ARTIGO

A Gestalt-terapia e as relações de poder: um diálogo possível

The Gestalt-therapy and the power relationships: a possible dialog

Israel Ferraz de Souza*

Instituto Müller-Granzotto - Florianópolis - SC - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A noção de indivíduo e sociedade está correlacionada de tal forma que se torna impossível ensaiar qualquer aproximação sem a consideração de ambos. Assim como a teoria do self da Gestalt-Terapia propõe uma análise não dicotomizada entre o organismo e seu ambiente, a proposta foucaultiana de análise das relações sociais enquanto relações de poder possibilita a concepção de como os corpos são influenciados pela rede de poder e também a influenciam. O estabelecimento de uma intersecção entre os estratégicos dispositivos biopolíticos e o dinâmico sistema self permite a problematização da maneira pela qual a produção do saber, da noção de outro social e de indivíduo se dá nas relações de poder. A neurose aparece como uma forma de ajustamento político, tanto de submissão, quanto de resistência ao biopoder; a proposta de intervenção gestal-terapêutica surge como possibilidade de acolhimento dos “contradiscursos” que se dão no sistema self e, consequentemente, nas relações de poder.

Palavra-chave: Gestalt-Terapia; self; relações de poder; outro social; neurose.

 


ABSTRACT

The notion of individual and society are correlated such that it becomes impossible to seek any approach without the consideration of both. Just as the theory of self in Gestalt-Therapy proposes a non-dichotomized analysis between the organism and its environment, the foucauldian proposal of analysis of social relations as power relationships enables the conception of how bodies are influenced by the power network and also influence it. The establishment of an intersection between the strategic biopolitical devices and the dynamic system self allows the problematization of the way through which the production of knowledge, the notion of the social other and of the individual arises in the power relationships. Neurosis appears as a form of political adjustment of both submission and resistance to the biopower; the gestalt-therapeutic proposal of intervention emerges as a possibility of giving shelter to the “counter-discourses” that occur in the system self and therefore in the power relationships.

Keywords: Gestalt-Therapy; self; power relationships; social other; neurosis.

 


1 – INTRODUÇÃO

É indispensável, sempre que se ensaia qualquer aproximação da concepção de indivíduo, para que a totalidade do que é visado não se restrinja à abstração empírica atual, partir da concepção não dicotomizada do que aparece como figura (indivíduo aqui e agora) sendo sustentado por um fundo de vivências intersubjetivas passadas que cria a possibilidade da emergência da figura.

Por esse motivo a Gestalt-Terapia enquanto uma proposta clínica trabalha com o conceito de um sistema self que considera a primazia relacional do organismo e seu ambiente, o que permite a concepção abstrata de indivíduo em sua espontaneidade processual sempre engajada na totalidade da experiência transcendental do campo “organismo-ambiente”.

A proposta de Foucault (2008) de analisar todas as relações sociais, os saberes constituídos e até a própria concepção de indivíduo a partir da perspectiva do poder enquanto ação abre a possibilidade de um diálogo entre a compreensão clínica gestalt-terapêutica e sua percepção das relações de poder que perpassam a rede social.

Apesar dessa possibilidade de diálogo, este ainda é pouco explorado na Gestalt-Terapia talvez pelas incongruências teóricas que um encontro, sem os necessários ajustes, entre a genealogia foucaultiana e a fenomenologia gestáltica poderia acarretar; a construção deste cenário mostra-se, portanto, como uma possibilidade válida e enriquecedora no que diz respeito à ampliação da compreensão da dinâmica indivíduo-sociedade.

Este artigo se propõe a ser uma revisão bibliográfica de autores e obras que viabilizam a exploração da possibilidade de um diálogo coerente, para que a intersecção entre a compreensão gestalt-terapêutica da teoria do self com a noção das relações intersubjetivas enquanto relações de poder na rede social seja possível a partir de uma perspectiva fenomenológica. Para que esse objetivo seja atingido pretende-se problematizar as relações de poder com a produção do saber e com a produção da noção de indivíduo; considerar a biopolítica e sua relação com o aliciamento do outro social; o próprio processo de reificação do outro social à noção de indivíduo; a neurose como um ajustamento de articulação política e a proposta gestalt-terapêutica de acolhimento do que, tanto na dimensão macro (rede social), quanto na dimensão micro (sistema self) aparece enquanto “contradiscurso”, “estranho”.

 

2 – GESTALT-TERAPIA E A TEORIA DO SELF: UMA BREVE REVISÃO TERÓRICA

2.1 – Noção de campo organismo-ambiente como uma totalidade

O conceito de figura/fundo de Rubin do qual a Gestalt-Terapia se serviu entende “figura” como o dado material que, no ato de visar, aparece como uma unidade de sentido; e “fundo” como a ocorrência intuitiva de um campo de presença de perfis sustentadores da unidade de sentido que não são experimentados materialmente (MULLER-GRANZOTTO e MULLER-GRANZOTTO, 2007). Quando visualizo um cubo, por exemplo, caso a figura pudesse ser dada de maneira desconectada de seu fundo, teria apenas o dado atual; ou seja, a percepção visual de uma superfície retangular ou, no máximo, de três superfícies retangulares articuladas; porém, junto com a percepção meramente visual, co-dados inatuais, ou seja, dados retidos de outras experiências se doam de maneira a me permitir formar uma unidade presuntiva e, mesmo sem poder ver suas seis faces ao mesmo tempo, posso intuir o cubo em sua totalidade.

Toda investigação, independentemente de qual seja o objeto, deve partir da premissa de que a unidade de sentido formada por aquilo que é visado não se resume puramente à informação empírica atual, mas a uma infinidade de co-dados inatuais que, mesmo não aparecendo na atualidade, possibilitam que o objeto-todo não seja reduzido a uma de suas partes (ao que se vê). Por esse motivo (PERLS et al., 1997) atentam-se à divisão neurótica entre indivíduo e sociedade e apontam a necessidade de que toda análise biológica, psicológica ou sociológica considere a primazia relacional do organismo e seu ambiente formando algo uno que chamam de “campo organismo-ambiente”. Em um exemplo simplificado, quando se martela o dedo, o dedo dolorido obviamente não é meramente organismo, mas um todo dinâmico atual resultado da interação indissociável do organismo (dedo) e ambiente (martelo).

A verdade é que nas aproximações científicas em que se tem o organismo como figura como, por exemplo, nas clínicas psicológicas de maneira geral, pode-se tornar tentador perder a awareness do que de ambiental se tem como fundo na constituição do organismo enquanto tal. Da mesma forma, nas aproximações científicas em que se tem o social como figura como, por exemplo, na sociologia, pode-se tornar tentador perder a awareness do que de “individual” se tem como fundo na constituição da sociedade enquanto tal.

Ora, em uma investigação gestáltica não reducionista não poderia ser diferente; seja ela uma análise do campo organismo-ambiente ou do campo indivíduo-sociedade não se pode perder de vista a existência, não de duas unidades em relação, embora possa ser considerada a partir de dois pontos de vista diferentes, mas de uma configuração indivisível.

Entende-se, sob a orientação dos criadores da Gestalt-Terapia Perls et. al. (1997, p. 48), que contato é “achar e fazer a solução vindoura”; ou seja, toda a experiência de contato é um ajustamento criativo, uma totalidade processual em que uma figura de interesse é formada/elegida sustentada pelo fundo campo organismo-ambiente ou campo de presença que engloba um horizonte de passado (achar), um horizonte atual (fazer) e um horizonte de futuro (solução vindoura). A fronteira de contato seria o “onde-quando” o contato acontece, ou seja, na interação de orientação espaço-temporal que se dá no campo organismo-ambiente.

É importante, para podermos articular a interação organismo-ambiente e a análise da dimensão social e da dimensão individual que aqui pretendemos apresentar sob uma perspectiva não dicotomizada, ou seja, gestáltica, entendermos o que Perls et al. (1997) vislumbraram quando criaram a teoria do self sob uma orientação fenomenológica.

2.2 – Teoria do self

O sistema self que aqui se apresenta não está reduzido ao organismo; é justamente a unidade sintética do campo organismo-ambiente, o sistema de contatos, “a fronteira de contato em funcionamento; sua atividade é formar figuras e fundos” (PERLS et al., 1997, p. 49). Este, orientado pela compreensão fenomenológica de Husserl, não se resume a uma relação indissociável entre um organismo e um ambiente físicos/naturais (atuais), mas envolve a consideração de uma dimensão “transcendental” (inatual) do campo organismo-ambiente.

O sistema self é visto “como a função de contatar o presente transiente concreto” (PERLS et al., 1997, p. 177). É um processo temporal e existe onde quer que haja uma interação de fronteira; e os autores Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2007) entendem que é graças à apreensão da temporalidade imanente aos processos intencionais que se pode compreender o fundamento dinâmico das totalidades de experiência enquanto estruturas unificadas em constante transformação nas experiências de contato.

O sistema self é um processo espontâneo que não é abarcado pela consciência estabelecida de si próprio, pois um “si próprio” particular para o sistema self é apenas uma abstração (PERLS et al., 1997); o que se entende como “Eu” é apenas uma parcialidade de uma configuração maior. Embora seja eu quem “acho” e “faço a solução vindoura”, quando o contato acontece, os co-dados que se doam como “solução vindoura” e como o que “acho” são campo, dados públicos, generalidades, inatualidades que só parecem se individualizar na atualização metabólica desse pretenso eu; essa atualização de uma generalidade em uma particularidade é pura abstração de um complexo processo de assimilação e crescimento que nunca deixa de acontecer no campo organismo-ambiente. Este campo organismo-ambiente onde se articula o sistema self não se resume, portanto, a um domínio puramente físico, mas o transcende a ponto de a noção de “consciência transcendental” de Husserl e a noção de self serem vistas pelos autores (PERLS et al., 1997; MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2007) como equivalentes. 

O self é, portanto, a espontaneidade de nós mesmos sempre engajados na totalidade da experiência campo organismo-ambiente. Nele podemos nos experimentar de três formas: como seres anônimos (na awareness sensorial), como indivíduos (na awareness motora) e como realidades objetivas (na awareness reflexiva) (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2007, 2012a).

Essas três formas de aproximação da totalidade experiencial são vistas como estruturas parciais, funções em constante dinamismo no presente transiente.

A função id é a dimensão sensitiva; abarca aquilo que não se representa como conteúdo, mas como hábito. É um fundo de excitamentos, “sentimentos incipientes que conectam o organismo e o ambiente” (PERLS et al., 1997, p. 184). É por meio desta função que se podem atualizar as formas retidas das experiências anteriores no aqui e agora. Apresenta-se como uma generalidade indeterminada e impessoal que não comporta interpretações, pois só se inscreve como uma ausência, um vazio co-presente. É a integração sensorial do sistema self no campo organismo-ambiente (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2007).

A função ego é a que lida com as identificações e alienações do que se apresenta como possibilidade. É considerando esta função que se tem a impressão de que existe um agente essencial extrínseco ao campo; o que só acontece quando se considera abstratamente o ego como dimensão introspectiva, estática e destacada das outras duas funções do self (PERLS et al., 1997). Tomando um exemplo de Perls (2002), a função dos pulmões é a troca de gases entre o organismo e o ambiente; embora tanto os pulmões quanto os gases sejam concretos, a função é abstrata (o que não atenua sua realidade). Da mesma forma o ego (que é insubstancial) é a função “ato” do sistema self; e, enquanto vivência de contato, quando descobre por meio de um ato de consciência a diferença entre o agente e o meio, é o próprio “ego quem descobre e inventa a diferença” (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2007, p. 218).

“A função personalidade é o sistema de atitudes adotadas nas relações interpessoais” (PERLS et al., 1997, p. 187); é a função capaz de representar as vivências de contato e, a partir destas representações, lograr uma identidade objetiva. Como essas representações sempre se engendram na relação, é uma generalidade determinada que vale intersubjetivamente. É a integração linguisticamente representada do sistema self no campo organismo-ambiente (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2007); a “réplica verbal do self” (PERLS et al., 1997, p. 188). É essa dimensão que abarca os valores morais e éticos, os conhecimentos científicos, a linguagem; ou seja, tudo o que pode ser representado reflexivamente diz respeito a essa função do self.

O sistema self é, portanto, uma dinâmica configuração criadora sempre aqui e agora que abarca horizontes inatuais; ou seja, o dado atual (figura) sempre em processo de transcendência pela atualização dos co-dados (fundo). Sua indivisibilidade é anterior à dicotomia organismo/ambiente; por isso, a unidade interna desta totalidade subjetiva não se restringe à noção de psiquismo (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2007).

Mas qual seria a gênese dos elementos de que a função id e personalidade se “nutrem”? Por que motivo o sistema self pode atualizar, no corpo de atos (ego), formas/hábitos (id) e conteúdos/saberes (personalidade)?

Se fosse possível analisar a relação do organismo vinculado a um ambiente que abrangesse somente objetos, poderia se tornar tentador entender o processo de transcendência do movimento de ajustamento criador desse organismo como fruto das doações inatuais de suas próprias vivências individuais dissolvidas no presente transiente. Acontece que as relações são sempre entre semelhantes e a ação, conforme a concepção de ação de Arendt (2010, p. 26), com a qual concordamos, “[...] não pode sequer ser imaginada fora da sociedade dos homens”. Logo, mesmo que não haja duas pessoas engajadas na atualidade, o próprio fundo que se atualiza na relação traz os rastros e os saberes produzidos nas relações intersubjetivas passadas e coloca em suspenso a individualidade desses fundos. A esse respeito, Foucault (2008, p. 34) coloca que o que tentamos reunir sob a forma de uma identidade individual “é apenas uma paródia: o plural a habita”.

Os processos que suprem tanto a função personalidade quanto a função id são, portanto, intersubjetivos. Nessa intersubjetividade da experiência, quando a situação “A” dá lugar à situação “B”, a “aura” - que segundo o conceito de Benjamin (2012a) seria um “tecido fino” de espaço e tempo de aparição única que, quando se desfaz, perde sua totalidade - da primeira situação aqui e agora é destruída. Forma e conteúdo da situação A se desprendem; o que é retido da experiência como forma retorna à função id enquanto hábitos sensomotores ou linguageiros, como uma forma de orientação autônoma, desencadeando o efeito de excitamento. Não tem um “sentido” justamente por ser o que resta do desligamento deste; é uma espécie de “falta” que, ao se atualizar é sentida como uma presença. O que é retido da experiência como conteúdo retorna à função personalidade enquanto dados linguísticos relacionados à cultura, protocolos sociais, identidades, valores e tudo mais que tenha sentido linguisticamente exprimível como a verdade do “outro social” (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2007, 2012a).

 

3 - IDEIAS FOUCAULTIANAS A RESPEITO DAS RELAÇÕES DE PODER SOB A LUZ DA TEORIA DO SELF

3.1 – As relações intersubjetivas enquanto relações de poder

Com a compreensão de que a dinamização do sistema self se dá nas relações intersubjetivas, abordemos como essas relações poderiam ser entendidas sob um ponto de vista político.

Para Foucault (2008), todas as relações são sempre relações de poder. Este não é algo que se possui, mas que se exerce; não é um objeto que se concentra nas mãos de uma pessoa ou de uma instituição, mas se dá na função dinâmica do encontro de heterogeneidades; não se aplica aos indivíduos como se fossem alvos inertes, mas passa por eles como centros de transmissão envolvendo-os em uma espécie de teia social, uma rede fluida por onde a multiplicidade das relações de força escoa. Arendt (2010) igualmente só admite a existência do poder quando os homens agem juntos e entende que ele desaparece assim que se dispersam. Logo, para que o poder exista só é necessário que haja convivência contínua entre os homens.

É importante ressaltar que essa rede de relações, proposta por Foucault (2008), na qual o poder se exerce, não é um desencadeamento que tem sua gênese no aparelho do estado, na lógica capitalista ou nas infra e superestruturas sociais. Ou seja, não existe um centro específico do qual emana todo o poder. Pelo contrário, o poder é exercido de forma muito mais sutil, ramificada e ambígua do que se possa parecer, já que cada sujeito sempre opera certo poder e, por isso, o veicula na rede.

Como qualquer ação se dá entre seres capazes de reação, esta, além de ser uma resposta, é sempre outra ação que segue seu curso na rede, afetando os que nela se articulam (ARENDT, 2010). Há, portanto, a necessidade de uma análise ascendente do poder; ou seja, de como este se dá nas extremidades, onde as intenções são pontuais. Nessas relações capilares é que acontece o chamado processo de “sobredeterminação funcional”, no qual “cada efeito, positivo ou negativo, desejado ou não, estabelece uma relação de ressonância ou de contradição com os outros, e exige uma rearticulação, um reajustamento dos elementos heterogêneos que surgem dispersamente” (FOUCAULT, 2008, p. 245).

Essa espécie de governo de ninguém (anônimo), ainda assim evidencia certa generalização de algumas lógicas sociais que traria a noção de um suposto interesse único. Este não denunciaria, entretanto, a existência de uma mão invisível que teria toda a rede de poder sob controle (invenção que advém mais de uma perplexidade mental do que de qualquer experiência real); mas demonstraria como, pela transmissão que se dá nas relações de força, os interesses se impõem e transitam, reificando-se em “inter-esses”. Ou seja, o poder, na forma como aqui apresentamos, não deixa de governar por ter perdido sua personalidade (ARENDT, 2010; FOUCAULT, 2008).

3.2 – As relações de poder e a produção do saber

Não há verdade sem poder assim como não há saber neutro. Todo saber é político e toda produção de verdade se dá nas relações de poder (FOUCAULT, 2008). Quando se olha para o passado, ou melhor, para o que foi contado dele, Benjamin (2012b) denuncia a tendência que os historiadores têm de reconstruir os eventos a partir da ótica do vencedor e de silenciar a dos vencidos. Isso aconteceria porque os “detentores do poder” seriam os sucessores dos vencedores de outrora.

O discurso científico é um dos que mais se investe de uma suposta neutralidade na busca da verdade; segundo Foucault (2008) o cientista produtor da verdade toma os cuidados necessários para que o seu “desaparecimento” na estrutura de conhecimento seja possível. Contudo, o cientista, ao produzir qualquer saber, não pode desnudar-se de suas pulsões (função id) e dos saberes pré-concebidos (função personalidade) ambos politicamente (intersubjetivamente) engendrados.

Ao analisarmos discursos científicos de saberes como o da medicina e da psiquiatria que, ao longo da história, tem produzido a verdade da doença e da loucura, é importante verificar que, enquanto prática, eles estiveram sempre vinculados “a uma série de instituições, de exigências econômicas imediatas e de urgências políticas de regulamentações sociais” (FOUCAULT, 2008, p. 1). Por motivos como esse Foucault (2008, p. 118) “interroga as relações entre as estruturas econômicas e políticas de nossa sociedade e o conhecimento, não em seus conteúdos falsos ou verdadeiros, mas em suas funções de poder-saber”.

O saber da psiquiatria sobre os “transtornos mentais”, por exemplo, tem sido produzido através de inúmeras pesquisas científicas, direta ou indiretamente vinculadas à indústria farmacêutica, que têm estudado os transtornos mentais e comprovado a eficácia do tratamento farmacológico de cada um deles. A medicalização dos sentimentos, principalmente dos “negativos” (tristeza, por exemplo), entretanto, além de possibilitar o estabelecimento de um rentável mercado consumidor, denuncia a estratégia de reparação das “máquinas quebradas” para que possam voltar o mais rápido possível a cumprir o seu papel social (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a).

Benjamin (1987) aborda, de maneira indireta, a questão de o saber ser sempre político quando ressalta que o escritor burguês, mesmo sem perceber, trabalha a serviço de certos interesses de classe; da mesma forma, o escritor progressista teria sua atividade orientada pelo que fosse útil ao proletariado.

Embora se deva reconhecer, segundo Arendt (2010), a impossibilidade da apreensão da verdade como algo dado e desvelado, mas sempre como algo comprometido com a realidade política na qual foi concebida, Foucault (2008) se atenta ao fato de que a verdade é sempre deste mundo e que cada sociedade gera seu regime de verdade, acolhe determinados tipos de discursos e os faz funcionar como verdadeiros; ou seja, já que o homem não pode encontrar uma verdade anterior às implicações relacionais da ação e do discurso, pode, ao menos, conhecer uma verdade construída na ação (poder) e no discurso (saber) (FOUCAULT, 2008; ARENDT, 2010). 

Impõe-se uma necessidade de migração das questões sobre “o que” e “por que” para a questão de “como” determinada verdade veio a existir; “no lugar do conceito do Ser, encontramos o conceito de Processo” (ARENDT, 2010, p. 370).  

As verdades políticas que se apresentam como possibilidades socialmente funcionais são os dados de realidade a partir dos quais se constituem a função personalidade (FOUCAULT, 2008; MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a). Ninguém, em seu isolamento, produz valores ou se importa com eles (ARENDT, 2010). Os dados sociais formam, portanto, uma configuração valorativa à qual nos alienamos no intuito de nos definirmos como seres sociais, lograr uma identidade e um lugar social. Esse processo nos possibilita o confortável sentimento de pertencimento, dá um “chão”, ampara, reconhece e incumbe responsabilidades ao que se aliena (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2007, 2012a, 2012b). É só por meio desse espaço de convivência (político/intersubjetivo) que se pode estabelecer a realidade tanto do mundo circundante, quanto do “si-mesmo próprio”, de uma suposta individualidade (ARENDT, 2010).

3.3 – A noção de indivíduo como produção do poder e do saber

É comum considerar o poder, principalmente o que reflete os ideais capitalistas, como algo que descaracteriza e massifica, de forma que a “singularidade anterior” ou “essência” de cada indivíduo seria de alguma forma dominada e sufocada. Foucault (2008, p. 161-162) acredita que “o indivíduo, com suas características, sua identidade, fixado a si mesmo, é o produto de uma relação de poder que se exerce sobre os corpos, multiplicidades, movimentos, desejos, forças”.

Arendt (2010), assim como Foucault (2008), traz a noção de uma “teia social” de onde a percepção de individualidade se tornaria possível.  Ela nos atenta ao fato de que quando nos perguntam “quem” alguém é, acabamos por apresentar uma descrição das características que a pessoa compartilha com seus semelhantes; descrevemos um personagem.

Os autores da teoria do self (PERLS et al., 1997) buscam a análise de um sistema não dicotomizado em que a ideia de um indivíduo anterior se dissolveria na implicação da totalidade da experiência transcendental do campo organismo-ambiente. A noção que temos de nós mesmos é sempre uma abstração parcial encontrada e produzida pela função ato (ego) na atualidade das relações de poder e disponibilizada à dimensão reflexiva do self (função personalidade) como a representação linguística do outro social assimilado à noção de “eu mesmo” (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2007, 2012a).

Arendt (2010, p. 233) diz que “tanto o conteúdo específico como o significado geral da ação e do discurso podem assumir várias formas de reificação”. Assim sendo, a função personalidade pode ser vista como uma espécie de reificação da ação e do discurso.

A atualidade da ação assim como a do discurso, que nada mais é que uma forma de ação que faz uso de códigos linguísticos, nunca se dão no isolamento. É por meio da qualidade reveladora da ação (poder) e do discurso (saber), sempre no “espaço-entre”, que o “quem” (o agente) vai se desvelando (FOUCAUL, 2008; ARENDT, 2010). O agente nunca conhece de antemão a quem revela, pois essa identidade individual “está tão indissoluvelmente vinculada ao fluxo vivo do agir e do falar que só pode ser representada e ‘reificada’ mediante uma espécie de repetição” (ARENDT, 2010, p. 234).

Nas relações políticas, de acordo com Foucault (2008), se dá o nascimento de tudo aquilo que existe e tem valor para nós; na raiz do que conhecemos e somos está o poder. Portanto, da mesma forma que não há saber desconectado das relações de poder, não há individualidade que não seja social, ou subjetividade que não seja intersubjetiva, sendo assim, politicamente engendrada.

3.4 – O biopoder e o aliciamento do outro social

Se há relações de força é porque essas relações não são unilaterais, ou seja, envolvem inúmeras vontades e intenções conflitantes (ARENDT, 2010). Existem divergências e lutas dentro da própria rede de poder (FOUCAULT, 2008). Mas se o exercício do poder se resumisse a acidentes aleatórios ou descontinuidades provenientes das tensões nas relações díspares, viveríamos apenas em um entremeado de emergências sociais caóticas. Ao contrário, a teia social dinamiza-se em mecanismos de exercício de poder de forma a atingir uma generalização de determinadas formas disciplinares de controle que visam à produção/utilização de comportamentos e discursos claramente econômica e politicamente “nutritivos”. Ou seja, embora as tensões sejam resultado do encontro de interesses divergentes, ainda assim, parece que a forma como as relações sociais se articulam acabam se mostrando, segundo Benjamim (1987), comprometidas com as relações de produção ou, de acordo com Müller-Granzotto (e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a), alienadas no produtivismo consumista.

Essa biopolítica, ou seja, o controle que a sociedade capitalista investiu nos corpos não se dá porque o poder está concentrado em uma instituição, classe ou pessoa (FOUCAULT, 2008); pelo contrário, o poder está tão “des-concentrado” que, na busca de um lugar social, os corpos acabam por se sujeitar a interesses de um outro: o “outro social”. Essas sujeições, que se dão nas relações de poder, acabam por denunciar a forma com que esses padrões sociais aparentemente se cristalizam. Ora, mas quem seria esse outro social? Poderia ele ser comparado a uma mão invisível na história, conceito acolhido por Benjamim (1987, 2012a, 2012b), no entanto tão criticado por Foucault (2008; ARENDT, 2010)?

Se entendermos a função personalidade como sempre socialmente determinada, portanto, valendo intersubjetivamente como um “espelho social”, pode-se dizer que a definição de outro social é análoga à de função personalidade (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012b). As relações de força, possibilitadas pela própria rede de poder, são as ações que viabilizam a criação de uma função personalidade de validade intersubjetiva, ou seja, a própria existência do outro social; este não como uma generalidade estática de orientação das relações sociais, mas como generalidade dinâmica que condiciona e é condicionado por elas; tanto abrange o processo de “sobredeterminação funcional”, quanto viabiliza o “preenchimento estratégico” nas próximas relações de poder (FOUCAULT, 2008; MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012b).

Isso só é possível porque a biopolítica não se limita à sua função repressiva. Se ela tivesse como estratégia agir somente por meio da censura, da exclusão, do recalque; se fosse um “Super-ego” que se impusesse somente de forma proibitiva, seria muito frágil. O que faz com que o poder enquanto disciplina seja aceito e se regulamente através da rede social é o fato de que ele não se restringe a dizer não, mas produz coisas, discursos, proporciona prazer e também viabiliza efeitos positivos tanto ao nível do saber quanto ao nível do desejo (FOUCAULT, 2008).

O biopoder, portanto, é uma realidade estratégica que não tem interesse em expulsar os homens da vida social ou de impedi-los de exercitar suas atividades, mas sim de geri-las; controlar os corpos em suas ações, aperfeiçoando-os e potencializando suas capacidades para utilizá-los ao máximo (FOUCAULT, 2008). Benjamin (2012b, p. 15) já havia denunciado a estratégia de aliciamento do outro social, que para ele era mera ferramenta cruel voltada aos interesses da burguesia, ao dizer que “nada corrompeu mais as classes trabalhadoras alemãs do que a ideia de que elas estavam integradas na corrente dominante”.

Quanto mais os indivíduos se veem inseridos nos mecanismos de poder disciplinares (alienados ao outro social), por deverem a própria condição de indivíduos à biopolítica, menor é a capacidade de ações espontâneas (desvios, resistência ou revolta) e maior sua docilidade e utilidade econômica e política. Isso posto, a biopolítica não é somente a ação de reprimir os comportamentos, mas a de produzi-los e normalizá-los; não tem o objetivo de descaracterizar o indivíduo, mas justamente de o fabricar e se apresentar como possibilidade de articulação dos hábitos, representações e desejos do indivíduo sempre socialmente engendrados, comprometidos, portanto, com os interesses do outro social (FOUCAULT, 2008; ARENDT, 2010; MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012b).

3.5 – O outro social e sua reificação à noção de “eu mesmo”

Foucault aproveitou a noção do panopticon para explicar a forma com que os mecanismos do poder disciplinar penetram nos corpos e nos comportamentos. O panopticon, construção de estrutura circular e visível na periferia com uma torre central que tudo vê, que poderia ser usado em prisões, hospícios, escolas, etc., foi visto como uma inovação disciplinar. O objetivo era que nem houvesse a necessidade de punição, mas que as pessoas sequer pudessem “agir mal” de tão mergulhadas num “campo de visibilidade total em que a opinião dos outros, o olhar dos outros, o discurso dos outros os impediria de fazer o mal nocivo” (FOUCALT, 2008, p. 215-216). Acabava que o olhar constante fazia com que cada prisioneiro, louco ou aluno “internalizasse” a disciplina ou, a partir de uma perspectiva mais fenomenológica, se identificasse com ela a ponto de observar a si mesmo; desse modo, cada um exerce a vigilância sobre e contra si mesmo.

O olhar invisível exercido através da “internalização”, como no exemplo do panopticon, interessa muito aos dispositivos disciplinares biopolíticos, segundo Foucault (2008), pois permite que a disciplina seja articulada de maneira contínua, com um custo relativamente baixo e suprime a possibilidade de revoluções; o corpo (prisioneiro, louco ou aluno) que adquiriu a visão de quem olha já não pode mais reconhecê-la somente no outro, pois o outro social agora é também “eu mesmo”.

É a disciplina biopolítica, sempre no “espaço-entre”, que produz o que “inter-essa”(FOUCAUL, 2008; ARENDT, 2010). Não há como responsabilizar alguém por uma emergência que sempre se produz no interstício; e são essas estratégias anônimas que fazem com que não haja diferença de natureza entre o poder exercido por um simples policial e pelo primeiro ministro (FOUCAULT, 2008).

Por meio dessa discreta reificação do outro social à noção do eu mesmo não é mais somente o outro que quer que eu me aliene ao produtivismo consumista; sou eu que entendo que tenho o direito de ser feliz e “livremente” decido me alienar ao que me aparece como possibilidade. Para isso me disciplino, administro meu tempo e meus comportamentos para que possa ser socialmente bem sucedido, ou seja, estar satisfatoriamente apto a produzir e a consumir (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a). O próprio “lugar social” se torna um bem de consumo; o status, a admiração pública satisfazem as novas necessidades do corpo, são consumidos pela vaidade assim como o alimento é consumido pela fome (ARENDT, 2010).

4 – NEUROSE COMO UM AJUSTAMENTO DE ARTICULAÇÃO POLÍTICA

As repercussões das relações de poder no sistema self são muitas. Entende-se que nos ajustamentos de articulação política, onde a vulnerabilidade se encontra na função ato (ego), diante da demanda por alienação do outro social o self pode se ajustar de maneira antissocial – suprimindo o outro social (função personalidade) e dando voz ao excitamento (função id) que se atualiza enquanto hábito claramente confrontador ao outro demandante; pode se ajustar de maneira banal – se omitindo tanto do que se apresenta enquanto excitamento (id) quanto da demanda do outro social (personalidade), por exemplo, nas adicções; ou pode se ajustar de maneira evitativa (neurose) – inibindo o que se apresenta enquanto hábito (id) em favor das representações sociais/demandas do outro social (personalidade) (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2007, 2012a). O que nos interessa nesse caso são os ajustamentos evitativos, pois são eles que permitem que o poder transite “fluidamente” pela rede social e que seus mecanismos biopolíticos se consolidem.

4.1 – Evitação como forma de sujeição aos mecanismos disciplinares

Os hábitos (id), assim como as representações (personalidade), são sempre de valência intersubjetiva; ou seja, as ações dos corpos de atos (ego) estão sempre apoiadas na transitividade dos hábitos sociais. A partir da vivência dos processos de imitação e aprendizagem, as ações podem herdar dos hábitos compartilhados intersubjetivamente uma orientação afetiva (id). Deve-se ficar claro, portanto, que a neurose não descreve uma pessoa, um comportamento individual ou uma identidade (ninguém é neurótico a não ser em uma “rel-ação” em que a evitação seja demandada) (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a). A neurose é um ajustamento, uma forma de lidar com a ambiguidade social, a ação de se evitar algo (hábito socialmente engendrado) em favor da manutenção de um laço social (representação socialmente engendrada) e, como coloca Arendt (2010, p. 235), a “ação jamais é possível no isolamento”.

A neurose é a perda das funções de ato (ego) para uma fisiologia secundária (id); “é a evitação do excitamento espontâneo e a limitação das excitações” (PERLS et al., 1997, p.235). A neurose aparece sempre como uma forma de apego a um evento ou eventos passados; de forma que a inibição deliberada (ego) de um hábito (id), ao se repetir, acaba tornando-se ela própria, um hábito, a saber, uma inibição reprimida (id). Independentemente da gênese de um hábito inibitório (evento passado) estar aparentemente desconectada do evento atual, esse hábito não se apresenta desvinculado da demanda atual por alienação à verdade do outro social. (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2007, 2012a).

As relações heterogêneas não nos permitem o reconhecimento/reencontro de nós mesmos como totalidades coerentes, mas “introduzem” suas ambiguidades no sistema self. A história, enquanto sequência de encontros ambíguos, “dividirá nossos sentimentos; dramatizará nossos instintos; multiplicará nosso corpo e o oporá a si mesmo [...] É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar” (FOUCAULT, 2008, p. 27-28).

A ambiguidade dos múltiplos elementos distintos, que nenhum poder de síntese domina, sempre presente nas relações de poder, faz com que a luta não seja, de forma imediata, entre o proletariado e a burguesia, por exemplo. A luta se dá em toda relação de poder e é o que constitui a noção de indivíduo. Na neurose, a noção de indivíduo, que é forjada no conflito, produz a impressão de algo que Foucault (2008, p. 257) chama de “sub-indivíduos” ao descrever que “existe sempre algo em nós que luta contra outra coisa em nós”. Analisando essa afirmação pode-se dizer que há sempre algo na função personalidade que é conflitante com algo na função id e essa é a origem de toda a ambiguidade neurótica (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a).

No contexto das relações de poder, a sujeição (inibição deliberada do que se apresenta como excitamento/hábito em favor da fruição dos mecanismos disciplinares encarnados pelo outro social: o “corte do saber”) enquanto escolha da função ato é uma forma de ajustamento socialmente funcional e não pode ser considerada ainda neurose, embora não deixe de ser uma evitação. O que acontece é que, ao se repetir, a própria sujeição deliberada aos mecanismos disciplinares torna-se uma fisiologia secundária e começa a se apresentar como hábito (concorrente à autonomia da função ato dividindo a ação individual na atualidade). Ou seja, a função ato perde para a função id a capacidade de decidir quando é pertinente se sujeitar. A disciplina enquanto forma de orientação anônima não é mais uma escolha da minha individualidade enquanto ato (ego), nem do outro social (personalidade), mas de “outrem” (id), e acaba, quando demandada, impedindo que o hábito espontâneo se atualize; o que chega para a função ato é apenas o resultado desse conflito: a ansiedade; e é somente com esse resultado da sujeição habitual em detrimento ao hábito espontâneo que a função ato pode operar (PERLS et al., 1997; FOUCAULT, 2008; MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a).

4.2 – A cristalização da forma de sujeição como tentativa de resistência ao biopoder

A noção de outro social enquanto função personalidade está continuamente se atualizando em cada relação de poder pelo processo de sobredeterminação funcional. Isso faz com que a própria ação de se sujeitar aos interesses do outro social, para continuar sendo formas de ajustamento funcionais, tenha de ser constantemente atualizada. Como já vimos que o ajustamento neurótico é não só uma forma de apego ao passado, mas um apego ao estilo de manter-se apegado, ele aparece também como uma forma sôfrega de resistência à demanda atual por alienação. O sujeito que se apresenta desorientado, dividido, inseguro, incapaz ou até doente diante do envolvimento em um laço social conflituoso na atualidade das relações de poder, tenta, embora muitas vezes inconscientemente, manipular os sujeitos que encarnam o outro social na relação a assumirem a responsabilidade/culpa pela sua ansiedade (FOUCAULT, 2008; MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a).

Todos esses acontecimentos se inscrevem nos corpos envolvidos na situação conflituosa. Assim como Foucault (2008) coloca a história (sequência de ambíguas relações de poder) como algo que marca, divide e arruína o corpo (lugar de dissociação da noção eu), a ansiedade (atualização corporal da ambiguidade) que transita pelos corpos por meio da manipulação é o que os faz sofrer (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a).

Entende-se que a partir do momento em que o sofrimento – decorrente da ação em um laço social ambíguo e da internalização dessa ambiguidade no sistema self – apresenta-se com uma função/utilidade manipulatória, ou seja, traz a possibilidade de suspensão temporária do peso das demandas do outro social por alienação, deve-se compreender a neurose também como uma forma de rebeldia, embora não efetiva (pois não consegue remover o outro social de sua posição de poder), ainda assim criativa (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a).

As queixas neuróticas são sempre direcionadas a um “outro” que não conseguem satisfazer ou suportar. Sempre se queixam de personagens (pai, mãe, filhos, chefes, cônjuges, inclusive o “outro-ele-próprio”) que encarnam os interesses do outro social. Essa estratégia de transferência da ansiedade causada pela ambiguidade instaura uma espécie de jogo manipulatório onde os envolvidos na relação se veem enredados em um grande teatro e nele “atuam” como se, agindo assim, a existência da ambiguidade pudesse ser desconsiderada (FOUCAULT, 2008; MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a).

Acontece que, como Foucault (2008) coloca, a neurose é um dentre os muitos fenômenos já apropriados pelos mecanismos biopolíticos de controle. Não demora muito para o sujeito que manipula, atua e realmente sofre por conta desses conflitos (a ponto de conseguir suspender temporariamente a demanda do outro social) ser submetido a uma série de dispositivos de saber científicos e religiosos, por exemplo, que em última análise logram reinseri-lo na lógica que o adoeceu (realiená-lo aos interesses do outro social) (FOUCAULT, 2008; MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a).

Quando o ajustamento evitavivo, enquanto forma sôfrega de resistência, não surte efeito e o sujeito é forçado a se submeter a dispositivos de saber aos quais não necessariamente se identifica, entende-se que este já não faz um ajustamento de articulação política, mas está em sofrimento político (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012b).

5 – O GESTALT-TERAPEUTA COMO POSSIBILIDADE DE ACOLHIMENTO DOS "CONTRADISCURSOS" NO SISTEMA SELF

Foucault faz uma comparação entre o que ele chama de intelectual universal e o específico. O intelectual universal seria aquele que se vê no “direito de falar enquanto dono de verdade e de justiça” (FOUCAULT, 2008, p. 8); o escritor genial que direciona seu olhar claro, objetivo e neutro à obscura coletividade proletariada, por exemplo, e entende “que é portador de significações e de valores em que todos podem se reconhecer” (FOUCUALT, 2008, p. 11). O intelectual específico seria aquele que não se contenta em ficar atrás da “caneta” e seu engajamento o permite “uma consciência muito mais concreta e imediata das lutas” (FOUCAULT, 2008, p. 9); este não se propõe a aconselhar o proletariado ao que fazer; oferece apenas os instrumentos de análise, por entender que a “aura” da verdade está apenas no calor das relações de poder; portanto, “cabe àqueles que se batem e se debatem encontrar, eles mesmos, o projeto, as táticas, os alvos de que necessitam” (FOUCAULT, 2008, p. 151).

Foucault, ao repensar o papel do intelectual, entende que ele não deva ser o porta-voz ou o “veículo” da verdade, mas somente aquele que cria oportunidades para que os contradiscursos sejam ouvidos (FOUCAULT, 2008; MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012b).

Embora seja improvável que um gestalt-terapeuta, consciente das repercussões das relações de poder no sistema self, queira se intitular um intelectual específico (até pela conotação de saber/poder que a palavra “intelectual” traz) existe certa semelhança entre a postura do intelectual específico em relação à comunidade em que está engajado e a postura do gestalt-terapeuta em relação ao seu consulente.

Diante de tudo o que já foi discutido, já não faz mais sentido que o terapeuta gestáltico realize uma clínica enquanto administração de um saber (klinikós) impondo, assim como o intelectual universal de Foucault (2008), qualquer sentido ou verdade a respeito do que trouxe o consulente à terapia; não se propõe, como em muitas psicoterapias, a estabelecer uma prática sugestiva e reabilitadora orientada por metas ou ideais (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a).

Também não faz mais sentido que o terapeuta desenvolva um trabalho com um enfoque na “cura” ou na eliminação do sofrimento, pois por trás do ideal de vida sã e sem sofrimento está uma forte demanda de alienação no produtivismo consumista. O ideal introduz uma “falta” que impele à alienação das vidas, incluindo do próprio sofrimento, em interesses alheios; esses mecanismos, longe de preencherem a falta que introduzem, acabam apenas se retroalimentando no sofrimento que geram (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a). Ou seja, a demanda por felicidade e a disseminação da infelicidade “são alguns dos mais persuasivos sintomas de que já começamos a viver em uma sociedade de trabalho que não tem suficiente trabalho para mantê-la contente” (ARENDT, 2010, p. 166). 

A teoria do self permite a identificação de pelo menos três formas de se aproximar de uma experiência intersubjetiva: uma dimensão antropológica (personalidade), que abarca os recursos sociais que se doam à experiência; uma dimensão ética (id), que leva em consideração uma gênese de orientação afetiva que também se doa à experiência; e uma dimensão política (ego) que diz respeito à própria atualização das dimensões anteriores no ato que se circunscreve nas relações de poder. Embora essas dimensões sejam inseparáveis, pois são apenas três pontos de vista diferentes de uma mesma experiência, não há uma síntese harmoniosa entre elas; ou seja, as dimensões implicam uma indivisão sem síntese e, justamente por isso, o sistema self não é estático, mas se dinamiza, ajustando-se criativamente a cada experiência de contato (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a).

Entende-se que a mera internalização dos mecanismos disciplinares no sistema self não faz com que os elementos inibidos ou reprimidos desapareçam; a disciplina só os tira o direito de cidadania social, embora sejam socialmente engendrados. A biopolítica cria, transforma e dá lugar social aos elementos da função id segundo seus critérios de adequação/utilidade político-econômica. Há, segundo Arendt (2010), uma pré-indisposição da rede social em abrigar o irrelevante. Porém, a pertinência de que os excitamentos espontâneos tenham “voz” no sistema self, assim como a de que os contradiscursos sejam ouvidos na sociedade em que foram gerados – semelhante à legitimidade que Arendt (2010; BENJAMIN, 2012a) dão à fruição artística comprometida, não com uma utilidade política, mas apenas com o gozo do ritual – se exprime na possibilidade de um self mais integrado à sua impossibilidade de síntese e a possibilidade de uma sociedade mais implicada à impossibilidade de um discurso legitimamente único.

Segundo o princípio de utilidade enquanto meio para um fim que, por também ser meio para outro fim, movimenta a teia social em prol da retroalimentação de uma falta introduzida pela própria busca de preenchimento da falta anterior, não há lugar para a atualidade enquanto fim, mas sempre somente enquanto meio. O fenômeno de um self integrado à sua realidade de indivisão sem síntese encontra-se totalmente fora da categoria de meios e fins e poderia ser visto, assim como na fruição da expressão artística, como uma das poucas atualidades sociais cujo fim está em si mesmo; uma vez que “os meios de alcançar o fim já seriam o fim; e esse “fim”, por sua vez, não pode ser considerado como meio em outro contexto, pois nada há de mais elevado a atingir que essa própria atualidade” (ARENDT, 2010, p. 258). 

A proposta da Gestalt-terapia está, portanto, em uma postura ética de clínica enquanto autorização/acolhimento daquilo que, no discurso e na ação, causa desvio ou estranhamento (clinamen); aquilo que, muitas vezes, é inibido por ser considerado socialmente irrelevante. É a prática de se permitir tanto o terapeuta quanto o consulente a transcender, ir mais além, ao que já é sabido. Deve poder acolher, por exemplo, “a rebeldia implícita às ações manipulatórias dos sujeitos que se apresentam divididos entre atender à demanda social e defender-se de algo que eles próprios parecem ignorar a respeito de si ou do meio em que estão inseridos” (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a, p. 186).

Não interessa ao terapeuta gestáltico determinar se o ajustamento neurótico é um fenômeno de características individuais ou sociais; o objeto de interesse é o laço social conflituoso. Somente por meio da pontuação das relações de poder que vão se estabelecendo no campo “terapeuta-consulente” – que é a única vivência cuja “aura”, por ser atual, existe – o consulente pode se apropriar daquilo que produziu na relação, da forma como vive o poder, da função e do estilo de suas ações de enfrentamento ao outro social; e, assim, ampliar suas formas em prol de um retorno à autonomia deliberativa quanto à conveniência do exercício do poder ou da sujeição a ele (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a).

Foucault conta que sonha com o intelectual que derrubaria as evidências e as universalidades; que se engajaria sempre descompromissado de qualquer finalidade fixa; um intelectual:

"[...] que localiza e indica nas inércias e coações do presente os pontos fracos, as brechas, as linhas de força; que sem cessar se desloca, não sabe exatamente onde estará ou o que pensará amanhã, por estar muito atento ao presente; que contribui, no lugar em que está, de passagem, a colocar a questão da revolução, se ela vale a pena e qual (quero dizer qual revolução e qual pena)" (FOUCAULT, 2008, p. 242).

O terapeuta, portanto, deve se implicar na relação, considerando a primazia da experiência clínica em detrimento às suas “pré-concepções” teóricas, “o que envolve submeter suas concepções a uma espécie de capacidade de autorregulação que a própria experiência imporia” (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a, p. 181). Ele deve privilegiar a emergência da espontaneidade criativa, provocá-la e, mesmo sem saber até onde essa “permissividade” os levará, ou o porquê de ela acontecer assim, deve se submeter à condição que estabelece de tal maneira que, no fim das contas, não haja nenhum saber dado a não ser o de que todos os saberes devem poder estar sendo sempre recriados (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012a).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de tudo que foi exposto entende-se que é indispensável a consideração do sistema self segundo a primazia relacional de transcendência espaço-temporal no campo organismo-ambiente, relacionando-o – em sua totalidade sempre de valência intersubjetiva – com as relações de poder que permeiam a teia social.

A análise do poder, não como algo que se possui, mas como ação que se dá sempre no interstício de qualquer relação e que transita pela rede social produzindo, tanto os discursos que valem como verdade, quanto o próprio indivíduo segundo critérios de utilidade político-econômica, permite-nos compreender como, através da internalização da ambiguidade sempre presente nas relações de poder no sistema self, podemos testemunhar a neurose como um ajustamento criativo de articulação política. Embora as heterogeneidades existam, a biopolítica – que somente é “localizável” por meio da encarnação do outro social nas relações de poder – se estabelece como se pudesse produzir somente o relevante, preenchendo estrategicamente tanto os excitamentos espontâneos (analisando a experiência a partir da perspectiva do sistema self), quanto as ações espontâneas (analisando a experiência a partir da perspectiva da rede social), de forma a reificá-los em coisa útil (utilizando-os como meio para atingir fins outros).

Há, portanto, na proposta do gestalt-terapeuta uma postura ética de acolhimento ao que é socialmente estranho ou irrelevante como possibilidade de integração do sistema self à sua totalidade de indivisão sem síntese enquanto fim em si mesmo. Esse experimento descompromissado de suspensão das lógicas biopolíticas, ainda assim, atento às relações de poder que possam se estabelecer entre o terapeuta e consulente acaba por possibilitar uma ampliação das formas no que diz respeito a um retorno à autonomia deliberativa quanto à conveniência do exercício do poder ou da sujeição a ele. O fato da vivência gestáltica enquanto fim em si mesmo ter resultados posteriores não retira a legitimidade atual da experiência descompromissada, assim como um possível valor atribuído a uma obra de arte, posterior à sua execução, não retira a legitimidade da fruição, comprometida apenas com o gozo do ritual, que a produziu.

Finalmente, articular a teoria do self com as relações de poder que se dão na sociedade é tarefa complexa e delicada. O diálogo estabelecido neste trabalho logra contribuir para uma compreensão não dicotomizada da noção de indivíduo-sociedade ao problematizar a intersecção da compreensão gestalt-terapêutica da teoria do self com a noção das relações intersubjetivas enquanto relações de poder; mas não se propõe, em nenhum momento, a esgotar as possibilidades abertas por essa intersecção. Pesquisas futuras deverão ampliar as inúmeras possibilidades de aproximação das relações de poder e suas repercussões no sistema self.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BENJAMIN, W. A Obra de Arte na Época de Sus Reprodutibilidade Técnica. Porto Alegre: Zouk, 2012.

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MÜLLER-GRANZOTTO, M. J.; MÜLLER-GRANZOTTO, R. L. Fenomenologia E Gestalt-Terapia. São Paulo: Summus, 2007.

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PERLS, F. S. et al. Gestalt -Terapia. 2ª ed. São Paulo: Summus, 1997.

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Endereço para correspondência
Israel Ferraz de Souza
Endereço eletrônico: israelferraz@gmail.com

 

Recebido em: 16/04/2014
Aprovado em:
29/08/2014

Notas

* Psicólogo pela Universidade Católica Dom Bosco (2010); Pós-graduado em Sociologia pela Universidade Gama Filho (2013); Gestalt-Terapeuta e especialista clínico pelo Instituto MÜller-Granzotto (2013).