ARTIGO
Contribuições gestálticas no trabalho com portadores de transtorno mental através da Oficina de Teatro e imagem
Gestalt contribuitions in working with the mentally ill through teh ]heater Workshop and image
Ana Carolina Pacheco de Paula*
IGT-Instituto de Gestalt Terapia e Atendimento Familiar - Rio de Janeiro, Brasil
RESUMO
O objetivo deste trabalho é contribuir teoricamente com estudos e práticas relacionados à atuação do gestalt-terapeuta com grupos terapêuticos, cujo público-alvo são portadores de transtorno mental, além de verificar as contribuições do uso do teatro e da imagem como ferramentas terapêuticas. Partindo da revisão de literatura, utilizando textos com o embasamento gestáltico que discursam sobre saúde mental e grupos terapêuticos, somado a experiência prática e teórica da autora no trabalho com portadores de transtorno mental, em uma oficina de teatro e imagem, de um CAPS I na Costa Verde do Rio de Janeiro. Neste texto contextualizo o processo de formação e desenvolvimento desta oficina, reservando um espaço para reflexão acerca dos conceitos gestálticos emergentes na mesma. Os resultados apontam o uso do teatro e da imagem como um experimento que mostra-se como um campo fértil para importantes mudanças na vida dos participantes e uma interessante ferramenta de inserção social e familiar dos mesmos. Além de um convite ao terapeuta à utilizar seu ajustamento criativo e ampliar suas possibilidades de atuação dentro do CAPS.
Palavras-chave: CAPS; Gestalt-terapia; teatro; imagem; oficina terapêutica.
ABSTRACT
The objective of this work is theoretically contribute to studies and practices related to the role of gestalt therapist with therapeutic groups , whose target audience are the mentally ill and to verify the contributions of using theater and image as therapeutic tools . Starting from the literature review , using texts with Gestalt basement ranters on mental health and therapeutic groups , coupled with practical and theoretical experience of the author in working with the mentally ill , in a theater workshop and image of I in CAPS Green coast of Rio de Janeiro . This text contextualizes the process of formation and development of this workshop , reserving a space for reflection on the emerging Gestalt concepts in it. The results indicate the use of theater and image as an experiment that shows up as a fertile field for major changes in the lives of participants and an interesting tool for social and family relationships of same . In addition to an invitation to the therapist to use their creative adjustment and expand their possibilities for action within the CAPS .
Keywords : CAPS , Gestalt therapy, theater , image, therapeutic workshop .
INTRODUÇÃO
O presente trabalho monográfico foi construído durante meu curso de especialização em Psicologia Clínica (Gestalt-Terapia, Indivíduo, Grupo e Família). Nasceu da experiência prática e teórica da autora com portadores de transtorno mental, somado ao interesse nos desafios atuais da saúde pública, em especial a temas relacionados à promoção da saúde, observando-os sob uma perspectiva gestáltica.
Apesar dos mais de trinta anos da reforma psiquiátrica no Brasil, mostra-se um desafio constante para a saúde pública, a inserção social, familiar e cultural dos portadores de transtorno mental. Alguns autores, profissionais de saúde e membros da sociedade em geral, não acreditam na eficácia da reforma psiquiátrica, alguns a vêem como uma utopia ou algo cuja responsabilidade está restrita aos profissionais de saúde mental. Além do pré-conceito e exclusão social historicamente sofridos por estes clientes.
Tendo em vista a reforma psiquiátrica1 vigente no Brasil, regulamentada em abril de 2001 através da Lei Federal de Saúde Mental n.10.216, proponho uma reflexão sobre a inserção do olhar gestáltico no campo de atenção psicossocial e a contribuição dos gestaltistas na busca do preenchimento de uma lacuna teórica. Para tal, partiremos de contribuições teóricas e de experiências práticas em oficinas terapêuticas que funcionam nesse contexto e utilizam o teatro e a imagem como instrumento facilitador.
“A visão de homem e de mundo da Gestalt-terapia, bem como sua forma de compreensão diagnóstica, servem como ferramentas para a discussão em torno deste tema no campo da Atenção Psicossocial. Entender o homem como um ser cuja vivência singular é construída e re-construída a partir das relações que estabelece com o campo, em um processo ininterrupto de busca de auto-regulação e crescimento, nos permite uma visão mais ampla de suas possibilidades de existência.” (PEREIRA,2008)
Na última década houve um visível aumento de gestaltistas engajados na luta antimanicomial, o que podemos observar quanto a produção de textos nos congressos de Saúde Mental e de Gestalt-terapia. Os pressupostos teóricos da Gestalt-terapia estão sendo utilizados como instrumento de inclusão social e familiar para portadores de transtorno mental, com histórico de internações, sofrimento e discriminação. Porém o embasamento teórico para atuação dos gestaltistas em instituições comprometidas com a desinstitucionalização da loucura é algo que está em construção neste momento através da atuação de profissionais de saúde, familiares e usuários de serviços de saúde mental.
Torna-se relevante essa construção teórica, visando uma contribuição sobre o trabalho com grupos terapêuticos com portadores de transtorno mental, utilizando o teatro e a imagem, beneficiando psicólogos que atuam nesta área, seus clientes, familiares e pessoas interessadas por este tema.
JUSTIFICATIVA
Na última década podemos observar que apesar de não termos alcançado efetivamente todos os objetivos da reforma psiquiátrica brasileira, a luta antimanicomial tem conquistado novos militantes e parceiros. Deixando de ser uma luta apenas de familiares, portadores de transtorno mental e profissionais de saúde, ampliando-se para uma luta social, visando uma transformação social.
“A clínica gestáltica tem na noção de saúde seu primordial eixo norteador. É a crença nas potencialidades dos indivíduos e no seu direcionamento para a autorregulação que – via de regra – orienta as ações e planos terapêuticos.” (CARVALHO; COSTA,2010)
Observando os portadores de transtorno mental, crendo e valorizando suas potencialidades, temos um olhar diferenciado sobre os mesmos, que gera mudanças significativas na nossa atuação profissional na área de saúde mental. Com estes “óculos” podemos construir planos terapêuticos, também chamados projetos terapêuticos, mais assertivos e coerentes com as características pessoais de cada indivíduo, favorecendo assim o estabelecimento de vínculos terapêuticos e comprometimento desses clientes com seu tratamento.
Considerando que estamos em um mundo em transformação, a gestalt-terapia apresenta-se como um excelente referencial teórico para embasar práticas de inclusão social que visam uma mudança cultural, de uma postura de exclusão, preconceito e desvalorização da qual há décadas os portadores de transtorno mental são submetidos. Os grupos terapêuticos que visam a promoção da saúde e da qualidade de vida de portadores de transtorno mental são uma ferramenta importante para inserção social, familiar e cultural desses clientes e para alcançarmos uma verdadeira desinstitucionalização desses clientes.
Durante minha graduação em psicologia tive oportunidade de apresentar uma roda de conversa sobre o trabalho do psicólogo com crianças e adolescentes em situação de abrigo, no ano de 2008, em um Fórum Internacional de Saúde Mental, Saúde Coletiva e Direitos Humanos. Neste evento tive meu primeiro contato com profissionais e usuários da rede de saúde mental, sendo que a partir deste momento busquei me aproximar deste tema. Em menos de um ano estava participando como voluntária de uma oficina terapêutica que utilizava o teatro e mitos no trabalho com portadores de transtorno mental em um CAPS II2 . Essa experiência resultou na elaboração e apresentação de um trabalho sobre este tema no I Congresso Brasileiro de Saúde Mental (2008). Após o término da graduação em 2008, iniciei meu trabalho como psicóloga em um CAPS I e a primeira oficina que tive oportunidade de coordenar foi a oficina de teatro, pela qual me apaixonei enquanto acadêmica, e desde 2009 estou tendo a enriquecedora oportunidade de utilizá-la como ferramenta de tratamento de portadores de transtorno mental e usuários de álcool e outras drogas. Essa oficina tem tido importantes transformações de 2009 até a presente data. Essas transformações e algumas experiências advindas deste processo me motivaram a escrever sobre este tema e serão descritas neste trabalho monográfico.
OBJETIVO
OBJETIVO GERAL:
O objetivo deste trabalho é contribuir teoricamente com discussões, estudos e práticas relacionados a grupos terapêuticos, cujo público-alvo são portadores de transtorno mental, e compartilhar a experiência da utilização do teatro e da imagem no trabalho com grupos.
OBJETIVO ESPECÍFICO:
Busco verificar quais as contribuições do uso do teatro e da imagem, segundo um referencial da gestalt-terapia, proporcionam ao trabalho com grupos terapêuticos cujo público-alvo são portadores de transtorno mental.
METODOLOGIA
Como metodologia foi utilizado uma revisão de literatura sobre o tema, utilizando textos de Gestalt-terapeutas, sugeridos na bibliografia básica do curso de especialização em psicologia clínica realizado no IGT3, artigos científicos publicados no site Scielo e na Revista IGT na Rede, tendo como palavras-chave gestalt-terapia, saúde mental e grupos terapêuticos, e livros lançados no Congresso Estadual de Gestalt-terapia no Rio de Janeiro em 2012. Somado ao relato da experiência prática da autora no trabalho com grupos terapêuticos de 2009 até apresente data, também chamados de oficinas terapêuticas, em um CAPS I da Costa verde do Rio de janeiro. Ainda foram utilizados registros desta prática ao longo desses anos, feitos pela autora em um livro de diário de bordo da oficina de teatro e os vídeos que foram criados ao longo desta oficina.
O referencial teórico que embasa este trabalho é a Gestalt-terapia,
por ser a abordagem escolhida pela autora para sua prática, e ser a abordagem
da qual a mesma está especializando-se no IGT. Abordarei no decorrer
deste texto pressupostos teóricos desta abordagem relacionados ao tema
escolhido, em especial os conceitos de campo, experimento, ajustamento criativo,
self e fronteira de contato, os quais serão abordados mais detalhadamente
no capítulo II.
Pretendo no capítulo I contar quando e como começou meu interesse pelo teatro e pelo uso da imagem no grupo, falar sobre minha experiência como acadêmica e como profissional e dar uma contextualização do processo de formação e desenvolvimento da oficina. O capítulo II é um espaço reservado para reflexões, acerca dos pressupostos gestalticos que pautam a prática da autora neste grupo. Concluindo este trabalho com as reflexões que fiz ao longo do processo de prática no grupo e da elaboração desta monografia.
I - EXPERIÊNCIA DA UTILIZAÇÃO DO TEATRO E DA IMAGEM NAS OFICINAS TERAPÊUTICAS
O meu interesse pela área de Saúde Mental surgiu durante a graduação em psicologia, quando fazia estágio em um Abrigo para crianças e adolescentes e tive a oportunidade de apresentar um trabalho sobre minha experiência como estagiária no I Fórum Internacional de Saúde Mental, Saúde Coletiva e Direitos Humanos na UERJ em 2008. Este foi o primeiro de muitos eventos de saúde mental dos quais participei, porém posso afirmar que este foi o momento em que me apaixonei pela área de saúde mental. Participar deste evento foi um divisor de águas que estimulou meu desejo em conhecer mais sobre esta área.
Após este evento acompanhei como voluntária o trabalho de uma Oficina de Teatro em um CAPS II, onde uma amiga de classe estagiava. Meu interesse pessoal pelas artes cênicas, somado a sede em conhecer mais sobre a área de saúde mental, culminou em mais um trabalho apresentado em congresso, dessa vez descrevendo os ganhos terapêuticos observados no uso de teatro e mitos em uma oficina com usuários de um CAPS II, no I Congresso Brasileiro de Saúde Mental na UFSC, também em 2008. Neste congresso conheci o trabalho de um casal de gestalt-terapeutas, Marcos e Rosane Müller-Granzotto, que discutiam, de forma interessante, sobre a atuação dos gestaltistas nos chamados “ajustamentos psicóticos” ou “ajustamentos de busca”.
“O ajustamento psicótico não é uma doença. Ele também é um ajustamento criador, para usar a letra de Jean-Marie Robine. É uma forma de viver face às condições de campo que a ele se impõem e que tem relação com um funcionamento atípico da função id. Nos ajustamentos psicóticos, o self inventa - junto aos dados na fronteira de contato - a história que ele não pode reter ou espontaneamente arranjar. Quando bem sucedida, essa invenção vem substituir os excitamentos que, diante do dado, i) ou não se apresentaram, ii) ou se apresentaram de modo falhado ou, ainda, iii) se apresentaram de modo desarticulado.” (MÜLLER-GRANZOTTO; MÜLLER-GRANZOTTO,2008)
Retornei deste último congresso, decidida a estudar os pressupostos gestálticos, que já me atraiam, como embasamento teórico para atuação na clínica, verificando sua relação e contribuição no trabalho com portadores de transtornos mentais.
Após concluir a graduação, um dos meus primeiros empregos como psicóloga foi em um CAPS I, onde atuo até a presente data. Neste, fui convidada a planejar uma oficina terapêutica para trabalhar com os usuários, pois no momento em que entrei estavam reestruturando as oficinas já oferecidas e criando novas oficinas. Não tive dúvidas em optar pelo trabalho do uso do teatro como ferramenta terapêutica, que já me encantava. Com base na minha experiência anterior como acadêmica, e levando em consideração os interesses pessoais dos usuários deste CAPS, estruturei uma oficina utilizando contos e teatro como ferramentas terapêuticas.
Nesta primeira fase da oficina de teatro convidava os usuários do CAPS, a utilizar contos e histórias reais, ou criadas por eles, alucinadas ou não, como instrumento desta oficina. As histórias compartilhadas pelos usuários eram transformadas em peças teatrais representadas pelos mesmos. Neste contexto, eles tinham a oportunidade de fazer valer seu modo de ver o mundo de uma forma visível para todos, transformando muitas vezes criações pessoais em uma criação compartilhada e observada através do teatro. Cada membro desta oficina participa ativamente desta construção, seja como ator, como figurinista ou apenas assistindo a peça e dando feedback4 sobre suas percepções ao assistir a mesma e se de fato ela expressava ou não a história que foi relatada. Em geral, o usuário que contava a história ficava na posição de diretor, orientando os demais sobre a forma que a mesma deveria ser interpretada, buscando aproximar a encenação do imaginário daquele sujeito. O casal Marcos e Rosane Müller-Granzotto (2012) relatam: “O êxito nos processos de aprendizagem, de expressão artística e de inserção laboral é prova da capacidade desses sujeitos para participar da inteligência social.”
Pude verificar que a possibilidade de expressar através do teatro os sentimentos e pensamentos, além da oportunidade de compartilhar suas vivências através das artes cênicas, mostrava-se como uma ferramenta facilitadora de inserção social para os mesmos; observei que através do teatro alguns usuários ampliaram sua rede social, conseguiram falar de temas e sentimentos que não conseguiam falar em outras intervenções terapêuticas, como atendimentos individuais ou outros grupos terapêuticos, por exemplo.
Inicialmente as peças construídas na oficina eram apresentadas somente para os usuários que participavam da mesma. Depois de um tempo os usuários solicitaram que as apresentações fossem ampliadas e os técnicos fossem convidados a assisti-las. No dia desta oficina toda a equipe transformava-se em platéia para o nosso grupo de “atores” que atuavam contando relatos de sua própria vida ou da vida de seus companheiros de grupo.
Ainda em 2009, o grupo começou a criar algumas peças temáticas, falando, por exemplo, sobre o natal. Estas peças começaram a ser apresentadas em algumas festas da instituição, onde já não haviam apenas usuários e técnicos, mas que são abertas aos familiares e a sociedade em geral. Na apresentação de natal do ano de 2009, filmamos depoimentos dos usuários sobre como estavam se sentindo em relação à apresentação e posteriormente utilizamos estes vídeos na oficina e o efeito disso me surpreendeu. Ao ver sua imagem nos vídeos, os usuários experimentaram uma percepção diferente sobre sua postura e sua forma de se colocar no mundo. O efeito do uso do vídeo foi tão positivo que escolhi utilizá-lo não apenas em apresentações em datas festivas, mas inseri-lo como instrumento terapêutico nesta oficina. Neste contexto a oficina que inicialmente recebeu o nome de Oficina de contos e teatro, em 2010 transformou-se em Oficina de teatro e imagem.
Inicialmente a oficina de teatro se dava com os mesmos moldes anteriores, porém durante a apresentação teatral eu filmava com minha câmera fotográfica e posteriormente, apresentava para eles em meu notebook. Fez-se necessário utilizar minha máquina e meu computador pessoal nessa fase inicial do uso da imagem nesta oficina, mesmo não tendo o melhor áudio e a projeção da imagem na tela do computador ser pequena, para o número de participantes da mesma (de 10 a 18 usuários), pois a instituição não possuía esses equipamentos. Foi notório o quanto a inserção do uso da imagem, mudou a cara desta oficina e a vivência dos usuários neste processo.
Em 2011, ainda utilizando os mesmos recursos áudios visuais, a instituição começou a organizar-se para comemoração do aniversário da mesma, que seria em um espaço cedido por um resort localizado no mesmo município. Pensando nisso os usuários propuseram contar, através de uma encenação, o olhar dos usuários sobre o atendimento no CAPS. Observando que em cada ensaio a peça se configurava de uma forma diferente, eles pensaram a respeito e sugeriram que ao invés de interpretá-la no dia do evento de aniversário do CAPS, ela fosse filmada e apresentada como um “curta metragem” produzido nesta oficina. Motivada com entusiasmo dos usuários, conversei com a equipe técnica do CAPS e possibilitamos o uso da estrutura da instituição como um grande cenário, onde os usuários transformaram-se no personagem que desejavam interpretar, dentre eles técnicos e usuários da própria instituição ou baseados em experiências anteriores em outros serviços de saúde mental. Eles criaram um roteiro e escolheram os personagens que seriam interpretados, através de dinâmicas realizadas nesta oficina. Dedicamos duas tardes para gravação de nosso primeiro “curta metragem”, onde a instituição foi o cenário que possibilitou uma ampliação da vivência dos usuários no serviço de saúde mental.
No dia do evento, apresentou-se a construção feita por eles nesta oficina, para um público maior do que o rotineiro, pois neste encontro estavam usuários e técnicos deste e de outros Centros de Atenção Psicossocial, representantes da sociedade e das secretarias municipais, como por exemplo, de saúde, educação, segurança, dentre outras. Ver sua construção em uma projeção semelhante a do cinema, foi uma experiência inesquecível para eles, abriu novas possibilidades de inserção social e de legitimar a opinião e expressão dos mesmos perante a sociedade e família.
Após este evento recebemos em nosso CAPS uma câmera fotográfica com um áudio e imagem melhor do que a minha câmera, que até esse momento estava sendo utilizada, e um aparelho de televisão com entrada USB, que melhoraram a qualidade da produção audiovisual desta oficina. Além de possibilitar aos usuários uma melhor visualização dos vídeos produzidos nesta e em outras oficinas e em eventos do CAPS.
Lembro-me de que em uma das assembléias5 realizadas no CAPS, um dos familiares relatou que sua irmã havia lhe dito que toda sexta-feira (dia em que realizo esta oficina no CAPS), estava se vendo na televisão e que ela estava preocupada achando que ela estava tendo algum tipo de delírio ou alucinação persistente. Ao assistir um dos vídeos desta oficina durante a assembléia e observar a atuação de sua irmã na peça, compreendeu o que sua irmã disse e afirmou: “Não é que é verdade?! Eu nunca pensei que ela fosse capaz de fazer isso”. Era notório que algo estava mudando na forma dos usuários se colocarem no mundo e que isso estava sendo refletido na forma em que eram percebidos pela sociedade e por seus familiares.
Esta oficina está em constante transformação e atualização, de acordo com o que é trago pelos usuários. Inicialmente era realizada no período matutino, devido à necessidade da oficina de Geração de Renda realizada no mesmo dia, ser feita no período matutino, alteramos o horário da mesma para o período da tarde. Percebeu-se que neste dia o número de usuários que escolhia permanecer no CAPS para participar da oficina do período da tarde, era maior que nos outros dias e que a mudança de horário não prejudicou a frequência dos usuários nesta oficina, mesmo com o “costume” que alguns usuários tinham de só participarem das oficinas matutinas em outros dias da semana.
No início de 2012 produzimos um “documentário” baseado em discussões dos usuários sobre a Luta Antimanicomial, comemorada no dia 18 de maio. Neste documentário eles escolheram relatar suas experiências pessoais de internação em hospitais psiquiátricos, discriminação e dificuldades de inserção social e familiar vividas ou observadas, como um convite à reflexão sobre a importância desta luta, apresentando o olhar deles sobre este tema. Neste vídeo eles também entrevistaram alguns técnicos, visando verificar o olhar dos mesmos sobre esta questão.
No dia 18 de maio de 2012 a equipe do CAPS realizou a I Mostra de Saúde mental, saúde cultura e inserção social. Montou tendas com o intuito de conscientizar a comunidade sobre o tema e apresentar o trabalho realizado nas diversas oficinas terapêuticas. Durante o evento além de apresentarem o documentário em frente a uma das principais praças públicas da cidade - embora com problemas técnicos para visualização do mesmo - houve uma tenda da Oficina de Teatro onde três usuários, escolhidos em um dos encontros da oficina através de eleição entre os participantes, foram designados a entrevistar alguns participantes do evento. Esta atividade visava checar com o público da Mostra, como estavam compreendendo as informações trazidas e o que estavam achando sobre este evento. Posteriormente essas entrevistas também foram utilizadas como material terapêutico. Muitos se emocionaram ao ver o resultado desses vídeos e a compreensão da comunidade sobre os mesmos. Esta oficina segue em andamento até a presente data, ajustando-se criativamente as mudanças institucionais e sugeridas pelos participantes deste grupo. No próximo capítulo estarei ampliando a reflexão sobre a oficina, relacionando alguns conceitos gestálticos com a prática da autora nesta oficina.
II - REFLEXÕES ACERCA DA PRÁTICA GESTÁLTICA
“Não há loucura quando os loucos já confundem os normais”
Trecho da música NEÓFITO da Banda Resgate
O trabalho com grupos mostra-se como uma excelente oportunidade de troca de vivências e interação social. O psicólogo ocupa um papel de mediador para facilitar a comunicação e troca do grupo, além de ser um instrumento de feedback para o mesmo. Levando em consideração as especificidades dos clientes portadores de transtorno mental e das dificuldades apresentadas por grande parte deles de sentir-se pertencente a um determinado grupo, propomos esta intervenção terapêutica em grupo. Principalmente devido barreiras e preconceitos de uma ideologia social, que apesar das mudanças advindas da reforma psiquiátrica, tentam diariamente colocá-los a margem da sociedade.
O trabalho terapêutico em grupo mostra-se como um espaço favorável, para que seus participantes compartilhem suas angústias, potencialidades, dúvidas e alegrias; trabalhar o sentimento de pertencimento a um determinado grupo e de sua própria identidade e desejos, enquanto sujeito que possui direitos, deveres e espaço na sociedade.
"Em outras palavras, o próprio grupo, bem como a aplicação de técnicas e intervenções específicas pelo terapeuta treinado, servem como um instrumento para a mudança. Esta característica dá à psicoterapia de grupo seu potencial terapêutico singular". (VINOGRADOV, S.; YALOM, I.D. 1992,p.3)
Proponho um estudo sobre o funcionamento do grupo terapêutico, direcionado por um olhar gestáltico, realizado com portadores de transtorno mental, do qual a autora participa.
Revisitando o caminho percorrido do início da “oficina de teatro” até a “oficina de teatro e imagem” no CAPS em Dezembro de 2012, pude repensar os diferentes momentos que vivemos nesta oficina. Para tal escolhi reler anotações referentes a esta oficina e rever vídeos feitos nela em diferentes momentos. Polster (2001,p.238) diz: “A gestalt-terapia tenta recuperar a conexão entre o falar sobre e a ação.” É notória o quanto essa conexão é experimentada nesta oficina terapêutica.
Observei neste caminho o quanto alguns usuários haviam mudado não apenas em termos de autonomia, expressão verbal e dramatização de personagens, como muitos deles haviam mudado fisicamente. Era notório no semblante de alguns a mudança que tiveram em seu “visual” ao longo do processo e o quanto nos vídeos e fotos da oficina estavam registrados diferentes momentos da vida desses atores. Nem todos denotavam momentos “bonitinhos” e “arrumadinhos”. Alguns demarcavam, por exemplo, um momento que antecedia uma crise, mas que mesmo nesses casos, foram um instrumento para percebermos indícios singulares da forma que cada sujeito demonstra sua eminente crise. A crise pode variar de uma pessoa para o outra, por isso é importante estar atento à singularidade de cada um, ou seja, falar alto e aceleradamente pode ser um indicativo de iminente crise para um usuário e pode ser uma característica pessoal de um outro. Entende-se como crise neste contexto, uma situação onde há uma ruptura da homeostase6 psíquica de uma pessoa e perda/ mudança dos elementos estabilizadores habituais, sendo necessário um esforço suplementar para manter o equilíbrio ou estabilidade emocional.
Alguns usuários ao longo deste processo mudaram também a sua posição dentro do grupo. Por exemplo, uma usuária que entrou no CAPS com um quadro de depressão severo, que não conseguia nem mesmo falar por muito tempo, sem que seu choro – que naquele momento tinha um tom o tanto quanto desesperador a cala-se, impedindo-a de prosseguir em um diálogo. Ao chegar no espaço da oficina ela conseguia apenas sentar, chorar, assistir e ouvir o que era trazido pelos outros participantes. Como uma telespectadora, que aparentemente só está com o corpo presente, buscando distrair-se com o que assistia. Depois de um tempo ela foi sentindo-se mais confortável para compartilhar suas histórias pessoais e angustias com o grupo. Ela permitiu a dramatização de algumas de suas vivências, passando de telespectadora para autora; depois começou a dirigir algumas cenas, permitindo-se ocupar o papel de diretora e em um dado momento sentiu-se segura para tornar-se atriz e ocupar um novo espaço naquele grupo.Isto lhe permitiu fazer coisas que antes parecia que não daria conta. Percebeu o quanto era capaz de criar personagens, dramatizá-los e se expor perante o grupo sem constrangimentos. Descobriu que o teatro era um instrumento facilitador para expor suas ideias e opiniões, inclusive se dando a oportunidade de posteriormente sair do papel de atriz, abandonando os personagens e transformando-se em uma das principais vozes de um documentário que falava sobre a luta antimanicomial, pelo olhar dos usuários de um CAPS. Essa mudança no grupo gerou notórias modificações em seu comportamento como um todo, saindo do rótulo de depressão severa, para algo mais ameno, fazendo com que a equipe pensasse em uma possível alta, em um futuro breve.
“Cada um faz contato com o mundo de uma maneira singular. Isto porque cada um é singular. No contato ocorre o encontro de singularidades. Singularidades que se estranham e se entranham permitindo o surgimento de uma terceira singularidade.” (SILVEIRA; PEIXOTO,2012,p.21)
Nesse sentido a oficina operou como um instrumento de ampliação das fronteiras de contato, de experimentação de novas possibilidades, permitindo com que o seu contato com o outro e com o mundo mudasse de configuração. Ouso falar que neste sentido, muitos de nossos usuários experimentam a possibilidade de sair da posição de PACIENTE, ou seja, daquele que é passivo de intervenções externas, para CLIENTE, aquele que está ali buscando mudanças em sua vida e que é ator e autor dessas mudanças, sendo o psicólogo um facilitador e não um direcionador das mesmas. Esta mudança de visão do usuário do CAPS de PACIENTE para CLIENTE, por si só é uma reflexão de influência gestáltica, condizente com o entendimento de usuário, uma pessoa que utiliza um serviço de saúde, contrária a visão de paciente como alguém que é passivo as intervenções deste serviço.
“...Através da visão gestáltica, podemos perceber o positivo, o potencialmente transformador, mesmo diante dos limites e dificuldades mais severos. Acreditamos que aquela é a melhor configuração possível do sujeito naquele momento, que mesmo diante de tantas limitações, há ali um potencial criativo que constrói como pode sua forma particular de estar no mundo. E é somente desta forma que poderemos “penetrar em sua paisagem” como sua, como reflexo daquilo que o constitui e, por fim, acompanhá-lo deste ponto em diante, em um caminho rumo a formas de encontro mais saudáveis e genuínas.” PEREIRA,2008, p.182
A oficina de teatro trabalha com as potencialidades de cada participante. O foco não está no que eles não podem fazer, nem no que o rótulo dado a esses sujeitos, por sua categorização na CID107 . Acredito que a forma como cada sujeito apresenta-se nesta oficina, é de fato, a melhor forma possível para ele, naquele dado momento. Nosso interesse está em auxiliar os participantes a perceberem aquilo que são capazes de fazer e como eles podem fazer valer o seu modo de ser na sociedade.
“...Tomando como exemplo um grupo enquanto sistema-sob-consideração, focalizam-se as relações entre pessoas, papéis, regras, normas de comportamento, estilo de comunicação, inserção no contexto social. Ao fazer isto, não se suprime o indivíduo, por sua vez sistema único. Porém, sua posição e papel neste ou aquele grupo confere novos significados aos seus comportamentos, tanto quanto as suas características pessoais exercem influência na constelação estrutural e funcional do grupo em questão.” (TELLEGEN, 1984,p.70)
Uma das técnicas que fizeram uma grande diferença no andamento deste grupo, foi a inserção de imagens. Quando comecei a filmar as peças construídas pelo grupo e mostrar as produções para os mesmos como forma de espelhamento, pudemos verificar o quanto este espelhamento gerava mudanças significativas, na forma em que os participantes observavam-se. Uma das usuárias ao observar-se no vídeo percebeu o quanto “balançava-se” ao andar e verbalizou desejo de melhorar isso e começou a prestar mais atenção em seu corpo, em seus movimentos. Percebeu que uma dor na coluna era um dos principais motivos que a levavam a esse movimento, buscou um ortopedista, descobriu uma hérnia de disco, está em tratamento da mesma e teve uma melhora significativa nesse “balançar”. Quando ela começou a dar-se conta de como estava o seu corpo e começou a prestar atenção nele, isso lhe motivou a cuidados pessoais e iniciativas que beneficiaram sua saúde. A utilização da imagem propicia além de um espelhamento, uma possibilidade de awareness8 , ou seja, de dar-se conta amplamente do que está acontecendo.
“É a arte das composições que faz da abordagem gestáltica uma experiência que ultrapassa os consultórios, as diversas instituições para poder, por conseguinte, ser uma visão do mundo onde inclui uma visão de homem que atualiza as sua potências, os seus poderes através de suas capacidades de contatar o mundo, o outro, a cidade, o planeta.” (SILVEIRA; PEIXOTO, 2012 p.16)
Outro fato advindo da inclusão da filmagem no grupo foi a exposição com autorização de todos os participantes, dos vídeos criados por este grupo. Os vídeos relatam o olhar dos usuários sobre diversos temas, como o tratamento no CAPS, a luta antimanicomial, dentre outros. As encenações apresentadas através de “curtas metragens” geram autonomia e responsabilidade dos mesmos, que se apropriam do trabalho realizado em conjunto nesta oficina, como algo construído pelo grupo e como algo construído por vários atores. Esta atividade trabalha a relação com o outro e cada um responsabiliza-se por sua parte no processo, seja de filmar, arrumar os personagens, atuar,assistir e avaliar se a mensagem proposta pelo grupo está sendo transmitida com clareza ou não, dentre outras funções que o grupo permite ao participante vivenciar.
Silveira & Peixoto (2012, p.83) relatam no texto no qual apresentam o conceito de potência artística no livro A Estética do contato que “ A potência artista é a essência singular daquele que transforma a sua existência, recompondo-se, regenerando-se com o mundo, mudando o próprio mundo.” Os autores apresentam essa potência como uma característica do ajustamento criativo, que conta de uma recomposição e reconfiguração do campo organismo-ambiente, que está em constante mudança. Creio que falar sobre esta potência nos portadores de transtorno mental, é algo coerente. Pois entendo que as transformações que os mesmos fazem estão ligadas ao campo em que vivem e ao campo que criam em seus ajustamentos ditos psicóticos, tão criativos quanto os ajustamentos de nós neuróticos. E podemos observar nitidamente, a recomposição e regeneração contínua desses atores, em suas criações na oficina a qual estamos mencionando no presente texto.
A visão gestáltica sobre o homem vê o homem como um ser de relação, valorizando as relações uns com os outros e com o meio. Considerando que o público do qual estamos falando no presente trabalho, é em geral, rotulado por sua dificuldade e singularidade na forma de relacionar-se com o outro e com o mundo, um espaço como esta oficina, que favorece essas trocas apresenta-se como uma possibilidade de ampliação das fronteiras de contato e das possibilidades de trocas com seus familiares, amigos e sociedade em geral. Ressaltando que não trabalhamos com textos prontos, utilizamos para a composição das peças e dos personagens, aquilo que emerge naquele dado momento, aquilo que é importante para o grupo naquele dado encontro. O grupo escolhe investir em ensaios posteriores, sempre tendo a liberdade do texto ser transformado e reeditado por seus atores, que são verdadeiramente os autores de suas histórias, autônomos e livres para escolher como irão vivenciar a encenação proposta.
A escolha em não utilizar scripts rígidos nesta oficina, se dá pelo entendimento de não engessá-los na rigidez de um texto pronto,mas possibilitá-los a experimentar a liberdade de exercer sua criatividade.Desta forma visamos uma ampliação dessa postura para o cotidiano desses usuários, convidando-os a despir-se de uma atitude rígida e a alargar sua fronteira de contato.
“O self existe onde estão as fronteiras móveis do contato. As áreas de contato podem ser restritas, como nas neuroses, mas onde quer que haja uma fronteira e o contato ocorra, este é, nessa medida, um self criativo.”(PERLS; HEFFERLINE,GOODMAN,1997. Pág.179)
Mesmo existindo questionamentos teóricos quanto ao funcionamento do self em um psicótico, cremos que assim como descrito na citação acima, nas psicoses também é possível encontrarmos um self criativo. O self pode ser entendido, como a subjetividade de cada indivíduo que é construída no contato com o outro, no campo onde este indivíduo está e na relação deste indivíduo com o mesmo.
“Ali já se anunciava a perspectiva diferenciada de self em relação à forma como é concebido em outras abordagens teóricas e práticas no campo da clínica psicoterapêutica, ou seja, a relação intrínseca entre self e campo que cria a base para a concepção de uma subjetividade desde e para sempre enraizada nas relações.”(TÁVORA, 2007.pág.193)
Os arcabouços teóricos da Teoria de Campo, que tem uma importante contribuição para a Gestalt-terapia, traz a compreensão que o self é como algo em processo e em interação contínua com o campo.
“Algumas pessoas constroem um self que tem continuidade e harmonia, e simultaneamente se adaptam com flexibilidade ao campo atual. Pessoas com desordens no self não conseguem fazê-lo, e suas construções de self não integram harmoniosamente as construções anteriores, além de não terem um sentido de coesão, continuidade, segurança e auto-estima em especial quando o campo atual está estressado. Em vez disso, seus processos e suas experiências de self estão com freqüência fragmentados estruturados sobre introjeções e auto-imagens negativas fixadas com rigidez; a noção de auto-estima e coesão dessas pessoas é facilmente destrutível pelas forças do campo atual, que se apresentam sem uma união clara e flexível com quem são, e a realidade da situação. Outras pessoas constroem uma noção fixa para o self, que não é afetado pelo ambiente, que é sempre o mesmo, independentemente do contexto. Essa gestalt fixa não tem flexibilidade, e tem apenas pequena capacidade de crescimento pela interação no campo.”( YONTEF,1998.p.177)
Os portadores de transtorno mental apresentam muitas vezes uma configuração de self,que não interage harmoniozamente com o campo, em muitos aspectos inflexível, denotando uma gestalt fixa. Porém o self é algo que está em contínuo processo e relação com o campo e podemos observar que o campo, vivenciado por eles no grupo terapêutico, pode-se apresentar como uma terra fértil para gerar mudanças em suas gestaten fixas.
“Na teoria de campo, todas as coisas são construídas conforme as condições do campo e os interesses do percebedor. Tudo o que é real é construído desta maneira, independentemente de quão materialmente concreto ou abstrato seja.”(YONTEF,1998.p.177)
O entendimento da Teoria de Campo também nos faz compreender o quanto a troca, inerente do processo de atendimento psicoterapêutico em grupo, é enriquecedora e o quanto os ajustamentos criativos realizados pelos participantes em todo o processo de grupo, favorece a mudanças em seu estilo de vida e forma de apresentar-se ao mundo.
"O experimento não deve se transformar num paliativo ou num substitutivo para o envolvimento válido. Em vez disso a experiência é mais comparável à forma da arte. O artista não recria meramente a cena que vê. Ele combina a realidade “lá de fora” com sua experiência interior,e a síntese é uma descoberta,até para ele próprio. O mesmo acontece no experimento terapêutico. O indivíduo não está tentando apenas reproduzir algo que já aconteceu ou que poderia acontecer. Em vez disso,ele se relaciona com a realidade exterior, expressando suas necessidades nesse momento do tempo. Ele não está ensaiando para um acontecimento futuro nem refazendo algo que já aconteceu, mas experimentando no presente qual a sensação de fluir com awareness para a ação experimental. Uma vez que tenha sentido o ritmo de seu momento existencial, ele bem pode se comportar de modo diferente no mundo exterior do que teria feito antes.” (POLSTER 2001,p.239)
A utilização das artes neste contexto, nos facilita a acessar em uma linguagem usual e acessível, a percepção singular de nossos clientes sobre as condições do campo e nos instrumentaliza, a estudar a forma como esta percepção, os direciona em suas construções sejam elas de coisas concretas, ou de coisas abstratas, como as alucinações e delírios. Entendo as alucinações e delírios, como uma forma de ajustamento criativo dos mesmos e que representam a melhor forma que eles dão conta, naquele dado momento de se apresentar na relação com o outro e com o mundo. Tal ajustamento criativo, está totalmente relcionado com a percepção dos mesmos sobre o campo que estão inseridos. Com este entendimento, reforço a crença de que atuando no campo, geramos mudanças que podem favorecer a flexibilidade e ampliação de contato dos mesmos na relação com o outro.
“O experimento é a pedra angular do aprendizado experiencial. Ele transforma o falar em fazer, as recordações estéreis e as teorizações em estar plenamente aqui, com a totalidade da imaginação, da energia e da excitação. Por exemplo, ao reviver em ato uma antiga situação inacabada, o cliente é capaz de compreendê-la com mais riqueza e completar essa vivência com os recursos de sua nova sabedoria e entendimento de vida.” (ZINKER,2007,P.141)
O homem é um ser relacional. A possibilidade de trabalhar sua forma de se relacionar com o outro e com o mundo em um grupo, possibilita uma ampliação do seu entendimento sobre si mesmo. E as ferramentas utilizadas nesta oficina terapêutica são um experimento, que utiliza das artes cênicas e da imagem, como um disparador de ajustamento criativo e awareness.
“O experimento de Gestalt é usado para expandir a amplitude do indivíduo, mostrando-lhe como ampliar seu senso habitual de fronteiras onde existem emergência e excitação. Uma emergência segura é criada de modo a incentivar o desenvolvimento do auto-apoio para novas experiências. Ações que eram anteriormente estranhas e provocavam resistência podem se tornar expressões aceitáveis e levar a novas possibilidades.”(POLSTER e POLSTER, 2001. p.124)
A oficina de teatro e imagem, pode ser visualizada como um grande experimento,
que amplia as fronteiras de contato, favorece a diminuição da
rigidez, promove o desenvolvimento do auto-apoio, possibilita a vivência
de novas experiências e convida os participantes à experimentarem
novas possibilidades, não apenas dentro do grupo, mas em sua vida em
geral.
“A Gestalt permite que eu explore a estreita praia de minha liberdade, às vezes varrida pela tempestade, às vezes deserta, às vezes quente, ensolarada e perfumada. Ela me acompanha em minhas produções espontâneas de sensações corporais, nas emoções que experimento, nas imagens encontradas ou fantasiadas, nos sonhos noturnos ou nos devaneios despertos, tudo no contexto atual da relação estabelecida.” (GINGER & GINGER,1995, p.195)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na história da Gestalt-terapia podemos observar o quanto as artes foram e são utilizadas pelos gestaltistas como ferramenta de trabalho. Tendo em vista também o fato do teatro e do cinema serem admirados por pessoas das diferentes faixas etárias, raças, religiões e classes sociais, entendo que utilizá-los como instrumento de inclusão social é uma idéia interessante, para ser experimentada como forma de fazer valer a fala dos usuários de CAPS (Centro de Atenção Psicossocial).
As utilizações do teatro e da imagem enriqueceram meu trabalho no CAPS e ampliaram as possibilidades da atuação com este público-alvo. Percebi mudanças significativas na forma desses usuários se relacionarem com o mundo, refletindo como uma ferramenta facilitadora das relações interpessoais dos mesmos.
A oficina leva a reflexão não apenas dos usuários, mas também de seus familiares, pessoas da sociedade e nós enquanto profissionais de saúde. Do que de fato essas pessoas são incapazes? Na verdade quando os escutamos, percebemos que os mesmos são capazes de ir muito além daquilo que os preconceitos e rótulos impostos presumem que eles podem fazer.
Estas ferramentas descritas neste texto, nos desafiam enquanto profissionais de saúde, a utilizar nossa criatividade e lidar com as ferramentas que temos a nossa disposição, para trabalhar naquele dado momento. Não devemos ter uma visão rígida que nos engessa e nos gruda a um script, mas encararmos as diferentes possibilidades que surgem, como uma forma de experimento é algo enriquecedor para nossa prática.
A ausência de algumas ferramentas que fazem parte do nosso planejamento inicial, deve ser algo limitador para nossa ação. Entendo que devemos planejar, mas não ficar presos rigidamente a esses planejamentos; devemos ter recursos a disposição, mas não utilizá-los como uma receita de bolo; devemos trabalhar com tudo o que é trazido e é importante para os nossos clientes naquele dado momento. Nós precisamos estar atentos a melhor forma de agir, naquele dado momento, pois nós somos nossa principal ferramenta de trabalho.
O uso da câmera nesta oficina tem somente a intenção de nos fazer visualizar, a experiência pela experiência. Não querendo enquadrá-la em algo rígido, mas favorecendo o ajustamento criativo de cada um, como um convite para sair da rigidez que muitas vezes é observada no cotidiano desses usuários.
O CAPS não deve ser entendido como um depósito de seres humanos, o que era e é observado, ainda hoje em algumas instituições de saúde mental. Proponho o entendimento do CAPS, como um espaço de possibilidades de reciclagem, onde são valorizadas as potencialidades de cada usuário.
Espero com este trabalho contribuir com estudo e prática de outros psicólogos e estudantes de psicologia, e encorajá-los a escreverem sobre suas práticas, visando enriquecer nossos constructos teóricos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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TELLEGEN, A. T. – IV - Gestalt e Sistemas (p. 55 a 70) In: Gestalt e grupos: Uma Perspectiva Sistêmica - São Paulo : Summus, 1984.
VINOGRAVOD, S.; YALOM, I.D. I O Que é a Psicoterapia de Grupo? (p.3 a 15). In: Psicoterapia de Grupo: um manual prático./ Sofia Vinogradov, Irvin D. Yalom. Trad. de Dayse Batista. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
YONTEF, Gary M. - V - Introdução à teoria de Campo (p.173-212) In: Processo, Diálogo e Awareness - Tradução Eli Stern. São Paulo: Summus, 1998.
______________________ GESTALT-TERAPIA (p.15-67) In: Processo, Diálogo e Awareness- Tradução Eli Stern. São Paulo: Summus, 1998.
ZINKER,J. Processo criativo em Gestalt-terapia. São Paulo:Summus,2007.
Endereço para correspondência:
Ana Carolina Pacheco de Paula
Endereço eletrônico: caroldepaulapsi@gmail.com
Recebido em:26/01/2014
Aprovado em:03/02/2014
Notas
*IGT-Instituto de Gestalt Terapia e Atendimento Familiar - Rio de Janeiro, Brasil
1 A reforma psiquiátrica é um processo político e social, que visa uma nova forma de tratamento, do portador de transtorno mental. Ela está aos poucos substituindo as instituições de internação psiquiátrica, por outros dispositivos substitutivos do mesmo, como os CAPS e as residências terapêuticas, por exemplo, trazendo uma nova alternativa para o processo de tratamento. Busca a inserção social,cultural e familiar do mesmo, respeitando seus direitos de individualidade e deixando claro quais são os seus direitos e deveres na sociedade.
2 CAPS – “Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) ou Núcleo de Atenção Psicossocial é um serviço de saúde aberto e comunitário do Sistema Único de Saúde (SUS). Ele é um lugar de referência e tratamento para pessoas que sofrem com transtornos mentais, psicoses, neuroses graves e demais quadros, cuja severidade e/ou persistência justifiquem sua permanência num dispositivo de cuidado intensivo, comunitário, personalizado e promotor de vida.”(Ministério da Saúde,2004.pág.13).
Segundo o manual do CAPS, do Ministério da Saúde o CAPS I – municípios com população entre 20.000 e 70.000 habitantes de segunda a sexta-feira; CAPS II – municípios com população entre 70.000 e 200.000 habitantes de segunda a sexta-feira, podendo funcionar com um terceiro período, funcionando até 21 horas; CAPS III – municípios com população acima de 200.000 habitantes
Funciona 24 horas, diariamente, também nos feriados e fins de semana; CAPSi – municípios com população acima de 200.000 habitantes de segunda a sexta-feira, assim como o CAPS II ele pode um terceiro período, funcionando até 21 horas e CAPSad – municípios com população acima de 100.000 habitantes, de segunda a sexta-feira também podendo ter seu funcionando até 21 horas.
3 IGT- INSTITUTO DE GESTALT-TERAPIA E ATENDIMENTO FAMILIAR. Local onde a autora deste texto, cursou seu curso de especialização em Psicologia Clínica.
4 Feedback- é uma palavra em inglês que significa realimentar ou dar resposta a um determinado pedido ou acontecimento, retorno, crítica.
5 Assembleias- Reuniões realizadas no CAPS, onde participam usuários, familiares e profissionais que constituem a equipe técnica.
6 Homeostase pode ser definida , como o processo de busca do ser humano, por uma autorregulação e um equilíbrio, que o deixe em harmonia com o seu ambiente.
7 CID10- Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados a Saúde, que está em sua 10ª edição.
8 Yontef (1998) define o conceito de awareness, como “uma forma de experiência que pode ser definida aproximadamente, como estar em contato com a própria existência, com aquilo que é.”