ARTIGO

O psicoterapeuta invisível: reflexões sobre a prática Gestáltica com ajustamentos autistas

The invisible psychotherapist: reflections about a gestaltic practice with autist adjustments

Marina Nogueira de Barros*

CCGT - Centro de Capacitação em Gestalt Terapia - Belém, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Consiste esta pesquisa bibliográfica em uma tentativa de ampliar os conhecimentos sobre a Gestalt-terapia, trazendo o histórico desta abordagem da Psicologia e os conceitos básicos utilizados pela mesma, como awareness, figura-fundo, aqui-agora, relação dialógica, teoria de campo de Kurt Lewin, teoria organísmica de Kurt Goldstein e Psicologia da Gestalt. Para assimilação de como se dá a prática clínica através destes conceitos foi necessário revisar e acrescentar referencial teórico acerca da compreensão da teoria do self (funções id, ego e personalidade) e os ajustamentos que dela decorrem (neuróticos, aflitivos e psicóticos), sendo nesta pesquisa aprofundado o conhecimento dos ajustamentos psicóticos ou de criação como um comprometimento da função Id, que é entendida como o fundo de vividos do sistema self, o qual é espontâneo e não há controle sobre o mesmo e que podem fazer muitas experiências parecerem sem sentido num dado momento. Estes ajustamentos são divididos em ajustamentos de preenchimento de fundo, ajustamentos de articulação de fundo e ajustamentos de defesa contra a demanda ou de isolamento (autismos). O presente estudo focaliza-se buscando revisar e acrescentar conhecimentos sobre os ajustamentos de defesa contra a demanda ou isolamentos (ajustamentos autistas); compartilhar o conhecimento que foi pesquisado bibliograficamente; e também compartilhar a vivência do psicólogo e as implicações que este tipo de prática causa a estes profissionais, visto que ainda é uma área restrita em produções científicas dentro da referida abordagem e que necessita de mais embasamento teórico-vivencial, inclusive para melhorar a prática dos Gestalt-terapeutas que têm afinidade ou vivenciam esta área.

Palavras-chave: Gestalt-terapia; Teoria do Self; Ajustamentos Psicóticos; Autismo.

 


ABSTRACT

This review is an attempt to broaden the knowledge about Gestalt therapy, bringing the history of this psychology approach and the basic concepts used by it, as awareness, figure-ground, here and now, dialogical relationship, Kurt Lewin field theory, Kurt Goldstein organismic theory and Gestalt Psychology. To assimilate how is the clinical practice through these concepts was necessary to review and add about the theoretical understanding of the self theory (id functions, ego and personality) and adjustments resulting from it (neurotic, distressing and psychotic), being depth in this search the knowledge of psychotic or creation adjustments as a function impairment of the Id, which is understood as the fund experienced of the system self, which is spontaneous and there is no control over it and can make many experiments seem meaningless in given time. These adjustments are divided into background fill adjustments, background articulation and defense against demand or isolation adjustments (autism). The present study focuses on seeking review and add knowledge about the adjustments of defense against the demand or isolation (autistic adjustments); share the practice that was bibliographically investigated, and also share the experience of the psychologist and the implications that this type of practice for these professionals, knowing that this is a restricted area in scientific production within the same approach and requires more theoretical-experiential, including to improve the practice of Gestalt therapists who have affinity or experience in this area.

Keywords: Gestalt Therapy; Self Theory; Psychotic adjustments; Autism

 


1.INTRODUÇÃO

A Gestalt-terapia, fundada por Frederick e Laura Perls, entre outros, na década de 1940, é uma abordagem fenomenológico-existencial da Psicologia que ensina terapeutas e clientes o método fenomenológico de awareness que se focaliza no processo (o que está acontecendo no aqui-agora) e tem como objetivo tornar os clientes mais conscientes (aware) do que estão fazendo, como estão fazendo, o que estão sentindo e assim, possibilitar a aceitação, valorização e mudança (YONTEF, 1998).

A Gestalt-terapia desenvolve uma perspectiva unificadora do ser humano, integrando ao mesmo tempo, as dimensões sensoriais, afetivas, intelectuais, sociais e espirituais, favorecendo um contato autêntico com os outros e consigo mesmo, um ajustamento criador do organismo ao meio, assim como uma consciência dos mecanismos interiores que nos levam a condutas repetitivas (GINGER & GINGER, 1995)

A Gestalt-terapia tem como bases filosóficas o Humanismo, Existencialismo e Fenomenologia e é também fundamentada na Teoria de Campo (Kurt Lewin), Teoria Organísmica (Kurt Goldstein) e a Psicologia da Gestalt. Trabalha-se, tradicionalmente, com a noção das três clínicas gestálticas: Neurose, Psicose e Aflição (MÜLLER-GRANZOTTO e MÜLLER-GRANZOTTO, 2012)

Ribeiro (1998) acrescenta que esta influência atingiu os primeiros criadores da Gestalt-terapia que se formaram num clima permeado, primeiramente pelas influências de Kurt Goldstein e indiretamente pela cultura européia continental da época, pelos psicólogos da Gestalt.

O presente trabalho abordará o tema relacionado à formação do Gestalt terapeuta e o atendimento clínico com pessoas que fazem Ajustamentos Psicóticos. Especificar-se-ão os ajustamentos de defesa contra a demanda (ou ajustamentos autistas), trazendo como problema de pesquisa os questionamentos acerca da formação do Gestalt terapeuta para trabalhar com estas demandas e as implicações desta prática em sua vida como um todo.

Esta pesquisa tem como objetivos: identificar como é a formação do psicólogo clínico no Brasil de um modo geral; introduzir a noção de como se dá a prática da Gestalt-terapia e suas bases teóricas; averiguar como o Gestalt-terapeuta intervém nos ajustamentos psicóticos, mais especificamente os ajustamentos de defesa contra a demanda - ajustamentos autistas; identificar as consequências deste trabalho na vida do Gestalt terapeuta; e compreender a importância do olhar especializado do Gestalt terapeuta com estas demandas.

A produção acerca do preparo pessoal e técnico do Gestalt terapeuta ainda é um tema escasso, porém não menos importante visto que partimos do pressuposto básico da implicação do psicoterapeuta no processo. Os resultados desta pesquisa visam contribuir para a sociedade, ao meio acadêmico, aos profissionais da área, principalmente à Gestalt terapia que ainda está em crescimento no que se refere à produção científica, o que contribui diretamente às práticas clínicas realizadas por estes profissionais.


2. FUNDAMENTOS TEÓRICOS DA GESTALT-TERAPIA

Antes mesmo da profissão de Psicologia ser Regulamentada, fato que ocorreu em 27 de agosto de 1962, a partir da Lei n° 4.119/62 e o parecer 403/62 que, respectivamente regulamenta o exercício da profissão de psicólogo e que fixa o currículo e a duração do curso, já havia profissionais atuando em vários contextos, dentre eles, o hospital (HADDAD e COLS., 2006).

O curso de formação em Psicologia cresceu significativamente desde a década em que a profissão foi regulamentada, totalizando até o ano de 2006 em 320 cursos, enquanto que no início da década de 90 existiam apenas 102. Em 2004, havia 272 cursos, sendo 51 oferecidos por instituições públicas e 221 por instituições privadas. (HADDAD e COLS., 2006).

Segundo os autores acima citados, a partir de uma pesquisa realizada pelo IBOPE com 2.000 psicólogos, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) elaborou um perfil deste profissional que indicou que 46% deste total concluiu o curso entre os anos de 1997 e 2003 e que a maioria das pessoas entrevistadas (92,8%) é do sexo feminino.

Ainda de acordo com o Perfil do Psicólogo, sobre as preferências por áreas e especialidades da Psicologia, tanto em nível de atuação como na frequência a cursos de pós-graduação, verificou-se que há o predomínio do encaminhamento para a Psicologia Clinica e para a da Saúde, pois, mais de 60% das psicólogas esperam exercer sua profissão nessas duas especialidades.

A Gestalt terapia, como abordagem da psicologia, foi fundada por Frederick Perls, médico e judeu, com a ajuda de sua esposa Laura Perls, entre outros. Tàrrega (2012) conta que o casal viu-se obrigado a fugir da Alemanha, com a ascensão do nazismo em 1933, para a África do Sul. Lá, aconselhados por Erich Fromm e Clara Thomson, resolveram mudar-se definitivamente para os Estados Unidos.

Inicialmente a Gestalt-terapia não era idealizada como uma teoria própria. Laura e Fritz eram psicanalistas, e sua obra “Ego, fome e agressão” era apenas uma releitura dos escritos de Freud. Esta obra teve influência do filósofo alemão Salomão Friedlander, do sul-africano Jan Smuts. Outras influências sobre vida são Max Reinhard, diretor de teatro e do movimento Bauhaus Outras influências sobre vida de Perls e que o ajudaram na construção do saber da Gestalt- terapia foram: Max Reinhard, diretor de teatro e do movimento Bauhaus. A análise psicanalítica realizada em Berlim, Frankfurt e Viena com Karen Horney, Happel Clara e Wilhelm Reich;supervisões com Helen Deutsch, Fenichel Otto e Federn Pauloe o trabalho em Frankfurt com o neuropsiquiatra Kurt Goldstein.

Em 1951, foi publicada a grande obra, Gestalt Therapy, uma reunião que cercou um grupo de intelectuais, entre os quais estão Paul Goodman, Isadore From, Paul Weisz, Shapiro Elliott e Eastman Sylvester (Perls, Goodmann e Hefferline), ganhando grande impulso no início dos anos 60 por ser uma corrente de pensamento e prática terapêutica afinada (em alguns dos seus pressupostos) com os movimentos de contracultura, fenômeno histórico efervescente nos EUA e na Europa nessa época.

De acordo com Prestrelo (2001), Perls percorreu o país realizando workshops, divulgando seu trabalho:

“Seus trabalhos em grupo pareciam propiciar “curas” milagrosas, dado a rapidez na resolução dos conflitos apresentados por seus participantes. Não se levava em conta sua vasta experiência profissional, seus 50 anos de prática clínica, as quatro análises vividas e seus 76 anos – que fundamentavam a incrível perspicácia clínica que se concretizava no exercício de seu trabalho” ( p.5)

De acordo com Prestrelo (2001), no Brasil, a Gestalt terapia chega em 1972 através dos conhecimentos adquiridos de workshops em Londres por Thèrése Tellegen. A partir disto, Jean Clark Juliano, Walter Ferreira da Rosa Ribeiro, Paulo Barros, Abel Guedes e Lílian Frazão começaram a formar um grupo onde surgiu a necessidade de aprofundar os conteúdos trabalhados nos workshops. Isto resultou no movimento de contracultura, rejeitando algumas formas rígidas e sistematizadas de trabalho europeias. Devido a este movimento, a Gestalt-terapia viu-se sem grande fundamentação teórica e então os estudos se intensificaram.

Este autor traz também que em 1978, Walter Ribeiro, junto com outros profissionais, de diferentes lugares do Brasil, criou em Brasília o primeiro grupo de formação em Gestalt-Terapia, auxiliado pela terapeuta residente na Califórnia, Maureen Miller.

A partir de então foram criados centros de formação, de especialização que se expandiu pelo Brasil e então se publicou a primeira obra brasileira “Gestalt e Grupos: Uma perspectiva sistêmica” de Thèrése Tellegen, seguida em 1985 pelo livro de Jorge Ponciano Ribeiro: “Gestalt-Terapia: Refazendo um caminho”.

Segundo Holanda & Karwowski (2004):

“ Com o crescimento dessa abordagem no país, surgiu, em 1986, organizado pelo grupo do Rio e coordenado por Teresinha Mello, o I Encontro de Gestalt-terapeutas do Rio de Janeiro que, embora com um nome regional, contou com a presença de gestalt-terapeutas de todo o País. Tendo assumido essa magnitude, o segundo encontro foi, então, organizado pelo grupo de São Paulo, intitulado por seus organizadores II Encontro Nacional de Gestalt-terapia, realizado em Caxambu (1989). Conferiu-se, assim, um status de encontro nacional ao primeiro encontro realizado no Rio de Janeiro. Passou-se, então, a repetir o encontro a cada dois anos: em Brasília (DF), em 1991; em Recife (PE), 1993; em Vitória (ES), em 1995; em Florianópolis (SC), em 1997; em Goiânia (GO), em 1999; em Fortaleza (CE), em 2001, e em Gramado (RS), em 2003”(p. 62).

Segundo Holanda & Karwowski (2004), os poucos dados históricos sobre a Gestalt-terapia influenciam também na ideia de que ainda é considerada uma teoria frágil no meio acadêmico da Psicologia, porém esta ideia vem se modificando e uma das maiores formas para que essa teoria se fortaleça seja justamente intensificar a produção teórica acerca das práticas gestálticas em diversos campos.

Ribeiro (1985) mostra-nos que a Gestalt-terapia é uma abordagem Humanista, Existencial-Fenomenológica, ou seja, sua visão de homem é permeada por estas três filosofias, o que influencia diretamente a prática clínica e a maneira que o profissional vê o mundo.

O humanismo é uma proposta que coloca o homem como o centro, dotado de possibilidades e de uma tendência ao crescimento, fazendo com o que o mesmo seja autor principal desta atualização e mudança (GINGER & GINGER, 1995)

Os referidos autores correlacionam o humanismo com o fazer gestáltico quando afirmam que esta corrente filosófica recoloca o homem no centro do estudo da Psicologia e assim, o tira do lugar de objeto de estudo apenas (como faziam a psicanálise e o comportamentalismo). O humanismo é uma forma de devolver ao homem sua dignidade em todos os aspectos, como a valorização de seu corpo e suas sensações, respeito pela sua unicidade, considerando-o um ser com direito de se desenvolver e se realizar, atendendo suas necessidades, elaborando seus valores individuais e sociais.

Outro ponto ressaltado pelos autores é que o humanismo tem uma visão sistêmica, é contra qualquer categorização nosográfica, não trabalha com a ideia de normal/patológico e causa/efeito. Logo, ao procurar enxergar o indivíduo em seu desenvolvimento máximo, o humanismo se equipara com a prática gestáltica, quando, por exemplo, Perls apud Ginger (1995, p.99) fala que “A Gestalt-terapia é um método muito operante para ser reservado unicamente aos doentes”. Ou seja, o humanismo e a Gestalt-terapia são visões de mundo que consideram o homem como um sistema global inserido em subsistemas com uma interdependência circular.

O existencialismo traz o homem como um ser dotado de liberdade e unicamente responsável por suas escolhas. Através desta liberdade responsável, a pessoa vai à busca da construção de sua história de forma mais implicada, encontrando sua essência e vivendo de uma maneira mais autêntica consigo e com o mundo. Como ressalta Cardella (2002, p.35):

“ o homem é o intérprete mais fiel de si mesmo, centro de sua própria liberdade e libertação, detentor do poder sobre si mesmo, ainda que momentaneamente, tenha perdido essa aptidão para autogovernar-se.”.

Ginger & Ginger (1995) acrescentam que a Gestalt-terapia reteve alguns conceitos do existencialismo como: a singularidade da experiência individual, objetiva e subjetiva de cada existência humana; a auto compreensão para viver e existir; a responsabilidade ativa e inexorável de cada indivíduo na construção de seu “projeto existencial”. Ou seja, pode ser considerado existencial tudo aquilo que diz respeito à forma como o indivíduo experiencia os fenômenos, como ele os percebe, os assume e os direciona, sendo totalmente responsável por suas atitudes. Cardella (2002) lembra que essa liberdade nas escolhas pode ser vivida com angústia e inquietação, já que o indivíduo não pode escolher tudo e está sempre renunciando a algo.

Sendo assim, a prática gestáltica pode ser considerada existencial, pois está sempre buscando enfatizar o processo de escolhas e renúncias do indivíduo, em que o mesmo vai tomando consciência de sua autoria e responsabilidade em seus feitos (CARDELLA, 2002). É também existencial a relação terapêutica, embasada no existencialismo “‘Dialógico Eu-Tu’ ou ‘Encontro existencial’1 : esta concepção ou atitude de relação articula-se a uma metodologia de trabalho que forma, com ela, um todo coerente e indissociável”(YONTEF, 1986, p.6 apud CARDELLA, 2002).

A fenomenologia é uma corrente de pensamento considerada um marco na filosofia e que pode ser entendida como um método de investigação da história do conhecimento que propõe a volta “às coisas mesmas”, a partir da descrição e da interrogação do fenômeno, isto é, do que é dado imediatamente (ROTHSCHILD & CALAZANS, 1992).

Holanda (1998) afirma que a fenomenologia é uma tentativa de clarificar a realidade humana, um retorno a essas coisas mesmas descobrindo-as tais como se apresentam a si e aos sentidos.

A fenomenologia baseia-se inicialmente no pensamento de Husserl que faz da mesma um método em busca da verdade, porém concluiu que o ser humano percebe a verdade ao seu modo, ou seja, ele “percebe o percebido”(RODRIGUES, 2009). Holanda (1998, p.27) acrescenta que para Husserl a fenomenologia é um modo de existir, de ser e estar no mundo, fazendo parte do mesmo, tendo como primordial uma “contínua reflexão crítica, de re-pensar o mundo e a realidade, pois afinal, o ser somente se completa no seu devir, no seu crescer”.

A busca do fenômeno é dada através de uma postura chamada por Husserl de “epoché” ou “redução fenomenológica”, que consiste na suspensão de juízo de valores na busca dos significados, da essência da realidade e o que está por detrás das mesmas (HOLANDA, 1998). Nesta linha de pensamento, Husserl transcende a separação desta unidade entre o “pensar” e o “pensado” em algo único a cada pessoa, ou seja, teremos várias formas de perceber a realidade.

Husserl teve como seu discípulo sucessor Martin Heidegger, o qual afirmava que o fenômeno é o que se mostra em si mesmo. Logo, para acessá-lo é preciso “estar atento para o ente2 por si mesmo de diversas maneiras, seguindo sua via e modo de acesso”. Para Heidegger não há algo por detrás do fenômeno. O que acontece é que o próprio tende a velar-se e para desvelá-lo é necessário que nos guiemos de acordo como as coisas se apresentam de forma natural e espontânea (STOCKINGER, 2007).

Para Ribeiro (1985), a fenomenologia descreve aquilo que se passa, o que se mostra: ela é a descrição das formas de como se conhece algo. É a busca de entendimento baseada no que é óbvio ou revelado pela situação e não na interpretação do observador. A exploração fenomenológica objetiva uma descrição cada vez mais clara e detalhada do que é, e não enfatizar “o que seria”, “o que poderia ser”, “o que pode ser” e “o que foi”.

Segundo Müller-Granzotto & Müller-Granzotto, 2007 apud D’Acri, Lima, Orgler, 2007:

“ Fenomenologia é a disciplina, por meio da qual, pretendem esclarecer em que sentido a noção de awareness lança as bases para se compreender a totalidade (gestalt) formada por nosso psiquismo e por nossas formas de inserção material no mundo da vida. Tal totalidade, a sua vez, não é mais que o correlato daquilo que Edmund Husserl, fundador da fenomenologia, denominava de consciência transcendental. À diferença de que, mais ao estilo de Goldstein, os fundadores da Gestalt-terapia não consideravam tal consciência uma instância reflexiva, ideal. Eles a descreviam como a própria ocorrência empírica do campo organismo-meio, ocorrência essa à qual denominavam de sistema self e da qual a experiência psicoterapêutica é apenas uma variante (...)” (p. 110).

Para melhor compreensão do que foi referido acima, cabe aqui dois dos conceitos-chave da Gestalt-terapia: awareness e aqui-agora.

O conceito de aqui-agora da Gestalt-terapia, que é utilizado como base, ou seja, todo o processo terapêutico é focado no que o cliente está sentindo no presente (sensações, sentimentos, pensamentos, intuições). Não são descartadas informações passadas ou aspirações ao futuro, porém o foco é como isto está ocorrendo naquele dado momento (RODRIGUES, 2009).

A awareness vem do termo em inglês aware e significa tomar consciência de algo. Fukumitsu (2011) afirma que para a Gestalt-terapia, awareness é a capacidade de integração daquilo que eu faço e a maneira que eu interajo, sendo assim, são possíveis algumas zonas de awareness: cognitiva, sensório-motora, emocional e energética. A ampliação da awareness se dá quando o indivíduo está com estas zonas integradas e consegue ter a percepção do que está experienciando no momento. Cardella (2002) acrescenta que o fluxo de awareness acontece quando o indivíduo é capaz de assimilar o que é nutritivo e rejeitar o que é tóxico, o que resulta em crescimento segundo processos de ajustamento criativo.

Perls, Hefferline e Goodman (1997) esclarecem que:

“ A figura (gestalt) na awareness é uma percepção, imagem ou insights claros e vívidos; no comportamento motor, é o movimento elegante, vigoroso, que tem ritmo, que se completa etc. Em ambos os casos, a necessidade e energia do organismo e as possibilidades plausíveis do ambiente são incorporadas e unificadas na figura.” (p.45)

A awareness é um processo fluido, que se modifica a todo instante, proporcionando ao indivíduo um contato de boa qualidade e a capacidade de “diferenciação eu-não-eu” (CARDELLA, 2002). “A Gestalt-terapia é fenomenológica; seu objetivo é apenas awareness e sua metodologia é a metodologia da awareness” (YONTEF, 1998, p.234 apud CARDELLA, 2002, p.67)

Giordane (2010, p.2) diz que a Gestalt-terapia é fenomenológica por ser centrada na descrição subjetiva do sentimento (awareness) do indivíduo. Perls et al., (1997) ratifica que a terapia gestáltica consiste

“ não tanto no ‘que’ está sendo experienciado, (...) mas a maneira ‘como’ o que está sendo relembrado é relembrado, ou (...) com que tom de voz, afeto, consideração para com a outra pessoa etc.”.

O “como” precede o “porquê”, dando-se enfoque ao fenômeno que se apresenta, ou seja, o que é escolhido como importante no aqui-agora é o que será trabalhado naquele momento; sem consciência não há mundo e sem mundo não há o nós. (GIORDANE, 2010; GINGER & GINGER, 1995).

Ginger & Ginger (1995) ratificam que a Gestalt-terapia se utiliza dos conceitos da fenomenologia também quando afirmam que o essencial é como a vivência imediata é percebida e sentida corporalmente (aqui-agora); que a nossa percepção de mundo e o meio em que estamos inseridos é “dominada por fatores subjetivos irracionais”, que se torna diferente a cada olhar sobre o que é olhado, tornando a experiência de cada um única e singular, não podendo ser teorizada antecipadamente.

O método de exploração na Gestalt-terapia é através do campo fenomenológico. Perls et al.(1997) destaca que na psicoterapia

“ instigamos as situações inacabadas na situação atual, e, por meio da experimentação atual com novas atitudes e novos materiais da experiência do dia-a-dia concreto, visamos uma integração melhor”.

Assim, o suporte do cliente se torna mais firme e a awareness fica mais disponível, possibilitando que as escolhas sejam feitas com responsabilidade e autenticidade. Fenomenologicamente, a mudança ocorre conhecendo e aceitando-se quem se é e como se é. Ser o que “é” e não tentar ser o que “não é”. O objetivo é aprender e usar este fluxo de awareness (GIORDANE, 2010).

Ribeiro (1985) aduz que:

“ Em termos de psicoterapia, tais reflexões nos levam a uma postura de paciência diante do fenômeno-cliente. Caso se preste atenção ao cliente como um todo, ele se auto-revela, ou melhor, ele, em si, é uma auto-revelação permanente. Eu tenho de me postar diante dele e, a partir dele, descrevê-lo compreensivamente para mim e para ele próprio. O fenômeno, enquanto essência que se revela, é o ponto de encontro da relação com. É aí que cliente e psicoterapeuta se fazem inteligíveis um para o outro, é aí que se encontram como totalidade”. (p.48)

Outra grande contribuição para a Gestalt-terapia é a visão holística de homem em que o mesmo é considerado um ser “biopsicossocial”, sempre influenciado e influenciador do meio. Ou seja, é sempre levado em consideração o ser como um todo e o meio em que está inserido. Nesta linha de pensamento, a Gestalt-terapia adota o pensamento dialógico de Martin Buber que acredita que na situação terapêutica são importantes tanto o cliente, quanto o terapeuta, acreditando que a relação estabelecida também faz parte do fenômeno que ocorre no campo e é de serventia para o processo (FRAZÃO, 1997 – apresentação à edição brasileira do Gestalt-terapia de PERLS, HEFFERLINE e GOODMANN).

Moreira (2009) acrescenta:

Ao contrário de buscar as causas ou os porquês, a abordagem gestáltica pretende captar como ocorre um dado fenômeno, tomando- o em sua totalidade e buscando detectar em função de quê se estrutura o todo, daí o termo gestalt, que significa configuração, estrutura, tema, relação estrutural ou todo significativo (p. 5).

Buber (1974) apud Cardella (2002) afirma que o homem é um ser fundamentalmente relacional e que esta relação acontece no “diálogo”, porém a civilização moderna fomenta um narcisismo e isolamento do homem, justamente por cada vez mais desvalorizar esta relação. O diálogo se dá no “entre” e assim são possíveis estabelecer dois tipos de relação: EU-ISSO e EU-TU

No princípio EU-ISSO o semelhante é considerado como um objeto (não necessariamente pessoas, e também as coisas do mundo) ou meio para atingir um fim, metas e objetivos. Estas relações são necessárias, e alternam-se com as EU-ISSO, porém esta é uma relação direta, sem representações, sem papeis pré-definidos, onde o outro não é valorizado naquilo que tem de único (FUKUMITSU, 2011; CARDELLA, 2002). “[...] o homem não pode viver sem o ISSO, mas aquele que vive somente com o ISSO não é homem” (BUBER, 1974, p.39 apud CARDELLA, 2002, p. 37).

Já no princípio EU-TU o EU se realiza na relação com o TU. Ambos colaboram para a construção desta relação em que não tem papeis definidos, é valorizada a alteridade, a singularidade do outro, o que favorece uma profundidade, reciprocidade na relação e a responsabilidade (habilidade de saber responder) (CARDELLA, 2002; FUKUMITSU, 2011). “O mundo como experiência diz respeito à palavra princípio EU-ISSO. A palavra princípio EU-TU fundamenta o mundo da relação” (BUBER, 1974, p.6 apud FUKUMITSU, 2011, p.65).

A relação entre o terapeuta e o cliente é o aspecto mais importante do processo terapêutico. O diálogo existencial proposto por Buber é uma das bases do fazer gestáltico e é uma manifestação da perspectiva existencial do relacionamento. (YONTEF, 1998). A Gestalt-terapia valoriza esses princípios e toma como objetivo o engajamento de cliente e terapeuta para que se possa estabelecer um encontro EU-TU

Fukumitsu (2011) ressalta:

“ Concebo, pelos escritos de Buber, não ser possível compreender o TU sem o EU. Assim como o ISSO sem o EU. Falar e viver o EU é proferir o TU ou o ISSO. Para se viver o EU em relação, é preciso experimentar, estar aberto e saber que não estou na relação somente para explicá-la, mas, sim, para vivê-la no presente. Tudo o que é essencial pode ser vivido no presente, pois ao enfatizar o momento presente, entendendo que em qualquer encontro que eu esteja vivenciando, existirá algo que é diferente da soma total da minha experiência e da experiência da outra pessoa” ( p.65).

Outra teoria utilizada como fundamento para a visão holística da Gestalt-terapia é a Teoria Organísmica de Kurt Goldstein, de quem Perls foi assistente no Instituto de Soldados Portadores de Lesões Cerebrais. Naquela ocasião, estudavam as consequências comportamentais destas lesões a partir da Psicologia da Gestalt de Wertheimer, Köhler e Koffka (MOREIRA, 2009).

A Teoria Organísmica propõe uma visão de homem como um todo unificado e integrado, sem a separação mente-corpo, onde a busca pela organização é natural ao organismo, ou seja, a auto regulação. Qualquer elemento deve ser visto como parte do todo e qualquer alteração em uma das partes estará afetando diretamente o todo (MOREIRA, 2009).

O homem tem as potencialidades que regulam seu próprio crescimento, porém é influenciado pelo meio, de onde ele seleciona e retira influências para estas potencialidades, assim como o meio também pode forçar a pessoa a se adaptar a fatos estranhos à sua natureza (RIBEIRO, 1985).

Fukumitsu (2011) ratifica que nessa relação do organismo com o meio há vinculações estabelecidas em que o organismo está em processo de equalização (busca pelo equilíbrio) para se auto-realizar. A partir desta premissa básica de busca pelo equilíbrio, o Gestalt-terapeuta procura auxiliar o cliente na nitidez de suas figuras, suas necessidades, limites e possibilidades, enxergando-o como um todo inteiro buscando a melhor forma de auto-realização e a melhor maneira de equilibrar sua tensão e redistribuir suas energias nesta relação com o meio. Neste sentido, Frazão (1992) apud Fukumitsu (2011) afirma que:

“ (...) as queixas que o cliente traz representam aquilo que ele pode se dar conta no aqui-e-agora. Esta queixa é a figura; é como a ponta de um “iceberg”. É preciso que eu observe atentamente a fim de compreender a relação entre esta figura/queixa e o fundo. É preciso que eu compreenda o sentido da queixa na totalidade da existência do cliente” (p.52)

Ou seja, entendemos que o sintoma trazido pelo cliente é uma forma de integração entre organismo-meio, é sua forma de se equilibrar e cabe ao Gestalt-terapeuta compreender que tentar “retirar o sintoma precocemente sem ter algo para colocá-lo no lugar é torná-lo ‘manco’, pois o sintoma também o significa” (FUKUMITSU, 2011, p.53)

A Gestalt-terapia se utiliza também da Teoria de Campo que segundo Lewin (1965) apud Yontef (1998) é

“ O comportamento é uma função do campo, do qual ele é parte, ele não depende nem do passado e nem do futuro, mas do campo presente. Este campo presente tem uma determinada dimensão tempo, inclui o passado psicológico, o presente psicológico e o futuro psicológico, que constituem uma das dimensões do espaço de vida existindo num determinado momento.” (p.193)

Outra explicação é também a de Kofka (1975) apud Fukumitsu (2011):

“ O campo e o comportamento de um corpo são correlativos. Como o campo determina o comportamento dos corpos, esse comportamento pode ser usado como indicador das propriedades de campo” (p.50)

Na abordagem de campo da Gestalt-terapia tudo é visto como um vir a ser, ou seja, nada é estático e tudo está propenso a mudar a cada instante, onde o meio e os indivíduos são influenciadores e influenciados. O campo é a pessoa no seu “espaço vital” - Rodrigues (2000) aduz que este conceito foi desenvolvido por Lewin (1965 e 1975); Fadiman e Frager (1979); e também Ribeiro, (1985, p.94 em diante).

O conceito de campo enfatiza a relação que existe entre a pessoa e o meio, logo o cliente é considerado um campo que abrange diversas necessidades e valências. Psicoterapeutas são outra parte do campo também com suas necessidades e valências. A relação terapêutica acontece quando os campos interagem concomitantemente, sendo necessário saber as alterações que ocorrem no mesmo (FUKUMITSU, 2011).

A referida autora ressalta, citando Ribeiro (1985), que compreender o cliente como campo é percebê-lo em sua totalidade e entender que ele faz parte de um espaço vital. Este espaço vital é dividido em meio geográfico e meio comportamental: o meio geográfico é caracterizado como fundo para fenômenos acontecerem, ou seja, o meio comportamental (p.97-107). O meio comportamental é mais abrangente, onde demonstra seus comportamentos, seus processos internos e externos que geram tensão e demandam satisfação. “O cliente revela-se como corpo de energia, força, movimento e direção”.

Logo, o objetivo da psicoterapia gestáltica correlacionada com a teoria de Campo é proporcionar ao cliente equilíbrio e reestruturação de seu espaço vital, através da compreensão de suas necessidades e a satisfação das mesmas, com permeabilidade e fluidez entre o meio geográfico e o psicológico (FUKUMITSU, 2011).

Rodrigues (2007) apud D’acri et al (2007) adicionam que a Teoria de Campo é de serventia também à prática clínica, onde se utilizam experimentos e/ou trabalhos psicodramáticos, ajudando o cliente a traduzir questões afetivas, inter-relacionais de uma forma mais precisa em que o mesmo consegue expressar mais verdadeiramente aquilo que está sentindo e assim pode ser mais bem ajudado pelo psicoterapeuta.

A Gestalt-terapia é influenciada também pela Psicologia da Gestalt, que apesar de nomes semelhantes, se diferem em vários aspectos. Esta teoria traz o conceito de que a natureza humana é organizada em partes ou todos, e que a mesma só pode ser compreendida através das correlações de ambos. (PERLS, 1985). “O todo é uma realidade diferente da soma de suas partes3. Perls et al (1997, p.52) acrescenta que

“ tem de se respeitar a totalidade de fenômenos que surgem como todos unitários, e que estes só podem ser analiticamente divididos em pedaços ao preço da aniquilação daquilo que se pretendia estudar”.

Terapeuta e cliente devem estar sempre atentos ao todo que emergem em dadas situações. Olhar apenas para uma das partes faz com que a compreensão do fenômeno não seja completa.

A partir disto, a teoria da Gestalt tem o conceito de figura-fundo que trata da questão de eleição de necessidades. Estamos a todo o momento elegendo figuras a serem saciadas que tem por trás um fundo e de acordo com as necessidades o fundo pode tornar-se figura e vice-versa. (RODRIGUES, 2009)

Na subjetividade da percepção a escolha pode ser consciente ou inconsciente do que para aquela pessoa aparece como figura ou fundo. O processo de formação de figura-fundo é dinâmico, o organismo seleciona e desenvolve formas próprias de auto-conservação. Qualquer fenômeno observado nunca é uma realidade objetiva em si. A figura depende do fundo sobre o qual aparece; o fundo serve como uma estrutura ou moldura em que a figura está enquadrada ou suspensa, e, por conseguinte, determina a figura (RIBEIRO, 1985). A partir disto Perls et al, 1997, afirma que:

“ (...) como psicoterapeutas que se alimentam da Psicologia da Gestalt, investigamos a teoria e o método da awareness criativa, a formação figura-fundo como sendo o centro coerente dos discernimentos eficazes, mas dispersos, a respeito do ‘inconsciente’ e da noção inadequada de ‘consciente’” (p.53)

Ginger & Ginger (1995) acrescentam que:

“ todo campo perceptivo se diferencia em um fundo e em uma forma. A forma é fechada, estruturada. É ela que o contorno parece pertencer. Não podemos distinguir a figura sem um fundo: a Gestalt-terapia se interessa por ambos, mas, sobretudo, por sua inter-relação.” (p.38)

Através deste conhecimento das formas, há a referida eleição de figuras dominantes que naquele dado momento permite a satisfação de uma necessidade e assim o fluxo não pára na alternância de figura e fundo.

Para a Gestalt-terapia um bom fluxo desses ciclos de figura-fundo são considerados estados de “boa saúde”, ou seja, a psicoterapia incentiva que a pessoa faça a formação de formas flexíveis, adaptadas ao meio em que estão inseridas, fazendo ajustamentos criativos permanentes. Sendo assim, a Gestalt-terapia é considerada uma “arte da formação de boas formas” (GINGER & GINGER, 1995).

Os autores concluem que “qualquer fenômeno observado nunca é uma realidade objetiva em si, mas uma inter-relação global entre o próprio fenômeno e seu meio momentâneo – portanto, o observador”.

Outro conceito chave na Gestalt-terapia é o Contato e suas funções: contato é o limite entre a pessoa e o meio em que está inserida. A Gestalt-terapia se utiliza muito destes conceitos, pois como vê o ser humano em sua totalidade, o contato pode ser feito de diversas maneiras: juntamente com as funções de contato (audição, tato, etc.) há possibilidades de superespecialização de algumas funções e dificuldade em outras, sempre influenciadas e influenciando o campo em que estão inseridas (RODRIGUES, 2009). “É através destas funções que podemos estabelecer contato de boa qualidade, organizar boas fugas, ou interromper e obstruir o contato” (CARDELLA, 2002).

Fukumitsu (2011) afirma que é através do contato que a pessoa pode separar-se e unir-se, lidar com o que é saudável ou tóxico nas suas singulares experiências. Cardella (2002) acrescenta que o indivíduo vive na fronteira de contato superando obstáculos, defendendo-se dos perigos, assimilando, ou não, o novo, e assim, através deste movimento de aproximação e retração, o indivíduo satisfaz suas necessidades.

Perls, Hefferline e Goodman (1997) afirmam que:

“ Contato é o trabalho que resulta em assimilação e crescimento é a formação de uma figura de interesse contra um fundo ou contexto do campo organismo/ambiente. A figura (gestalt) na awareness é uma percepção, imagem ou insight claros e vívidos; no comportamento motor, é o movimento elegante, vigoroso, que tem ritmo, que se completa etc. em ambos os casos, a necessidade e energia do organismo e as possibilidades plausíveis do ambiente são incorporadas e unificadas na figura” (p.45)

Ainda segundo os autores acima:

“ a psicologia estuda a operação da fronteira de contato no campo organismo/ambiente. [...] Quando dizemos “fronteira” pensamos em uma “fronteira entre”; mas a fronteira-de-contato, onde a experiência de lugar, não separa o organismo e seu ambiente; em vez disso limita o organismo, o contém e protege ao mesmo tempo em que contata o ambiente”. (p.43)

Cardella (2002) diz que o contato é considerado fundamental (além da formação de gestalt e da awareness), pois é através deste que há o processo de auto regulação organísmica e ajustamentos criativos, ou seja, é onde o indivíduo se diferencia do semelhante, elege a figura emergente a ser satisfeita, retrai-se na ameaça, depara-se com o desconhecido, encontra suporte no conhecido, ou seja, está em constante alternância, crescendo ou se auto preservando. Contato é “achar e fazer a solução vindoura” (PERLS et al, 1997).

O ajustamento criativo funcional, segundo Perls et al (1997) é a transição sempre renovada entre a novidade e a rotina que resulta em assimilação e crescimento. Logo a Gestalt-terapia estuda a interrupção, inibição ou outros acidentes no decorrer do ajustamento criativo disfuncional, que mais adiante chamaremos de ajustamentos neuróticos ou evitativos.

Ciornai (1995) apud Cardella (2002) ressalta que nem sempre o ajustamento criativo leva a processos saudáveis e de crescimento. O indivíduo se ajusta criativamente da melhor maneira que consegue no dado momento, mesmo quando este ajustamento tem forma de sintoma e traz sofrimento para o mesmo. A psicoterapia é de grande serventia para estes momentos.

3. TEORIA DO SELF E GESTALT-TERAPIA

O self para a Gestalt-terapia é, segundo Perls et al (1997):

” O sistema de contatos em qualquer momento. Como tal o self é flexivelmente variado, porque varia com as necessidades orgânicas dominantes e os estímulos ambientais prementes [...]; o self é a fronteira de contato em funcionamento; sua atividade é formar figuras e fundos [...] É o artista da vida. É só um pequeno fator na interação total organismo/ambiente, mas desempenha o papel crucial de achar e fazer os significados por meio dos quais crescemos.” (p.49)

Yontef (1998) acrescenta que “não existe ‘núcleo’ ou ‘self’ separado de um campo organismo/meio e nenhum meio humano sem os processos que usualmente caracterizamos como internos”.

Ou seja, não há como pensar no self como uma unidade fixa e sem considerar o meio em que o indivíduo está inserido. O self é o todo que a pessoa representa num dado momento, com alternância de figuras e fundos e ajustamentos criativos que estão se transformando a todo instante.

Com isto, é possível compreender a noção de saúde/doença para a Gestalt-terapia. Perls et al (1997) abordam sobre identificações e alienações do sistema self. Quando a pessoa se identifica com o seu self em formação, não impede seus excitamentos, não aliena aquilo que é organicamente seu e busca o contato para a solução vindoura, pode-se considerá-la “psicologicamente sadia”, conseguindo estar aware espontaneamente dos seus pensamentos, percepções, sensações e ações.

Já a noção de self “não sadio” é quando o indivíduo se aliena de seus próprios excitamentos, tem identificações falsas com o self, gerando confusão e sofrimento. Perls et al (1997) chama este sistema de identificações e alienações de “ego”.

A prática gestáltica se dá exatamente em ajudar a pessoa, treinando o ego com as oscilações entre identificações e alienações, fazendo assim com que ela sinta o controle do que está fazendo, percebendo, sentindo e agindo espontaneamente.

Perls et al (1997) afirma que o self é espontâneo e caracteriza essa espontaneidade como o sentimento de estar agindo no organismo/ambiente não apenas como artesão ou artefato do mesmo, mas se utilizando do mesmo como meio de crescimento.

3.1 Funções do self

Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2007) afirmam que as funções do self (id, ego e personalidade) são divididas didaticamente, porém são consideradas como três pontos de vista diferentes acerca de determinada experiência sobre o self em funcionamento, que não é ativo, nem passivo e não tem estruturas fixas e estáveis. Fukumitsu (2011) afirma que para o self ser coeso é preciso que estas três funções estejam em harmonia.

Ginger & Ginger (1995) destacam que a cada etapa do sistema self, o mesmo funciona de acordo com as figuras que emergem do fundo:

Pré-contato: é uma fase de sensações onde a percepção é sentida no corpo que torna-se figura de acordo com o dado na fronteira de contato.

Contato: funciona de acordo com a função ego, ou seja, é uma fase ativa em que o organismo se depara com o meio. Diante do que se doa da função id (excitamentos) é possível que o self escolha ou rejeite o que se apresenta para a fronteira de contato.

Contato final: também chamado de contato pleno, onde organismo e meio estão fundidos, a ação é unificada no aqui-agora e há coesão entre a percepção, emoção e movimento.

Pós-contato ou retração: é a fase final em que há a assimilação e o crescimento, onde o self funciona na função personalidade integrando a experiência com a vivência, estando novamente disponível para outras figuras e consequentemente para outras ações.

3.1.1 Função ego e Ajustamentos Neuróticos ou evitativos

A função ego – chamada também de função eu, ou função de ato4 - é ativa e deliberada, sensorialmente alerta e motoricamente agressiva. Perls et al (1997) explicam que esta função é ativa, pois existe a sensação de ato sobre a experiência, pois o “self está identificado com o interesse ativo selecionado, e dá a impressão, a partir desse centro, de ser um agente extrínseco ao campo”.

Perls ET al (1997) afirmam que na verdade, por esta função ser a de deslocamento no campo, a realidade não é necessariamente vivida com espontaneidade, mas selecionada ou excluída de acordo com o que deliberamos. Isso causa a sensação de usar e dominar, ao invés de descobrir e inventar determinada experiência. Ginger & Ginger (1995) ressaltam que é da própria responsabilidade da pessoa limitar ou aumentar o contato, manipulando o meio e tomando atitudes de acordo com as necessidades.

Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2007) acrescentam que cada deliberação é a sinalização da existência de uma orientação que parte de um fundo de excitamentos, mas que nem sempre se revela em sua totalidade e resta sempre algo a descobrir, e a ação quer ser esta resposta.

A referida deliberação pode ser tanto um ato de satisfação dos excitamentos no campo, mas também uma alienação como mecanismo de evitação destes excitamentos em detrimento de um arranjo físico-fisiológico ou sociocultural. Neste momento é que o self faz a ação e assim, atinge o contato final.

Os autores concluem que a função ego é a

“ vivência do contato em seu sentido mais estrito. Afinal, se o contato é a retomada de uma história segundo uma orientação inédita, porquanto é o ego quem descobre e inventa a diferença, é ele o agente mor do contato”.

Determinados atos de deliberação se repetem habitualmente para apaziguar situações inacabadas e os contatos espontâneos são esquecidos. A isso damos o nome de ajustamentos neuróticos ou evitativos. “A neurose é a perda das funções de ego para a fisiologia secundária, sob a forma de hábitos inacessíveis”. (PERLS et al, 1997).

Por esse comprometimento da função ego, o indivíduo faz ajustamentos neuróticos, pois seus excitamentos trazem a mensagem, na forma de ansiedade, de perigo, ameaça e não pertencimento ao meio. Assim, o ego tem parte de sua energia voltada para a repressão destes excitamentos, causando assim uma interação disfuncional com o meio. O indivíduo não é neurótico, mas está fazendo ajustamentos neuróticos (Idem).

Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2007) destacam que para tentar interromper este estado de ansiedade, a inibição reprimida assume as funções do ego e assim formam-se os ajustamentos neuróticos: confluência, introjeção, projeção, retroflexão e egotismo.

A confluência é uma forma de bloqueio do excitamento antes que o mesmo se apresente na fronteira de contato, ou seja, a mesma fica dessensibilizada, pois há um fundo ausente (interrupção do pós-contato) que não pode ser correlacionado com o dado apresentado devido a tal bloqueio. Essa inibição desenvolve uma atitude de paralisia muscular, recusa a tudo o que é novo e prende-se a hábitos antigos. Sendo assim, o self está em um estado de vazio, o que provoca uma alienação onde encontra possibilidades apenas no semelhante, que lhe serve de modelo e que estas não são sentidas como suas. A satisfação possível na confluência é a diminuição da ansiedade e uma espontaneidade aleatória quando “flui com” os semelhantes, trazendo segurança. No ajustamento confluente o cliente pede ao terapeuta que seja seu modelo, que lhe dê respostas àquilo que ele não consegue acessar em si mesmo.

Na introjeção o dado na fronteira de contato é figura de um fundo de ansiedade e excitamentos inibidos. Assim, ocorre uma obstrução no pré-contato e a estratégia para evitar o contato com o excitamento seria substituí-lo por uma lei simbólica estabelecida no meio social. Ou seja, o afeto é invertido e o meio social oprime o excitamento na fronteira de contato que é resignado pelo indivíduo. A satisfação possível na introjeção é o masoquismo. A demanda ao terapeuta é de que o mesmo seja a lei.

A projeção é uma forma de evitação onde o indivíduo, ao se deparar com o dado na fronteira de contato, se desimplica do que está acontecendo e projeta no semelhante as responsabilidades do dado. “A inibição reprimida fantasia o confronto com as situações ansiogênicas, mas na ‘pele’ do semelhante” (Perls, Hefferline e Goodman, 1997) A satisfação possível na projeção é que no confronto com o excitamento é preenchido com fantasias. Demanda para o terapeuta que o mesmo seja o réu.

No ajustamento retroflexivo não há evitação da ansiedade, porém o conflito entre o excitamento reprimido e a inibição represada é vivido intensamente e assim há uma destruição do próprio self. A satisfação possível na retroflexão é o sadismo ativo e demanda ao terapeuta cuidado.

O egotismo é uma tentativa de interromper o contato final substituindo-o por uma nova possibilidade. Há uma hipertrofia do ego e uma desvalorização do meio, porém esta é uma forma de evitar frustração, confusão e o medo de ser abandonado. A satisfação possível no egotismo é de vaidade e demanda que o terapeuta o admire, seja seu fã.

Perls, Hefferline e Goodman (1997) explica que a clínica gestáltica consiste em:

“ [...] mudar as condições e proporcionar outros fundos de experiência até que o self descubra-e-invente a figura: ‘Eu estou evitando deliberadamente este excitamento e exercendo esta agressão’. Poderá então prosseguir de novo em direção a um ajustamento criativo espontâneo” (p.236).

3.1.2 Função personalidade e Ajustamentos aflitivos

A função personalidade é caracterizada pelas representações que o indivíduo faz das experiências de contato, ou seja, é uma réplica verbal do self pelo qual tentamos explicar aquilo que somos através dos nossos comportamentos e daquilo que vivemos (PERLS et al, 1997). Os excitamentos do ego são projetados em um horizonte de futuro, que também é uma característica desta função (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2007).

É através da função personalidade que o self desenvolve os valores éticos, a vida moral, e os diversos modos de conhecimento, como, por exemplo, o filosófico, científico e religioso. O self pode replicar-se e reproduzir-se a todo instante, e na função personalidade há a consciência imaginária disto. A função personalidade é constantemente invadida pelo não contato dos hábitos e ultrapassada pela criação das funções de ego (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2007).

Perls, Hefferline e Goodman (1997) acrescentam que quando o indivíduo faz formas neuróticas, a função personalidade é recheada de conceitos errôneos sobre si mesmo, como introjetos, ideais de ego, máscaras etc. Logo, quando o indivíduo está em terapia, o mesmo passa a ter uma série de atitudes compreendidas e vivencia isto em suas relações interpessoais. Como a função personalidade é transparente e totalmente conhecida, pois o sistema foi conhecido e compreendido, o indivíduo vivencia isto: “em terapia, é a estrutura de todas as descobertas do tipo ‘ah, saquei! ’”.

Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2012) ratificam que a função personalidade é também a forma que o indivíduo encontra de se espelhar no outro social, onde se sente amparado, reconhecido e, ao mesmo tempo, incumbido de responsabilidade, logo há uma visão antropológica desta função de self:

“ Ademais, a acolhida da ética aos nossos excitamentos e o espaço político para que possamos desempenhar nossos desejos são sempre tributários da presença de alguns representantes do outro social, como são os amigos, os terapeutas, e, inclusive, os inimigos. O que nos permite concluir, com base em PHG, que é apenas nos termos da função personalidade que a experiência do contato adquire um “sentido” ético-político e antropológico” (p.283)

Quando ocorre o comprometimento da função personalidade, o indivíduo faz ajustamentos aflitivos. Perls et al (1997) não aprofundaram este conceito que denominaram “misery”, mas iniciaram dizendo que o ajustamento aflitivo seria uma falha no sistema espontâneo self, ocorrendo uma falha na experiência do contato, e assim o mesmo pára de produzir a função personalidade.

O self não pára de funcionar, continua se ajustando criativamente, porém esta forma ocorre nas situações em que se pode verificar um

“ sofrimento ético-político, [que] tem relação com a solidariedade, com os pedidos genuínos de inclusão, na forma da qual efetivamente atribuímos e reconhecemos o poder do semelhante para nos ajudar.” (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2009).

O ajustamento aflitivo se dá quando o indivíduo não sabe e nem encontra maneiras de lidar com o dado na fronteira de contato, logo é preciso a ajuda do semelhante para tal, ou seja, é tão-somente a vivência da impossibilidade da identificação à determinada personalidade. Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2012) citam algumas situações em que (frequentemente) isto pode ocorrer: nos múltiplos conflitos sociais (econômicos, políticos, étnicos, religiosos...), os acidentes, fatalidades, emergências, adoecimentos somáticos, crises reativas, surto psicótico, as situações de exclusão social por conta das violências de gênero e prisional, dos preconceitos e conflitos ideológicos e subordinação ao totalitarismo do estado de exceção.

Aqui, estamos chamando os ajustamentos aflitivos de sofrimento ético-político e antropológico, porém, é importante “não confundirmos o sofrimento ético-político e antropológico propriamente dito com os fenômenos que o possam desencadear, àquelas situações que podem partir desta experiência”, mas que deixa o indivíduo no lugar de precisar da ajuda do semelhante, pois sozinho não está dando conta (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2009).

A intervenção clínica nestes ajustamentos aflitivos é na direção de escutar e tentar encontrar juntamente com o indivíduo qual a sua necessidade naquele momento, mostrar e tentar ajudar o indivíduo a reconhecer no semelhante alguém que pode lhe ajudar, acompanhar o processo de resgate da autonomia para que possa fazer novos ajustamentos criadores (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2009).

O fazer clínico neste momento não fica no lugar de assistência social, mas como uma facilitação para que o indivíduo treine e amplie sua autonomia da função de ego. Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2012) reafirmam que o clínico é co-participante em uma nova forma de ajustamento criador da pessoa que está em sofrimento, afinal, mais do que sofrer as consequências de uma fatalidade ou da exclusão social, é genuinamente pedir ajuda ao semelhante. “Ademais, a intervenção gestáltica nunca é normativa. Ela não visa “defender” ou “criticar” uma ideologia especificamente. Trata-se de ajudar alguém a compreender e fazer sua opção.” (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2009).

3.1.3 Função Id e Ajustamentos Psicóticos ou de Criação

Perls (1981) afirma que:

“ [...] O psicótico tem uma camada de morte muito grande, e essa zona morta não consegue ser alimentada pela força vital. Uma coisa que sabemos ao certo, é que a energia vital, [...] energia biológica torna-se incontrolável no caso da psicose [...] o psicótico nem mesmo tenta lidar com as frustrações; ele simplesmente as nega, comportando-se como se elas não existissem” (p.20)

Para falarmos dos ajustamentos psicóticos ou ajustamentos de criação, é necessário entender primordialmente a função Id, já que segundo Perls, Hefferline e Goodman (1997) é nela que encontramos a gênese destes ajustamentos.

A função Id é entendida como o fundo de vividos do sistema self em que ficam retidos, excitamentos orgânicos, situações passadas, inacabadas. O ambiente é percebido de maneira vaga, ou seja, é o meio de contato da atualidade material na fronteira de contato com a inatualidade temporal, podendo ser vista como uma retenção ou uma repetição. A retenção é considerada quando são retidas experiências como forma de hábito, sem conteúdo mais aprimorado. Já a repetição é este hábito reeditado funcionando como orientação tácita da vida atual. “Id então surge como sendo passivo, disperso e irracional; seus conteúdos são alucinatórios e o corpo se agiganta enormemente” (PERLS et al, 1997, p. 187).

O id é um todo espontâneo em sobre o qual não temos controle sobre e que nos torna impossibilitados de nos desligarmos do mundo, visto que é nele que ficam as experiências “invisíveis”, que hoje podem não fazer sentido, mas estão ali cravadas e imantadas à fronteira de contato a qualquer instante. Para Müller-Granzotto & Müller-Granzotto, (2007)

“ A função id também inclui o fato de essas formas serem capazes de imprimir, às nossas experiências cotidianas, uma espécie de orientação intencional (awareness) que se sobrepõe ao nosso controle judicativo, como se fosse um excesso que nunca conseguimos deter ou controlar” (p.8).

Mediante estas informações acerca da função Id, entende-se que os ajustamentos de criação se dão por uma “aniquilação de parte da concretude da experiência” (PERLS et al, 1997), ou seja, um comprometimento em uma das funções elementares da função id. É também uma fixação do self, onde a função ego não encontra meios de lidar com o dado na fronteira de contato devido ao comprometimento, paralisação desta função (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2012).

Os autores explicam que esta “rigidez (fixação)” citada por Perls et al (1997) da função id ocorre quando o indivíduo sente-se demandado de alguma forma (quando nós, como clínicos, por exemplo, dirigimos questões a ele a serem respondidas); quando muitos excitamentos se doam; ou quando nada se doa. O cliente precisa fixar-se em algum dado de realidade para poder suportar a angústia que esta doação/não-doação de excitamentos (“presença ambígua de excitamentos” ou awareness sensorial) acarreta a ele. É possível perceber esta rigidez diante dos comportamentos genericamente descritos pela psiquiatria clássica.

Lavratti (2012) diz que Sérgio Buarque, em seu verbete no livro “Gestaltês” afirma que a Gestalt-terapia se utiliza dos conceitos da psiquiatria clássica para nomear os “sinais e sintomas” apresentados pelo cliente, porém estes “sinais e sintomas” são vistos de forma autêntica e genuína, do campo da intersubjetividade, mesmo que de forma ilógica e irracional. Acredita-se que cada “psicose” é vivida de forma singular pelo indivíduo - até mesmo os surtos psicóticos não acontecem da mesma forma com a mesma pessoa - que está imerso em um contexto que deve ser levado em consideração. Evitar ou ignorar estas criações é o mesmo que anular uma relação terapêutica criativa.

Esse comprometimento da função Id se dá de duas maneiras: os excitamentos ou não são assimilados e, nesse sentido, retidos como fundo de vividos; ou, uma vez assimilados, não se integram entre si, de modo a também não se constituírem como fundo para os novos dados na fronteira de contato. Ou seja, as experiências podem não ser abandonadas, ou então, quando retidas, não há uma forma espontânea de se doarem e agirem como orientação intencional (ou afetiva) para as demandas na fronteira de contato. (MÜLLER-GRANZOTTO & MÜLLER-GRANZOTTO, 2007).

As causas do comprometimento da função id ainda são muito estudadas, porém existem hipóteses como aponta Lavratti (2012): origem genética, consequências de uma má oxigenação do córtex cerebral no momento do parto, algum vírus que possa ultrapassar a barreira hematoencefálica, o uso abusivo de substâncias psicoativas, pela ausência ou presença ostensiva de um cuidador ou pela falta de um limitador no campo como parâmetro de criação de fronteira de inserção com o semelhante.

Mesmo com este comprometimento da função id, o self não pára de funcionar. Ou seja, quando isto acontece, o sistema self cria algo diante do dado na fronteira de contato correlacionado com aquilo que ele não pôde reter ou espontaneamente responder à demanda. Essa criação vem para substituir os excitamentos que diante da demanda, ou não havia retenção no fundo de vividos, ou foi retido de maneira falha ou desarticulada. É neste momento que o indivíduo delira, alucina ou se ausenta totalmente diante da demanda na fronteira de contato. Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2012) ratificam que “a psicose é uma resposta social às demandas por excitamento em ocasiões em que eles não vêm ou vêm em excesso”.

Os ajustamentos de criação podem ser divididos de três formas: ajustamentos de preenchimento de fundo, ajustamentos de articulação de fundo e ajustamentos de defesa contra a demanda ou isolamento (autismos).

3.1.3.1 Ajustamentos de Preenchimento de fundo

Nestes ajustamentos os excitamentos não são retidos no fundo de vividos, logo o sistema self precisa preencher este vazio de excitamentos, ocasionando os sintomas melhor explicados abaixo.

Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2012) explicam que nestes ajustamentos o indivíduo não tenta aniquilar o dado na fronteira de contato, porém ele responde à demanda com uma criação, neste caso, as alucinações (auditivas, visuais, cinestésicas e verbais) que não têm qualquer êxito social, pois são extremamente bizarras. Estas alucinações são formas que os indivíduos encontram na realidade de substituir o excitamento que não se doou ou uma forma de preencher o fundo com fragmentos de realidade, para ficar no lugar dos excitamentos.

Lavratti (2012) acrescenta:

“ O que não está retido aqui; o não disponível tem relação com os hábitos de linguagem, com as formas retidas a partir das vivências de contato instituídas pela linguagem, especificamente pelas vivências culturais em que se busca levar, para o campo simbólico, os excitamentos primitivos originalmente vividos de maneira intuitiva. A maneira como simbolizamos e nomeamos nossas vivências de intercorporalidade primária. Parece não haver uma possibilidade de estabelecer códigos consensuais de linguagem acerca daquilo que é vivenciado com o semelhante”(p.64)

As alucinações, do ponto de vista dos que a observam, são consideradas bizarras, pois não fazem sentido e não tem conexão com a realidade, porém esta percepção em nada ajuda o processo clínico, pois desmerece aquilo que o indivíduo está vivenciando e nem sempre o mesmo quer abandonar estas alucinações. Ou seja, as alucinações também cumprem uma função social, pois é a forma que o indivíduo encontrou para responder às demandas, mesmo com a ausência dos excitamentos e assim, simular aos demandantes que os excitamentos existem.

Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2012) acrescentam que a intervenção clínica com os ajustamentos de preenchimento é primeiramente não demandar nada do cliente. Outro ponto importante é acolher os conteúdos alucinatórios e usá-los a serviço do processo terapêutico, como uma espécie de “jogo”, uma “atividade” onde se estabelece uma forma de socialização entre terapeuta e cliente. É importante ressaltar que a alucinação trazida pelo cliente é um indício da autonomia de sua função de ato, a qual deve ser protegida e ampliada, na medida do possível, na condição de um “jogo” social viável.

A partir desta socialização é possível estabelecer-se o vínculo cliente-terapeuta, e abre-se o espaço para escuta e identificações das demandas direcionadas ao cliente. Assim, é de extrema importância tentar neutralizar estas demandas sendo uma forma eficaz a consolidação da rede social com a família para que a mesma possa ajudar na diminuição destas demandas e aprenda a usar estratégias para lidar com a inclusão das alucinações de uma forma mais lúdica.

Quando estas estratégias são utilizadas de forma eficaz, cria-se a possibilidade de dar validade à função eu no cliente, ampliando a contratualidade social dos ajustes por ela produzidos e deixando de ter um caráter meramente alucinatório. (LAVRATTI, 2012).

3.1.3.2 Ajustamentos de articulação de fundo

Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2012) afirmam que nestes ajustamentos não há ausência de excitamentos diante das demandas. A hipótese é que os excitamentos estão disponíveis, porém de forma excessiva e desarticulada, ou seja, o fundo de vividos não se apresenta de forma articulada e integrada com o dado na fronteira de contato. A abundância de excitamentos é tanta, que há várias possibilidades de resposta ao demandante, não havendo a possibilidade de reconhecer uma dominância, fazendo com que pareça que existem vários fundos de vividos, ao invés de um só. A função de ato não consegue decidir-se por um excitamento, nem tampouco ser passiva e deixar-se levar por um destes. Assim, a função de ato não tem trégua de excitamentos disponíveis e quer, mais uma vez, fixar-se na realidade:

“ A realidade, nesse sentido, é utilizada como se ela mesma fosse um objeto de desejo, ou essa totalidade indeterminada que ultrapassa os objetos da realidade. Ou, ainda, a função de ato articula os objetos da realidade entre si, como se essa articulação fizesse as vezes da indeterminação que caracteriza os objetos de desejo. Porém, como tal articulação não consegue transcender a esfera dos objetos da realidade, não há indeterminação de fato. Não há lugar para a dúvida, para a curiosidade ou interesse do interlocutor. Tudo fica estreitamente determinado pelo uso que a função de ato faz dos objetos da realidade, como se o desejo não existisse” (p.195)

Lavratti (2012) relata que nos ajustamentos de articulação o indivíduo acredita que as fantasias são a realidade ou que a realidade é a sua fantasia. Sendo assim, a função de ato estabelece duas estratégias de organização diferentes: as alienações em contrapartida, as identificações.

a) Ocorre a alienação quando há o descolamento dos atos sociais ou demandas (aos quais os excitamentos foram atribuidos) em favor de alguém ou de alguma coisa concreta na realidade social

A função de ato pode fragmentar o dado de maneira delirante em múltiplas partes como uma forma de poder atribuir a cada uma delas os múltiplos co-dados que se apresentaram. Neste caso, apresenta-se o “delírio dissociativo”, ou despersonificação;

Pode também buscar unificá-los, junto ao dado que se apresenta enquanto um semelhante ameaçador, Neste sentido, deve ser excluído “delírio associativo”, ou paranóia.

b) Ocorre a identificação quando a função de ato (eu) pode então “identificar-se” com os atos sociais - demandas aos quais atribuiu os excitamentos, sendo divididas em

Identificação negativa: a função de ato apresenta-se como um objeto morto, busca uma identificação a um ato que representa a morte e, por extensão, a impossibilidade de ser atingido por um excitamento, por exemplo, a melancolia;

Identificação positiva: a função de ato (ego) intenciona, nos atos sociais, uma sorte de ampliação ao infinito do sistema, o que lhe permite sustentar todos os excitamentos, como por exemplo, os casos de mania.

Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2012) sugerem que a intervenção nos ajustamentos onde há alienação e dissociação delirante seja de mostrar ao cliente que ele tem um espaço favorável e possui diversas alternativas para poder continuar caminhando e buscando novas formas de alienar seus excitamentos, sabendo que ele pode substituir as alienações por outras mais cabíveis a determinado momento. Assim, ele pode amenizar a angústia que sente diante da excessiva doação de excitamentos à fronteira de contato e tentar colocar limite para que esta doação seja, no mínimo, suportável.

Já na intervenção onde há alienação com delírio associativo ou despersonificação cabe ao terapeuta mostrar ao cliente que o seu delírio é importante para poder, mais adiante, o cliente conseguir conhecer o que lhe ameaça e trabalhar com isto de uma forma mais unificada, facilitando para que o terapeuta possa caracterizar para seu cliente o valor da representação social deste delírio. Assim, o cliente começa a saber mais de si e pode encontrar soluções para suas construções.

Na intervenção onde há identificação negativa o terapeuta intervém de maneira que o cliente possa fazer o “luto” das experiências que ele julga ter fracassado, dos atos que não se articularam para ele como um todo de sentido. O cliente precisa despedir-se dessas experiências para assim, a função de ato tornar-se disponível a novos dados e excitamentos, mesmo que desarticulados.

Já a intervenção onde há identificação positiva lida com limites: como o cliente não é capaz naquele momento de se impor metas cabe ao terapeuta tentar pontuar até onde vão os limites do próprio cliente em relação à terapia e aos laços sociais, para que o cliente possa discriminar quais atos lhe dão maior ou menor identidade social, ou seja, oferecer limites concretos às investidas estabelecidas pela função de ato no cliente.

3.1.3.3. Ajustamentos de defesa contra a demanda ou isolamento (autismos)

Estes ajustamentos são muito frequentes nas pessoas diagnosticadas com autismo. O campo social em que a pessoa está inserida está diretamente ligado ao fato da mesma precisar fazer estes tipos de ajustamentos. O que talvez explique por que, em determinados momentos, o embotamento afetivo, a agressividade inespecífica (sem motivação aparente), a forma pueril (hebefrênica) de lidar com afetos e pensamentos, ou o comportamento autista, sem qualquer tipo de interação social, tornem-se mais freqüentes do que em outros momentos.

Entende-se que a gênese dos autismos está no momento em que o indivíduo se defende da demanda por excitamento, pois o fundo de vividos não se apresenta diante de determinadas demandas, principalmente àquelas correlacionadas com afeto propostas pelo meio social. Ou seja, a função de ato (que produz ajustamentos de isolamento) não encontra na função id excitamentos para responder ao demandante, e assim, tenta afastá-lo.

Müller-Granzotto & Müller-Granzotto (2012) afirmam:

“ Nossa hipótese está apoiada na observação do comportamento dos nossos consulentes, principalmente daqueles diagnosticados como autistas. Eles parecem não ter a sua disposição hábitos relativos às vivências primitivas de interação com o meio. Tudo se passa como se os hábitos motores – por meio dos quais retomamos, mais do que os atos compartilhados na atualidade da situação, uma espécie de cumplicidade em torno de algo indeterminado que aqueles atos estariam - não se apresentasse entre nós. Ou ainda, é como se os gestos desempenhados pelos sujeitos de atos na concretude no agora não visassem uma dimensão atual. Nesse sentindo, eles parecem não “esperar” algo inédito, tampouco vibrar com a repetição” (p.154).

Os autores seguem explicando que as pessoas que fazem estes ajustamentos lidam com os sentimentos de uma forma que parece algo aprendido para a socialização ocorrer e não necessariamente algo que esteja realmente sendo sentido. Ou seja, os sentimentos não vêm acompanhados de afeto, mas como uma forma que aquela pessoa aprendeu que “deve ser” para determinadas situações.

Outra característica comum, advinda do que foi explicado acima, é a dificuldade em entender as metáforas, as “entrelinhas”, nas “segundas intenções” no meio social do que é dirigido a estas pessoas. O indivíduo que faz ajustamentos autistas geralmente não consegue operar com o nível subjetivo, justamente por não haver a referida doação de excitamentos pelas demandas de afeto.

Quando o sistema self identifica a inexistência de excitamentos, como os exemplos citados acima, ainda assim ele continua a criar, porém neste caso, a criação se dá como uma defesa para que a demanda por afeto se afaste o mais depressa possível.

Alguns exemplos destas reações de defesa contra a demanda são os sintomas descritos pela psiquiatria clássica tais como: a falta de resposta e interesse pelas pessoas, contato visual exíguo, as expressões faciais empobrecidas, diminuição de comportamentos não-verbais, dificuldade de iniciar ou manter uma conversa, padrões restritos, repetitivos e estereotipados do comportamento (agitação ou torção das mãos ou dedos, ou movimentos corporais complexos), obsessão por partes de objetos, ausência de ações variadas, espontâneas e imaginárias ou ações de imitação social apropriadas para o nível de desenvolvimento etc. (DSM-IV, 2002).

Apesar desta dificuldade de estabelecer relações sociais por meio de afetos, as pessoas que se defendem da demanda, conseguem estabelecer estas relações por meio de “inteligência social”, ou seja, eles conseguem desenvolver a função personalidade e conseguem ter uma vida onde se responsabilizam pelo que fazem, assumem determinados papéis sociais, pelos quais desenvolvem sentimentos de orgulho, desprezo etc., como por exemplo, os sujeitos diagnosticados com autismo de Asperger5 . São sujeitos perfeitamente bem integrados aos diversos contextos em que o objeto de troca é algum conteúdo semântico determinado, como uma regra prudencial, uma regra jurídica, um valor estético, moral, um pensamento ou qualquer forma de representação social que não tenha conotação afetiva.

Os autores ressaltam a importância de saber distinguir a diferença entre sentimentos e afetos: os sentimentos sempre caracterizam comportamentos claramente definidos no âmbito de cada cultura, e é da ordem dos nossos conteúdos (semânticos, naturais, morais etc.). Já os afetos referem-se àquilo que, juntamente com os sentimentos, acusam a co-presença daquilo que não está claro, do não sentido, dos sentimentos e pensamentos inexplicáveis, ou seja, assumem um caráter inatual e que não tem correlação com o presente da relação. Os afetos são o indício de um hábito se repetindo, uma forma que ocorreu no passado e hoje está inacabada, sendo necessária a repetição da mesma pelo sistema self.

Nos casos de Autismo de Kanner, há de fato o desenvolvimento da função personalidade, pois neste caso, a função de ato se defende contra a demanda, não apenas àquelas que estão correlacionadas com o afeto, como também não desenvolve a “inteligência social” e por conseqüência as relações sociais. A função de ato restringe toda e qualquer demanda na fronteira de contato, o que torna a pessoa isolada quase que totalmente, na forma de um mutismo.

A intervenção nos ajustamentos de isolamento é primordialmente saber que favorecer o processo de socialização não é o objetivo principal. Outra intervenção é reconhecer os sintomas e as formas de defesa e a partir disto, identificar as possibilidades de aprendizado que possibilitam o desenvolvimento de personalidades.

Esta identificação de demandas vai desde o clínico se observar até ao meio social em que seu cliente está inserido. Ou seja, é necessário identificar onde estão as principais demandas de afeto para aquele cliente (rotina familiar, no trabalho, na escola e na própria relação terapêutica) e tentar neutralizá-las ao máximo, para que assim, ele não se isole. A intervenção se dá, com muita sutileza, no sentido de orientar os familiares e pessoas próximas para que os mesmos consigam também identificar as demandas que geram o isolamento.

Cabe ao terapeuta entender que a partir disto, a pessoa tem mais chances de “responder” às demandas, porém não necessariamente de um fundo de vividos (afeto), mas adquirir uma linguagem pedagogicamente aprendida e adaptada à determinada situação, mas sem valor emocional. Os sujeitos autistas poderão adquirir informações, aprender expedientes sociais e exprimir valores e sentimentos.

Quando se fala em “linguagem pedagógica” é para ressaltar a importância de que o trabalho clínico aconteça no mesmo nível do sócio educador, pedagogo ou do acompanhante terapêutico. Estando neste lugar, o clínico coloca-se entre os ajustamentos autistas e as demandas sociais, facilitando uma comunicação objetiva, plena de objetos, que aconteça no nível das coisas e das palavras, apoiando o cliente nas atividades em que poderão fazer este sujeito assumir valores e papéis sociais, ou seja, o Gestalt-terapeuta facilitará para a construção da função personalidade deste sujeito.

O clínico deve evitar ao máximo demandar algo ao cliente, sendo necessário não demonstrar ter esperanças de rendimento, expectativas para o crescimento do cliente, ou ao contrário disto, mostrar-se frustrado ou decepcionado quando algo no processo terapêutico não vai como planejado, e nem ao menos, comemorar quando há de fato algum avanço nos processos de aprendizagem. Isto pode ser escutado pelo autista como demandas por excitamentos, ou seja, causaria o afastamento e prejudicaria o processo de inclusão pedagógica.

Até mesmo nos casos de autismo mais severo, como os de Kanner, observa-se uma boa aceitação no processo de inclusão pedagógica. Com estas intervenções, o terapeuta colabora para a ampliação da função de ato nos ajustamentos autistas, sendo assim, o autista responde a partir de algo que foi aprendido e produzido pedagogicamente na forma de linguagem, ao invés de responder às demandas com excitamentos que não se apresentam do fundo de vividos.

Diante disto, acredita-se que é de extrema importância, não apenas aos psicoterapeutas, mas aos que lidam diretamente com as pessoas que fazem ajustamentos de isolamento, que saibam diferenciar afetos de sentimentos, pois na nossa visão, os ajustamentos de isolamento não devem ser negados, mas salvaguardados, pois assim há a possibilidade do autista desenvolver sua “inteligência social” e não precisar se afastar dos demandantes. Os profissionais, sabendo desta diferença, e procurando não demandar afetos, os processos educacionais e as relações sociais tendem a ter mais ampliação e fluidez.

4. AUTISMO: PSIQUIATRIA CLÁSSICA

A palavra autismo é derivada do grego “autos”, que significa “voltar-se a si mesmo”. O primeiro estudioso a utilizar este termo foi Eugen Bleuer (1911) quando quis descrever uma das características da esquizofrenia caracterizada pelo isolamento social (SILVA, 2012, p.159).

A autora continua descrevendo a história do autismo, relatando que em 1943, Leo Kanner descreveu, pela primeira vez, 11 casos do que denominou distúrbios autísticos do contato afetivo. Nesses 11 primeiros casos, Kanner percebeu que estas pessoas apresentavam dificuldade em se relacionar socialmente desde o início da vida, tendo respostas incomuns ao ambiente tais como: movimentos motores estereotipados, ecolalia (eco na linguagem), resistências a mudanças, entre outros, além de apego à rotina e preferência por objetos inanimados em detrimento das pessoas.

Durante os anos 50 e 60 várias teorias foram elaboradas sobre as possíveis causas do autismo, e a mais comum era a relação do autismo com “mães frias” ou “mães geladeiras“, também elaborada por Kanner, onde demonstrava que estas mães apresentavam certa dificuldade em viver afetivamente com o filho: mantinham um contato frio, mecanizado e obsessivo, apesar do alto grau de desenvolvimento intelectual.

Entretanto, esta crença foi abandonada pela maioria dos países, inclusive pelo próprio Kanner, e outra teoria veio à tona: o autismo seria um transtorno cerebral, com início na infância, podendo atingir quaisquer pessoas de classes e níveis sociais, étnico-raciais. As pesquisas neurocientíficas e genéticas atestam que o autismo possui causa biológica.

Silva (2012) acrescenta:

“ Em 1944, Hans Asperger publicou em sua tese de doutorado informações que atualmente enquadram-se na síndrome de Asperger e cunhou o termo “psicopatia autística” devido a capacidade das crianças estudadas em discorrer sobre determinado tema minuciosamente. Nesta tese, o autor descreveu um transtorno da personalidade que incluía “falta de empatia, baixa capacidade de fazer amizades, hiperfoco em interesse especial e dificuldade de coordenação motora” ( p. 160).

Outra contribuição de grande importância foi da pesquisadora Lorna Wing, que foi a primeira pessoa a descrever a tríade de sintomas: sociabilidade/comunicação/linguagem e padrão alterado de comportamento.

Em 1978, Michael Rutter definiu o autismo baseado em quatro critérios:

1)atraso e desvio sociais não só como função de retardo mental;

2) problemas de comunicação, novamente, não só em função de retardo mental associado;

3) comportamentos incomuns, tais como movimentos estereotipados e maneirismos; e

4) início antes dos 30 meses de idade.

A partir desta visão, os estudos caminharam nesta direção e pela primeira vez o autismo entrou no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-III), em 1980b (KLIN, 2006, p.1)

Silva (2012) acrescenta que até 1980 o autismo ainda era considerado uma categoria da esquizofrenia, ou psicose infantil. A partir deste ano, o autismo passou a ser considerado um distúrbio do desenvolvimento, o que proporcionou grandes avanços na ciência com denominações corretas e critérios específicos.

No Brasil, o autismo conta com a Associação de Amigos do Autista (AMA), fundada em agosto de 1983, por um grupo de pais que tinham filhos autistas e buscavam acolher outros pais, informar e capacitar famílias e profissionais de todo o país. Desde então a associação realiza encontros, investe em formação profissional e é referência para muitos brasileiros com o transtorno e suas famílias. Atualmente vários locais do país têm suas associações, que formam a ABRA (Associação Brasileira de Autismo) e lutam juntos pelos direitos das pessoas com autismo em todo o Brasil (SILVA, 2012).

O autismo é uma doença que acomete 1 a 5 casos a cada 10.000 pessoas, sendo de 2 a 3 homens, para 1 mulher. O diagnóstico é realizado por volta dos três anos de idade do indivíduo, embora estudos já comecem a identificar traços para realização de um diagnóstico precoce por volta dos 18 meses de vida (ASSUMPÇÃO & PIMENTEL, 2000).

De acordo com Nikolov, Jonker e Scahill (2006), este transtorno, também chamado de “espectro do autismo” é parte de um grupo de condições definidas como transtornos invasivos do desenvolvimento (TIDs). Este transtorno apresenta diversos comprometimentos em várias áreas de funcionamento do indivíduo e vem acompanhado, geralmente, de um retardo mental.

Os autores ressaltam que este transtorno é caracterizado pelo DSM-IV e o CID-10, ambos manuais de psiquiatria. De acordo com os mesmos, há os seguintes tipos de autismo: transtorno autista, transtorno de Rett, transtorno desintegrativo da infância, transtorno de Asperger e TID – Sem Outra Especificação (TID-SOE). No CID-10, eles recebem títulos similares, ainda que não idênticos. O CID-10 inclui também outras duas categorias: Autismo Atípico e Transtorno Hiperativo Associado com Retardo Mental e Movimentos Estereotipados.

O transtorno autista é caracterizado, segundo o DSM-IV-TR (299.00) como um comprometimento qualitativo da interação social, relativo ao contato visual, expressão facial e gestos, assim como fracasso em desenvolver relacionamentos apropriados. Outra característica é a ausência de reciprocidade emocional, atraso ou ausência total na linguagem falada, padrões restritos e repetitivos de comportamento.

O transtorno de Asperger (299.08) tem características similares com as acima citadas e também é caracterizado por insistente preocupação com um ou mais padrões estereotipados e restritos de interesse anormal, em intensidade ou foco. Não existe um atraso, em geral, na linguagem, nem atraso no desenvolvimento cognitivo ou habilidades de auto cuidado próprios da idade.

O transtorno de Rett (299.80) é caracterizado por um desenvolvimento normal pré-natal e perinatal, desenvolvimento psicomotor normal até os cinco meses de vida. A partir disto, há uma desaceleração do crescimento cefálico, perda das habilidades manuais voluntárias anteriormente adquiridas, perda do envolvimento social, incoordenação da marcha dos movimentos do tronco, linguagem expressiva ou receptiva severamente comprometidas com severo retardo psicomotor.

O transtorno desintegrativo da infância (299.10) é caracterizado pelo desenvolvimento aparentemente normal nos primeiros dois anos de vida próprios da idade, porém a partir disto, começam as perdas das habilidades já adquiridas como linguagem expressiva, habilidades sociais, controle esfincteriano, jogos e habilidades motoras. Há o comprometimento qualitativo da interação social e da comunicação (a criança não consegue responder ao relacionamentos sociais, fracassa em manter ou iniciar uma conversa, usa a linguagem de forma estereotipada e repetitiva e perde a habilidade de brincar de jogos de faz-de-conta).

O Manual Diagnóstico e Estatístico dos Distúrbios Mentais (4ª edição) é uma classificação categórica que divide os transtornos mentais em tipos, baseados em grupos de critérios com características definidas. Utilizando-se a nomenclatura padrão para definir os transtornos e fornecer instruções codificadas precisas para diagnósticos, o DSM-IV facilita o diagnóstico, o tratamento e as análises estatísticas dos transtornos mentais. Este manual é uma listagem dos códigos do DSM-IV para todas as categorias de transtornos mentais reconhecidas da Associação Americana da Psiquiatria (APA). O autismo pode ser diagnosticado a partir de alguns critérios:

A. Um total de seis (ou mais) itens de (1), (2), e (3), com pelo menos dois de (1), e um de cada de (2) e (3).

1. Marcante lesão na interação social, manifestada por pelo menos dois dos seguintes itens:

a) destacada diminuição no uso de comportamentos não-verbais múltiplos, tais como contato ocular, expressão facial, postura corporal e gestos para lidar com a interação social. Silva (2012) acrescenta que as crianças não costumam atender ao chamado das pessoas, sempre olhando com o canto dos olhos. Os pais podem vir a pensar que a criança tem problemas auditivos.

b) dificuldade em desenvolver relações de companheirismo apropriadas para o nível de comportamento. Os autistas são crianças mais isoladas, pois têm dificuldade em participar de jogos de interação, ou brincadeiras de roda. São crianças com hipersensibilidade a determinados sons, o que torna certos ruídos ou barulhos como algo insuportável. Tapam os ouvidos, gritam e choram. Muitas vezes apresentam comportamento de muita “birra”, podendo ser agressivos e violentos ou apresentando comportamento de autoagressão, se mordendo e batendo-se (SILVA, 2012).

c) Falta de procura espontânea em dividir satisfações, interesses ou realizações com outras pessoas, por exemplo: dificuldades em mostrar, trazer ou apontar objetos de interesse. As crianças autistas, muitas vezes, apresentam dificuldades em compartilhar momentos, ou por não se interessarem ou por não apontarem esses compartilhamentos. Silva (2012) ressalta que as mães mostram brinquedos e as crianças não olham, ou não costumam trazer brinquedos para brincar.

d) ausência de reciprocidade social ou emocional. Silva (2012) explica que a pessoa com autismo tem dificuldade em demonstrar suas emoções como é esperado, muitas vezes até inadequado. O autista usa formas alternativas de expressão e cabe a nós ajudá-los e a compreender esta forma de se expressar. Às vezes, uma criança com autismo pode expressar sua gratidão com uma pedrinha e manifestar seu amor com um pequeno toque nas mãos e isto pode ser muito para ele.

2. Marcante lesão na comunicação, manifestada por pelo menos um dos seguintes itens:

a) atraso ou ausência total de desenvolvimento da linguagem oral, sem ocorrência de tentativas de compensação através de modos alternativos de comunicação, tais como gestos ou mímicas. É comum usarem as pessoas como instrumentos ou ferramentas para pegar ou abrir algo para elas.

b) em indivíduos com fala normal, destacada diminuição da habilidade de iniciar ou manter uma conversa com outras pessoas.

c) ausência de ações variadas, espontâneas e imaginárias ou ações de imitação social apropriadas para o nível de desenvolvimento.

Silva (2012) ressalta que à medida que a criança começa a falar, elas apresentam ecolalia, ou seja, repetem várias vezes alguma palavra ou frase que escutaram da mãe, na escola ou de um desenho animado.

3. Padrões restritos, repetitivos e estereotipados de comportamento, interesses e atividades, manifestados por pelo menos um dos seguintes itens:

a) Obsessão por um ou mais padrões estereotipados e restritos de interesse que seja anormal tanto em intensidade quanto em foco.

b) Fidelidade aparentemente inflexível a rotinas ou rituais não funcionais específicos.

c) Hábitos motores estereotipados e repetitivos, por exemplo: agitação ou torção das mãos ou dedos, ou movimentos corporais complexos.

d) Obsessão por partes de objetos.

Silva (2012) destaca que este padrão é notado desde muito cedo. As crianças podem apresentar movimentos repetitivos com as mãos, cabeça, tronco ou girar objetos (rodinhas, peões, pratos) e ficar olhando fixamente. Um comportamento comum entre os autistas é abanar as mãos e o antebraço na altura dos ombros como se tivessem imitando um pássaro voando é, este comportamento é denominado flapping.

B. Atraso ou funcionamento anormal em pelo menos uma das seguintes áreas, com início antes dos três anos de idade:

1. Interação social.

2. Linguagem usada na comunicação social.

3. Ação simbólica ou imaginária.

Silva (2012) acrescenta que o diagnóstico deve ser realizado por um profissional que tenha conhecimento no assunto e que entenda sobre desenvolvimento infantil. É necessário estar atento a todos os detalhes da história de vida daquele indivíduo, até antes mesmo de sua concepção.

Nesta avaliação o profissional tem que saber como a mãe descobriu que estava grávida, se fez o pré-natal, como foram as condições da gravidez e as do feto durante este período. A autora explica que as condições da formação da criança no ventre da mãe dependem de vários fatores, tais como fecundação, formação do zigoto, desenvolvimento do feto, características que podem levar a consequências como desenvolvimento do autismo, más-formações e problemas genéticos.

Outro ponto que a autora destaca é em relação às condições do parto, se ocorreu tudo como esperado ou quais foram as intercorrências neste momento. Além das informações de peso, estatura e o perímetro cefálico.

Após estas fases, o profissional passa a investigar como foi o primeiro ano de vida da criança: amamentação (houve dificuldades de sucção?), sono (dormia por muitas ou poucas horas?), apresentava hábitos alimentares restritos, quando sentou, engatinhou, andou, falou as primeiras palavras. A partir do segundo ano de vida, o profissional investiga as habilidades sociais (a criança consegue compartilhar os momentos vividos, interage com outras pessoas ao seu redor?) e motoras. Em seguida, entre os 3 e 4 anos de idade, observa-se como foi o ingresso à escola, como a criança brinca e lida com os demais colegas e com seu mundo. E assim, em cada fase do desenvolvimento, é preciso ter uma riqueza de detalhes, pois cada um deles é muito importante para que o profissional dê o diagnóstico preciso.

Outro ponto importante a ser investigado é como são as relações familiares do paciente, o histórico clínico dos pais e problemas hereditários. A autora destaca que o profissional deve ter conhecimento sobre a tríade de base alterada do funcionamento mental autístico (disfunção na socialização + comunicação + comportamento) e estar atento caso haja sintomas em uma destas características.

Recebido o diagnóstico, paciente, família e profissionais têm um leque de possibilidades. O diagnóstico é encarado com dificuldade, pois os pais recebem a notícia de algo que não tem cura, porém apresenta tratamento. Silva (2012) destaca que os tratamentos para este distúrbio têm se mostrado bastantes eficazes, pois novas portas se abrem em que profissionais de diversas áreas trabalham em prol da melhora do paciente.

A Associação de Amigos do Autista (AMA) traz de uma forma bem clara os principais tratamentos:

Intervenções psicoeducacionais, orientação familiar, desenvolvimento da linguagem e/ou comunicação. O ideal é que uma equipe multidisciplinar avalie e proponha um programa de intervenção. Dentre alguns profissionais que podem ser necessários podemos citar: psiquiatra, psicólogo, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional, fisioterapeuta e educador físico.

Silva (2012) ressalta que o acompanhamento psicoterápico é de grande importância no que se refere à “reprogramação” do cérebro por meio de novos estímulos, criando novos caminhos entre os neurônios. Isto ocorre através de técnicas para modificação de comportamento, trazendo ao indivíduo novos aprendizados, novas memorizações e novas adaptações. Por isso, é muito importante que o diagnóstico seja precoce e que a criança comece a fazer o tratamento o quanto antes, pois quanto mais nova, mais maleável é seu cérebro e sua capacidade de modificação.

A autora acrescenta que as possibilidades de tratamento são inúmeras e variam – para os que têm retardo mental grave - desde o aprendizado das atividades diárias (tomar banho, alimentação, ir ao banheiro) até o treino de sutilezas sociais, como entender ironias – para aqueles que apresentam apenas alguns traços do espectro autista.

Em todas estas possibilidades o foco é tentar diminuir as limitações da pessoa autista e resgatar o afeto e as emoções que foram impedidas de emergir.

Os métodos de intervenção mais conhecidos e mais utilizados para promover o desenvolvido da pessoa com autismo e que possuem comprovação científica de eficácia são:

TEACCH (Treatment and Education of Autistic and Related Communication Handcapped Children) é um programa estruturado que combina diferentes materiais visuais para organizar o ambiente físico através de rotinas e sistemas de trabalho, de forma a tornar o ambiente mais compreensível, esse método visa à independência e ao aprendizado.

PECS (Picture Exchange Communication System) é um método que se utiliza figuras e adesivos para facilitar a comunicação e compreensão ao estabelecer uma associação entre a atividade/símbolo.

ABA (Applied Behavior Analysis), ou seja, analise comportamental aplicada que se embasa na aplicação dos princípios fundamentais da teoria do aprendizado baseado no condicionamento operante e reforçadores para incrementar comportamentos socialmente significativos, reduzir comportamentos indesejáveis e desenvolver habilidades.

Medicações: O uso do medicamento deve ser prescrito pelo médico, e é indicado quando existe alguma comorbidade neurológica e/ou psiquiátrica e quando os sintomas interferem no cotidiano. Porém, vale ressaltar que até o momento não existe uma medicação específica para o tratamento de autismo. É importante o médico informar sobre o que se espera da medicação, qual o prazo esperado para que se percebam os efeitos, bem como os possíveis efeitos colaterais.

Por ser um distúrbio crônico, é necessário que os profissionais estejam sempre atentos ao uso de medicamentos, pois o tratamento acontecerá por longos períodos e o paciente deve ser monitorado sempre. Além disto, Silva (2012) aduz que o médico deve informar aos pais os motivos de sua prescrição, seus benefícios e os efeitos colaterais. A autora informa que os medicamentos Risperidona e Aripiprazol têm sido amplamente estudados e foram aprovados pelo FDA (Food and Drug Administration, órgão responsável pelo controle de alimentos e remédios nos EUA) para serem utilizados em crianças a partir de 5 anos de idade com sintomas causados pelo espectro autista.

Silva (2012) ressalta que o tratamento medicamentoso é muito importante, pois atenua sintomas como comportamentos repetitivos, estereotipias, desatenção, irritabilidade, hiperatividade, impulsividade, alterações do sono. Com a melhora destes sintomas, os tratamentos acima citados com diversas especialidades têm mais eficácia, pois deixam a pessoa mais focada e disposta ao aprendizado.

Outro ponto indispensável é lembrar que o tratamento farmacológico só terá sua eficácia se feito conjuntamente com o tratamento psicológico, psicopedagógico, entre outros (ASSUMPÇÃO & PIMENTEL, 2000).

Silva (2012) resume o que foi dito acima, acrescentando que há 10 mandamentos para o bom desenvolvimento da pessoa autista:

1. Tratamento individualizado: a criança precisa ter um acompanhamento criterioso e personalizado dentro de todas as especialidades de atendimento, pois cada criança tem sua forma e tempo de aprender.

2. Currículo adaptado: é importante que as crianças sejam inseridas em escolas regulares para que haja estímulo da socialização, porém estas atividades devem ser adaptadas para que a criança esteja sempre o mais confortável possível.

3. Hiperinvestimento em comunicação: o investimento nesta área tem que ser constante e traz qualidades positivas para a criança, ajudando no seu desenvolvimento, pois a mesma aprenderá, no seu ritmo, a entender a si mesma e ao próximo.

4. Ensino sistematizado e estruturado: os professores devem ser orientados e de acordo com a dificuldade da criança, o ensino deve ser estruturado e baseado em técnicas cientificamente comprovadas.

5. Engajamento: os especialistas orientam que a criança, além das horas diárias na escola, deve passar por mais quatro horas diárias em treinamentos e estimulação do desenvolvimento, tanto pelos pais, quanto por profissionais de diversas áreas já citadas acima.

6. Práticas adequadas para o desenvolvimento: a família deve contar com uma rede de profissionais capacitados que disponham de todos os recursos relacionados à socialização, aquisição de linguagem, comunicação e adequação de comportamentos para garantir o bom desenvolvimento da criança.

7. Contato com crianças não autistas: é importante que a criança tenha modelos típicos para aprender a imitar, pois isto propicia estimulações diferenciadas daquelas obtidas em terapia.

8. Atividades físicas: são importantes para desenvolver a motricidade e coordenação motora de maneira adequada, além de serem uma forma de estimular a socialização

9. Envolvimento familiar: A família deve estar engajada no tratamento da criança, visto que sem isso, tudo o que for feito não será realizado com êxito. A família é parte fundamental antes de qualquer outro tratamento.

10. Psicoeducação familiar: a família é responsável também por parte do tratamento no que se refere à participação e na busca de conhecimentos em como ajudar e potencializar o efeito do tratamento realizado pelos outros profissionais. A família ajuda a multiplicar os ganhos da criança em tratamento, o que acarretará melhor desenvolvimento da mesma.


5. REFLEXÕES SOBRE A PRÁTICA EM GESTALT-TERAPIA

O interesse em desenvolver esta pesquisa surgiu diante das dificuldades encontradas no trabalho com pessoas autistas em uma instituição que atende pessoas (crianças, adolescentes, adultos e idosos) com necessidades especiais de vários tipos.

Dentre estas necessidades especiais, a que mais capturou foi o trabalho com o autismo. Até então, nunca havia tido contato mais próximo com pessoas autistas e o que mais causava impacto era o fato destas pessoas parecerem viver em um mundo paralelo, de se posicionarem diante do mundo a sua volta de uma forma tão peculiar e imprevisível. Porém surge o questionamento: que pessoa é previsível ou, se vista de perto, não é, no mínimo, extremamente peculiar e misteriosa? Quais dos comportamentos humanos são algo realmente encaixado dentro dos ditos “padrões da normalidade”? A resposta mais fácil de ser dada é: claro que todo ser humano é único e um eterno vir-a-ser, logo pode esperar-se tudo dele.

Falando dessa maneira, julga-se simples, mas no trabalho com autismo identifica-se que isso é muito mais profundo. É estar diante de uma pessoa e, na maioria das vezes, não saber o que fazer, por onde começar, como estabelecer um vínculo. E o sentimento que emergente e primeiro é: calma. Um dia de cada vez, um atendimento a seu tempo, um minuto (que pode demorar bastante para passar) pode ser precioso.

Percebe-se que no trabalho com autismo aquilo que se aprende na faculdade, desde o primeiro dia, talvez, seja executado da forma mais intensa e genuína. Ter calma, segurar a ansiedade por respostas, esperar o tempo do cliente, acompanhá-lo sem falar nada, acolher, e vivenciar o encontro terapêutico das mais diversas maneiras possíveis – essas sim não se encontram nos livros, nem nas aulas, nem nas pesquisas: ela simplesmente vai acontecer.

Juntamente com isto, algo que chama bastante atenção era a falta de pesquisas publicadas em Gestalt-terapia sobre o tema. Logo, trabalhar com pessoas diagnosticadas com autismo a partir da visão da Gestalt-terapia tornou-se uma dificuldade e um desafio ainda maior, pois não havia embasamento teórico diverso e necessário para tal.

Mesmo com estas dificuldades, algo que hoje é possível identificar e que funcionou como norte nos atendimentos foi o que Perls (1997) apud Ribeiro (2010) em seu texto ‘Da dificuldade de “conversão” à mentalidade gestáltica’ ressalta quando explica que a Gestalt-terapia é “a abordagem original, não deturpada e natural da vida”. Ou seja, por mais que não houvesse um vasto aporte teórico ou manual de como se dá a prática gestáltica com autismos, ainda assim era possível fazer Gestalt-terapia. Pois a mesma é natural a todos.

A partir disso, foi possível (re)conhecer e (re)experienciar que a pessoa não se resume a um diagnóstico fechado e que está a todo momento fazendo ajustamentos criativos que sejam possíveis em cada experiência e assim, está em contínua busca por sua melhor forma no mundo. Como já referido acima, Perls (1997) confirma quando ressalta que “A Gestalt-terapia é um método muito operante para ser reservado unicamente aos doentes”. Ou seja, o humanismo e a Gestalt-terapia são visões de mundo que consideram o homem como um sistema global inserido em subsistemas com uma interdependência circular. Estas pessoas categorizadas pelos manuais de psiquiatria clássica se encaixam nos sintomas que ali são especificados, porém cada uma a seu tempo, forma e momento existencial.

As estereotipias e o diagnóstico antes dos três anos de idade são algumas das características que as pessoas começam a apresentar e que fazem os profissionais darem o famigerado diagnóstico de Autismo.

Sim, o diagnóstico ainda é algo muito difícil para a família. Apesar da divulgação dos conhecimentos sobre este transtorno, identificam-se nas famílias que recebem o diagnóstico, relatos como “meu mundo caiu”, “eu queria morrer”, “meu filho não é normal”, “o que eu fiz de errado?”, “não sei como lidar com meu filho”, “tenho fé que um dia ele vai ser curado”, “demorei muito tempo para aceitar”, “hoje sou conformada”, “meu filho é minha vida”.

Na referida instituição, estes eram alguns dos relatos, dados principalmente pelas mães, que eram 90% dos acompanhantes das crianças. Essas mães eram peças fundamentais durante os atendimentos, pois pelo fato de lidarem diariamente com seus filhos, conseguiam expressar de forma ímpar o que cada gesto, olhar, choro, grito, significava. Com isto, era possível perceber que entender e interagir com uma pessoa autista não é um “bicho de sete cabeças”, mas sim um exercício de enxergar novas perspectivas de interação que são totalmente diferentes das que se está acostumada. É preciso entregar-se à relação, sentir o que vem dela e assim, atuar, seguir em frente.

Trabalhar com estas mães, era também de grande aprendizado pessoal, pois era inevitável encontrar os atravessamentos de ser mãe de uma criança totalmente diferente do que um dia foi idealizado, ver mães cansadas, sobrecarregadas, muitas vezes sem muitas condições financeiras e que não tinham ajuda de outras pessoas para criarem seus filhos. E assim, via-se de tudo: mães impacientes, mães amorosas, mães permissivas, mães agressivas – tudo misturado em uma mãe só.

Estes atravessamentos reverberavam no trabalho como um todo: ausência de motivação para trabalhar, fracasso e frustração. Outras vezes aquele trabalho se tornava fantástico, motivador e promissor. O fato de não ter tanta experiência clínica, trabalhar com autistas faz o mundo se apresentar de outra forma e percebe-se a sensação de que a partir daquele momento trabalhar com qualquer pessoa torna-se mais viável, devido ao fortalecimento pessoal e profissional que esta experiência gerou.

Olhando para trás, e revivendo muitos momentos escrevendo este trabalho, percebe-se com mais clareza o quanto esta experiência foi rica. Compreende-se que as falhas são inevitáveis e que com as pesquisas realizadas até o momento presente, identifica-se o quanto é possível agir de formas mais completas e diversas.

Esta prática continua sendo muito desafiadora e enriquecedora, percebendo-se as limitações de forma mais clara e a escolha deliberada por não trabalhar mais com este público. Vê-se que o compartilhamento destes sentimentos e vivências é algo que não foi encontrado na literatura e que dificultou o início da prática com ajustamentos autistas. Conversar com colegas – não só da mesma área, mas também pedagogos, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, médicos, - tornou-se uma maneira muito rica de entender que as dificuldades eram sentidas por outras profissionais e que o fato de ser iniciante e recém-formada não significava falta de aptidão e que as barreiras existiam independentes do tempo de experiência, mas sim diante de cada novo cliente que chegava aos consultórios destes profissionais.

Tudo isto se torna fundo diante daquilo que emerge da relação e do campo estabelecidos entre terapeuta e cliente.

Por ter esta visão de ser humano, é que falar-se-á de Autistas e sim de pessoas que fazem ajustamentos autistas, pois a pessoa é dotada de limites e possibilidades que vão muito além de um diagnóstico. Os ajustamentos são apenas parte de um indivíduo.

Ratifica-se esta visão com o que Ginger & Ginger (1995) explicam, acima citado: Para a Gestalt-terapia um bom fluxo dos ciclos de figura-fundo são considerados estados de “boa saúde”, ou seja, a psicoterapia incentiva que a pessoa faça a formação de formas flexíveis, adaptadas ao meio em que estão inseridas, fazendo ajustamentos criativos permanentes. Sendo assim, a Gestalt-terapia é considerada uma “arte da formação de boas formas” (GINGER & GINGER, 1995).

A expectativa enquanto psicoterapeuta é estar diante de um cliente que fale de suas demandas, que se reclame, chore, reaja de diversas maneiras, porém lidar com pessoas que fazem estes ajustamentos foi, na maioria das vezes, um sentimento de invisibilidade, pois estas pessoas reagem e estão no mundo de outra forma. Isto divergia com as expectativas próprias, pois não havia o retorno esperado do trabalho. Essa sensação de invisibilidade era comum até mesmo porque uma das características mais fundamentais do autismo é reagir contra a demanda, então sempre que era demandado algo, a sensação de ser invisível se apresentava.

Quando o atendimento iniciava ou terminava, por exemplo, pedia-se para que os clientes tirassem os sapatos para ficarem mais a vontade na sala. Esse ato tão simples era encarado de diversas maneiras por cada um deles: uns atendiam ao pedido, outros choravam, outros tiravam o sapato, mas só andavam na ponta dos pés. Outros choravam e relutavam para ir embora da sala e fugiam quando eu dizia que o tempo da sessão havia acabado. Estas ainda são consideradas reações, mas para muitos nenhum comando ou proposta de trabalho era atendida.

Nos casos de maior comprometimento, como por exemplo, de uma garota de 13 anos, diagnosticada com autismo clássico de Kanner, a qual entrava na sala, não falava, não se interessava por nada, balançava-se de um lado para o outro e algumas vezes gemia. Naquele atendimento não havia interação alguma de forma direta. O trabalho com ela era puramente sensorial, onde ela poderia experimentar contato com o mundo através de seus sentidos, porém, ainda assim as respostas eram poucas. Sem dúvida, este era um caso cansativo, desafiador e frustrante.

Por mais frustrante que sejam estes relatos, não há algo que tenha gerado mais aprendizado de que o tempo no atendimento gestáltico é sempre composto pelo que o cliente consegue fazer no momento e o que o campo pode influenciar também. A Gestalt-terapia adota o pensamento dialógico de Martin Buber que ratifica o que foi relatado, pois este pensamento traz a teoria de que na situação terapêutica são importantes tanto o cliente, quanto o terapeuta, acreditando que a relação estabelecida também faz parte do fenômeno que ocorre no campo e é de serventia para o processo.

Trabalhar com o fato de que os ajustamentos autistas são caracterizados por uma dificuldade de retenção de dados no fundo de vividos antes era algo inimaginável. Isso gerou uma demora maior para assimilar que isso seria possível. Porém, com os estudos e a experiência percebeu-se teoria gestáltica sobre os ajustamentos de defesa contra a demanda faz todo o sentido.

Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2012) ratificam que a gênese dos autismos está no momento em que o indivíduo se defende da demanda por excitamento, pois o fundo de vividos não se apresenta diante de determinadas demandas, principalmente àquelas correlacionadas com afeto propostas pelo meio social. Ou seja, a função de ato (que produz ajustamentos de isolamento) não encontra na função id excitamentos para responder ao demandante, e assim, tenta afastá-lo.

Demanda. Isso é algo que inevitavelmente um psicoterapeuta (talvez, ainda mais, quando se é recém-formada) apresenta em grande quantidade. Demanda para que o trabalho seja excelente, com efeito, e que traga respostas ao mundo profissional e pessoal.

Esta é a primeira lição básica diante de uma pessoa que faz ajustamentos autistas. Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2012) exemplificam: O clínico não deve demandar de forma alguma.

Ela vai se defender de toda e qualquer demanda que venha em sua direção e que não possa ser respondida. Gritos, autoagressões, agressões contra o psicoterapeuta, fala descontrolada, ausência de fala e outras inúmeras reações contra a demanda era o que mais provocava a vontade de desistir dos atendimentos. Difícil mais uma vez entender que qualquer demanda, por mais simples que fosse, teria que ser eliminada. Mas o que seria essa demanda? Como um psicoterapeuta consegue não demandar?

Esse foi e continua sendo o maior exercício. O que fazer então diante de uma pessoa “autista”? Estudar, pesquisar e principalmente fazer a psicoterapia pessoal, pois se atender uma pessoa que faça interrupções de contato através de ajustamentos de evitação é um desafio, atender pessoas que não tem dados retidos no fundo de vividos e reagem diante de suas demandas é mais desafiador ainda.

O trabalho com estas pessoas é procurar estar, primeiramente, visível para as demandas pessoais, para depois conseguir estar “não-demandante” e assim, começar a estabelecer um vínculo nestes atendimentos. Tornar-se invisível ao outro foi a maneira mais genuína encontrada de estar mais próxima e assim tornar-se presente, um pouco a cada dia: ganhar um abraço, ter a resposta a uma pergunta e poder experimentar as formas mais imagináveis de interação. É estar atento e disposto a fazer os ajustamentos mais criativos possíveis.

Alguns casos marcantes a referida atuação mostram o quanto eram variáveis as formas dos meus clientes se mostrarem no mundo e de responderem às demandas, na medida do possível, do atendimento.

M., 6 anos se machucava muito, quando contrariado jogava todas as cadeiras da sala no chão, fazia bastante barulho, gritava agudamente, era quase ensurdecedor. Com o tempo, passou a gostar de carinho, se aproximava para receber um cafuné. Apresentou várias formas de estereotipia: no início colocava a mão na boca e no olho; batia com a cabeça no chão e depois chorava de dor. Era acompanhado pela mãe e pelo pai: ficava muito mais calmo quando o pai ia com ele. A mãe era muito impaciente: ficava agitado em sua presença.

Neste caso, entende-se a estereotipia como uma defesa contra a demanda, pois estar em uma sala com uma pessoa (psicoterapeuta) inicialmente desconhecida que o chamava para entrar na sala (afastando-o do pai ou da mãe), falava com ele e estava por perto quando ele tentava se auto agredir, era algo que não estava retido em seu fundo de vividos (função id), ou seja, não havia resposta. Logo, o que se apresentava na fronteira de contato era justamente o ato de afastar a demanda. Com o passar do tempo, M. já não sentia a necessidade de se defender contra essas demandas.

Outras demandas percebidas eram as da mãe. O fato de M. ser muito agitado e não obedecer aos comandos dela deixava-a bastante irritada, em alguns momentos gritava e o pegava no braço com força. Logo, M. apresentava mais comportamentos repetitivos e estereotipias, inclusive nos atendimentos, ao contrário de quando o pai o acompanhava. O garoto ficava visivelmente mais calmo, pois o pai o deixava mais livre, correndo na quadra de esportes e por toda a instituição; respeitava o seu tempo e o chamava pelo nome com paciência. M. parecia não precisar se defender contra essas demandas.

Em ambos os casos, a intervenção adotada era a de tentar neutralizar ao máximo estas demandas. Nos atendimentos era esperado o tempo do cliente para que partisse dele qualquer demanda por atividade. Com isso, ele conseguiu ficar mais a vontade e estabelecer um vínculo mais próximo. Em algumas sessões se aproximava e colocava a mão na cabeça pedindo carinho, outras inventando uma brincadeira de entrar e sair de baixo da mesa, sempre partindo dele o convite para a minha entrada no jogo.

Já a intervenção com os pais se deu na direção de escutá-los e tentar conscientizá-los de que nem sempre os filhos atenderiam suas demandas e que seus comportamentos e atitudes refletiriam diretamente na evolução e crescimento do filho. Através disto, é possível identificar o que é demanda para o cliente e tentar neutralizá-las juntamente com os pais.

L., 5 anos, gostava de carinho; se aproximava e virava de costas pra receber carinho nas mãos; respondia quando pedia-se abraço; gostava de carros e tudo que tinha rodas; ficava horas concentrado nos movimentos repetitivos dos brinquedos. Andava na ponta dos pés sempre, mesmo sem ter nenhum comprometimento físico. A mãe era muito afetuosa e interessada nos atendimentos e progresso do filho.

Neste caso, identificava-se que L. não precisava se defender e afastar a demanda quando era relacionada a contato físico. Uma hipótese seria compatível com o que os autores Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2012) expõe sobre as pessoas que fazem ajustamentos autistas em relação aos sentimentos: muitas vezes o sentimento é mais utilizado como uma maneira de se inserir socialmente do que uma forma sentida de fato, ou seja, como o indivíduo aprendeu que “deve ser” em determinadas situações.

Foi possível perceber que uma defesa contra a demanda poderia ser quando L. experimentava colocar os pés no chão totalmente. Quando isto era proposto, L. mostrava-se inquieto e voltava a andar na ponta dos pés. Como ele não apresentava dificuldades com o contato físico de outras formas, as intervenções eram bastante sensoriais, onde era proposto a L. o contato com diferentes texturas e sons diversos.

A., 7 anos, era calmo e chorava por 30 minutos seguidos no atendimento e só se acalmava nos últimos minutos do atendimento. Ficou agressivo no meio: batia nos colegas, me olhava e ria, me sentia manipulada. A mãe era muito permissiva, não conseguia dar ordens e ela mesma admitia isso, falou que todas as pessoas chamavam sua atenção, pois não tinha pulso firme com o filho.

Um exemplo desta aproximação, foi quando, ao entrar na sala, A. pegava no meu pé, indicando para eu tirar os sapatos. Ele tirava os dele, eu os meus e eu esperava ele me convidar para o setting terapêutico. Os atendimentos aconteciam em uma sala onde contava-se com uma rampa, bolas, brinquedos, túnel de pano, espelho e tapete de borracha. Quando A. chegava muito agitado e ficava correndo de um lado pro outro da sala, a atitude era de brincar sozinha, mas sem demandar a presença dele. Quando era de seu interesse ele se aproximava e assim se mostrava disponível para ter uma companhia na brincadeira.

Certo dia a intervenção foi de deixá-lo livre e não demandar nada. Ele correu por toda a instituição, gerando insegurança, pois estava-se responsável por sua integridade física e pelo que os outros iam pensar, porém ao mesmo tempo entendia-se que aquilo era importante para a relação cliente-terapeuta. Depois disso, ele vinha aos atendimentos mais disposto próximo fisicamente.

Os sentimentos e sensações durante estes atendimentos eram os mais variados possíveis: cobrança pessoal e dos pais por uma melhora no quadro de seus filhos. A responsabilidade era muito grande, pois muitos se auto agrediam e durante o tempo do atendimento a responsabilidade por sua integridade física é do psicoterapeuta, dentro do possível. Diante disto, cada atendimento gerava várias formas de sentimentos e sensações. Quando havia interação, por mínima que fosse, havia a sensação de satisfação e motivação. Em alguns momentos o sentimento era de não querer nunca mais voltar para o trabalho e que ele de nada servia. Outras vezes sentia-se que se houvesse paciência, as coisas iriam acontecer ao seu tempo. Olhando para trás, hoje é possível enxergar que era uma verdadeira “montanha russa” de emoções, pois em alguns minutos havia felicidade com o trabalho, outras, frustração total.

Foi possível aprender que, principalmente através dos autores Müller-Granzotto e Müller-Granzotto, o trabalho com autismo é muito no sentido pedagógico: Quando se fala em “linguagem pedagógica” é para ressaltar que a importância do trabalho clínico deve acontecer no mesmo nível do sócio educador, pedagogo ou do acompanhante terapêutico. Estando neste lugar, o clínico coloca-se entre os ajustamentos autistas e as demandas sociais, facilitando uma comunicação objetiva, plena de objetos, que aconteça no nível das coisas e das palavras, apoiando o cliente nas atividades em que poderão fazer este sujeito assumir valores e papeis sociais, ou seja, o Gestalt-terapeuta facilitará para a construção da função personalidade deste sujeito.

Diante desta forma de intervenção, muitas vezes havia o sentimento de ser uma pedagoga, e não uma psicóloga. Este era um questionamento frequente, pois não me havia a sensação de estar atuando naquilo que era esperado.

6. CONCLUSÃO

O trabalho com pessoas que fazem ajustamentos de defesa contra a demanda já é por si só desafiador. Deparar-se com um mundo ainda mais diferente do habitual, onde afetos são considerados ameaças ou simplesmente não apresentam resposta e precisam ser afastados, torna o trabalho com este público uma nova forma de enxergar o mundo.

No trabalho com autismos, um olhar de um apenas segundo do cliente para o psicoterapeuta equivale a uma ótima evolução de um trabalho de meses; Um convite para entrar na brincadeira que o cliente construiu equivale a um ganho imenso, dando fim à sensação de ser invisível como muitas vezes é sentida nos atendimentos.

Ou seja, para trabalhar com estes ajustamentos o psicoterapeuta precisa estar preparado teórico e pessoalmente, para conseguir identificar as demandas que o cliente, psicoterapeuta, família e sociedade apresentam, tentando assim neutralizá-las na medida do possível e tentar proporcionar aos indivíduos que fazem ajustamentos de isolamento um mundo mais tranquilo de ser vivido e menos demandante daquilo que não tem resposta.

Sendo a Gestalt-terapia uma abordagem relativamente nova e com um passado focado em práticas e experimentos, a mesma foi por um tempo uma abordagem com certas limitações bibliográficas, porém o cenário atual vem colocando este passado em seu devido lugar.

Por isso, é de extrema importância identificar que muitas demandas como o Autismo, o qual fica cada vez mais conhecido e presente no cotidiano dos consultórios e da vida de um modo geral, necessita de mais produção acadêmica no intuito de fortalecer a prática clínica, a comunidade acadêmica e consequentemente a sociedade de um modo geral.

 

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Endereço para correspondência:
Marina Nogueira de Barros
Endereço eletrônico: marinanbarros@gmail.com

 

Recebido em 17/04/2014
Aprovado em 03/09/2014

 

NOTAS

* Psicóloga formada pela UNAMA desde janeiro/11 e especialista em Psicologia Clínica com ênfase em Gestalt Terapia pelo Centro de Capacitação em Gestalt Terapia (CCGT) desde fevereiro/13. Além do trabalho no consultório, já atuou como psicóloga clínica em uma instituição de pessoas com necessidades especiais e realizou atendimento clínico domiciliar a idosos e pacientes acamados. O consultório particular fica em Belém-Pa e atende crianças, adolescentes e adultos.
1 Mais informações sobre o Existencialismo Dialógico de Martin Buber na p.17
2 tudo aquilo que falamos; tudo em que pensamos; tudo que entendemos; tudo em relação ao que nos comportamos, mas também o que nós próprios somos e a maneira como somos. É tudo aquilo que é; o que tem manifestação (STOCKINGER, 2007)
3 Frase enfatizada por Christian von Ehrenfels (1859-1932), que continuou os estudos dos fundadores da escola de Psicologia da Gestalt, Kurt Koffka (1886-1941) e Wolfang Köhler (1887-1967)  (GINGER&GINGER,1995)
4 MULLER-GRANZOTTO (2007)
5 Mais informações sobre os tipos e características do Autismo no capítulo 4.