ARTIGO
Dialogicidade e processo psicoterapêutico em Gestalt Terapia: Um relato de caso clínico.
Dialogicity and psychotherapeutic process in Gestalt Therapy: A clinical case report.
Ananias Queiroga Oliveira Filho * Braulino Nunes Vasconcelos**
USF - Universidade
São
Francisco -Bragança Paulista, são Paulo - Brasil.
UNICAMP - Universidade de Campinas - Campinas, São Paulo - Brasil.
RESUMO:
Relatar um caso clínico, penso eu, é sempre um tarefa árdua tendo em vista, à complexidade e a riqueza de uma vivência tão profunda, que é a de um processo de psicoterapia em Gestalt Terapia (GT). Cabe ressaltar que os relatos de casos clínicos são de grande relevância como maneira ilustrativa e pedagógica de apreensão do desenvolvimento de uma relação em setting terapêutico dentro de uma perspectiva dialógica com base em Gadamer. O objetivo primeiro deste artigo é evidenciar aspectos específicos de um caso, que possam enriquecer o debate e o desenvolvimento da GT em sua prática clínica. Usa-se aqui no relato o nome fictício de Tácita (Deusa romana do silêncio e da virtude), para a cliente atendida. Pode-se perceber, com base no processo psicoterapêutico de Tácita, o diálogo é a via pela qual a palavra ganha sentido na relação psicoterápica, por conseguinte para os participantes (GADAMER, 2004; PERLS, 1980).
Palavras chave: Gestalt Terapia, Diálogico, Gadamer, Psicoterapia.
ABSTRACT:
To report a case, I think, is always a difficult task in view, the complexity and richness of an experience so profound, is a process of psychotherapy Gestalt Therapy (GT). Note that the case reports are of great relevance as illustrative and pedagogical way of apprehending the development of a relationship in the therapeutic setting within a dialogical perspective based on Gadamer. The first objective of this article is to highlight specific aspects of a case that could enrich the debate and development of GT in their clinical practice. It is used here in reporting the fictitious name of Tacit (Roman goddess of silence and virtue), met for the client. Can be seen, based on the psychotherapeutic process of tacit, dialogue is the way in which the word makes sense in the psychotherapeutic relationship, therefore the participants (GADAMER, 2004; PERLS, 1980).
Keywords: Gestalt Therapy, Dialogic, Gadamer, Psychotherapy.
INTRODUÇÃO
Relatar um caso clínico, penso eu, é sempre um tarefa árdua e injusta, pois se torna inerente à impossibilidade de conseguir alcançar uma representação fiel à complexidade e a riqueza de uma vivência tão profunda, que é a de um processo de psicoterapia em Gestalt Terapia (GT).
Sendo ortodoxo pode-se até dizer que é antitético aos postulados fundamentais da GT, enquanto que o relato é um recorte formulado por um dos lados da relação, todavia faz-se relevante os relatos de casos clínicos como maneira ilustrativa e pedagógica de apreensão do desenvolvimento de uma relação em setting terapêutico. Destarte é mister ressaltar que não deve ser intuito ou motivação abranger a totalidade da psicoterapia, ademais, o objetivo primeiro é evidenciar aspectos específicos, que possam enriquecer o debate e o desenvolvimento da GT em sua prática clínica.
Tendo já exposto à limitação básica do presente trabalho, podemos começar a destacar alguns pontos relevantes de uma vivência de psicoterapia em GT. Não será intuito neste texto expor eventos ou conteúdos encadeados por uma lógica formal do Cronos (tempo estabelecido de forma impessoal), mas sim estabelecer a relação de momentos distintos experienciados na relação com ênfase em uma lógica do Kairós (lógica temporal baseada na percepção idiossincrática).
Assim relacionar tais experiências com aspectos teóricos, não buscando enquadrar a relação em algo externo, mas propiciar uma representação parcial daquela realidade singular explorando uma dimensão reduzida do seu todo. Para tanto far-se-á uso da base teórica e metodológica a abordagem dialógica do filosofo alemão Hans Georg Gadamer.
RELATO: ASPECTOS CLÍNICOS E TEÓRICOS
Usa-se aqui no relato o nome fictício de Tácita (Deusa romana do silêncio e da virtude), para a cliente atendida. Tácita é uma mulher 43 anos, professora do ensino médio em escola estadual (Formada em Letras), casada há 13 anos, com uma filha de 10 anos, mora junto com eles o pai de Tácita.
Ela foi criada por duas tias, irmãs do pai, e sempre soube quem era a mãe, mas teve pouco contato. Tácita sempre se refere à tia mais velha como mãinha, e à mais nova como tia. As duas faleceram. A mais nova em 2002 e a “mãinha” em 2006. Todos os dado aqui apresentados são aproximados, a fim de caracterizar de maneira satisfatória o contexto social e pessoal, mas preservando o sigilo, elemento base para a construção de uma relação pautada na confiança, estabelecendo assim a aliança terapêutica, condição inexorável para a psicoterapia em GT (SAFRA, 2006; POMPÉIA, 2004; ZINKER, 2001; WALLERSTEIN GOMES, 2001).
Tácita em primeiro momento destaca uma queixa clara “estou acima do peso e isso está me deixando nervosa e com autoestima baixa” (Transcrição não literal). Aqui vem à tona um detalhe ressaltado por vários autores como Robine (2003) e Andrade (2007), em situação à clínica não devemos desacreditar uma queixa inicial, por mais que haja indícios aparentes de contradição ou racionalização extrema. Posicionei-me na direção não de descrédito em relação à fala da cliente, mas de questioná-la em como era aquele sentimento.
Pois como Gadamer (2002) assente, qualidade da questão em sentido amplo não está em duvidar, e sim em abrir caminhos, assim como diz Cancelo (1996), a questão é verdade, pois verdade em psicoterapia é tudo aquilo que abre caminhos. Ao questionar Tácita, foram se abrindo caminhos para novos diálogos. Questionei como ela lidava com essa angústia, Tácita então trouxe à tona, que ela sentia falta de uma vida que já não tinha, era uma pessoa que gostava de conhecer e conversar com pessoas. Estava engessada, aqui se ressalve, a forma de comunicação de Tácita em nada tinha haver com o conteúdo. Sua forma de falar era sempre altiva e extrovertida.
A observação acima envolve um conceito fundamental da GT, o de awareness, ou seja, a consciência organísmica da intencionalidade (POLSTER; POLSTER, 2001). Quando se apresenta a fuga ou escapismo da noção do próprio self, encontra-se uma dissonância conflitante que pode gerar uma angústia extrema e imediata, ou um processo de deflexão constituído com base na cristalização de conteúdos e vivências (ANTONY, 2009; ROBINE, 2003; YONTEF, 1998).
Ao longo dos questionamentos insurge a figura marital, como impedimento para novos contatos e passeios tão valorizados por ela. Neste momento questiono como se sente em seu casamento. Ela enumera algumas adversidades, então problematizo como ela sente a felicidade. Surge aqui um dado relevante, ela pergunta “O que você acha que devo fazer?”. Questiono o que você acha que deve fazer? Ela retorna: “Você acha que devo me separar?”. Então coloco o que você acha que deve fazer, e ela mais uma vez: “não sei e você o que acha mesmo?”. Aqui intervenho perguntando se ela sempre espera dos outros a validação para a vida dela. Ela pensa um pouco, e responde que sim.
Questiono então como se sente em relação ao que ela quer. Ela não consegue elaborar os conteúdos de forma pessoal, sempre se explicando através de exemplos, muitas vezes sem relação com ela. Abro um parêntese aqui para destacar que as intervenções foram feitas em acordo com o momento do processo terapêutico, levando em consideração a função de cada um na relação dialógica estabelecida, evitando um retraimento ou afastamento (ANDRADE, 2007; FERREIRA, 2009; ZINKER, 2001).
Pois já alerta Gadamer sobre o ato de interpretar o outro: “aqui encontramo-nos permanentemente sob a ameaça de nos apropriarmos do outro na compreensão e, com isso, ignorar a sua alteridade”, (2004, p.396). Para evitar a concretização de tal ameaça questiona-se, para poder assim ser ao mesmo tempo disponível e possibilitando ao cliente a abertura ao que há de vir, bem como o lugar de condutor no processo de auto-compreensão.
Não cabe ao gestalt-terapeuta focalizar o caminho da relação em técnicas e experimentos, pois aí estará tendo uma postura como investigativa e policialesca de enfocar o “por quê?” Ainda segundo Perls (1977), o uso de técnica deve ser empregado em casos extremos, por se configurar em um “truque.” O autor ainda se refere à mediocridade dos profissionais, por fazerem uso demasiado de técnicas, o que acaba por paralisar o amadurecer do outro, por ser sabotado pela criação de muletas de fácil acesso.
Retomando aqui ao que há de mais relevante neste trabalho. Tácita retoma o processo dizendo que sempre tem uma dificuldade grande em negar qualquer pedido, mesmo que seja descabido, pois gera uma ansiedade profunda a possibilidade de desagradar o outro. O que deixa claro uma “deformidade” na sua fronteira de contato, pois os contatos deixam de se pautar na relação de afetação mutua, para se basear em uma hierarquização dos pólos. Perls já definia “Contato significa estar unido por meio da percepção, a alguém ou a algo fora de si mesmo.” (PERLS, 1973, p.38). No caso de Tácita a resultante da união com o outro é de submissão da sua intenção. O que configura per si um conteúdo a ser mais laborado na relação terapêutica.
Como relatado em todas as supervisões em que abordei a psicoterapia com Tácita, destaquei um elemento recorrente, a dificuldade para ela falar dela mesma, em termos subjetivos e de suas emoções, o que foi também frequentemente emergido e exposto na relação clínica.
Ela ressalta em dado momento a dificuldade em também se colocar em relação às suas insatisfações com os outros, o medo de desagradar é muito forte. Tomo aqui o conceito de figura e fundo, para poder evidenciar que em uma visão da GT toda pessoa deve ser em processo dinâmico figura e fundo na vida, pois cristalizar-se em uma posição estará perdendo ou abrindo mão de sua condição ser sempre estando a viver em possibilidades (PERLS, 1980; ROBINE, 2003; GADAMER, 2004).
Ao cristalizar-se como fundo, Tácita explica que mesmo quando está em momento de extrema felicidade, é desencadeada a angústia pelo receio do fim da felicidade. Ela apresenta freqüente comparação com o que já foi e o que pode vir a ser, com o quem é hoje, sempre denotando mais sentido crítico com o ser do hoje. Aqui vemos uma clara visão depreciativa do campo perceptual.
Usando aqui o entendimento de Rodrigues de que: “Todo evento acontece em um campo espaço/temporal, onde várias forças atuam simultaneamente, de maneira à – no presente – configurarem a realidade” (2000, p. 48). Percebe-se que os vetores perceptivos em Tácita, estão produzindo uma resultante onde fica subjugada a carga do presente, este como base ou estado único de possibilidade concreta de mudança.
Os atendimentos de Tácita sofreram freqüentes alterações de horário, seja por motivação minha, ou dela. Aqui se deixa claro que apesar de não ter afetado a aliança e o vínculo construídos, essa não é uma condição que favoreça a psicoterapia, pois Perls (1977; 1980; 1982), já assevera que o cliente é premissa e norte da terapia e em senso, não pode ficar a disposição do terapeuta.
Voltando à Tácita, tendo em vista uma auto-crítica em relação ao meu trabalho e passividade da cliente com a situação, a questionei se não a incomodava tais alterações de horário. Prontamente ela disse que não, pois sabia que eu tinha motivos sérios, indaguei novamente, independente do motivo justo ou não, se isso não a deixava chateada. E então surgiram as palavras “É porque eu penso muitos nos outros e esqueço de mim”. Vou aqui fazer uso pontual de uma lógica do Cronos, para melhor aclarar o que vem a seguir.
As palavras acima foram proferidas na penúltima sessão, onde ela se deu conta, não de imediato, mas quando questionei se ela achou que havia falado dela, ela disse que sim, e continuei “Você precisou ouvir de alguém para confirmar o que você pensou sobre você?” Prontamente ela disse que não, então problematizei: “A resposta que você tanto espera dos outros, veio de quem?” Um pouco surpresa e com um leve sorriso de alegria, disse ela: “De mim”.
Uma semana após, no atendimento seguinte, ela disse haver pensado muito e que tinham sido dias de muita reflexão, e ela queria contar um acontecimento. E diga-se entre inicio do problema, da tomada de conhecimento, ela e a família não manifestarem em como resolver, em pressão externa para resolução, a decisão de resolver o problema, mesmo que envolva abrir mão de algo querido, e a interferência de marido e irmãs se colocando contra, já se passavam cinco longos anos. O contexto atual é: ela abriu de algo de valor material e sentimental, mas se curvou às falas dos outros, ela abriu mão de resolver o problema também.
Tácita perdeu duplamente, contudo, ao contar o que havia acontecido ela se disse resoluta, isso causa angustia há 02 anos, “Porque sei o que quero fazer e o que é certo, mas não fiz, por causa dos outros”. E significou em frase íntima a si mesma: “Estou aliviada e feliz”. Tácita cumpriu mesmo que de forma inicial uma jornada do silêncio de sobre si a virtude de falar de si, por si mesma, sem recursos exemplificados estáticos.
Acima é retratado um momento, onde vou ousar discordar de Hidegger e seus seguidores , não de desvelamento, ademais, ocorreu à aceitação da lembrança, nos dizeres de Gadamer aconteceu o desesquecimento, pois velar diz de encobrir ou de proteger. O que vejo aqui é uma forma de esquecimento por não aceitação do conteúdo, desesquecer, é aceitar e se apropriar, deixando de ser propriedade cristalizada.
Tácita ao aceitar o que emerge, a sua submissão ao outro (papel cristalizado de fundo), deixa o caminho aberto para que ocorra um processo que denomino figuração, o conteúdo se movimenta dinamicamente para uma posição de figura, este processo não é alheio ao ser, pelo contrário é ele da forma mais clara que pode transparecer o ser em sua intenção presentificada.
Em Tácita essa ação se verte em torná-la figura de si mesma, interessante perceber que não houve imposição do interprete, que não se apossou de uma verdade, nem aceitou passivamente a verdade da cliente, foi antes de tudo um provocador (SAFRA, 2006). Que como brilhantemente afirma o nada psicólogo, Popper (1999) “Posso estar totalmente equivocado e você estar com a razão, mas juntos temos mais chances de encontrar a verdade”.
CONCLUSÃO
Não se pretendeu aqui elaborar ou delinear uma história de cura, ademais, foi o cerne principal deste trabalho foi de relatar como o processo psicoterápico ocorre envolvido na evolução da relação entre terapeuta e cliente. O foco é o caminho, ou seja, como essa relação vai se constituindo e afetando a ambos participantes.
Sendo o diálogo é a via pela qual a palavra ganha sentido na relação psicoterápica e por conseguinte para os participantes (GADAMER, 2004; PERLS, 1980). Acaba por ser função fundamental do gestalt-terapeuta facilitar a construção de um ambiente dialógico pautado e focado no conteúdo do cliente.
Neste sentido pode-se perceber, no caso de Tácita, o quão espaço psicoterápico foi se constituindo um ambiente de diálogo, sempre visando à emergência de uma verdade pertinente a relação psicoterápica, que funcionou como um vetor para o desenvolvimento de Tácita, trazendo por ela ao um estado awareness.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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Endereço para correspondência:
Ananias Queiroga Oliveira Filho
Endereço eletrônico: ananiasqueiroga@bol.com.br
Braulino Nunes Vasconcelos
Endereço eletrônico: aqof.1979@gmail.com
Recebido em: 14/04/2014
Aprovado em: 08/09/2014
NOTAS
*Psicólogo,
Mestre em Psicologia Cognitiva - Universidade Federal de Pernambuco - UFPE;
Doutorando em Avaliação Psicológica pela Universidade São
Francisco - USF, Bragança Paulista, São Paulo -Brasil.
**Graduado em Comunicação
Social pela Universidade Federal de Alagoas - UFA;
atualmente é aluno especial na Universidade de Campinas - UNICAMP.