemos que não corresponde à experiência humana de conduzir-se na trajetória singular de seu ciclo vital. Encontramos referências a isso nos escritos de João Augusto Pompéia (1), psicoterapeuta da Daseinanálise, sobre o que vem a ser maturidade.
A noção de desenvolvimento para nós, Gestalt-terapeutas, revela sim um sentido de plenitude, o qual não significa resultados ou prontidão, mas um processo constituído de percepção, de integração, se sensibilidade e sentimentos, do vivido, no mais pleno significado do termo contato.
Desenvolvimento entendido como crescimento, amadurecimento, evolução, mudança, supondo uma cronologia, não nos contempla; precisamos de uma noção que alcance o humano na dimensão do permanente processo de tornar-se humano. A noção de ser em desenvolvimento indica continuidade, fluxo, ligação, contexto. Fala do nosso permanente vir-a-ser, do desdobramento de perspectivas existenciais, da ampliação de recursos pessoais e relacionais, de atualização de possibilidades e da continuidade do fluxo de Awareness, abrindo, fechando e abrindo Gestalten como sinal de vitalidade organísmica.
Quanto mais nos desenvolvemos, mais aptos nos tornamos a desenvolvermo-nos. O conceito de integração aponta para uma perspectiva de totalidade, o todo percebido naquele momento, o quanto e tudo que podemos experimentar naquele dado contexto, naquele dado momento. O funcionamento organísmico demanda por desenvolver-se desde que vivencia a gratificante experiência da amplificação. Estou aqui apresentando uma visão de amplificação do ser, uma perspectiva de detectar um registro de renovação pela permeabilidade da fronteira de contato. É poder detectar possibilidades e impossibilidades através da mutualidade, da recíproca disponibilidade para a relação, e mesmo até pela indisponibilidade de ambos ou de apenas um para a relação. Afonso Fonseca (2) refere-se à fronteira de contato como um registro de tensão vivido pelo ser-no-mundo pleno de intencionalidade, entre sua possibilidade presente e seu desdobramento, seu vir-a-ser. Permeabilidade, portanto, segundo esta visão, pode ser entendida como o fluxo de atenção do ser-no-mundo ao seu próprio processo de desenvolvimento. Como esta percepção ocorre na relação, logo, desenvolver-se tem principalmente um sentido relacional, na medida em que um humano não se desenvolve sem desenvolver suas relações, portanto, sem afetar de algum modo um outro humano, pelo menos. Entendo amplificar como uma condição de elevação de energia no contato, com conseqüente aprimoramento da qualidade do mesmo. Daí decorre um outro aspecto de amplificação a ser considerado: de que o contato, o fluxo de Awareness e a integração possibilitam desenvolvimento ao organismo como um todo.
Dentro desta perspectiva, não podemos evidentemente pretender um ponto máximo de evolução, e sim, a plenitude de cada momento da experiência de existir. Aponto, portanto, para a presentificação da plenitude do que quer que seja composta a experiência atual: dor, perda, dúvida, tropeço, desencontro, prazer, confirmação, regozijo, lucidez, etc...
Cláudia Távora (3), em recente trabalho sobre o conceito de self na Gestalt-terapia, nos diz que o sofrimento indica interrupção do fluxo de continuidade. Acrescento que o sofrimento indica ocorrência de fragilidade de suporte circunstancial ou duradoura. A presentificação da experiência é o recurso para lidar com a interrupção de modo a resgatar a energia para o contato e criar uma nova possibilidade de estar no mundo. É uma expansão oriunda de um registro peculiar da fronteira de contato. Assim, entendo que desenvolver-se implica em maior consistência na experiência de poder: poder respirar, poder perceber, poder sentir, poder falar, poder calar, poder frustrar-se, poder ver, poder não querer ver, poder envergonhar-se, poder deixar, poder desistir, poder almejar, poder criar-se, poder receber, poder acolher-se, poder parar, poder prosseguir, poder aguardar, aguardar-se, poder cuidar e cuidar-se.
Tendo chegado a este ponto, posso compartilhar que tenho pensado a Gestalt-terapia como uma intervenção pró-desenvolvimento humano, o que me parece que condiz muito mais com a proposta teórica e filosófica que a fundamenta. Nossa abordagem, que se caracteriza pela crença na formulação de uma atitude permanentemente investigativa fenomenológica, propõe-nos olhar o novo como novo, com olhos de quem quer conhecer. Deste modo, uma vez engajado no processo de psicoterapia, cada um pode ver-se diante de seu propósito de desenvolver-se, e isso envolve a noção de que ser responsável por suas escolhas, a começar pela própria escolha da psicoterapia.
Alcançada esta clareza, fica evidente para muitos a impossibilidade de fazer previsões ou de acalentar expectativas acerca de resultados. O desejo de mudança até permanece, gerando concentração de tensão, o que impede o fluxo de energia para o contato se o processo estiver direcionado aquele propósito. Porém, a perspectiva de transformação parece-me mais adequada à visão gestáltica, pois sugere participação organísmica ativa, processual e relacional. Compreender a singularidade da demanda e acompanhar suas transformações ao longo do processo representa significativa parte da psicoterapia. Assim, no papel de terapeuta, posiciono-me como parceira engajada no processo de desenvolvimento daquele que me procura. Portanto, creio na formação da parceria pró-desenvolvimento como fundamental no estabelecimento do próprio processo. No decorrer da consolidação desta parceria emergem conteúdos ligados à formulação das primeiras parcerias na existência de cada cliente. Ao surgirem no contexto da psicoterapia, as histórias antigas proporcionam evitações, medo e, também a curiosidade do olhar de quem quer conhecer para se desenvolver. Vistas assim, antigas (e pouco conhecidas) dores podem ganhar a dimensão de preciosidades, pois tanto explicitam quanto transformam a demanda e os projetos existenciais, à medida que revelam o ser-no-mundo.
Evidentemente que, estamos até aqui falando principalmente de um modo de pensar a demanda do adulto por psicoterapia, o qual pode escolher com quem e em que momento iniciará seu processo terapêutico. Mas como isso se dá na criança?
Tomemos como exemplo as crianças a quem chamamos de filhos parentalizados, aquelas que parecem mais experientes e vividas que os próprios pais e, que de fato, será que em algum sentido não o são mesmo? Alice Miller (4) descreveu muito bem essas crianças. Elas são as que assumem a função parental quando seus pais ou seus cuidadores principais não o fazem de maneira a suprir as necessidades das crianças da família. Em muitos casos observamos que essas crianças colocam em plano figural a percepção de necessidades e de sentimentos ligados à manutenção da estabilidade emocional da família. Quando uma criança crê que pode fazer ajustamentos criativos para garantir a sobrevivência ou a integridade de sua família, expõe-se seriamente ao risco de deixar de priorizar-se, abandonando muitas de suas necessidades em prol do grande esforço de dedicar-se a uma tarefa vultosa e, cuja gratificação não ocorre dentro de suas expectativas.
Não creio que tal escolha represente um avanço no desenvolvimento de uma criança; ocorre uma antecipação de soluções que estão a seu alcance, em prejuízo do amplo desenvolvimento de recursos pessoais e da gratificação de agir em seu próprio nome. Conheci crianças que expressavam temor diante da possibilidade de agir desta maneira, como se a experiência da autoria lhes acenasse com uma catástrofe a caminho. A ambivalência de sentimentos e mensagens é a marca predominante na existência dessas crianças: são grandes para algumas poucas coisas e irremediavelmente pequenas para tantas outras coisas. Os adultos que as cercam geralmente as confirmam como eficientes tanto quanto insuficientes no papel de cuidadores substitutos que escolheram desempenhar. Pergunto então: como trazer ao plano figural a demanda por parceria de uma criança que se encontra nesta condição existencial?
Meu propósito com a presente ilustração é demonstrar que especificamente tais crianças necessitam do processo de psicoterapia para transpor as etapas cronológicas e vivenciais da infância, para que possam ultrapassar a adolescência e alcançar a vida adulta, quando então poderão experimentar, através de uma escolha consciente, a passagem da heteronomia para a autonomia. Nem sempre elas conseguem a libertação no período da infância mesmo com a parceria psicoterápica, pois enquanto crianças ainda permanecem atreladas a corresponder ao apelo da demanda familiar. Refiro-me a autonomia como o desenvolvimento da autoria, do auto-suporte e da possibilidade de ser parceiro na construção de relações efetivamente suportivas.
Desenvolver-se é também, portanto, tomar parte num contexto relacional em que os envolvidos encontram-se dispostos a estabelecer parcerias libertadoras, que se caracterizam por uma entrega EU-TU, onde as diferenças não ameaçam, mas sim, compõem a singularidade de uma configuração relacional. Nestas, os ajustamentos criativos cumprem a função de permitir a renovação, o fluxo de vitalidade. Chamo de aprisionantes as parcerias em que as diferenças são suprimidas, as necessidades não são identificadas nem atendidas e, o que se obtém como gratificação é a sensação de controle sobre o vivido. Este, que tem por característica não poder ser controlado, tende a extinguir-se como experiência, dando vez a relações empobrecidas quanto a mutualidade, autoria e contato.
Em vários desses casos, o que se vê é uma demanda (nem sempre explícita) dos pais por uma psicoterapia para o filho voltada para o aprimoramento da função parentalizada que este vem assumindo na família e, não para o desenvolvimento de seu ser-no-mundo. Se, como terapeutas, aceitarmos a tarefa que nos é proposta, estaremos trabalhando pró-resultados e, não pró-desenvolvimento. É claro que nossa tarefa atinge também a família, ou os cuidadores principais e, essa noção de transformação e de desenvolvimento implica evidentemente na ampliação de possibilidades relacionais no âmbito do contexto do qual a criança participa. De fato, a criança não se desenvolve sozinha e, é importante lembrar que a própria parceria terapêutica tem características tão singulares quanto a presença de quem a compõe. Sendo chamados a perceber sua importância no projeto maior de desenvolvimento das parcerias no contexto existencial da criança, os pais ou cuidadores principais podem situar-se diante da escolha de estabelecer parceria com o próprio terapeuta. Em minha experiência clínica tenho constatado que este tem se revelado um caminho que tem podido assegurar à criança uma oportunidade de desenvolver-se simultaneamente ao desenvolvimento de suas parcerias fundamentais. Com isso não pretendo afirmar que todos estejam simultaneamente aptos a firmar parcerias atendendo às necessidades pessoais e mútuas, mas sim que temos que lidar com as limitações de cada um, acreditando que sempre algum desenvolvimento pode ser esperado. O possível para aquele grupo, naquele dado momento existencial, afinal interrupções e obstáculos fazem parte de todo processo de desenvolvimento.
Finalizando,
podemos pensar a psicoterapia como o estabelecimento de uma parceria terapeuta/cliente
que implique numa intervenção pró-retomada do desenvolvimento
interrompido, um mergulho nas ambivalências afetivas, nos interesses mal
definidos, nos propósitos mal estabelecidos, nas mensagens pouco claras
e nas relações pouco gratificantes. A psicoterapia entendida como
desenvolvimento visa um desdobramento de perspectivas existenciais orientado
por um olhar permanentemente lançado ao campo relacional. Significa perceber-se
parte de um todo e um todo que se parte e, num re-arranjo de partes, fazer surgir
novos sentidos, novas direções.
BIBLIOGRAFIA
1. POMPÉIA, João Augusto - O Tempo da Maturidade. In Revista Daseinanalyse,
SP, 2002.
2. FONSECA, Afonso H. L. - Gestalt-terapia Fenomenológico-Existencial. Coleção Vislumbre e Ato. Pedang, Maceió, 2005.
3. TÁVORA, Cláudia B. - The theory of self in Gestalt-therapy: re-estabilishing a relationship between subjectivity and temporality. Gestalt Review, 8 (2): 229-244, 2004.
4. MILLER,
Alice - O drama da criança bem dotada. Summus Editorial, São Paulo,
1997.