ARTIGO

Avaliação psicológica no atendimento infantil: Uma perspectiva gestáltica

Psychological evaluation in child care: A gestalt perspective

Tatiana Queiroz de Almeida Santos*

IGT -Instituto de Gestalt Terapia e Atendimento Familiar - Rio de Janeiro, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO:

Este artigo apresenta reflexões que surgem a partir da experiência clínica com crianças e a construção do curso de avaliação psicológica infantil realizado no IGT- Instituto de Gestalt-Terapia e Atendimento Familiar. Discutimos sobre o fato de ainda nos remetermos aos testes, ao pensarmos em avaliação psicológica. Pensamos sobre o conceito de avaliação psicológica, diferenciando-o do conceito de psicodiagnóstico. Procuramos compreender em que sentido a avaliação psicológica inicial infantil se diferencia da psicoterapia. Apresentamos uma breve consideração sobre a concepção de homem para a Gestalt-Terapia, ilustrando nossa proposta prática de avaliação psicológica infantil a partir de um caso clínico. Por fim, consideramos nossa proposta como mais uma possibilidade dentre outras existentes, onde os testes são um dos recursos possíveis, que se justifica por contribuir para o manejo clínico do profissional, e por contribuir em alguns casos, para o diálogo com os pais, escola e outros profissionais.

Palavras-chave: Avaliação psicológica; atendimento infantil; Gestalt-Terapia.


ABSTRACT:

This article presents reflections that arise from clinical experience with children and the construction of the course of children's psychological evaluation conducted in IGT- Institute for Gestalt Therapy and Family Services. We discussed the fact refer still in testing, to think in psychological assessment. Think about the concept of psychological evaluation, differentiating it from the concept of psycho. Seek to understand in what sense the child initial psychological assessment differs from psychotherapy. We present a brief account on the design of man for Gestalt Therapy, illustrating our proposed practice of child psychological evaluation from a clinical case. Finally, we consider our proposal as another possibility among other existing, where testing is one of the possible resources, which is justified by contributing to the clinical management of the professional, and in some cases contribute to the dialogue with parents, school and other professionals.

Keywords: Psychological assessment; child care; Gestalt- Therapy.


 

Introdução:

Este trabalho se propõe a discutir sobre a “avaliação psicológica infantil segundo a perspectiva gestáltica”. Tem como objetivo refletir sobre como esta prática pode ser realizada de forma coerente com os pressupostos epistemológicos da Gestalt-Terapia.

O interesse por este tema surgiu a partir da experiência clínica com crianças e principalmente através da construção do curso de Avaliação Psicológica Infantil, realizado no IGT- Instituto de Gestalt-Terapia e Atendimento Familiar.

O curso tem uma proposta de refletir sobre a importância de uma avaliação inicial no atendimento infantil. Propõe pensarmos uma forma de avaliar que leve em conta os pressupostos da Gestalt-Terapia, mas que também esteja aberto ao diálogo a fim de cuidar da relação com os pais, escola, e outros profissionais envolvidos.

No caminho percorrido na construção desse curso, surgiram alguns questionamentos, que culminaram na realização deste artigo: Por que ao pensarmos em avaliação psicológica nos remetemos aos testes psicológicos? Os testes são uma ferramenta possível em Gestalt-Terapia? Como essa ferramenta tem sido utilizada por Gestalt-terapeutas? Faz diferença nomearmos o processo de avaliação psicológica ou psicodiagnóstico? Entendendo que, como Gestalt-terapeutas, temos um olhar processual, onde avaliamos durante todo o processo psicoterápico, faz sentido diferenciarmos a avaliação inicial da psicoterapia? Como realizar a prática de avaliação psicológica infantil, de forma a cuidar da relação com a criança, pais, escola e outros profissionais, sem deixar de ser coerente com nossa visão de homem e de mundo? Para pensar sobre essas questões, utilizamos levantamento bibliográfico, incluindo livros e artigos sobre o tema. E partimos das reflexões acima citadas.

Iniciaremos a discussão a partir de um breve histórico sobre a relação da avaliação psicológica e os testes psicológicos. Depois discutiremos sobre como os testes vem sendo utilizados em Gestalt-Terapia. Pensaremos sobre o conceito de avaliação psicológica, diferenciando-o do conceito de psicodiagnóstico. Discorreremos sobre a importância de se realizar uma avaliação psicológica inicial, que se difere do processo psicoterapêutico. Comentaremos brevemente sobre a concepção de homem para Gestalt-Terapia e ilustraremos nossa proposta de avaliação psicológica infantil, a partir de um caso clínico. E por fim, as considerações finais.

É importante ressaltar que este artigo não tem a pretensão de esgotar o tema, ou de afirmar que uma maneira ou outra de se realizar avaliação psicológica é a melhor. Apenas esperamos que seja mais uma contribuição para pensarmos essa prática, ainda em construção.

 

Avaliação psicológica e o uso de testes: Uma relação histórica

Não é à toa que ao falarmos em avaliação psicológica logo nos remetemos a testagem e aos diagnósticos psicopatológicos. No final do século XIX e início do século XX a avaliação psicológica se resumia à aplicação de testes. O psicólogo se responsabilizava por seus resultados, na busca de se adequar ao modelo médico. Segundo Pimentel (2003) “o pressuposto era o de que se conseguiria medir características psíquicas com a mesma exatidão e objetividade com que se mediam características físicas”.

Com o passar do tempo, o modelo de avaliação psicológica, composto quase que exclusivamente por testes passou a ser questionado, pois segundo Pimentel (2003) “os instrumentos não correspondiam à exatidão e ao rigor que deles se esperavam”. Além do mais, foram surgindo novas teorias e “o surgimento da psicanálise foi modificando de maneira significativa o modo de o profissional pensar e realizar a avaliação psicológica”.

Os instrumentos de medidas tão valorizados foram dando lugar aos testes projetivos, às entrevistas e também à observação. Cunha (2008) mostra que houve um momento, por volta da década de 40 e 50, em que os testes projetivos ganharam mais destaque graças a Rorschach e a autora atribui isso, “não só a influência da psicanálise, que se tornava cada vez mais útil para problemas da vida cotidiana, mas também ao valor atribuído pela comunidade psiquiátrica ao entendimento dinâmico”. Porém, ao mesmo tempo em que a psicanálise traz esse olhar crítico, fazendo com que sejamos obrigados a repensar nossa prática, por outro, a forma de se realizar o diagnóstico psicológico continua tendo proximidade com o modelo médico. (PIMENTEL, 2003)

A forma como a avaliação psicológica e os instrumentos diagnósticos são utilizados, ainda hoje, privilegiam os aspectos psicopatológicos, contribuindo para reforçar o lugar do cliente, como objeto a ser estudado. Essa forma, tem se mostrado incoerente com a proposta de uma avaliação psicológica, que segundo o Conselho Federal de Psicologia publicou em 2003, deve ser entendida como um “processo que leva em conta condicionantes históricos, políticos, sociais, econômicos e culturais”. Essa incoerência tem suas origens no próprio nascimento da clínica. Augras (2009) menciona:

A psicologia clínica, de imediato, se associa à ideia de doença. O seu nome está ligado à prática médica, e nisso se envolve numa ambiguidade que vem onerando, pesadamente, a atuação do psicólogo. A psicologia clínica descende, em linha direta, da psicopatologia, e dela se alimenta. Diagnóstico e terapia são duas grandes especialidades. O engenhoso acréscimo que a transformou em psicodiagnóstico e psicoterapia não consegue disfarçar a evidência de filiação. (AUGRAS, 2009,p.9)

Ao longo do tempo, várias correntes de pensamentos foram surgindo e influenciando a forma que o psicólogo realiza a avaliação psicológica. Pimentel (2003) menciona que, foi com a influência das correntes humanistas que esse fazer foi sendo questionado. Com o crescimento das correntes humanistas, o lugar ocupado pelo psicólogo neste processo passou a ser criticado. Evidenciando com clareza “o desequilíbrio nas atribuições de poder entre psicólogo/cliente”. A autora menciona que foi com a fenomenologia que os significados atribuídos pelo cliente passaram a ser valorizados, e o uso de instrumentos passaram a ser reformulados permitindo uma coerência no trabalho do psicólogo.

Por conta de toda essa influência histórica, da relação da avaliação psicológica com os testes psicológicos, muitos até hoje confundem testagem com avaliação psicológica. Cunha (2008) diferencia o psicometrista do psicólogo clínico, diz que “o primeiro valoriza aspectos da testagem, e utiliza os testes para obter dados, enquanto numa avaliação psicológica o foco não será o teste, ele será mais uma ferramenta de avaliação”.

Essas reflexões nos apontam para a importância de como iremos conduzir a avaliação psicológica e como iremos administrar esses instrumentos. Esse cuidado é imprescindível. O Conselho Federal de Psicologia menciona que “a avaliação psicológica mal conduzida pode se tornar uma ferramenta perigosa, à medida que a utilização indevida e irresponsável desse procedimento pode trazer consequências nocivas para o sujeito e reforçar práticas de exclusão e estigmatização social”.

Tendo em vista essas implicações para a avaliação psicológica e o uso dos testes, seriam os testes psicológicos uma ferramenta possível em Gestalt-Terapia?

 

O uso dos testes em Gestalt-Terapia

A avaliação psicológica e o uso dos testes como vimos acima, esteve atrelado à tentativa de se adequar ao modelo médico vigente, contribuindo para uma prática diagnóstica que rotulam e aprisionam as pessoas. Por conta disso, as abordagens existencial-humanistas reagiram com críticas ao modelo médico, analítico e psicrométrico. (PIMENTEL, 2003) Dentre essas correntes está a Gestalt-Terapia. Ainda hoje podemos notar esta crítica, ao ouvirmos frases tais como essa dita por um estudante de especialização em Gestalt-Terapia: “Gestalt-terapeutas não utilizam testes”. Frases como esta, por si só já nos soam estranho, principalmente por sua rigidez, que, diga-se de passagem, nada tem a ver com Gestalt-Terapia.

O curso de avaliação psicológica mencionado anteriormente costuma ser procurado por profissionais de psicologia que atendem ou querem atender crianças. Boa parte do público são pessoas que já são especializadas em Gestalt-Terapia, ou tem afinidades com a abordagem. Chama-nos a atenção o fato de um curso de extensão em avaliação psicológica, embora não seja um curso com ênfase em testes, atraía pessoas que tem interesse de conhecê-los. Os instrumentos parecem ser úteis para esses profissionais, que relatam que os testes: “dão credibilidade para suas avaliações”, “os ajudam a acessar a criança em menos tempo do que acessariam só via contato”, “percebem que são valorizados pelos pais, escola e outros profissionais”.

É muito fácil entender porque, ainda hoje, os testes passam credibilidade em uma avaliação. O modelo médico ainda é valorizado. Gomes (2004) mostra que “a realização de experimentos no laboratório de Wundt deu à psicologia status de ciência, enquanto a inserção profissional do psicólogo ocorreu através da avaliação psicológica”. Essa afirmação nos faz pensar no quanto a avaliação e o uso dos testes também contribuíram para o diálogo da psicologia com outras áreas do conhecimento.

Um dos motivos de utilizar os testes na proposta do curso de avaliação psicológica foi o de facilitar o diálogo com os pais, escola e outros profissionais, afinal cuidar destas relações no atendimento infantil é fundamental. Segundo a enciclopédia Wikipédia (2014), Diálogo é “a conversação entre duas pessoas [...], troca de intervenientes, que podem ser de dois ou mais. Embora se desenvolva a partir de pontos de vistas diferentes, o verdadeiro diálogo supõe um clima de boa vontade e compreensão recíproca”. A Gestalt-Terapia é uma abordagem que valoriza o diálogo e o cuidado com a relação. Buber (1965 p.79 apud Hycner 1997 p. 27) mostra que o verdadeiro diálogo acontece quando cada um, ao olhar para seu parceiro, se torna consciente que ele é diferente, e aceitando essa diferença, se dirige a ele, como a pessoa que ele é. Estaríamos promovendo o diálogo se nos recusássemos nos aproximar da linguagem dos pais, escola e outros profissionais que cuidam da criança? É claro que com isso, não queremos dizer que utilizar testes é a única possibilidade de estabelecer esse diálogo ou de nos aproximarmos da linguagem desses pais e profissionais, mas que em alguns casos isso tem ocorrido dando margem a reflexões.

Oaklander (1980) menciona que utiliza testes projetivos para estabelecer a relação ou para o preenchimento de tempo. Menciona em seu livro o uso de testes como: CAT (Teste de Apercepção Temática), HTP (Desenho da Casa- Árvore- Pessoa), O Teste da Fábula de Despert, Pranchas de Rorschach etc. Comenta que “o uso dos testes como instrumento diagnóstico pode ser questionado, mas que seu uso como meio expressivo, não”. Mostra que utiliza os testes como qualquer outra ferramenta (estórias, desenho, areia, sonho). Enfatiza que “ler as notas interpretativas dos manuais que acompanham os testes é uma técnica muito proveitosa, pois possibilita que a própria criança possa confirmar ou não determinados aspectos”. E que o “fato da criança poder afirmar ou não determinadas características a seu respeito, fornece a ela força e auto sustentação”. (OAKLANDER, 1980)

Oaklander (1980) questiona o uso dos testes como diagnóstico, principalmente pelo fato “da criança não ter a oportunidade de responder aquilo que se afirma dela, não ter como discordar das conclusões do especialista”. Por isso diz que precisamos ser cautelosos ao usar os testes como meio de obter diagnósticos. Mostra dois exemplos de erros de avaliações, a partir de interpretações erradas. (ANEXO).

Nesses exemplos percebemos que o que a autora critica não é o uso dos testes, mas a forma como é utilizado. Embora mencione que não ressalta os testes em seu trabalho, deixa claro que seu uso é possível. Além do uso terapêutico como já mencionado, ela nos aponta outro motivo para o uso dos testes:

“Eu acho que pais, escolas e agências de serviço social estão sempre ávidos para que eu os ministre (os testes), e ficam exageradamente impressionados e influenciados pelos resultados. Eles parecem querer confirmação de suas próprias observações da criança, por intermédio de testes específicos. Assim, os adultos ficam radiantes se dou vários testes aprovados, e então indico uma conclusão especifica num relatório, tal como: De acordo com os resultados dos testes acima, esta criança mostra tendências a um comportamento antissocial. Ela é contida e temerosa, e tem muita raiva guardada que tem sido dirigida contra si mesma, e agora ocasionalmente contra outros. De toda maneira, todos já sabíamos dessas coisas a respeito da criança, mas os testes as tornaram verdade. Assim, com um suspiro de alivio, sabemos agora qual é o problema, e podemos nos dedicar à terapia”. (OAKLANDER, 1980, pg. 203,204)

Assim, compartilhamos da visão de Oaklander (1980). Não ressaltamos os testes em nosso trabalho. Mas acreditamos que eles podem ser úteis em alguns casos, principalmente no processo de avaliação psicológica. Dando-nos mais recursos para trabalhar com pais, escola e outros profissionais.

Fischer (1972, 1989 apud PIMENTEL, 2003, pg. 54) menciona que pode usar testes ou não, mas se os realiza, reflete sobre eles com os clientes. Fischer conecta o material oferecido pelo instrumento à história de vida do cliente para elucidar seus significados, pois considera que “o cliente, especialista nele mesmo, e ela, especialista em testes, poderão juntos, reunir saberes para produzir transformação e crescimento”.

Pimentel (2003) também se refere ao uso dos testes em avaliação psicológica, no entanto, deixa claro que só usará algum “se forem oportunos para elucidar as necessidades do cliente em primeiro plano, seguindo as dela e as da instituição”. Relata que ao utilizar o teste CAT, tem apresentado a seus clientes como um jogo, uma brincadeira que não determina o que é certo e errado. A autora acredita que o uso de testes, como o teste mencionado, “requer que o profissional adapte as descobertas à linguagem própria da Gestalt-Terapia, o que significa identificar os modos de autocontato e contato ambiental, fronteiras e funções de contato afetadas” etc.

Essa mesma autora escreve um capítulo sobre recursos diagnósticos e psicoterápicos, onde fala sobre o uso dos testes. Dedica o texto especialmente para profissionais que atuam em instituições, onde há necessidade de apresentar planos de trabalho, e se relacionar com equipes multiprofissionais. Pimentel (2003) deixa claro que “o uso de testes só facilitará o crescimento do cliente se fizer parte de um encontro autêntico, caso contrário, serão apenas técnicas que servem ao psicólogo e fazem do cliente um objeto”. Portanto, tanto na fala de Pimentel (2003) quanto na fala de Oaklander (1980) notamos que embora os testes sejam uma ferramenta possível em Gestalt-Terapia, a forma com que utilizam a ferramenta precisa ser coerente. É bastante evidente o cuidado com a maneira que se utiliza os testes e também com que propósito eles são utilizados.

Pimentel (2003) em seu livro “Psicodiagnóstico em Gestalt-Terapia”, menciona a experiência de alguns Gestalt-terapeutas com a prática do diagnóstico, e fica perceptível o uso de variados recursos, assim como também as diferentes formas de se realizar o diagnóstico. Dentre os recursos utilizados por alguns desses estão os testes, DSM IV, trabalho multidisciplinar, literatura sobre psicopatologia, etc. Isso tem nos levado a refletir sobre o fato de que muitos Gestalt-terapeutas têm buscado outros recursos para além da abordagem. Por um lado, podemos ver esse fato como uma forma de diálogo, mas por outro, pode nos apontar para uma necessidade ou carência de recursos próprios da abordagem. Enquanto ficarmos apenas num movimento de evitação de tudo que julgamos objetivista ou incoerente, vamos ter que continuar realizando adaptações em ferramentas já existentes.

Ao usarmos os testes nos atendimentos, percebemos que a possibilidade de incoerência está no “como” usamos e “pra que”, do que propriamente na ferramenta. Encaramos os testes como mais uma possibilidade, assim como é o uso de variadas técnicas em Gestalt-Terapia, que como tal, não servirá para todos os clientes e nem para todos os terapeutas. Fica evidente o quanto os profissionais citados os usam com criatividade. O que nos remete a Zinker (2007) ao comparar um terapeuta a um artista. Segundo o autor, ser criativo envolve dentre várias características, ser alguém que corre riscos e que está sempre disposto a partir para experimentos. Menciona que: “O terapeuta criativo é experimental, sua atitude inclui o uso de si, do cliente e dos objetos do ambiente a serviço da invenção de novas visões da pessoa”. Portanto, o terapeuta criativo é aquele que dispõe do uso de variadas técnicas e instrumentos, desde que estes estejam a serviço da relação, e muitas vezes os testes se mostram exatamente isso.

Além das questões que envolvem o uso dos testes, outra questão que nos deparamos, ao iniciarmos a construção do curso sobre avaliação psicológica infantil, foi a escolha do nome do curso. Notamos que muitos eram os nomes usados para designar o processo de avaliação do cliente. No primeiro momento, nos ocorreu “psicodiagnóstico no atendimento infantil segundo a perspectiva Gestáltica”, mas seria este um nome coerente com a proposta?

 

Discutindo o conceito de avaliação psicológica

A primeira questão que nos deparamos ao pensarmos no tema avaliação psicológica é que existem diversos termos utilizados para nomear esse processo. Muitas vezes esses diversos termos têm sido utilizados como sinônimos, no entanto, quando optamos por utilizar um ou outro, escolhemos levando em conta nossa visão de homem e de mundo que, por sua vez, influencia diretamente na maneira como “fazemos”.

O termo mais utilizado como sinônimo de avaliação psicológica é psicodiagnóstico. Se recorrermos ao dicionário Michaellis (2009) o termo significa “conhecimento de sintomas psíquicos”, “determinação de capacidades”, “aptidões e tendências psicológicas, por meios clínicos e experimentais”. O termo foi introduzido por Hermann Rorschach para qualificar o método de exploração da personalidade baseado nas manchas de tinta (teste Rorschach), e por Dupré para qualificar a análise dos sintomas puramente psíquicos de uma doença mental visando fazer o diagnóstico. (MUCCHIELLI & MUCCHIELI, 1969 apud RIBEIRO, LEAL, 1997)

Cunha (2008) define psicodiagnóstico como uma “avaliação psicológica feita com propósitos clínicos que visa identificar forças e fraquezas no funcionamento psicológico, com o foco na existência ou não de psicopatologia”. Também menciona que tem características tais como: “limitação do tempo, utilização de técnicas e testes psicológicos, objetivo de classificar o caso e prever seu curso possível, comunicando os resultados, na base dos quais são propostas soluções, se for o caso”. Na opinião da autora “enquanto os psicólogos em geral realizam avaliações, o psicólogo clínico realiza psicodiagnóstico”.

Corroborando com Cunha (2008), Poelman (2012) diferencia ambos pelo contexto em que ocorrem. Por exemplo, se a avaliação acontece no contexto clínico é nomeada como psicodiagnóstico, e quando acontece em outros contextos como treinamento, seleção de pessoal ou escola, avaliação psicológica.

Souza, et al. (2001) Diferencia o psicodiagnóstico do diagnóstico em psicologia. Segundo os autores o psicodiagnóstico sempre utiliza testes, investiga os sintomas, parte sempre de hipóteses que serão confirmadas ou refutadas, interpreta e busca categorizar. Já o diagnóstico psicológico não necessariamente utiliza testes, e não tem o objetivo de catalogar o sujeito. Tendo o psicodiagnóstico uma operacionalização e objetivos bem definidos, seria mais coerente entender que esta, é uma das formas de se realizar uma avaliação psicológica, e que a escolha do psicólogo por esta forma de avaliar vai depender muito mais de sua visão de homem e de mundo do que propriamente do contexto em que ela ocorre.

Como pensar em uma prática em Gestalt-Terapia que envolva características como as citadas acima pelo autor? Foi a partir desse questionamento que optamos pelo termo “avaliação psicológica” para dar nome ao curso. Segundo Michaellis (2009) avaliação é: Ato de avaliar, apreciação, estimação. É exatamente o que fazemos quando avaliamos uma criança com o olhar da Gestalt-Terapia, apreciamos sua forma de existir. Além do mais, a metodologia empregada no psicodiagnóstico clássico, como vimos acima, muitas vezes vai de encontro com as bases epistemológicas da Gestalt-Terapia. Outro motivo pelo qual achamos que o termo “avaliação psicológica” seria mais apropriado é o fato do termo psicodiagnóstico vir sempre carregado de muitos estigmas.

Apesar de nos preocuparmos muito mais com o “como” a avaliação é realizada, a escolha pelo nome do curso nos fez refletir sobre a questão, nos mostrando que a forma com que nomeamos um processo costuma estar intimamente ligada aos nossos objetivos. Por conta disso, muitos autores, levando em conta sua visão de homem e de mundo, tem nomeado esse processo de outras formas, por exemplo: Aguiar (2005) tem nomeado de compreensão diagnóstica o momento inicial da psicoterapia infantil que visa avaliar. Augras (2009) prefere chamar o processo de reconhecimento e compreensão do cliente. Frazão (1988 apud Pimentel, 2003) utiliza o termo psicodiagnóstico processual, pois, acredita que o diagnóstico é um processo continuo que se dá juntamente com a psicoterapia.

Nas entrevistas realizadas em seu livro, Pimentel (2003) destaca que a maioria dos Gestalt-terapeutas entrevistados, compartilham da ideia de Frazão de um diagnóstico processual, que é aquele onde a “avaliação psicológica começa desde o início do tratamento e vai até o fim do mesmo”. No entanto, o processo psicoterapêutico infantil com suas peculiaridades, demanda dos psicólogos uma avaliação inicial, que se diferencia da psicoterapia, como compreenderemos melhor a seguir.

 

Em que sentido a avaliação psicológica infantil se diferencia da psicoterapia

Como dito anteriormente, a avaliação psicológica infantil tem suas peculiaridades e essas têm nos convidado à reflexão. De fato, nós, Gestalt- terapeutas, buscamos ter uma postura muito diferente em relação ao diagnóstico psicológico. Como apontado por Pimentel (2003) “houve a superação da crítica total, típica dos anos 1960, da prática clínica e do diagnóstico, para promover reflexões que contribua para um fazer coerente com suas bases epistemológicas”.

Segundo Augras (2009) o diagnóstico psicológico envolve “identificar e explicitar o modo de existência do sujeito, no seu relacionamento com o ambiente, em determinado momento”. A partir desta definição, entendemos que o diagnóstico em psicologia é algo mais abrangente, que leva em conta toda a existência da pessoa, não só o que ela tem em comum com outras pessoas a fim de categorizar, mas sua singularidade. Avaliamos levando em conta que nossa compreensão sobre nossos clientes, se trata de uma avaliação daquele momento.

Esse olhar para o diagnóstico psicológico tem influenciado diretamente na prática dos Gestalt-terapeutas, fazendo com que muitos optem por realizar avaliações psicológicas com um olhar processual, como dito anteriormente. Utilizando o método interventivo, ao invés de interpretativo. Possibilitando que o cliente participe de sua avaliação de forma ativa, trabalhando com o foco na relação terapeuta-cliente, entendendo conforme mencionado por Augras (2009) que “é o próprio cliente que sabe sobre si mesmo”.

Realizar avaliações entendendo que ela é um “processo contínuo” tem feito com que alguns Gestalt-terapeutas tenham optado por um processo de avaliação psicológica informal, ou seja, um processo que ocorre ao mesmo tempo que a psicoterapia. A questão que propomos pensarmos neste tópico é se em psicoterapia infantil, isto é possível. Que peculiaridades são essas na terapia infantil que nos levam a pensar sobre a importância de uma avaliação inicial, até mesmo nos motivando a construir um curso que se propusesse a pensar nesta prática, de forma diferenciada da psicoterapia?

Quando começamos a atender crianças, nos damos conta da complexidade do atendimento infantil. A começar pelo fato de que, quem vem ao nosso encontro não é a criança, mas seus responsáveis. Na primeira sessão, em que optamos por estar somente com os pais seguindo a sugestão de Aguiar (2005), nos damos conta de que existe uma pergunta inicial sobre a criança, que se apresenta através de uma queixa sobre algum tipo de comportamento. Os pais costumam nos procurar, na maioria das vezes quando a situação já está insustentável, o que faz com que, neste momento em que chegam até nós, estejam muito ansiosos e ávidos por terem respostas e soluções.

Outra peculiaridade é o fato que o atendimento infantil costuma nos colocar em contato com outros profissionais. Muitas vezes, os pais já chegam com diagnósticos de neurologistas, psiquiatras ou mesmo diagnósticos advindos do âmbito escolar, ou seja, diagnósticos realizados sem bases, e nomeados a partir de comportamentos isolados. Dentro deste contexto complexo que se mostra a psicoterapia infantil, nos parece imprescindível uma avaliação inicial, pois como compreender o que estão nos pedindo? Como não acolher esses pais, propondo uma sessão onde nós contaremos a eles o que estamos compreendendo sobre a situação?

É verdade que estaremos avaliando nossos clientes o tempo todo, e veremos a avaliação psicológica como um processo que estará sempre em construção. No entanto, o manejo da psicoterapia infantil, pede uma compreensão, uma avaliação inicial. Aguiar (2005) fala o seguinte sobre esse processo:

A construção de uma compreensão diagnóstica é fundamental nesse momento inicial, não só para clarificar e orientar nossas intervenções terapêuticas posteriores como também para criarmos a possibilidade de devolver para os responsáveis, de forma integrada, consistente e clara a nossa perspectiva acerca do que está se passando com a criança. (AGUIAR, 2005, p. 131)

Aguiar (2005) fala da avaliação dentro de uma “perspectiva fenomenológica e processual” onde avaliação psicológica e psicoterapia caminham juntas. É verdade que a avaliação psicológica inicial infantil, de certa forma já é o início da psicoterapia, e que, caso a criança continue o processo, estaremos sempre avaliando. No entanto, esse processo inicial, se diferencia da psicoterapia, pois conforme menciona Aguiar (2005) nesse período inicial, existem “O pouco conhecimento do terapeuta acerca da criança e seus responsáveis, um vínculo muito tênue, e um predomínio da escuta e da observação em detrimento de intervenções”. Além disso, não necessariamente a criança que avaliamos continuará o processo psicoterapêutico, já que muitas vezes os pais nos procuram apenas para uma avaliação.

Oaklander (1980) descreve como trabalha com crianças, e mostra que existe um momento inicial com o objetivo de avaliar o caso. A autora menciona que costuma receber os pais com a criança, tem sessões com a criança sozinha, usa testes como meio de estabelecer a relação, faz anotações e lê suas anotações para a criança. Essas experiências mostram que embora estejamos realizando uma avaliação psicológica processual, precisamos de uma avaliação inicial, que requer de nós uma postura diferente da psicoterapia. Sendo a nossa postura diferente, se justifica então, oferecermos um curso que se propõe a pensar nesta prática.

A avaliação psicológica é uma atribuição do psicólogo, conforme podemos ler no Catálogo Brasileiro de Atribuições do Psicólogo no Brasil. Sendo uma atribuição do psicólogo, não podemos simplesmente nos negar a realizar uma avaliação, no entanto, precisamos refletir sobre como podemos fazer isso cuidando da relação com nossos clientes, com os pais, escola e outros profissionais envolvidos. Além de, cuidar para que realizemos esta prática coerente com os pressupostos teóricos com o qual trabalhamos. Neste sentido, é fundamental fazermos uma breve consideração sobre alguns pressupostos que estão relacionados com a visão de homem em Gestalt-Terapia, pois acreditamos que essa concepção está ligada diretamente à forma como escolhemos intervir na prática da avaliação psicológica infantil.

 

A concepção de homem para Gestalt-Terapia

Para Gestalt-Terapia o ser humano é considerado um ser criativo, transformador, integral, singular, relacional, contextualizado. (RIBEIRO, 2012) O que isso significa? E qual a implicação de se acreditar nessa concepção para a prática clínica da avaliação psicológica infantil

Ter uma visão integral do ser humano significa vê-lo como uma totalidade. Segundo Ribeiro (2012) “Nem só corpo, nem só mente, mas o homem inteiro”. Quando uma criança chega para uma avaliação, existe uma queixa relacionada com dado comportamento. Esse comportamento se destaca à percepção dos pais, porque costuma ser um comportamento que traz prejuízos para criança. Neste caso, estaremos interessados em como esse comportamento, que emerge como uma figura se relaciona com outros fatores dessa totalidade que está de fundo. Assim, não buscaremos uma causa linear para o problema.

Acreditar que o ser humano é um ser integral, portanto contextualizado, faz com que, em uma avaliação psicológica infantil, estejamos interessados em como o contexto familiar, escolar, social e outros estão implicados no sintoma da criança. Perguntas como essas citadas por Aguiar (2005) são pertinentes, já que vemos a criança adoecendo dentro de um campo: “Por que essa criança precisa agir assim nesse contexto? Que expectativas os pais têm em relação a essa criança? Que elementos impedem a criança de construir outras formas de lidar com suas questões?”.

Outro desdobramento de vermos o ser humano como uma totalidade na avaliação psicológica, é que não “focaremos no sintoma”. Isso significa, como menciona Aguiar (2005), que não iremos persegui-lo, ou seja, não iremos focar toda a nossa atenção no sintoma apresentado. Vamos acreditar que tudo que a criança trouxer para as sessões estará fazendo parte de sua totalidade. Mas significa isso que devemos ignorar o sintoma? Não. Sempre que recebemos uma criança para avaliação, falamos com ela sobre o que preocupa seus pais. Perguntamos o que ela acha, se concorda ou discorda. Deixando ela ciente sobre o motivo pelo qual ela está ali. Vamos olhar para o sintoma para além de seus prejuízos. Ribeiro (2012) ao falar sobre o humanismo e suas influências para a Gestalt-Terapia, mostra que o “Homem é o centro, com valor positivo, capaz de se auto gerir e regular-se”. O sintoma também tem essa função de regulação. É ele que favorece a chegada da criança em nossos consultórios em busca de ajuda.

Outra concepção de homem para a Gestalt-Terapia que reflete na prática de avaliação psicológica infantil, é a concepção de homem singular. Por mais que a criança chegue até nós por conta de características que ela compartilha com outros, ela jamais vivenciará essas características da mesma forma que outras crianças. Por isso, embora estejamos interessados nessas características compartilhadas, que também fazem parte do campo, nos interessa muito mais, compreender como esta criança em particular se relaciona com seu campo e que significados esse campo atribui a esse comportamento. (AGUIAR, 2005)

Além disso, iremos trabalhar com o método fenomenológico que, reconhecendo e valorizando essa singularidade, buscará compreender a criança a partir dos significados atribuídos por ela mesma. Estar aberto à singularidade da criança que chega até nós, envolve estar com ela sem a priori. Colocando entre parênteses nossos julgamentos, crenças, diagnósticos e pré-conceitos. No entanto, é preciso estar atentos à dificuldade desta postura na prática. Por mais que nos coloquemos à distância para ver melhor, separando o que é nosso, do que é do outro, ainda assim, será o nosso olhar, nossa percepção. Hycner (1997) falando sobre o assunto menciona que “qualquer pessoa seriamente preocupada com a supressão dos pressupostos reconhece com rapidez que é impossível suspendê-los completamente”. Ter essa concepção implica em nos reconhecermos como fazendo parte daquilo que vemos em nossos clientes, “ainda que o que vemos, não seja tudo”. (RIBEIRO, 2012) Afetamos e somos afetados por eles. E conforme mencionado por Polster e Polster (2001) “nossas reações na relação com o cliente “dizem algo sobre ele e sobre nós, e abrangem grande parte dos dados vitais da experiência da terapia”.

Portanto, nosso papel em uma avaliação psicológica infantil passa por compreender essa criança que chega, sem pré-conceitos, ou talvez fosse melhor dizer, nos dando conta de nossos pré-conceitos. Observando não só as dificuldades que a criança e sua família têm, mas também suas potencialidades. Intervindo, oferecendo recursos para que nossos clientes possam se dar conta de seu funcionamento, e seus pais, de suas implicações. Desta forma, a avaliação não só servirá para orientar nosso manejo clínico, mas para a conscientização da criança e de sua família sobre sua forma de estar no mundo, abrindo caminho para o processo psicoterapêutico.

 

Caso clínico

Antes de começar o relato, gostaria de esclarecer que o objetivo é ilustrar como tenho realizado a avaliação psicológica infantil hoje. Não tenho a pretensão de dar uma receita, até porque, afinada com os pressupostos da Gestalt-Terapia acredito que assim como todos nós seres humanos estamos em constante transformação, nossa prática clínica também está.

A. é uma menina de 6 anos, que estuda em uma escola particular para crianças de baixa renda (expressão que escutei da mãe e da escola), no Jardim II. Tem uma irmã de 16 anos. Mora com seus pais G. e A. São uma família muito humilde, e começo atender A. com uma proposta social, aceitando o pedido de uma amiga que conhece a família.

A avaliação psicológica se inicia desde o contato telefônico. Neste caso G., mãe de A., é quem liga para marcar. Parece muito aflita e ansiosa ao telefone. Menciona que já levou A. em vários médicos e ainda não sabe o que a filha tem. Falo para mãe que costumo estar com os pais primeiro para depois conhecer a criança. Essa escolha se baseia na minha experiência. Embora já tenha em outro momento recebido os pais com a criança na primeira entrevista, e esta forma tenha vantagens e desvantagens, optei pelo que acredito que facilite meu vínculo com esses pais, que terá um papel fundamental nesse processo.

Dentro de uma concepção Gestáltica vemos a criança como um ser integral e contextualizado. Entender isso implica em vermos a criança como parte de um todo. Então, quando os pais me trazem uma queixa, esta queixa não terá uma causa linear. A queixa é uma figura que surge a partir de um fundo. Portanto estarei sempre interessada sobre como essa queixa está relacionada com seu contexto (social, familiar, emocional, cultural, escolar). Ter esse olhar contextualizado implica em ver os pais como parte disso, ou seja, eles não serão apenas pessoas que me trarão informações sobre a criança, eles também estão implicados no sintoma.

Nesta primeira entrevista, meu principal objetivo é acolher os pais, é iniciar um vínculo baseado na confiança, na clareza. Por isso, procuro entender o que eles estão me pedindo, e deixo claro o que posso oferecer. Esse trabalho, que chamo de ajuste de demanda, tem a ver com compreender e trabalhar a demanda dos pais, mencionada por Aguiar (2005), que deixa claro que entender a demanda é diferente de atender. Realizo um contrato por escrito com os pais, onde explico que a avaliação durará em média 8 (oito) sessões, especifico dia e horário de atendimento, informações sobre faltas, reposições e principalmente sobre o papel dos pais nesse processo.

Os pais relatam que A. tem atrasos em seu desenvolvimento. Que tem dificuldade para falar, e de se relacionar com as pessoas. Diz que ela é muito agressiva às vezes, e tem dificuldade de focar a atenção. Menciona que ela tem acompanhamento de uma neurologista e pediatra. Que sabem que ela precisaria do acompanhamento de outros profissionais, mas que eles não têm condições para manter um tratamento. Diz que a escola sem saber como lidar com A. sugeriu que eles buscassem fazer uma avaliação psicológica. A mãe relata que A. já teve diagnóstico de autismo, hiperatividade e retardo mental.

Marco outra sessão com os pais, para compreender melhor como se deu o desenvolvimento de A. e sua história relacional. Não costumo fazer um questionário de anamnese. Prefiro fazer perguntas abertas, que deem oportunidade para os pais me contarem sobre sua história como escolherem me contar. Os pais me contam que a gravidez de A. não foi planejada. Mas que ficaram muito felizes com a novidade e procuraram lidar da melhor maneira. A gravidez foi saudável. E só começaram a notar que A. era diferente por volta de 1 (um) ano e alguns meses, quando perceberam que ela não falava como sua primeira filha nesta idade.

Desde o primeiro momento que estou com os pais, algumas questões diagnósticas permeiam meu olhar e intervenções: Quais expectativas dos pais em relação a essa criança? Qual o papel desta criança neste cenário familiar? Quais os fatores encontrados no campo que contribuem para manter os comportamentos trazidos como queixa? Quais os recursos que essa criança e essa família possuem para enfrentar a situação? (Aguiar, 2005)

Neste momento os pais chegam até a mim muito confusos com respeito ao diagnóstico psicopatológico da filha. E comentam que não sabem diferenciar quais características é resultante do problema de saúde dela e quais são de sua personalidade. Percebo que ter combinado com os pais desde o início que iria precisar de um tempo para compreender o que estava acontecendo, e depois de algumas sessões conversaríamos sobre o que percebi, os deixaram mais tranquilos, mais confiantes. É claro que isso precisa ser bem ajustado, o que eles pedem e o que podemos dar. Caso isso não aconteça, os pais podem ficar esperando de nós uma super devolução, imaginando uma solução mágica.

A partir do relato dos pais, percebi que se tratava de uma criança com muitas limitações, principalmente no que diz respeito à fala e compreensão. Afinada com o método fenomenológico procurei estar com A. sem a priori, colocando meus pré-conceitos, e todos os possíveis diagnósticos entre parênteses. Relacionei-me com ela com uma postura curiosa, como me relacionaria com qualquer outra criança. E ao acompanhá-la fui percebendo o que ela conseguia ou não realizar. Enxergar uma criança de forma integral significa que há muitas maneiras de acessá-la, fazendo com que possamos trabalhar com crianças com qualquer nível de comprometimento.

Na primeira sessão A. entrou rapidamente pela sala, sem me olhar, sentou no chão onde havia brinquedos e começou a explorá-los. Eu sentei perto dela e me apresentei. Ela ignorou a minha presença. Mas parecia encantada com os brinquedos. Eu não tinha ideia se ela compreendia o que eu dizia. Mas mesmo assim, expliquei como explicaria para qualquer criança o fato dela estar ali. Foram duas sessões livres onde meu principal objetivo era a construção do vínculo. A. não falava frases, apenas algumas palavras para nomear objetos. A brincadeira dela consistia em descrever os objetos por suas características. Não fixava sua atenção em nada em especial. Não me incluía em suas brincadeiras. Ficava sempre de costas pra mim.

Na terceira sessão eu levo papéis, lápis, lápis de cor, e propondo que ela desenhe uma casa, árvore e pessoa (HTP). Explico que vai ter dia que brincaremos no chão e outros dias em que posso propor alguma outra atividade que me ajude a conhecê-la melhor. Na sessão com o teste HTP, ela apenas fez rabiscos, com traços fracos que me ajudou a perceber que ela não conseguia simbolizar. Tinha dificuldades de compreender o que era uma casa, árvore, ou pessoa.

Um outro teste que utilizei com uma função terapêutica foi o CAT já mencionado anteriormente. Este teste é composto de pranchas com desenhos infantis, usando animais para ilustrar situações. Quando mostrei as pranchas para A. ela se mostrou curiosa. Expliquei que poderíamos brincar de contar histórias. Ela compreendeu, mas na maioria das vezes só conseguia descrever o que via, sem conseguir acrescentar elementos novos. O teste serviu para eu perceber que A. conseguia manter a atenção em uma atividade, desde que tivesse interesse. E também percebi que através do teste, pela primeira vez ela interagiu comigo.

Depois dessa sessão percebi A. mais próxima. Embora preferisse brincar sozinha já não ignorava minha presença. A essa altura me chamava atenção o fato dela não olhar para mim quando eu falava com ela. Uma das minhas intervenções foi procurar olhar pra ela, me abaixar na sua altura para tentar um contato visual. Apesar de não falar comigo, se referia a mim para sua mãe como a “Tia dos brinquedos”.

À medida que fui conhecendo melhor A. era cada vez mais difícil enxergar o diagnóstico de autismo, ou hiperatividade. Era nítido o comprometimento cognitivo. Depois de algumas sessões apliquei o teste Bender (O teste visomotor de Bender – Sistema de Pontuação Gradual - Bender-SPG). Este teste avalia a maturação percepto-motora. Apesar de o resultado ter sido incorrigível. Foi importante perceber o que ela conseguia e o que não conseguia. Seu resultado, ainda assim foi melhor do que o HTP. Mostrando que para ela era mais fácil copiar. Dados que foram úteis para escola.

Além desse comprometimento outras características me chamavam a atenção como: a forma como ela manipulava o ambiente para conseguir o que queria, a falta de limites, a irritabilidade ao se dar conta que não era compreendida, o desejo de se relacionar socialmente, etc.

Depois de ter estado 5 (cinco) sessões com A. percebi que o contato dela comigo havia melhorado muito, até mesmo passando a me incluir nas brincadeiras. À medida que fui estabelecendo uma relação com ela, passei a compreender melhor a forma dela se comunicar e isso fez toda a diferença. Nesse ínterim eu entrei em contato com a neurologista que confirmou para mim o diagnóstico de retardo mental, e uma suspeita de autismo. A médica deixa claro que passou o diagnóstico para os pais, mas menciona que eles têm dificuldades para compreender e aceitar isso.

Resolvo marcar uma reunião com a professora e coordenadora da escola de A. Elas se mostram receptivas. A primeira coisa que ouço na escola é que acreditam que A. é autista, mas que gostariam de ter uma confirmação, pois os pais não são claros. Mencionam que os pais são muito esforçados, mas que pressionam a escola para darem atividades para A. compatíveis com sua idade.

Depois de ter tido sessões com os pais, sessões com A., visita à escola, fui articulando todas as informações colhidas e descritas no decorrer da avaliação a fim de devolver para os pais minha compreensão sobre A. O momento de devolução é um momento muito delicado, pois é um momento não só de devolver o que percebemos, mas também de fazer algumas intervenções no sentido de informar os pais, e também de implicá-los no processo. Além disso, é um momento que costuma ser carregado de ansiedade e expectativas por parte dos pais.

Na entrevista de devolução com os pais de A. comecei falando sobre as potencialidades da A. Mencionei o quanto ao longo do processo percebi evolução da forma como A. se relacionava comigo. Como aprendemos a nos entender. Que notei que através das brincadeiras é possível acessá-la e trabalhar as questões dos limites etc. Para exemplificar, fiz referência a uma situação ocorrida na recepção, onde A. se negava a ir embora. Mostrei para eles como eles reagiram a isso, e que efeito isso tem sobre o comportamento de A.

Um ponto delicado, mas necessário discutir com eles, é a questão do diagnóstico psicopatológico. Tanto os pais como a escola se mostraram bastantes ansiosos em ter uma confirmação sobre isso. A neurologista já havia mencionado com os pais o diagnóstico de retardo mental, com um possível autismo. Neste momento, tendo estado com A. 5 (cinco) sessões, não me parecia autismo. No entanto, minha orientação foi de que A. pudesse ser acompanhada em terapia para posteriormente tanto psicólogo como outros profissionais reavaliassem. Embora como psicólogos não tenhamos que realizar diagnósticos psicopatológicos, e muitas vezes nem sejamos qualificados para isso, podemos contribuir muito para o diagnóstico realizado de uma maneira multidisciplinar.

Os pais se mostraram confiantes, embora fosse nítida a dificuldade deles em lidar com a realidade de que A. não teria um desenvolvimento conforme eles esperavam. Eu não havia dito nada muito diferente do que a médica já havia dito pra eles, no entanto, parecia que eles estavam ouvindo pela primeira vez.

Minha devolução na escola deste caso foi muito interessante. A escola praticamente me pediu que eu dissesse em que série A. deveria ficar. Eles se mostraram extremamente perdidos. Eu acolhi a angústia da professora e coordenadora e respondi a única coisa que podia responder: O que eu havia aprendido sobre A. no contato com ela. Foi importante colocar minha percepção de que A. não parecia ter autismo e nem hiperatividade. Que não poderíamos fechar esses diagnósticos. Que sua forma de brincar, que causa tanto estranhamento, por não focar a atenção e não simbolizar, é esperado para seu nível de desenvolvimento.

A partir daí, os pais continuaram a trazer A. para atendimento comigo, e acompanhei ela por quase 2 (dois) anos. Ficou nítido que a dificuldade de contato ocorria principalmente por não ser compreendida pelas pessoas. E no decorrer deste tempo A. melhorou muito sua maneira de se relacionar, de lidar com os limites, e até mesmo evoluiu na forma de brincar, o que ajudou muito na sua interação com outras crianças. Os pais, por sua vez, foram aprendendo a lidar melhor com A. e isso ocorreu principalmente porque esses pais passaram a se relacionar com sua filha e não com seu diagnóstico.

Ter realizado uma avaliação inicial, foi fundamental para orientar o meu manejo com A. com os pais e escola. Me deu segurança para caminhar por esse terreno tão complexo que envolve uma criança com muitas limitações, pais aflitos e cheios de expectativas e uma escola totalmente perdida. Embora eu não tenha atendido exatamente o que os pais e a escola tenham me pedido, a avaliação me habilitou a levar as informações com clareza e confiança, contribuindo para que pais e escola pudessem aprender um pouco mais de A. com a própria A.

 

Considerações finais

Ter realizado este trabalho sem dúvida foi muito significativo, não só por estar através dele fechando mais um ciclo, mas porque através dele outros estarão se abrindo. Este estudo buscou ampliar nosso olhar para a prática da avaliação psicológica infantil, entendendo a proposta como mais uma possibilidade.

Através desse trabalho verificamos que a avaliação psicológica é um processo complexo que envolve variadas técnicas, e não somente testagem. Que os testes embora carregados de pré-conceitos, podem favorecer nosso cliente e até mesmo contribuir para o diálogo com os pais, escola e outros profissionais, desde que, sejam utilizados de uma maneira coerente e que esteja como qualquer outra técnica, a serviço da relação com nossos clientes.

Notamos que a avaliação psicológica inicial é imprescindível no atendimento infantil, e que por exigir de nós terapeutas uma postura diferente, esse processo costuma se diferenciar da psicoterapia. Entendemos que a forma como nomeamos o processo é carregada de sentidos, fazendo diferença no nosso olhar e na nossa prática.

Não podemos deixar de observar que realizar este artigo nos despertou para o fato de que muitas são as formas de se realizar uma avaliação psicológica, e muitos são os recursos utilizados pelos Gestalt-terapeutas. O que nos faz pensar no quanto a abordagem ainda pode produzir neste campo, talvez até construindo recursos afinados com seus pressupostos.

Ter nos aproximado dessas diversas formas de se realizar essa prática, nos levou a entrar em contato com as diferenças, mas também com que existe em comum nesses diversos olhares, que tem a ver com a mesma base, a Gestalt-Terapia. Diante de tantos estilos diferentes, apenas esperamos ter contribuído para reflexão do tema e que este artigo possa gerar novas discussões e novos desdobramentos.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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Endereço para correspondência
Tatiana Queiroz de Almeida Santos
Endereço para correspondência: tatiana.@espacocrescergt.com.br

 

Recebido em: 02/02/2015
Aprovado em: 11/05/2015

 

NOTAS

* Psicóloga graduada pela UVA - Universidade Veiga de Almeida. Pós-graduada em psicologia clínica – Gestalt-Terapia com ênfase no atendimento de casais e famílias/IGT. Cursos em atendimento infantil na abordagem gestáltica/IGT e Dialógico. Cursos em Psicodiagnóstico com enfoque fenomenológico. Coordenadora do curso de Avaliação Psicológica Infantil em uma Perspectiva Gestáltica. Corresponsável pelo Espaço Crescer Gestalt-Terapia. Realiza atendimentos a adultos, crianças, adolescentes, casais/famílias e grupos. Supervisora Clínica.

 

ANEXO

Oaklander (1980) menciona o fato de sermos cautelosos com o uso dos testes com fins diagnósticos. Diz que caso a criança não possa se expressar sobre as conclusões dos testes, o resultado pode ter uma finalidade despersonalizada. Para ilustrar, cita dois exemplos a seguir:

Houve um caso em que uma criança foi diagnosticada como esquizofrênica por um psicólogo que havia lhe ministrado uma série de testes formais. O diagnóstico estava num arquivo permanente numa agência de atendimento social. Posteriormente atendi o menino em terapia e recebi cópias de todos os resultados dos testes. Após cinco minutos com o garoto eu já sabia que ele não era esquizofrênico. No entanto, tinha ficado tão assustado com o psicólogo que o havia testado (conforme me disse depois), que como consequência se retraia numa concha de silêncio. O psicólogo nada fez intencionalmente para assustar o menino, mas este por alguma razão teve tal sentimento. O que importa aqui é que embora o psicólogo provavelmente tivesse feito o melhor que podia e de boa vontade, os resultados estavam errados. Depois dos testes, todo mundo passou a tratar a criança como se fosse seriamente perturbada. (OAKLANDER, 1980, p. 201,202)

Um outro exemplo de uma interpretação errada pode ser encontrada no livro Human Figure Drawing in Adolescente (Desenhos da Figura Humana na Adolescência). Uma criança de 13 anos recebeu o diagnóstico de esquizofrenia infantil pseudo-retardada exibicionista. É feito o seguinte comentário acerca dos seus desenhos:

O diagnóstico é clarificado por estes fatos surpreendentes. O paciente vê a si mesmo como despersonalizado, uma espécie de relógio antigo... com os números ao contrário e antenas se sobressaindo. O disco do pêndulo, desligado do restante, sugere um cordão umbilical. (pag. 109)

Para mim está claro – e estou certa de que a criança, se lhe tivesse sido perguntado, teria confirmado o fato – de que se trata de um desenho muito bom de um aparelho de televisão! O “disco do pêndulo desligado do restante” é o botão de ligar e desligar. O “relógio com os números ao contrário” é o seletor de canais. Qualquer pessoa que tenha observado cuidadosamente um aparelho de televisão, como esta criança obviamente fez, verá que os números no seletor de canais encontram-se sempre no sentido anti-horário. (OAKLANDER, 1980, p. 202,203)