ARTIGO


Percurso da Terapia Familiar Gestáltica no Rio de Janeiro

Fernanda Teixeira
Roberta Domingues

Monografia apresentada por exigência do curso de especialização em Gestalt Terapia, com ênfase em Terapia Familiar do IGT – Instituto de Gestalt Terapia e Atendimento Familiar, como um dos requisitos para obtenção do título de Especialista. Junho de 2005.

Orientador: Marcelo Pinheiro

Junho de 2005



Agradecimentos
Resumo
1. Introdução
2. Metodologia
2.1. Método de Coleta de Dados
2.2. Instrumento
2.3. Nossos Entrevistados
2.4. Procedimento
3. Percursos individuais
3.1. Breve histórico da Terapia Familiar Sistêmica
3.2. Breve Histórico da Gestalt-terapia no Rio de Janeiro
4. Características dos Gestalt-terapeutas pioneiros no trabalho com famílias no Rio de Janeiro
4.1. O terapeuta familiar de abordagem Gestáltica: o perfil encontrado em nossos relatos
5. Perspectiva da Terapia Familiar na Gestalt-terapia
6. Considerações Finais
7. Referências Bibliográficas


AGRADECIMENTOS


Ao IGT – Instituto de Gestalt-Terapia e Atendimento Familiar, que sempre foi e continua sendo nosso jardim, onde cultivamos nossas sementes e vimos nascer as flores da Gestalt-Terapia e da Terapia Familiar, sustentadas por solo fértil e muito promissor.
Em especial, aos nossos supervisores: Marcelo Pinheiro, que além de ter conduzido nossa dupla em extensas supervisões, somou a elas a orientação deste trabalho e Márcia Estarque (e seu tão esperado bebê) que contribuiu de diversas formas para esta monografia, como supervisora, primeira entrevistada e apoio incontestável para as dúvidas de última hora.
Aos nossos entrevistados: Heloisa Rodrigues, Márcia Estarque Pinheiro, Sandra Salomão, Sergio Garbati Gorestin e Teresinha Mello da Silveira, que nos atenderam com extrema prontidão e permitiram que nosso trabalho nascesse e se desenvolvesse.
À Silvana Mendes Lima, supervisora de Fernanda Teixeira, que foi de grande auxílio na elucidação de nossa metodologia, tão indispensável à pesquisa científica.


RESUMO


O presente trabalho pretende traçar o percurso da história da terapia familiar de abordagem gestáltica no Rio de Janeiro, delimitando seus contornos e particularidades e avaliando seus reflexos, para a comunidade terapêutica. Para isso, utilizamo-nos especialmente da história oral, colhendo relatos de psicólogos que contribuíram de forma significativa para o desenvolvimento desta forma de atuação. A partir deles, buscamos evidenciar o percurso e as transformações que aconteceram no Rio de Janeiro na Gestalt-Terapia até o seu encontro com o atendimento familiar.



1. INTRODUÇÃO


Cientes de que prática e teoria caminham sempre juntas, num processo de intercâmbio contínuo onde somos muitas vezes obrigados a fazer um retorno teórico para nos aprofundarmos ou, o contrário, recorrermos à prática para assim promover a evolução do nosso trabalho, nos sentimos instigadas a investigar os caminhos da terapia familiar na perspectiva gestáltica; seu nascimento, seus desenvolvimentos e seu contexto atual para, de posse destes conhecimentos, podermos não só marcar a nossa própria atuação, como também contribuir para a atuação dos demais profissionais que nos acompanham na aventura deste atendimento.
Após alguns anos de dedicação à pesquisa histórica e, conseqüentemente, tendo absorvido métodos e formas próprias de realizar tal pesquisa, ao nos lançarmos à investigação histórica de uma atuação, reconhecemos a existência de fases que determinam seu processo de formação. Tais fases poderiam ser definidas como: constituição, na qual as primeiras manifestações começam a se fazer presentes; autonomização, quando vemos formar-se uma identidade que é própria desta atuação e a diferencia daquelas que lhe são próximas; e, por último, uma fase de reconhecimento, quando geralmente essa nova atuação se legaliza, seja através da realização de congressos, criação de grupos e associações ou do próprio reconhecimento legal. Logicamente, tais fases não se dão necessariamente nesta ordem e tampouco encerram o processo de formação. Acreditamos, sobretudo, que, em especial, a atuação psicológica está sendo sempre renovada e transformada ao longo dos anos.
A partir de algumas observações iniciais, pudemos perceber que o exercício da Terapia Familiar sob um olhar da Gestalt-Terapia encontra-se ainda num momento de autonomização entre os psicólogos cariocas, tendo já definido muitos contornos, mas ainda vislumbrando importantes identificações em seu caminho. Sendo assim, ainda é rara a existência de centros que promovam este tipo específico de formação. O que muitas vezes acontece é uma união, pelo próprio psicólogo, dos princípios da Gestalt-Terapia com outras teorias psicológicas, a fim de atualizar sua prática, principalmente, para as intervenções nos sistemas familiares.
Em nosso caso, particularmente, o interesse por este campo tornou-se aguçado por estarmos inseridas no IGT – Instituto de Gestalt-Terapia e Atendimento Familiar um dos poucos, no Rio de Janeiro, a formar Gestalt-terapeutas com ênfase no atendimento familiar.
Assim, como forma de reconstruir este trajeto, em virtude da tenra idade em que ainda se encontra o nosso objeto de estudo, escolhemos a história oral como principal fonte de pesquisa, confiantes de que, se ainda não é possível encontrar tal história nos livros, é possível ouvi-la diretamente dos personagens que vêm permitindo a sua criação.

2. METODOLOGIA

Trata-se de uma pesquisa histórica na medida em que, a partir de narrativas orais, busca-se compreender e reconstituir o percurso da terapia familiar sob a perspectiva da Gestalt-Terapia na cidade do Rio de Janeiro.
O objetivo da pesquisa histórica é relacionar determinados eventos passados com seus efeitos presentes, buscando uma compreensão crítica desses efeitos. No caso dessa pesquisa, procurou-se analisar a composição de algumas tendências presentes na prática de gestalt-terapeutas que tornaram, na atualidade e a partir de pressupostos teóricos diferenciados, a terapia familiar de base gestáltica uma forma de atendimento junto às famílias.
Para tanto, lançamos-nos à elaboração de um questionário capaz de nos orientar em entrevistas semi-abertas realizadas com terapeutas que, num momento inicial, foram considerados como alguns dos responsáveis por desenvolver no Rio de Janeiro o atendimento familiar com abordagem gestáltica. Tais entrevistas foram realizadas por nós e ainda, filmadas, para permitir uma análise mais detalhada do material. Neste ponto, consideramos importante ressaltar a riqueza contida nesta forma de pesquisa, pois antes de tudo, tivemos o contato direto com opiniões e experiências as mais diversas para, a partir delas, compor os dados que nos permitiram avaliar as considerações apresentadas neste trabalho.
De posse então deste questionário, iniciamos nossas visitas a psicólogos de base gestáltica que atuam com famílias no Rio de Janeiro, os quais gentilmente cederam espaço para que registrássemos o relato de seus percursos pessoais e profissionais nos permitindo compor a própria história da Terapia Familiar na Gestalt-Terapia no Rio de Janeiro. Dessa forma pudemos descobrir os encontros e desencontros da abordagem gestáltica com a terapia familiar através dos próprios atores que compuseram o cenário atual. Fomos conhecendo e costurando o percurso trilhado e construído por estes terapeutas pioneiros da Terapia Familiar na Gestalt-Terapia. Como os próprios nos relataram, ainda há muito que fazer e conhecer neste campo.
Com relação ao relato como objeto de pesquisa Barry Anderson acrescenta ilustrativamente:

“O relato de como um objeto é, num certo momento, é uma descrição de estado, como uma fotografia. O relato de como um objeto funciona é uma descrição de processo, como um filme. Considere, por exemplo, a tarefa de descrever um objeto bastante familiar, uma casa” (Anderson, 1977. p. 9)

Nestas páginas, lançamos os resultados dessas duas visões, estática e processual, procurando compreender melhor como surgiu a Terapia Familiar gestáltica.

2.1 Método de coleta de dados


Nesse estudo tivemos como curiosidade primordial o caminho da Terapia Familiar na Gestalt-Terapia em sua chegada à cidade do Rio de Janeiro. Logo de início, pudemos perceber que este caminho encontra-se ainda parcamente registrado, parecendo existir apenas nos relatos de alguns terapeutas mais experientes. Por esta razão, escolhemos como forma de coleta de dados alguns depoimentos pessoais, técnica que nos permite transformar relatos em registros. Como anteriormente sinalizado, os depoimentos foram colhidos em forma de entrevistas realizadas com personagens que nos pareceram significativos para o processo que pretendemos investigar.
Tais entrevistas foram realizadas no próprio ambiente de trabalho dos profissionais – os consultórios onde atuam – o que, por iniciativa dos próprios entrevistados, acabou se tornando uma regra.
Por tratar-se de uma monografia feita a quatro mãos, contamos ainda com um tipo de recurso que utilizamos nos atendimentos de famílias, casais e grupos. Trata-se de um formato de atuação onde dois psicólogos estão em campo atuando conjuntamente, a chamada co-terapia. Nesse tipo de atuação, a dinâmica estabelecida entre os profissionais favorece o emprego de uma intervenção atravessada por mobilizações da dupla terapêutica, dos clientes e do sistema em questão. Em relação a este trabalho, podemos dizer que realizamos co-entrevistas, dado que as mesmas foram sempre realizadas em dupla, sofrendo assim as mesmas influências (positivas) que o atendimento em co-terapia.

“James W. Hanuum acredita que a grande vantagem da co-terapia está na habilidade dos co-terapeutas de alternarem seus papéis não só entre si como também no relacionamento com a família em tratamento. Desta forma, os terapeutas irão desempenhar ora um papel passivo, no lugar de observador – mas numa posição atenta para que a qualquer momento possa agir no sentido de alterar ou facilitar a direção da terapia – ora numa posição mais ativa arriscando a um superenvolvimento”.(GARCEZ, C. M., 1992, pág. 07)

Em ambos os casos acreditamos que seja proporcionada uma riqueza de discussão e uma relação mais complexa entre os participantes, criando uma atmosfera reflexiva e coletiva, onde a ordem é a diversidade. Assim, durante toda a monografia estabelecemos um diálogo reflexivo, crítico e interventivo entre nós, partindo do pressuposto gestáltico do encontro e não do consenso. Desta forma, privilegiamos o intercâmbio com nossas inquietações, dúvidas, certezas e estilos, com vistas à criação e ao estabelecimento de um espaço propício para a expressão das idéias e sentimentos, rejeitando uma busca pelo caminho da verdade. Com este espírito, foram brotando capítulos e parágrafos que surgiam após discussões e interpretações variadas de um mesmo tema.



2.2 Instrumento

Como já mencionamos, utilizamos um instrumento elaborado para nortear e facilitar a realização de uma análise qualitativa dos depoimentos. Criamos um questionário semidirigido com perguntas que pretendiam encontrar as peculiaridades no caminho de cada entrevistado. Tal questionário, composto por nove perguntas, é exposto a seguir:
1) 1) Quando se deram seus primeiros contatos com a Terapia Familiar na Gestalt-Terapia? Como foi este contato?
2) 2) Como você via este momento na Terapia Familiar?
3) 3) Quais as influencias teóricas que marcaram a sua formação como terapeuta familiar?
4) 4) Que nomes lhe vêm à cabeça quando pergunto sobre Terapia Familiar? (Ou seja, quem o formou e quem formava naquele tempo?)
5) 5) Ao longo de seu caminho quais as influências que teve? (Além do seu formador quem mais influenciou você?)
6) 6) Quais são as fases do seu caminho de terapeuta?
7) 7) Quais são as fases da Terapia Familiar na Gestalt-Terapia no Rio de Janeiro?
8) 8) Qual a sua forma de atuar em família? Como isso se encaixa na forma da Terapia Familiar?
9) 9) Quais perspectivas da Terapia Familiar na Gestalt-Terapia daqui a diante?


2.3 Nossos entrevistados

Entrevistamos cinco psicoterapeutas que atuam com famílias e utilizam como referencial os princípios da Gestalt-Terapia. Selecionamos tais terapeutas orientadas por dois critérios: os cinco são reconhecidos como pioneiros e como referência nesta forma de atuação e, também, pela significativa contribuição à psicologia, através da criação de institutos, do desenvolvimento de pesquisas e do aperfeiçoamento desta nas universidades. Outro critério utilizado foi a indicação de nosso orientador e da primeira entrevistada - Marcia Estarque - que possibilitou que restringíssemos nossos entrevistados a uma amostra numericamente viável e também que tivéssemos acesso a eles.
Optamos finalmente por cinco entrevistados, também em função do curto prazo estabelecido para a entrega desta monografia. Por ser tratar de uma amostra restrita esclarecemos que esta não pretende representar toda a dimensão e detalhe do percurso da terapia familiar gestáltica no Rio de Janeiro; todavia, tal demanda nos estimula e encoraja a realizar um refinamento futuro. Adiante expomos um currículo resumido e apresentação dos entrevistados:

Heloisa Rodrigues


Formada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro em 1983, ainda na graduação iniciou a formação em Gestalt-Terapia na primeira turma formada por Teresinha Mello da Silveira.
Alguns anos depois, a partir de uma demanda de seu trabalho com crianças, iniciou a formação em Terapia Familiar Sistêmica no Núcleo -Pesquisas do Rio de Janeiro, vindo ainda a complementar seu estudo dessa especialidade, ingressando em 1994 no curso de especialização do Instituto de Terapia Familiar, do qual não mais se desligou.

Márcia Estarque Pinheiro


Psicóloga, formada pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em 1992. Especializou-se em Psicoterapia de Casais e Famílias na abordagem sistêmica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e em Psicologia Clínica pelo Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro - Janeiro de 2002. Obteve a formação em Gestalt-Terapia (1991 a 1993) na Vita clínica de Psicoterapia com a formadora Teresinha Mello da Silveira. Atualmente, coordena o IGT - Instituto de Gestalt-Terapia e Atendimento Familiar.

Sandra Salomão


Psicóloga há 25 anos formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Gestalt-terapeuta pelo The Gestalt Traning Center San Diego e treinada por Joseph Zinker em Terapia de Casais e Sistemas Íntimos. É mestre em Psicologia Social e especialista em Terapia Familiar Sistêmica pelo Núcleo Pesquisa e Estudos. Professora e Supervisora de Estágio em Gestalt-Terapia da PUC/Rio. Responsável Técnica pelo Centro de Aperfeiçoamento e Desenvolvimento em Gestalt-Terapia do Rio de Janeiro, um dos principais centros formadores deste mesmo estado. Coordenadora de Cursos de Pós-Graduação - Formação em Gestalt-Terapia e do Curso de Especialização em Terapia de Família. [1]

Sergio Garbati Gorestin


Psicólogo, formado pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, atua em consultório particular desde 1987 atendendo adolescentes, adultos, casais e famílias. Possui mestrado em Psicologia Social e da Personalidade pela UFRJ. Realizou treinamento em terapia de família com Maurizio Andolfi na Accademia de terapia della Famiglia - Roma, Itália. [2]
Sergio Garbati Gorestin ressalta que despertou e aprofundou seu interesse pela Gestalt-Terapia através do estágio realizado na Graduação com a Professora Teresinha M. da Silveira e complementou seus estudos em Terapia Familiar através da formação no Núcleo – Pesquisas do Rio de Janeiro.

Teresinha Mello da Silveira


Coordenadora de Cursos de Formação na Abordagem Gestáltica desde 1980, com experiência em atendimento de adultos (individualmente ou em grupo), idosos, casais e família. Supervisora de atendimentos clínicos do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora e Mestre em Psicologia Clínica na área de Casal e Família - PUC/RJ. Especialista em Psicologia Clínica e Hospitalar.
Ainda na graduação, foi bastante influenciada pela psicanálise. Os primeiros contatos com a Gestalt-Terapia se deram através dos grupos de estudo promovidos por Maureen Miller a partir de 1978, fazendo parte, portanto, do primeiro grupo de gestalt terapeutas formado no Rio de Janeiro.


2.4 Procedimento


Os primeiros contatos com os entrevistados foram realizados por telefone. Contatamos cada possível entrevistado e, após verificar a disponibilidade deste para participar do projeto, apresentamos uma proposta mais formal e estruturada, enviada por e-mail para que eles pudessem apreciar e avaliar uma breve explicação sobre o estudo e o questionário que iria nos nortear. Todos os psicólogos com os quais fizemos contato aceitaram de pronto o convite e logo agendaram horário e dia em seus consultórios, deixando-nos extremamente gratas pela rápida disponibilidade e cooperação. Visitamos então seus consultórios que marcaram bem a diferença entre os terapeutas e seus estilos. Sendo o estudo baseado no relato dos entrevistados, o trabalho foi se desenvolvendo conforme as entrevistas foram acontecendo. A cada entrevista algo se encaixava e a monografia começava a ter mais sentido e rumo.

 


3. PERCURSOS INDIVIDUAIS


Apresentado o nosso objeto de estudo, podemos então investigar o surgimento da atuação familiar na Gestalt-Terapia, fenômeno este que pode ser reconhecido não só no Rio de Janeiro como em todo o mundo.
Nessa construção, do atendimento familiar gestáltico, percebemos uma influência marcante da Terapia Familiar Sistêmica, distinta da Gestalt-Terapia, mas complementar a esta, dado que possuem características que as aproximam e outras que as afastam. Com isso, consideramos pertinente discorrer brevemente sobre cada uma dessas abordagens em separado.
Ressaltamos que nossa intenção neste breve estudo se restringe à apresentação da Terapia Familiar Sistêmica sem adentrar nas diversas linhas desta abordagem, nos detendo à sua forma geral, destacando especificamente as contribuições históricas que ajudaram a construir essa teoria. Entendemos que essa teoria possui caminhos e visões diferentes; entretanto não faz parte do escopo deste trabalho investigar e apresentar tais diferenças.



3.1 Breve histórico da Terapia Familiar Sistêmica


Historicamente, seguimos até a metade do século XX um pensamento científico predominantemente mecanicista que buscava explicar os processos da vida de maneira simples e programada, igualando os organismos vivos a um relógio, como propôs o próprio Descartes, fundador desse pensamento (Capra, 1982). Mais tarde, esse modo de pensar foi revisto por vários cientistas que propuseram a idéia de sistema e passaram a entender o funcionamento da vida a partir dessa dinâmica. Naturalmente, o pensamento médico e a visão de saúde foram influenciados por esse paradigma; além disso, o mesmo também embasou muitos cientistas e teóricos das ciências sociais e humanas e os instigou a pesquisar as contradições deste modelo.
A partir disso, a noção de sistemas, especialmente no pensamento ocidental, começou a ser veiculada através dos estudos das ciências da informação e da cibernética, os quais se detinham em investigar o paradigma físico. Tudo isso em um contexto do pós-guerra, de um mundo bipolarizado, da queda do regime socialista e do crescimento do capitalismo.
O surgimento desta nova ciência denominada “cibernética”, termo proposto por Norberto Wiener em 1948, foi marcado pela realização de dez conferências promovidas pela Fundação Josiah Macy Jr., de 1946 a 1953, conhecidas como Conferências Macy. Tratavam-se de encontros fechados de dois dias, realizados em Nova York, reunindo em torno de 25 pesquisadores, dentre eles Margaret Mead – antropóloga e esposa de Gregory Bateson – Kurt Lewin – psicólogo social e expoente da psicologia da Gestalt – Heinz von Förster – engenheiro – John von Neumann – matemático e inventor do computador digital – dentre outros, ficando clara neste contexto a variedade de especialistas empenhados em discutir e desenvolver tais idéias.
No campo científico das ciências cognitivas, a cibernética propiciou, por volta dos anos 50, principalmente nos Estados Unidos, o estabelecimento de discussões sobre o funcionamento do cérebro a partir dos princípios de redes de processamento e retroalimentação de informações. Similar à cibernética, mas com algumas críticas a mesma, surge, em 1930, a chamada Teoria Geral dos Sistemas, ou Teoria dos Sistemas, a qual veio a determinar o nome “Terapia Sistêmica” defendida por Ludwig Von Bertalanffy.
Wiener iniciou seu estudo a partir da matemática enquanto Bertalanffy baseou seu início na biologia, investigando o funcionamento dos sistemas gerais sem a interferência da energia ou da substância. O idealizador da Teoria dos Sistemas, inicialmente criticou a cibernética por se basear exclusivamente em princípios mecanicistas e limitados e focar apenas as técnicas de controle, automatização e inovação tecnológica. Com o passar do tempo e a entrada de novos cientistas como Bateson, Maturana e Varela, a cibernética foi se sofisticando até ser classificada em primeira e segunda ordem. Na cibernética de primeira ordem os princípios norteadores são a estabilidade, o equilíbrio, e a idéia de circularidade e de circuitos de retroalimentação, mantendo a estabilidade e desconsiderando as mudanças no meio ambiente. A cibernética de segunda ordem supera as recentes conquistas da Teoria Geral de Sistemas, nela os organismos são vistos como sistemas auto-organizadores onde são produtores e produtos de si mesmos devido a um funcionamento auto-referente. Isto implica também a noção de observador-participante, conceito que marca a diferença entre a 1ª ordem e 2ª ordem.
No Brasil, as idéias sistêmicas surgem, no meio terapêutico, de uma percepção de que para se chegar ao indivíduo, muitas vezes é necessário se ter acesso àqueles que estão ao seu redor e, até mesmo, de que em determinados casos o problema não está no singular, mas no plural. Assim, alguns psicólogos envolvidos pelas poucas idéias que lhes chegavam do exterior, rumaram para os Estados Unidos e Itália em busca de formação e aprimoramento do conhecimento. Ambos os países eram foco efervescente de escolas de Terapia Familiar Sistêmica que, inicialmente de forma estanque, vinham trabalhando a vontade de acrescentar ao tratamento individual um novo recurso, a inclusão de toda a família.
Nos Estados Unidos, o grande foco de desenvolvimento e disseminação das idéias sistêmicas foi a escola de Palo Alto. Esta escola, responsável por introduzir a abordagem sistêmica na terapia familiar, em seu início, por volta dos anos 50, contava com Bateson, Haley, Weakland, Fry e Jackson, os quais buscavam estudar os “paradoxos da abstração na comunicação” e a “confusão dos tipos lógicos”. Foi esse mesmo grupo que alguns anos depois, criou o Mental Research Institute (MRI) – instituição ímpar para o desenvolvimento da terapia familiar nos Estados Unidos –, mas que ainda como escola de Palo Alto formou e inspirou terapeutas do mundo inteiro, o que inclui os psicólogos brasileiros que até hoje baseiam-se nela.
Na Itália, o destaque está em Salvador Minuchin que reconfigurou a abordagem estrutural na terapia familiar e influenciou toda uma geração de terapeutas em seus estudos e práticas sobre esta forma de atendimento. Em especial, lembramos Moises Groisman, psiquiatra e psicanalista brasileiro, diretor do centro de terapia familiar Núcleo-Pesquisas do Rio de Janeiro, que abertamente tem como referência o modelo de Minuchin em seu trabalho e em conseqüência dissemina tais idéias não só no Rio de Janeiro como em todo o Brasil.
Inserida, portanto no meio terapêutico brasileiro, acompanhando o movimento que se presenciava no resto do mundo, a Teoria Familiar Sistêmica surge como uma abordagem neutra sem anular ou criticar outras posturas. Psicólogos de diversas abordagens e escolas psicológicas começam a ter sua prática influenciada por idéias sistêmicas. Assim, assistimos acontecer um boom no atendimento familiar com a criação de centros formadores como o Instituto de Terapia Familiar, o Núcleo – Pesquisas do Rio de Janeiro e do IPUB. Dado que esses são centros de Terapia Familiar Sistêmica e que se tornaram referência para aqueles que pretendiam especializar-se no atendimento familiar, muitos gestalt-terapeutas e terapeutas de outras abordagens tiveram sua prática influenciada pela visão sistêmica destes institutos.
No decorrer de nossas análises, a importância destes centros foi se tornando cada vez mais visível, levando-nos a reconhecer a pertinência de uma investigação mais aprofundada dos mesmos. Entretanto, em função das características deste trabalho, elegemos como fonte de dados exclusivamente os relatos dos gestalt-terapeutas selecionados. Com isso, este aprofundamento foge ao nosso objeto, o que não o desvaloriza para pesquisas futuras.

3.2 Breve histórico da Gestalt-Terapia no Rio de Janeiro


O criador da Gestalt-Terapia Friedrich Salomon Perls, nascido na Alemanha, iniciou suas atividades em Viena e logo depois voltou a Berlim onde se estabeleceu como psicanalista. Em 1933, em virtude da perseguição nazista aos judeus Perls foge com sua família para a Holanda, permanecendo pouco tempo neste país, pois é encaminhado para África do Sul por Ernst Jones – célebre biógrafo de Freud – para atuar como analista didático. Como conseqüência, funda o Instituto Sul Africano de Psicanálise. O marco da criação da Gestalt-Terapia se deu com o lançamento do livro Ego, Fome e Agressão, no qual Perls expôs suas primeiras idéias sobre a Gestalt-Terapia. Nesta fase Perls começa a se distanciar da psicanálise.
Para a criação da Gestalt-Terapia Perls foi influenciado por diversos estudiosos e teóricos. Ainda psicanalista foi analisando de Wilhelm Reich e esse encontro o inspirou profundamente. Kurt Goldstein também o marcou de maneira destacada apresentando-lhe sua teoria, através da qual conheceu a noção de regulação organísmica. Laura Perls, sua esposa e grande colaboradora para a construção da Gestalt-Terapia, foi uma grande estudiosa da psicologia da Gestalt de Wertheimer, Kohler e Kofka o que gerou como contribuição os conceitos de percepção e cognição. A teoria de campo de Kurt Lewin e o método fenomenológico de Husserl também foram indispensáveis ao surgimento da Gestalt-Terapia.

Já nos Estados Unidos, Perls se reúne com intelectuais e artistas inconformados com ditames culturais da época, os quais pregavam a liberdade de expressão física, intelectual e sexual. Formam assim o chamado “Grupo dos sete” constituído em 1940 por Paul Goodman, Isadore From, Paul Weisz, Sylvestre Eastman, Elliot Shapiro, Laura Perls e Fritz Perls.
A Gestalt-Terapia encontrou terreno para se consolidar principalmente durante o período de atuação dos movimentos da contracultura que se expandiu na década de 60 e buscava uma redefinição de valores e das estruturas de pensamento até então dominantes. Com a eclosão da contracultura, a Gestalt-Terapia encontrou força nos EUA, especialmente entre os jovens que viviam esse momento histórico, (os hippies) para se estabelecer como abordagem psicoterápica. A liberação do indivíduo foi a principal preocupação da atmosfera intelectual da época.

Em Cleveland foi fundado um dos principais centros, o Gestalt Institute of Cleveland, em 1953, que se incumbiu de desenvolver a teoria e foi o que mais publicou livros gestálticos. Neste Instituto encontramos, entre outros, Paul Goodman, Isidore From, Joseph Zinker, Erwing e Miriam Polster pertencentes à primeira geração de gestalt-terapeutas americanos. Erwing e Miriam Polster, após alguns anos migraram para San Diego e criaram o Gestalt Training Center – San Diego. Este centro se tornou referência para gestalt-terapeutas brasileiros, inclusive cariocas.
A divulgação da Gestalt-Terapia se deu a partir de 1972 através de vários centros de referência que se espalharam pelos Estados Unidos, sendo os principais localizados em Nova York, Cleveland e Califórnia, enfatizando ainda a importância que tiveram no seu processo de desenvolvimento. Daí em diante, a Gestalt, através da habilidade de Fritz, foi propagada, especialmente a partir da própria prática gestáltica, baseada na aplicação de técnicas e experimentos divulgados através dos workshops que realizou pelo mundo.
Também no ano de 1972, a Gestalt Terapia chega ao Brasil através da contribuição de uma figura de grande importância, Thérèse Tellegen, que se desenvolveu inicialmente em São Paulo, chegando logo em seguida ao Rio de Janeiro. Thérèse expôs no Brasil as técnicas aprendidas em Londres e, assim, iniciou um processo de divulgação da Gestalt-Terapia que em pouco tempo se espalhou por todo o Brasil, conquistando muita força no Rio de Janeiro através da realização de encontros e de visitas freqüentes de expoentes da Gestalt-Terapia, vindos principalmente da Califórnia. Contamos também com a contribuição de Maureen Miller que, com uma influência rogeriana, se destacou no Brasil e no Rio de Janeiro reunindo, através de grupos de encontros, um público regular de terapeutas, trazendo uma Gestalt-Terapia centrada na Pessoa para uma boa parte dos Gestalt-terapeutas que chamamos hoje de pioneiros neste estudo.
No Rio de Janeiro, em 1984, é criado o primeiro estágio de Gestalt-Terapia em uma universidade, a faculdade de Psicologia da UERJ, por obra de Teresinha Mello da Silveira. Realiza-se, ainda nessa cidade, já em 1987, o I Encontro de Gestalt-terapeutas do Brasil, marcando historicamente a forte representatividade da Gestalt-terapia entre os brasileiros.

Na década de 90, ressaltamos a participação de Joseph Zinker que contribuiu para a formação e o aperfeiçoamento de gestalt-terapeutas brasileiros, inclusive cariocas, através de suas visitas a São Paulo, para realizar encontros chamados por ele de maratonas.
Num segundo momento, preocupados com a ausência de uma fundamentação teórica, os gestalt-terapeutas, que já haviam se multiplicado, lançam mão da criação de grupos de estudos e da promoção de atividades que viessem a embasar teoricamente a prática corrente. A década de 1990 consolida a Gestalt-Terapia, pois apesar de sua atuação estar ainda muito concentrada em consultórios particulares, sua ascensão vem se acelerando através de centros de divulgação, efervescência intelectual e formação de novos gestalt-terapeutas, tendência que parece irreversível e que já pode ser observada com mais clareza, como nos aponta Teresinha M. Silveira, através da inserção desta teoria como uma das abordagens da
“Residência em Psicologia Hospitalar do Hospital Pedro Ernesto onde antes só era possível a participação de profissionais adeptos da psicanálise.” (SILVEIRA 1996, p. 15).
Muitos foram os colaboradores que contribuíram para a chegada da Gestalt-Terapia ao Rio de Janeiro. Muitas foram às portas abertas para os “estrangeiros” trazerem suas contribuições. Temos registros orais e ainda presentes da vinda de Maureen Miller, Joseph Zinker e Erwing Polster ao Rio de Janeiro. E ainda, em destaque, Thérèse Tellegen que, tendo se firmado no Brasil ainda no início do desenvolvimento da Gestalt-Terapia, contribui de forma ímpar para este processo.
Acrescentamos ainda, que outros psicólogos tão renomados quanto os já citados, também contribuíram para esta chegada da Gestalt Terapia ao Brasil, como Walter Ribeiro e Décio Casarim.

 

4. Características dos Gestalt-terapeutas pioneiros no trabalho com famílias no Rio de Janeiro

Nossos entrevistados foram gestalt-terapeutas ou estudiosos desta abordagem consagrados por sua atuação com famílias e pela contribuição direta para a implementação da terapia familiar na Gestalt-Terapia. Em sua maioria, já atuavam com atendimentos individuais e de grupos e prosseguiram para o atendimento familiar contando com a experiência que apontou a esses terapeutas a importância de acrescentar ou convidar as famílias para o encontro psicoterápico. Seguiram o caminho da própria história dos Gestalt-terapeutas pioneiros nos Estados Unidos. Consolidaram-se por meio do atendimento individual, fizeram-nos estender-se para o atendimento de grupo, para só então investirem no atendimento familiar. Como nos relatou Sandra Salomão: “... eu também vim de uma longa carreira de atendimento individual e de grupo. Essa coisa de grupo é bem importante para atender famílias”.
Na década de 70 alguns deles estavam saindo da faculdade e já iniciavam seus contatos com a Gestalt-Terapia. Uns com abordagens humanistas e outros ,ainda, como os primeiros Gestalt-Terapeutas, iniciando um contato com a psicanálise para depois encontrarem a Gestalt-Terapia. Desse período nossos entrevistados recordam:
“...enquanto eu aprendia eles também estavam aprendendo...”(Sandra Salomão)
“... eu achava que ela estava muito acima de mim para fazer formação junto com ela. Neste grupo tinha a Lika de Salvador, e o outro era o Decio Casarim, o bam bam bam de Gestalt na época, mas depois que eu cheguei no grupo vi que todo mundo estava começando mesmo, era uma diferença de meses...”(Teresinha M. da Silveira)

A característica comum desses Gestalt-terapeutas foi o relato de um certo incômodo com o atendimento individual e a espera passiva dos familiares na sala de espera. Como conta Sandra Salomão: “o que eu achava que era falha emocional, não estava se encaixando... a criança sobe para a terapia e a mãe ficava igual como se fosse ao dentista folheando revista na sala de espera”.
Assim como na Gestalt-Terapia onde o próprio corpo, as experiências e sensações formam o instrumento mais poderoso, os gestalt-terapeutas atuantes em famílias emprestam sua personalidade e sensações, suas características mais marcantes, ao atendimento. Na Gestalt-Terapia a pessoa do terapeuta é extremamente valorizada, utilizada e explorada dentro do setting terapêutico. Desta maneira, a forma do atendimento gestáltico em família é marcada por este jeito singular do gestalt-terapeuta de contar consigo mesmo e com suas experiências vividas durante o atendimento, como afirmam alguns de nossos entrevistados:
“em termos de trabalho a prática é teresiana ... Meu foco no trabalho, muito para além do verbal, é no que está sendo expresso, no que eu estou vivendo ... Uso muito o trabalho com corpo ... uso recursos de um modo geral” (Teresinha M. da Silveira),

“no grupo de gestalt eu estava tendo um autoconhecimento e começando a me perceber e, ao mesmo tempo, tinha um trabalho de dar-se conta” (Sandra Salomão).

Seguindo essa tendência de importar conhecimentos e em função da proximidade teórica e flexibilidade da Gestalt-Terapia, muitos terapeutas foram buscar novos recursos, novas trocas e novos teóricos na abordagem sistêmica e boa parte deles defende que a mistura se tornou complementar e satisfatória em termos de recursos e intervenções.
Dentre nossos entrevistados, encontramos Gestalt-terapeutas que apresentam diferenças na utilização, ou não, de recursos gestálticos ou sistêmicos com mais ou menos intensidade, ou na integração destes recursos, como o genograma, contribuição sistêmica à Gestalt-Terapia. A seguir, apresentamos alguns relatos de nossos entrevistados que ilustram essa mistura:


“...eu acho que eu trabalho gestalticamente, eu desenvolvi um fundo teórico de sistêmica...”(Sandra Salomão)
“...Faço muito aquele modelo de entro no sistema e saio do sistema, estrategicamente, ocupo papéis, trabalho sempre com experimentos. Vou muito à ação e uso muito a expressão...”(Sandra Salomão)
“ procuro perceber aquela pessoa que chega para mim dentro de um contexto mais amplo... seja de estrutura familiar.. é a possibilidade de facilitar essa comunicação”(Márcia Estarque)
“...uso muito genograma em diagnóstico que é um instrumento sistêmico...”(Sergio Garbati Gorestin)
“... por achar que a Gestalt – a própria palavra Gestalt – remete à teoria de sistemas”(Sergio Garbati Gorestin)
“...como terapeuta de família ninguém na Gestalt-Terapia foi referência para mim. Toda a minha referência teórica vem da Terapia Familiar Sistêmica”(Sergio Garbati Gorestin)
“ eu me considero uma gestalt-terapeuta que atende famílias”(Heloisa Rodrigues)
Estes depoimentos ilustram como nossos seletos entrevistados, que aqui representam os gestalt-terapeutas atuantes em famílias no Rio de Janeiro andam utilizando o conhecimento Gestáltico e as técnicas sistêmicas no setting terapêutico.


4.1 O Terapeuta Familiar de Abordagem Gestáltica: O perfil encontrado em nossos relatos.

No percurso de formação profissional dos Gestalt-terapeutas, surge uma necessidade de encontrar algo a mais para capacitá-los instrumentalmente a atender famílias e se reconhecerem Terapeutas Familiares, assim como ressaltam alguns entrevistados:
“no início eu indicava famílias e casais para o ITF (Instituto de Terapia Familiar) (...) Embora a Gestalt-Terapia abra possibilidades para trabalhar, e acho que ela é fantástica para trabalhar com casais e famílias! (...) Resolvi fazer uma formação em sistêmica, estava me sentindo muito fechada, escolhi fazer com o Moises Groismam. Ele é mais direto”(Sandra Salomão);

“eu atendia família esporadicamente quando atendia criança e adolescente. Só fui atender família e me reconhecer terapeuta de família a partir de 1995”(Teresinha M. da Silveira)

Outra citação que nos chamou atenção e que nos faz refletir a respeito da relação entre Gestalt-Terapia e atendimento familiar e, sobretudo, a respeito da importância desta relação foi a seguinte constatação exposta por Sandra Salomão: “as pessoas que fazem o curso de família e não são gestalt-terapeutas saem após o primeiro módulo e só ficam aqueles que já têm a formação em Gestalt-Terapia ou então, iniciam a formação em Gestalt-Terapia”. Este dado nos remete à plasticidade da teoria da Gestalt-Terapia e o cuidado que as formações em Gestalt-Terapia têm com relação ao terapeuta que será o grande instrumento de intervenção no atendimento psicoterápico. Isso também confirma o respaldo teórico da Gestalt-Terapia sobre a relação terapêutica, a grande sustentação e manutenção do processo, tanto para o cliente como para o terapeuta que se vê com recursos para cuidar do indivíduo e de si próprio dado que o encontro terapêutico suscita angustias, sofrimentos e projeções.
Assim, a abordagem gestáltica oferece suporte para que o terapeuta utilize a energia mobilizada no encontro a favor do cliente, ou melhor, do sistema, já que estamos falando não só do cliente, mas também do terapeuta e das relações em torno deste. Polster & Polster em Gestalt-Terapia Integrada explicam de forma muito elucidativa estas colocações: “Os sistemas sensoriais e motores do individuo só podem funcionar no presente, e é da perspectiva dessas funções que a experiência presente pode ser palpável e viva”. (Polster & Polster, 2001 pág. 26).
É através desta perspectiva relacional e sensorial que o gestalt-terapeuta sustenta sua atuação e visão diante do indivíduo ou da família. Perspectiva essa que as outras abordagens não oferecem fazendo com que busquem na Gestalt-Terapia suporte para um atendimento confortável e autêntico. Ainda em Polster & Polster encontramos:
“Quando o terapeuta entra em si mesmo, não está apenas tornando disponível ao paciente algo que já existe, mas está também auxiliando a ocorrência de novas experiências, baseadas em si mesmo e também no paciente. Isto é, ele se torna não só alguém que responde e que dá feedback, mas também um participante artístico na criação de uma nova vida” (Polster, 2001 p.38).

Observamos, dentre os gestalt-terapeutas, que uma boa fatia de nossa amostra buscou se aproximar da Terapia Familiar Sistêmica na tentativa de estabelecer uma interlocução (uma troca, ou diálogo) com os recursos desta abordagem que pudessem enriquecer e ampliar a atuação dos mesmos. Historicamente, temos a Gestalt-Terapia como uma teoria voltada para o desenvolvimento da singularidade e das potencialidades individuais. Temos até então, uma prática que privilegia o autoconhecimento individual não no sentido reducionista, mas sim focada na expansão da consciência criativa. Mas é deste ponto que partimos para pontuar uma das diferenças entre a Gestalt-Terapia e a Terapia Familiar Sistêmica que, no entanto, ao invés de afastá-las as aproxima. O contraponto é que a visão sistêmica tem um olhar mais amplo dos sistemas que influenciam o indivíduo. Seu foco está direcionado para o entorno do sistema em desequilíbrio, incluindo o terapeuta que está ali atuando, numa tentativa de restaurar a comunicação e a convivência saudável e satisfatória entre os membros da família de maneira inclusiva e menos individualista. É neste momento, que começa a acontecer um certo intercâmbio entre as características marcantes dessas duas teorias.
Outros conceitos estreitam ainda mais o relacionamento entre essas abordagens, como o conceito gestáltico de fronteiras de contato, sinalizando cada vez mais que a mistura de terapeutas familiares sistêmicos com Gestalt-Terapia e vice-versa é, não só possível, como capaz de gerar diversos ganhos ao atendimento psicoterápico. O que não descaracteriza, de forma alguma, nenhuma das duas abordagens.


5. Perspectivas da Terapia Familiar na Gestalt-Terapia

Percebemos no cenário atual da Gestalt-Terapia, que a atuação familiar ainda está encontrando força teórica e prática e, principalmente, buscando uma identidade para se apresentar e se tornar reconhecida e validada pelo meio acadêmico. Na busca pelo delineamento do contorno desta abordagem nos esbarramos com a mescla de técnicas, recursos, instrumentos e metodologias importadas de outras abordagens. Vimos esta iniciativa como positiva, pois sua finalidade, como defenderam inúmeras vezes nossos entrevistados, é a ampliação e atualização da prática gestáltica que não necessariamente precisa ficar engessada em seus próprios conceitos. Isso não significa que não devamos nos preocupar com o estabelecimento de alguns modelos de atuação, como cita Márcia Estarque com relação às perspectivas da Terapia Familiar Gestáltica: “Temos muito o que trabalhar, muito a sistematizar sim” (Márcia Estarque)
Em todo este percurso que vimos descrevendo ao longo do trabalho, nos chamou atenção a crítica e autocrítica dos gestalt-terapeutas à parca produção teórica de seu grupo, comparado a outras abordagens, como a Psicanálise, a Terapia Cognitivo-Comportamental e a própria Teoria Sistêmica, a qual, em certo momento, foi procurada por gestalt-terapeutas em função do escasso número de livros de terapia familiar publicados e traduzidos para o português.
“... nós Gestalt-terapeutas que começamos a atender famílias, a gente começou a estudar coisas que não a Gestalt, e daí, a partir da nossa experiência a gente foi fazendo um estilo mais Gestalt de Terapia de Família...” (Heloisa Rodrigues)

“Só tinha literatura de sistêmica não tinha uma literatura de Gestalt-Terapia com famílias, não traduzida pelo menos” (Sandra Salomão).

Alguns de nossos entrevistados, acompanhados por um sem fim de gestalt-terapeutas, atribuem essa pequena produção à ênfase dada à prática e à conseqüente diminuição do investimento na produção teórica. Isso faz com que apenas um pequeno grupo se destaque na missão de contribuir e desenvolver as idéias da Terapia Familiar Gestáltica no Rio de Janeiro.
Para nós, também é importante sinalizar, que por estar ainda em desenvolvimento, essa atuação se vê carente de meios que estimulem sua produção teórica. Sem dúvida, à medida que se alcança uma autonomização novas demandas de produção passam a ser exigidas; seja através das possibilidades cada vez maiores de exposição desta produção, em encontros, congressos e afins; ou através do ingresso de um número crescente de gestalt-terapeutas com atuação em famílias em programas de pesquisa, como mestrados, doutorados e pós-graduações em geral, os quais, por si só, geram uma produção contínua. Um de nossos entrevistados comenta: “... fui fazer um mestrado e na época era uma das primeiras dissertações que tinham a ver com a Gestalt-Terapia” (Sergio Garbati Gorestin).
Outro ponto muito citado entre os entrevistados foi a necessidade de se criar novas formas de visibilidade para a produção dos gestalt-terapeutas sendo algo notoriamente destacado entre todos os terapeutas entrevistados, a pequena representatividade dos mesmos, principalmente nos congressos de Terapia Familiar. Entretanto todos os entrevistados avaliam que muito temos a mostrar.
Avaliando as características nos relatos dos entrevistados um outro ponto se destaca. Trata-se da ênfase nas intervenções em famílias na reconstrução da capacidade criativa do sistema familiar, através de recursos físicos como, por exemplo, cordas, música, recortes do dia-a-dia, bonecos. A herança gestáltica doada para a Terapia Familiar parece estar, em parte, no valor que se dá à criatividade que, ao contrário de ser anulada, acaba por se ampliar, no momento em que partimos do indivíduo e nos voltamos para o sistema. Além disso, essa herança contém ainda uma preocupação com o reconhecimento e validação dos vínculos afetivos, onde não só os consangüíneos, mas também os agregados por tempo de convívio, tornam-se familiares e são incluídos no sistema e no setting terapêutico.


6. Considerações Finais

A Gestalt-Terapia é definida como uma filosofia de vida e não uma técnica rígida com conceitos duros e fechados ou que se utiliza de formatos impermeáveis e inflexíveis. A sensibilidade terapêutica da gestalt acompanha os movimentos da sociedade e a evolução do homem segundo seus paradigmas e necessidades. No início do percurso da Gestalt-Terapia a época era de extrema valorização da liberdade individual voltada, especialmente, para o sistema interno do cliente, para sua auto-regulação individual e para o despertar do potencial criativo. Neste contexto, Fritz não via nenhuma semelhança e correspondência entre o modelo sistêmico da época e a Gestalt-Terapia. No Gestalt-Terapia, livro iniciado pelo manuscrito de Perls e desenvolvido por Paul Goodman e Ralph Hefferline em 1970, é explicitamente colocada uma incompatibilidade inicial entre Gestalt-Terapia e cibernética, neste momento, a de primeira ordem:
“As teorias da cibernética, dianética e do orgone serão pouco ou não discutidas(...). Consideramos que essas teorias são, na melhor das hipóteses, meias verdades, já que tratam o organismo em separado e não em contato criativo com o ambiente.(...)mas enquanto os robôs de wiener não crescerem e se propagarem por conta própria, preferimos explicar suas máquinas pela função humana em vez de vice-versa”. (Perls, 1997, p.34)
Como a história transforma e aperfeiçoa os valores e a vida, no livro de Joseph Zinker, este afirma que os valores sistêmicos são compatíveis com a teoria da Gestalt, dado que as noções de sistemas e campos criam um quadro de referência para a leitura holística e dinâmica da Gestalt. Porém, ressalta que se Fritz estivesse vivo acharia a teoria de sistemas abstrata demais, partindo do princípio de que para a “Gestalt de Fritz” é necessário ser extremamente ativo e vivo. Comentando esta interface entre Gestalt-Terapia e a Teoria de Sistemas, Ponciano em O Processo Grupal (1994) afirma:
“O modelo organísmico da relação homem-mundo que subjaz à Gestalt-Terapia não é satisfatório, do ponto de vista conceitual, para abranger as inter-relações das múltiplas dimensões sistêmicas que estão em jogo. A teoria de Sistemas cujos inícios se situam na década de 20, mas que não foi explicitada antes dos anos 40, abre novas possibilidades de se pensar sistemicamente com maior nível de abstração de sistemas naturais, quer físicos ou biológicos.”(PONCIANO, 1994, p. 61)
Tal citação expõe uma contradição e uma grave crítica à base sistêmica da Gestalt-terapia, entretanto, se torna pertinente neste estudo por retratar uma tendência e visão de alguns gestalt-terapeutas sobre a relação da Gestalt-Terapia com a Terapia Sistêmica.
A Gestalt em seu percurso abriu espaços e criou flexibilidade para a acomodação de novos conceitos conforme o mundo foi evoluindo e se transformando, contudo, não alterou sua visão de homem e de mundo desde sua fundação até o momento presente. Com esta missão, a psicoterapia foi seguindo o caminho e acompanhando o movimento de vida das sociedades.
Assim, historicamente na década de 50, no pós-guerra, a idéia dominante era de libertação dos indivíduos e de que sua expressão física, sexual e intelectual fosse ativada. Para Fritz, neste momento a restauração da sociedade aconteceria através do resgate individual, o que refletia bem os anseios da localidade e do tempo que a Gestalt se originou. Até então, nas décadas de 60 e 70, o cenário científico no campo das ciências humanas e tecnológicas ainda é uma dinâmica de revisões e descobertas conceituais. Só nas décadas de 80 e 90 que os cientistas das teorias cibernéticas e dos Sistemas Gerais promoveram a expansão da Terapia Familiar Sistêmica. Desta época em diante, assistimos um crescimento da força do movimento sistêmico. Nesta mesma época muitos de nossos Gestalt-terapeutas, chamados de pioneiros, vão em busca de novas técnicas e ferramentas para a intervenção familiar.
Dos anos 90 em diante, especialmente no Brasil, a família brasileira começa a mudar seu perfil de organização muito em função da abertura econômica e política brasileira. Realidade que trouxe ao seio das famílias uma nova remodelação de seu sistema.
A Terapia Familiar Gestáltica nos anos 90 passou por um momento de validação e reconhecimento por parte dos próprios terapeutas em perceber que haviam personalizado uma maneira gestáltica de atender às famílias.
Sendo assim, atualmente se apresenta mais relacional e cuidadosa. A identidade dos terapeutas familiares gestálticos está mais perto desta perspectiva relacional que envolve confiança, disponibilidade, autenticidade e fé na restauração e equilíbrio das famílias. Em um momento que assistimos as famílias brasileiras recriando novas formas de convivência e de contratos, identificamos o surgimento de uma forma de atendimento mais contextualizada e disposta a restaurar a saúde de cada membro da família, respeitando sua singularidade, capacidade de criação e seu histórico transgeracional. Especialmente neste momento, em que os limites, a liberdade, o prazer e a violência urbana são temas que provocam e exigem uma rápida reorganização das famílias, sem esquecer o histórico descompasso entre as gerações de pais, filhos e avós que procuram a fórmula da comunicação perfeita, limpa, clara, hierárquica e justa.


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