ARTIGO

 

Reflexões acerca da prática clínica em Gestalt-terapia: aproximações e divergências com o Intuicionismo Bergsoniano.

Reflections on clinical practice in Gestalt therapy : similarities and differences with the Intuitionism Bergson.

Gysele Rodrigues Melo *

Universidade do Minho - Braga- Portugal.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A intuição é um conceito que permeia o imaginário popular, mas que pouco se sabe sobre a mesma. Há uma profusão conceitual equivocada acerca da mesma, visto que a produção de material sobre esse tema é modesta e pouco se é discutido nas academias científicas. O presente artigo procura refletir as semelhanças, divergências e contribuições para a clínica Gestáltica. Tal proposta almeja a compreensão de como o conceito de intuição pode estar presente no contexto clínico da Gestalt-terapia.

Palavras-chave: Gestalt-terapia; Prática clínica; Intuicionismo; Henri Bergson.


ABSTRACT

Intuition is a concept that permeates the popular imagination, but little is known about it. There is a mistaken concept profusion about the same, as the production of material on this subject is modest and little is discussed in scientific academies. This paper discuss the similarities, differences and contributions to clinical Gestalt. This proposal aims to understand how the concept of intuition may be present in the clinical context of Gestalt therapy.

Key-words: Gestalt-therapy; Clinical practice; Intuition; Henri Bergson.


 

Introdução

A prática clínica é permeada pela dificuldade e a tensão de perceber a singularidade de outro em sua inteireza, sem reduzí-lo a conceitos e teorias, mas sem cair em um des-cuidado para com sua experiência (Hycner, 1997).

Nessa dinâmica delicada e tensa, nesse conflito entre a ciência e arte, Bergson traz a intuição como instrumento facilitador para a compreensão do vivido. Para ele, é possível compreender a totalidade do espírito, a partir de um contato íntimo com a experiência em seu devir, pois o homem e suas questões estarão “sempre em devir, quanto aos problemas e quanto à certeza crescente de suas soluções” (Pinto, 2009).

A Gestalt-terapia traz essa influência quando se volta para a expansão e compreensão da experiência como forma de ampliar o fluxo de awareness e promover o crescimento interno das pessoas, assim

a Gestalt é principalmente uma postura diante da vida, que implica um contato vivo com o mundo, com a pessoa do outro, na sua singularidade, sem pré-concepção de qualquer ordem. Esse contato apóia-se sobre a vivência, na experiência de primeira mão, no aqui - agora, o que estimula uma presença constante e atenta” (Juliano, pág.25, 1999).

Dessa forma, neste presente trabalho, procuro explanar sobre a prática clínica em Gestalt-terapia e as possíveis pontes de reflexão com o Intuicionismo Bergsoniano, através de uma revisão crítica de literatura.

 

Breve apanhado histórico:

A Gestalt-terapia é uma abordagem psicológica que surgiu na década de 50 e espalhou-se pela América do Norte, principalmente pelos Estados Unidos. Desenvolveu-se em um contexto bastante atribulado permeado por movimentos sociais, políticos e culturais além da instabilidade existencial provocada por conflitos civis e pós 2ª guerra mundial.

Frederick Perls elaborou junto com outros psicólogos e psiquiatras a abordagem gestáltica ou Gestalt-terapia, constituído pelo conhecido “grupo dos sete”, estes eram Ralph Hefferline, Paul Goodman, Isadore From, Laura Posner Perls, Paul Weiss e Elliot Shapiro, juntos, pensaram e escreveram a Gestalt-terapia formando e representando uma primeira geração de gestalt-terapeutas.

Movidos por influências como a Fenomenologia (Karwowski, 2005; Müller- Granzotto, 2007), Existencialismo (May, 1980; Angerami-Camon, 1998; Leão, 2006) movimento humanista-americano e a Psicologia da Gestalt (Müller-Granzotto, 2007; Ribeiro, 2007) o grupo dos sete quebra uma tradição psicanalítica e desenvolve uma teoria que se preocupa com a relação terapeuta-cliente enfatizando o momento presente da terapia e não apenas o conteúdo verbalizado do cliente e seu passado rechaçado (Rodrigues, 2000).

Dessa forma “este sistema modifica radicalmente o que o terapeuta e o cliente vão focalizar, tornando possível começar a partir de qualquer ponto, com qualquer material disponível” (Juliano, 1999, p.05), enfatizando o momento presente da vivência como o melhor recurso para o paciente.

Influenciados pela década de 70, alguns Gestalt-terapeutas compuseram uma nova geração de terapeutas e uma outra face da abordagem se delineava e avançava para a sociedade. A preocupação com o diálogo e com a relação tornavam-se o método de trabalho dessa geração. Havia um compromisso com o diálogo e com seu poder terapêutico (Yontef, 1998). Para Juliano (1997),

conseguimos sair da tendência favorecer um "acting-out" catártico para um "acting-in", ou seja, reinvestindo a energia disponível para aprofundamento maior das questões do cliente. O dialogo genuíno tornou-se o principal instrumento de trabalho (p.12)

Assim, uma nova postura de compromisso e diálogo com a relação terapêutica se firma cada vez mais nas formações de novos Gestalt-terapeutas. Conceitos como suporte, presença e inclusão ganham força teoricamente e passam a ser experimentados na pratica clínica (Hycner & Jacobs, 1995, 1997).

 

A prática clínica em Gestalt-terapia:

A Gestalt-terapia é considerada como a terapia do contato (Ribeiro, 1994, 2007). Desdobrando essa afirmação, podemos iniciar falando sobre a função do contato genuíno e do diálogo no processo terapêutico.

O contato em Gestalt-terapia é a ferramenta mestra para o desenvolvimento e amadurecimento de um self ‘‘doente’’, ou seja, é a partir do contato genuíno entre terapeuta e cliente que se realiza a tomada de awareness e amplia-se a experiência em três níveis fundamentais: sensorial, motor e cognitivo. O contato em Gestalt-terapia, junto com a tomada de consciência representa os objetivos terapêuticos. De acordo com Ginger (1995),

contato, é a idéia central da Gestalt-terapia. O ciclo normal de satisfação das necessidades é muitas vezes chamado ciclo de contato. A terapia atua na fronteira – contato entre o organismo e seu meio ambiente. O contato se produz entre mim e os outros, mas também entre os diferentes aspectos de mim mesmo – pensamentos, sentimentos, sensações ( p. 214).

Ainda nessa perspectiva, podemos citar

o valor terapêutico na Gestalt-terapia de prestar atenção acurada ao momento presente, o que significa que numa sessão de terapia a observação da fronteira de contato em mudança entre o terapeuta e o paciente adquire importância suprema. Nesse momento ambos podem aprender como e onde o contato ficou perturbado (Perls, Hefferline, Goodman, p.26, 1997).

A Gestalt-terapia olha o homem com um ser dinâmico e relacional, tendo como objetivos terapêuticos o desenvolvimento de uma fluidez existencial, de forma que esse possa viver de forma plena e criativa, utilizando seus potenciais pessoais sem a manipulação neurótica do meio (Perls, 1977), ou seja, desenvolvendo seu próprio auto-suporte, visto que “toda gestalt incompleta representa uma ‘situação inacabada’ que clama por atenção e interfere na formação de outra gestalt nova, vital” (Perls; Hefferline; Goodman, 1997, p.33).

 

Relação terapêutica:

A relação terapeuta-cliente em Gestal-Terapia preconiza o diálogo genuíno entre duas pessoas buscando o momento do encontro entre estes, quando escuto plenamente o outro e este fala plenamente, estabelecemos uma relação de cuidado e dialógo genuíno (Maia, 2013).

A relação entre terapeuta – cliente é instrumento psicoterapêutico, ou seja, ela é fator de cura no sentido de facilitar a mudança e a tomada de awareness. Quando munida de uma escuta plena e da autenticidade do terapeuta, a possibilidade de contato é maior e a possibilidade de crescimento também para o cliente.

O valor que o terapeuta desempenha na relação com seu cliente é curativa e reestruturante por si só, pois “o paradoxo do espírito humano é que não sou completamente eu mesmo, até que seja reconhecido em minha singularidade pelo outro – esse outro precisa do meu reconhecimento a fim de se tornar completamente a pessoa única que ela é” (Hycner, 1997, p.15).

Para a relação terapêutica desenvolver-se de forma saudável, o terapeuta se engaja em facilitar a expressão do cliente, através de atitudes de aceitação, entusiasmo, preocupação e auto responsabilidade (Yontef, 1998). Tais atitudes permitem que cresça uma relação mais direta e real entre terapeuta e cliente, ou seja, a interpelação é mais efetiva e direta entre ambos, são usadas expressões como “eu percebo”; “me parece”; “eu acho”, para exercer a pessoalidade entre terapeuta e cliente, preconizando o diálogo genuíno.

Esta relação terapêutica em direção ao encontro dialógico enfatiza quatro posturas fundamentais de inclusão, presença, compromisso com o diálogo e vivenciar o diálogo (Yontef, 1998).

Contudo, a Gestalt-terapia, como uma terapia do contato, tenta mostrar aos seus clientes, aspectos que ficam embotados em suas relações, através de posturas fundamentais expressas no diálogo como a inclusão e a presença, onde

o terapeuta gestaltista não se esconde atrás de um silêncio frio, não se refugia numa atitude benevolente: ao contrário, ele manifesta espontaneamente sua simpatia, partilha suas idéias e seu sentimento e aborda seu cliente como seu verdadeiro parceiro (Ginger, 2007, p. 39).

Assim, a relação terapêutica se constrói como uma ponte de comunicação entre terapeuta e cliente, buscando a consolidação de um processo ativo.

 

O Intuicionismo e Gestalt-terapia: aproximações e divergências

A Gestalt-terapia traz como objetivo a valorização do homem e da sua experiência como fonte para se chegar ao auto conhecimento, dessa forma afasta-se de um paradigma positivista e funcionalista, interrogando a existência humana e procurando compreender o que é vivenciado aqui-agora.

Henri Bergson, na França, através de sua filosofia questionava a ciência e sua metodologia rígida e estritamente conceitual e objetiva (Vieillard-Baron, 2007). Sua filosofia criticava a rigidez de conceitos como espaço, tempo, corpo e matéria. Trouxe com sua metafísica flexibilidade para a ciência, ao propô-la como um devir, um fluxo que no movimento se atualiza, se supera, assim como homem (Deleuze, 1999).

Sua filosofia caminha para a tentativa de construção de um conhecimento sobre o homem, através da compreensão da duração e do contato intimo com nossas experiências, através da intuição (Mascarenhas, 2009; Vieillard-Baron, 2007). O intuicionismo é pensado por Bergson como método para esse mergulho nas profundezas de nós mesmos. Assim, a intuição é o que permite ao homem libertar-se da rigidez dos conceitos e por instantes o levar ao íntimo de si mesmo e daquele com quem ele interage. (Sayegh, 2008).

Para Bergson (2009)

Os grandes homens de bem, e mais particularmente aqueles cujo heroísmo inventivo e simples abriu para a virtude caminhos novos, são reveladores de verdade metafísica. Por mais que estejam no ponto culminante da evolução, estão muito perto das origens e tornam sensível a nossos olhos o impulso que vem de fundo. Consideremo-los atentamente, procuremos experimentar simpaticamente o que experimentam, se quisermos penetrar por um ato de intuição, no próprio principio da vida. Para desvendar o mistério das profundezas, às vezes é preciso visar os cimos ( p. 25)

Dessa forma, o trabalho do filósofo em descer às profundezas por um ato de intuição, para tornar-se cada vez mais elevado, não superior, mas livre, como é descrito por Bergson, inspira o trabalho terapêutico realizado entre terapeuta e cliente. Iremos dissertar as possíveis aproximações e divergências entre este autor e os princípios da clínica Gestáltica, tentando construir pontes de comunicação que amplie e facilite a compreensão de ambos. Estamos certos que falamos a partir de lugares distintos, filosofia e ciência, na tentativa de promover uma instigação mútua.

 

Tempo e Experiência

Podemos perceber a similaridade entre as concepções de tempo para a Gestalt-terapia e na filosofia Bergsoniana. Ambas, têm o tempo presente como centro para compreender a dinâmica de outrem e chegar à totalidade da experiência.

Esta ênfase na experiência vivida é comum em várias abordagens chamadas de humanistas, como a Gestalt-terapia. A base da filosofia Bergsoniana defende “através da duração constitui-se nossa bagagem temporal de crescimento interior, de novidades, que se superam, mas que ao mesmo tempo permanecem em nossa memória” (Sayegh, 2008, p.27).

Bergson tem o presente como o único tempo no qual é possível estar na ‘duração’, ou seja, vivenciar algo. No presente há a comunicação com o passado e uma visualização do futuro. Assim, “esse mesmo presente, por ser o ponto preciso onde o passado se lança em direção ao futuro, se define como aquilo que muda de natureza, o sempre novo, a eternidade da vida” (Deleuze,1999, p.138), dessa forma, o tempo do vivido é aquele que abre possibilidades, revela o novo e a imprevisibilidade da vida.

Outra semelhança entre ambos está na visão de homem em fluxo contínuo e em evolução. Estes vêm o homem em constante crescimento, diferenciação e atualização. Para a Gestalt-terapia o crescimento do homem está aliado à sua comunicação com o meio, com o mundo, pois não é possível separá-los.

Para Bergson, a concepção de crescimento é semelhante, em parte, pois este a concebe a partir da ideia de impulso vital ou elã, que seria uma força interior inerente a cada organismo que o leva a expandir-se em direção a evolução, assim o crescimento vem de nosso interior. Contudo, ambas acreditam em um potencial criativo do homem, enfim na sua capacidade de criação diante das possibilidades.

Contrário a Gestalt-terapia, Bergson faz uma leitura interiorizada do homem. No entanto, essa abordagem psicológica também defende a regulação organísmica do homem, quando fala sobre uma tendência a homeostase que todos nós possuímos.

A homeostase seria a busca por equilíbrio de nosso organismo, ou seja, a capacidade inerente de buscar soluções e realizar necessidades quando estamos sobre uma situação de desequilíbrio (Ribeiro, 2007).

Podemos perceber que a capacidade homeostática do organismo é algo que o permite crescer e atualizar-se no mundo, no entanto não é a ideia de elã vital que defende Bergson, todavia podemos pontuar a semelhança entre ambos em defender a ideia de que o homem está em crescimento, evolução e diferenciação a cada dia. Há uma fé no organismo e na sua sabedoria, apenas é proferida e explicitada de maneiras distintas.

Em Gestalt-terapia o poder de criação e crescimento do organismo é defendido da mesma forma, no entanto esse crescimento, o seu movimento em direção a algo só é possível em um mundo e na relação do homem com o meio.

Sempre será debatida e enfatizada na Gestalt-Terapia a relação de contato entre o organismo e mundo com o qual se comunica o que não percebemos na bibliografia pesquisada sobre o filósofo francês. Sua maior preocupação está na construção de uma concepção metafísica, e para isso pouco se refere ao fenômeno da interpessoalidade.

 

A prática clínica e a intuição:

A Gestalt-terapia como uma abordagem psicológica, surgiu como uma prática psicoterapêutica que repensava e reformulava os modelos tradicionais de terapia e análise.

A situação clínica é concebida como uma relação onde eu – terapeuta me encontro aberto e disponível para ouvir plenamente e ser tocado por aquele que me fala. No entanto, o movimento não é unidirecional, pois à medida que toco, posso também ser tocado.

A relação terapeuta-cliente envolve momentos de completo envolvimento e momentos onde encontramos a separação, de cada um em seu lugar simbólico. Para Müller- Granzotto (2007), “a situação clinica é a vivência de uma situação de contato, de um apriori de correlação, em que verificamos uma contaminação, a constituição de uma estranha indivisão” (p.290).

Essa ‘‘contaminação’’ é o resultado da abertura do terapeuta que consegue ser penetrado pela vivência de um outro, resguardando seu lugar. Há uma compreensão empática nesse movimento, ainda “o que se espera do clínico é que ele possa imergir na situação clínica, se deixar por ela contaminar, poder por ela ser descentrado, para – a partir desse não-lugar – dar vez ao que surgir como inesperado” (IDEM, p.291).

O encontro genuíno possibilitado pela abertura e disponibilidade do terapeuta leva cada um, terapeuta e cliente, para um lugar momentâneo de mistura empática de compreensão e suporte, um momento de sintonia que cura por si só. Assim, “o autodesenvolvimento prossegue não somente no curso das experiências obtidas pela sintonia sensível com a alteridade do paciente, mas também pela experiência daquela sintonia que vem de um outro diferenciado e pessoal” (Hycner, 1997, p.203).

A relação terapêutica traz consigo a comunicação entre essas alteridades, é uma situação intersubjetiva que requer o que já mencionamos como empatia, sintonia e disposição. Para Hycner (1995), há esses dois momentos fundamentais na relação terapêutica: o momento da compreensão empática e sintonizada com o vivido do outro e aquele da compreensão da relação entre ambos.

A jornada do profissional nesse encontro não é teórica ou intelectual, ou seja, o terapeuta não está munido apenas de fundamentação teórica, ele precisa ter desenvolvido sua sensibilidade e uma sabedoria para escutar um outro ser. O terapeuta, dessa forma, percorre uma “vereda estreita” (Hycner, 1997) que não é estática, pois se movimenta em direção à revelação e em direção ao ocultamento. Para o autor (1997) há o “inefável” na relação terapêutica, aquilo que não se pode exprimir por palavras,

Do outro lado da vereda está o inefável. Não importa a meticulosidade com que exploramos os significados, as motivações, o drama do relacionamento – não importa quão ricamente os pacientes articulem seu mundo de relacionamentos, existe um ponto em que se tem a sensação concreta de que há mais no relacionamento do que se é capaz de descrever ( p.204)

Há um trabalho pessoal do terapeuta de descer ao seu próprio centro, de buscar no seu íntimo e em contato, despertar a sabedoria então falada, crescendo como um homem de intuição.

A intuição desenvolvida pelo profissional, coloca-o cada vez mais próximo e consciente de suas experiências. O terapeuta passa a viver de forma mais plena e livre quando sabe reconhecer seus processos individuais, quando aprende a viver descolado da superfície e mais aprofundado em si mesmo.

Sua intuição cada vez mais desenvolvida está presente nos momentos de reflexão e mergulho às profundezas de nós mesmos. O processo de tornar-se pessoa requer a ajuda de alguém que facilite o conhecer-se, a revelação de uma intimidade e a produção de um conhecimento íntimo (Amatuzzi, 1989).

Esse conhecimento é acessado quando lançado por uma intuição. O que Bergson defende em sua filosofia, ir ao fundo, descer ao centro e acessar o espírito. Contudo,

Trata-se de penetrar a vida em sua plenitude luminosa, e não mais girar em torno dela. Essa experiência privilegiada a que Bergson nos convida, não será o mundo exterior que nos fornecerá, mas sim um retorno para o íntimo do próprio ser (Sayegh, 2008, p.21).

A concepção e a condução da relação terapêutica na Gestalt-terapia não pode ser separada da idéia da intuição. Esta está presente no processo relacional que é estabelecido entre terapeuta-cliente.

Podemos dessa forma, traçar um paralelo entre o Intuicionismo bergsoniano e a prática clinica em Gestalt-terapia, visto que as semelhanças estão presentes nas formas de ver o homem, seu crescimento e sua mudança como pessoa ou espiríto.

O percurso do terapeuta é paradoxal, ao tempo que aprendemos teorias, conceitos e noções sobre o homem e o mundo, desenvolvemos nossa percepção para ver o que não se vê corriqueiramente. Podemos afirmar que muitas vezes trabalha de forma intuitiva, estando a certificar disso apenas posteriormente pela razão e inteligência que guarda sua bagagem teórica, trabalhando de forma subjetiva e objetiva, constantemente.

A afinação da percepção pelo terapeuta, é defendida por Bergson (2009), como forma para conhecer o objeto ao fundo. Para penetrá-lo é necessário um esforço intuitivo e não lógico, o que os terapeutas fazem em diversos momentos da relação terapêutica. Assim, “o terapeuta deve ser introvertido o suficiente para ter uma awareness altamente desenvolvida de si mesmo, bem como ser capaz de se relacionar com ouras pessoas” (Hycner, 1997, p. 31).

Este conhecimento refinado de si mesmo que todo terapeuta desenvolve, o ajudará a perceber com maior facilidade os movimentos de quem ele escuta. Sua intuição se torna cada vez mais apurada quando exercida.  Assim, “Intuir passa a ser não somente captar ou simpatizar, mas simpatizar-se com a natureza original do objeto, naquilo que ele possui de único e inexprimível” (Sayegh, 2008, p.27).

Percebemos ao longo deste trabalho como a vivência do terapeuta é importante como um caminho pessoal, para maior abertura e atenção ao processo de outrem.

Observamos que a situação clínica é lugar de observação, acolhimento e suporte em um misto de objetivação e subjetivação, pautadas pela reflexão do terapeuta acerca do processo de seu cliente e acerca do que se passa na relação entre ambos. O que buscamos na Gestalt-terapia é chegar a esta confiança na sabedoria do organismo, pois quando esta for alcançada podemos afirmar uma conquista de uma liberdade de ser e estar no mundo.

Bergson nos fala sobre a sabedoria dos homens e sobre sua liberdade. Para ele, livre é aquele que consegue se desprender dos hábitos e práticas convencionais da ciência e da sociedade. Este exercício, segundo o próprio não é fácil, pois requer esforço do espírito para sair da superficialidade e ir às coisas mesmas, descer de um nível superficial para atingir a profundidade de si mesmo, e este movimento requer o esforço da intuição. É ela quem levará o espírito a níveis mais profundos de reflexão e sabedoria (Sayegh, 2008).

O método da Intuição parte do mais superficial e processualmente busca chegar aos níveis mais profundos do objeto e de si mesmo, é uma evolução como a vida de cada ser humano.

Bergson defende que a intuição não é algo restrito apenas ao processo gnosiológico. Seu exercício é necessário para a construção de uma vida mais plena e livre, rica e criativa. Assim, a intuição se instaura como um método da metafísica, uma metafísica reformulada preocupada com o espírito e com a experiência imediata da consciência. Ela possibilitaria uma ampliação de nossa percepção desprendida da matéria e voltada para o acolhimento do espírito, o que nos daria um conhecimento não mais hipotético, mas experimentado e vivido. (Diamantino, 1946).

Consegue-se perceber como se aproxima a visão de homem de Bergson com a visão de homem da Gestalt-terapia. Ambos acreditam no ser  humano e na sua capacidade de evoluir e transcender, libertando-se de uma existência supérflua e adentrando em si mesmo.

Buscam resgatar esse ser movente em sua potencialidade, criatividade e transcendência, seja pelos exercícios intuitivos do espírito ou pela expansão da consciência, como momentos fundamentais e presentes no processo de busca de si mesmo que representa o processo terapêutico e o processo metafísico defendido por Bergson.

 

Considerações finais:

Neste presente trabalho, percorremos a literatura referente a Henri Bergson e à Gestalt-terapia, influências filosóficas e epistemológicas para podermos elucidar as aproximações existentes entre ambos.

Observamos que o Bergsonismo não é uma influência direta na construção da Gestalt-terapia, pois dentro do arsenal teórico da abordagem não encontramos Henri Bergson. No entanto, evidenciamos sua aproximação quanto à visão de homem, modelo de ciência e o modo de conceber uma construção do conhecimento.

Tentamos nesta produção evidenciar o intuicionismo como um lugar de reflexão para a prática clínica da Gestalt-terapia, construindo pontes de questionamento entre ambos. Buscamos referências teóricas acerca do aspecto intuitivo do gestalt-terapeuta para seu trabalho clínico e nenhuma referência foi encontrada.

Para Bergson, a intuição está presente em vários momentos do processo de encontro com o objeto, mas não se pereniza, pois é movente e fluida com a duração. Seu exercício requer esforço para adentrar em outra realidade, e para isso requer treino e esforço do filósofo ou daquele que dela se utiliza. Em terapia, esta intuição estaria presente nos momentos em que o terapeuta necessita ver além do óbvio, do aparente que se mostra, nos momentos que exigem fluidez para a compreensão da experiência de nossos clientes.

Flutuando em momentos de objetividade e subjetividade, o terapeuta está em um terreno movediço, variando entre a inconsciência e a consciência (Hycner, 1995) para encontrar um outro que lhe afeta. A intuição como defende Bergson vem a ser um importante momento do processo terapêutico.

Este trabalho buscou resgatar as idéias principais de Henri Bergson, esclarecendo-as e observando suas aproximações e divergências com a Gestalt-terapia. Procuramos construir uma reflexão entre o intuicionismo e a prática clínica desta, tentando produzir material significativo para pesquisas posteriores.
Vimos a importância de pesquisar um autor tão complexo e inovador para a sua época como Henri Bergson, em como este poderia contribuir para novas reflexões no campo da Psicologia.

Conseguimos traçar pontes de aproximações, reconhecer divergências e produzir questionamentos para outros momentos de investigação, contribuindo para o movimento sempre fluido da ciência como defendia Bergson.

 

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Endereço para correspondência
Gysele Rodrigues Melo
Endereço eletrônico: gyselerodrigues@hotmail.com

 

 

Recebido em: 08/06/2015
Aprovado em: 22/012/2015

 

NOTAS

* Psicóloga graduada pelo Universidade Federal do Ceará; Gestalt-terapeuta pelo Instituto Gestalt do Ceará; Doutoranda pela Universidade do Minho – Braga- Portugal.