Corpo, fala e expressão: diálogos entre a Gestalt-Terapia e a
filosofia de Merleau-Ponty
Body, speech and expression: dialogues between Gestalt therapy and Merleau-Ponty
Mônica Botelho Alvim, Diego Visconti Araújo, Camilla Santos Baptista,
Felipe T.W. Barroso, Karina Marques Ferreira Queiroz, Thatiana Caputo Domingues
da Silva
Endereço para correspondência:
RESUMO
Buscando contribuir para a reflexão acerca do estatuto do corpo e da expressão na clínica da Gestalt-terapia, este artigo busca um diálogo com a fenomenologia de Merleau-Ponty. Esse diálogo se faz possível mediante a base fenomenológica da Gestalt-terapia refletida na concepção de sujeito e de sua relação com o mundo proposta pela abordagem. Em primeiro lugar discute-se a temática do corpo e corporeidade na concepção do filósofo para em uma segunda seção promover um diálogo com noções centrais da gestalt-terapia, tais como awareness e contato. Por último, traçamos as linhas gerais da concepção merleau-pontyana de fala como gesto corporal indicando possibilidades de contribuições para futuras reflexões acerca do diálogo terapêutico. A partir do que foi discutido, pode-se entender a importância da relação entre corpo, fala e expressão na obra de Merleau-Ponty, assim como a relevância da articulação do pensamento desse filósofo com a Gestalt-terapia.
Palavras
chave: Fenomenologia; psicoterapia; awareness; corporeidade.
ABSTRACT
Seeking to contribute to the debate about the status of the body and expression in Gestalt-therapy clinical approach, this article builds a dialogue with phenomenology as proposed by Merleau-Ponty. This dialogue is made possible through the phenomenological basis of Gestalt Therapy. Firstly we discuss the theme of the body and embodiment in the philosopher proposals; a second section aims to promote a dialogue with the central concepts of gestalt therapy, such as awareness and contact. Finally, we trace the outlines of the philosopher comprehension about speech as bodily gesture, indicating possibilities for its future contributions to think the therapeutic dialogue. From what has been discussed, one can understand the importance of the relationship between body, speech and expression in the work of Merleau-Ponty, as well as the relevance of joint this thinking with Gestalt therapy.
Keywords: Phenomenology; psychotherapy; awareness; embodiedness.
INTRODUÇÃO
Pretendemos neste artigo apresentar a noção de corpo, fala e expressão para Merleau-Ponty, filósofo fenomenólogo francês, e buscar possíveis articulações com a teoria e a prática clínica da Gestalt-terapia. Dessa forma, apresentaremos alguns conceitos referidos pelo autor entendendo-os de forma indissociável, na medida em que um remete ao outro, e articulando-os com alguns conceitos fundamentais da Gestalt-terapia, tais como: awareness, campo organismo/ambiente, fronteira de contato, contato, para discutir o estatuto do corpo na psicoterapia.
O pensamento de Merleau-Ponty e a abordagem da Gestalt-terapia compartilham uma visão do ser humano que concebe o corpo como potência expressiva e elemento central na compreensão do modo de ser do homem no mundo. Ressaltam o caráter espontâneo da consciência-corpo e preconizam a dimensão pré-reflexiva da experiência em relação ao conhecimento reflexivo.
Ao longo desse artigo, portanto, entrelaçaremos a filosofia de Merleau-Ponty e a Gestalt-terapia, apontando pontos em comum entre ambas. Apostamos nessa articulação entre filosofia e psicoterapia porque acreditamos que essa possível aproximação amplia a compreensão da noção de corpo na clínica, enriquecendo o campo teórico e prático da Gestalt-terapia.
1- O corpo em Merleau-Ponty
Merleau-Ponty inicia sua obra a partir das propostas de Husserl e entende que a consciência é corpórea e seus aspectos representativos ou mentais são sempre a posteriori. Dessa forma, toda experiência é pautada primordialmente na percepção, no sentido que se evidencia no corpo. “A consciência reflexiva não é a forma canônica da consciência, nem sua única forma, nem a primeira. Depende da consciência perceptiva, indiscernível de um corpo cognoscente.” (MERLEAU-PONTY 1946/1990).
Trata-se de um corpo cognoscente, matriz da experiência, modo de ser no mundo. É um corpo ao mesmo tempo visível e vidente, que sente e é sentido. Esse corpo flui na temporalidade integrando a experiência vivida, sendo ele a própria estrutura situacional da vivência. Toda experiência ou vivência perceptiva é anterior à reflexão. Dessa forma, o conhecimento se dá a partir de um corpo no mundo, de uma totalidade corporal cognoscente que está sempre em contato com o mundo gerando o conhecimento a partir dessa unidade relacional na qual o conhecimento se faz a partir da práxis.
É dessa forma que Merleau-Ponty destaca que o corpo tem um caráter vivido, “é um campo de experiência” (ALVIM, 2007, p.42) e através de uma experiência motora acessa o mundo. Ele fala em uma “praktognosia”, uma “capacidade corporal de realizar uma gnose se dá, então, a partir da práxis, não envolve representações” (op.cit).
No livro intitulado “Fenomenologia da percepção”, Merleau-Ponty introduz o conceito de corpo habitual, que partindo de sua motricidade, gera um conhecimento. O corpo habitual aponta para o fundo de experiências já vividas, mas que está em constante
atualização no seu contato com o mundo. Este então é um corpo que carrega um passado, um habitual que, no entanto, se reedita na situação presente. É nesse sentido que Merleau-Ponty fala de corpo atual apenas na medida em que esse sintetiza em si o corpo habitual e a situação presente. Diz, portanto, de um corpo que além de se orientar por um sistema de posições atuais, é dirigido por uma dada situação. A respeito disso MOUTINHO (2004) discorre:
“O "corpo atual", instalado no "presente vivo" e voltado para o mundo, para o porvir, arrasta atrás de si o sedimentado, que é o "corpo habitual", ambos, corpo habitual e corpo atual, passado e presente, engrenados e orientados, prospectivamente, para um pólo intencional. Daí o esforço de Merleau-Ponty em mostrar que esse sedimentado não é uma massa inerte no fundo de nossa consciência, que ele, ao contrário, se "alimenta secretamente" de meu presente, formando com este uma unidade (...).” (p.28).
A partir dessa concepção do referido autor, é possível fazermos uma articulação com a ideia de contato da Gestalt-terapia, que de acordo com Robine (2006), implica um conhecimento imediato e implícito do campo (awareness) e um comportamento motor.
Para a Gestalt-terapia a experiência ocorre na fronteira de contato organismo-ambiente, sendo essa uma concepção que vai de encontro com as ideias de Merleau-Ponty, na medida em que implica numa noção que se opõe ao dualismo organismo e ambiente e concebe essas dimensões como elementos de um mesmo campo que se comunicam na fronteira de contato, de onde surgem as experiências. Chama-se contato o fenômeno que ocorre nesta fronteira. A respeito disso, ROBINE (2006) fala:
“O contato é awareness do campo ou resposta motora nesse campo (Perls; Hefferline; Goodman, 1951,Il. 3). Se aceitarmos minha proposta de tradução de "awareness", a frase deles se transformará em: ‘O contato é conhecimento imediato e implícito do campo, ou resposta motora no campo' Awareness e comportamento motor são, portanto, ligados para constituir o contato” (p. 76).
O corpo tal como pensado por Merleau-Ponty é aquele que realiza uma síntese na percepção, é a sede do encontro da pessoa com o mundo, “campo perceptivo-prático, temporal, que dota a existência de um sentido de possibilidade.” (ALVIM, 2007, p. 309).
Merleau-Ponty afirma que o corpo habitual tende a criar sentido, é instituinte e também se atualiza na relação com o mundo. Dessa forma, mais do que se habituar a meios diferentes o corpo institui novos meios. A partir da situação em que se encontra ele se orienta rumo a suas significações, que ultrapassam sua condição atual e caminha em direção a novos sentidos. É nesse contexto que o filósofo define a noção de trabalho como esse conjunto de atos imbuídos de sentido que transformam o meio e instituem uma nova forma, um novo sentido a partir da experiência. É a noção de trabalho que se refere à possibilidade humana de conferir sentidos aos objetos e instrumentos de seu meio cultural e histórico, bem como criá-los e recriá-los através de reapropriações do próprio sentido do objeto, de novas estruturas.
“Enquanto um sistema físico se equilibra face às forças dadas do entorno e o organismo animal dispõe para si um meio estável correspondente aos a priori monótonos da necessidade e do instinto, o trabalho humano inaugura uma terceira dialética pois projeta entre o homem e os estímulos físico-químicos, objetos de uso - o
vestuário, a mesa, o jardim – objetos culturais- o livro, o instrumento de música, a linguagem – que constituem o meio próprio do homem e fazem emergir novos ciclos de comportamento.” (MERLEAU-PONTY, 1942/1975, p. 197-198).
O corpo expressa um significado através de gestos expressivos e integra na experiência a significação histórica. Nessa perspectiva, não se pode mais pensar em uma consciência como uma entidade separada, a consciência existe como fenômeno corpóreo na medida em que toda experiência expressa um sentido pré-reflexivo. Conseqüentemente, o corpo deixa de ser pensado como um conjunto de experiências sensoriais e como efeito de atividades exteriores ou interiores.
“Esse caráter eminentemente corpóreo da significação impede que se possa tomá-la como objeto puro de pensamento: é no sentido do comportamento que as significações das palavras sempre se encontrarão e é no acordo de nossas intenções práticas, isto é, no sentido do que fazemos, que se realiza a comunicação”. (FURLAN e BOCCHI, 2003, p. 445).
A corporeidade é experiência temporal, visto que o ato intencional implica uma síntese temporal em que o corpo se move de uma situação atual para uma situação possível, vislumbrada em um horizonte de possibilidades. Todo movimento pressupõe um ato significativo em uma dada situação vivida pelo sujeito através de uma perspectiva em relação ao mundo, em uma possibilidade de ser, em movimento de ser algo que não está presente, mas que se apresenta como possibilidade. Merleau-Ponty propõe a compreensão desse fenômeno através da noção de um corpo que não tem como marca o “eu penso”, mas o “eu posso”. “A síntese que compõe os objetos percebidos não é uma síntese intelectual, digamos com Husserl, que é uma ‘síntese de transição’ - antecipo o lado não-visto da lâmpada porque posso colocar a mão nela”. (MERLEAU-PONTY, 1946/1990, p. 47).
Ou seja, é justamente em um campo de possibilidades que nos relacionamos com o mundo, indo além de sua face visível para as possibilidades que são significadas em ato. Ao dirigir-se ao mundo, o homem, em um mesmo ato, traz à tona o seu passado e instaura uma possibilidade futura que é o seu próprio movimento. O possível vislumbrado já é a própria ação, quando movo meu braço para pegar um copo, minha ação é ao mesmo tempo uma possibilidade e a realização da possibilidade já vislumbrada. A gesticulação é condição desse corpo, ela é ininterrupta. Esse movimento de transcender o presente através de uma síntese ocorre sem cessar, dessa maneira, o possível é o tempo todo atualizado em ato.
Merleau-Ponty ultrapassa as concepções dualistas pensando o corpo como unidade integradora do sentido humano. É nele que o sentido da experiência se expressa, e a expressão para Merleau-Ponty se define justamente por esse ato que institui concretude ou facticidade a uma virtualidade ou possibilidade, todo ato se atualiza no mundo constituindo-se como fato perceptível e acessível a uma intersubjetividade: “o ato de expressão constitui um mundo lingüístico e um mundo cultural, ele faz voltar a cair no ser aquilo que tendia para além.” (MERLEAU-PONTY, 1945/1994, p. 266).
Toda ação humana expressa um sentido, uma intenção imanente ao ato expressivo em que o seu significado é o seu próprio movimento. Só é possível compreender esse significado a partir de suas relações em uma situação específica. O homem emerge no mundo e capta seu sentido, sua linguagem, sua história, seus hábitos, e dentro desse meio do qual faz parte ele institui, altera, mistura e transforma.
2 - Corporeidade e awareness
Como discutido anteriormente, para Merleau-Ponty o corpo é concebido como hábito e atualidade, isto é, possui um estilo próprio e a tendência a atualizar esse estilo de acordo com a situação realizando uma síntese temporal que ele define como corporeidade.
O corpo expressa o sentido da experiência de forma pré-reflexiva. Assim, o significado de um ato não surge antes, na forma de pensamento ou depois do ato, na forma de re-flexão através do movimento de olhar para a experiência que ocorreu, mas é construído no momento em que se expressa corporalmente. Podemos afirmar de modo gestáltico que esse é o momento em que o sujeito inventa, cria novas formas de expressão conforme o campo em que se encontra porque para a Gestalt-terapia o sentido também é originário da experiência pré-reflexiva a qual Merleau-Ponty se refere como o momento do nascimento do sentido.
Para a Gestalt-terapia nossa relação com o mundo é sempre corporal. Nessa abordagem, assim como para Merleau-Ponty, o corpo também possui um lugar importante visto que a expressão de sentido ocorre com o corpo e não apartado dele, sendo a fala também uma gesticulação corporal.
Além disso, a Gestalt estimula a espontaneidade da gesticulação, isto é, a possibilidade de se expressar sem bloqueios no contato e aware das necessidades emergentes do campo organismo-ambiente que ocorre mediante a valorização da experiência pré-reflexiva na terapia.
Pode-se pensar que na terapia, o objetivo de ampliar a capacidade de awareness do paciente pode se relacionar à dimensão da corporeidade que fala Merleau-Ponty, visto que a awareness envolve a capacidade da pessoa se perceber no campo estabelecendo uma forma de relação com o mundo que tem a ver com o seu corpo habitual e atual na síntese temporal que realiza.
A noção de awareness da Gestalt-terapia não se refere a um conhecimento reflexivo sobre um problema, mas um conhecimento imediato e implícito do campo. Segundo Robine (2006, p.79), a awareness funciona no modo médio, nem ativo nem passivo em relação ao campo. Merleau-Ponty aponta nesse mesmo sentido quando fala da ambiguidade do ser, entendendo este como ao mesmo tempo vidente e visível, como o agente e o paciente. Um exemplo do modo médio é o artista que quando pinta seus quadros está aware do que faz, mas não é “deliberadamente calculista”. Awareness não é uma vigilância constante sobre o que está acontecendo, isso seria adoecimento porque direcionaria a energia da pessoa para um estado de vigilância, impossibilitando a espontaneidade e abertura para novas experiências. Mas também não é uma pura passividade em que o organismo se deixa levar completamente pelo ambiente.
Awareness pode ser entendida a partir de três dimensões: sentir, excitamento e formação de gestalten. A dimensão do sentir se refere ao momento pré-reflexivo da experiência em que a pessoa sente um estranhamento sem saber nomeá-lo; na dimensão do excitamento a pessoa se deixa excitar por alguma figura emergente que se destaca do fundo mobilizando energia; já na dimensão da formação de gestalten ocorre a integração da figura com o fundo com possibilidade de percepção da necessidade dominante que emergiu como figura. Um exemplo é quando a pessoa sente sede. Inicialmente a pessoa sente um estranhamento na dimensão do sentir que logo faz o corpo se mobilizar na dimensão do excitamento e surgir a sensação de sede como figura no campo em que se encontra.
Essa concepção da Gestalt-terapia de awareness se relaciona a noção de Merleau-Ponty de anterioridade da percepção em relação à reflexão. A ideia de Merleau-Ponty de que a atividade perceptiva é anterior à atividade reflexiva porque a percepção é a modalidade original da consciência também está presente na Gestalt-terapia que ressalta a importância de não sobrepor a reflexão à percepção. A atitude terapêutica é de abertura para a experiência, uma atitude admirativa e que busca awareness.
Além disso, a Gestalt-terapia entende que é a partir do corpo que ocorre o contato, isto é, a experiência com aquilo que é diferente, novo, estranho para a pessoa. Ele é o fundo a partir do qual a excitação do campo emerge. Nesse sentido, é possível articular com a concepção de Merleau-Ponty de que os significados da experiência só podem ser entendidos a partir da expressão corporal.
A Gestalt-terapia dirige a atenção não somente ao conteúdo do que o paciente fala na terapia, mas à forma como fala. E quando as repetições de padrões, bloqueios e rigidez tornam-se figura surge um campo fértil de trabalho na terapia. Isso porque essa abordagem se debruça mais sobre como o cliente está falando, gesticulando e agindo do que sobre o que o cliente está falando. Isto quer dizer que se utilizam critérios estéticos na terapia, que oferecem a direção de qual a melhor forma de interação, seja através de uma pergunta, um trabalho corporal ou até mesmo o que é chamado de “experimentos”. Assim, a terapia caminha na direção da possibilidade de o cliente se olhar e se ver repetindo padrões, apresentando-se rígido, para poder recuperar sua espontaneidade através da awareness, ou seja, do conhecimento da forma com que se relaciona no campo mediante as necessidades do mesmo.
Assim, o trabalho de ampliação da capacidade de awareness realizado na terapia visa tornar o paciente aware de suas fixações, tensões, gestalten fixadas, possibilitando a fluidez do processo da consciência por meio da corporeidade e com isso a abertura do seu campo de possibilidades e de criação (ALVIM, 2007 p. 279-280). É importante apontar que o ato de estar aware é sempre aqui e agora, num presente que envolve dimensão de passado e futuro (YONTEF, 1998). Segundo Alvim (2007) a awareness pode ocorrer pela experimentação que é “uma oportunidade de realização de uma ação que, em curso, pode ser vivida e experimentada, fazendo brotar um sentido de self a partir da awareness de si próprio no campo”.
Na situação terapêutica,
“O terapeuta conta com a awareness de si próprio para lidar com o paciente, de acordo com a situação, dando a ele a oportunidade de exercer suas agressões (ou o que quer que seja) em circunstâncias reais e enfrentar uma reação normal sem que o teto desabe. Assim, aquilo que é não-consciente pode surgir em primeiro plano de modo que sua estrutura possa ser experienciada. Ajudamos o paciente a ver como ele censura, retrai-se, com quais músculos, imagens, recursos. Quando ele se percebe reprimindo ativamente, ele mesmo pode começar a relaxar a repressão” (PERLS, HEFFERLINE e GOODMAN, 1951/1997, p. 62).
Essa ampliação da capacidade de awareness que ocorre na terapia possibilita “alcançar um determinado nível na técnica de awareness de si próprio que o paciente possa continuar sem ajuda” (PERLS, HEFFERLINE e GOODMAN, 1951/1997, p. 61).
Quando a terapia propõe uma ampliação da awareness tem
como objetivo uma reintegração da totalidade através da
superação de divisões como mente/corpo, eu/mundo e do resgate
a espontaneidade da ação. “Assim, através da experiência,
sendo um corpo, um corpo-presença, recuperar a inteireza e a confiança
básica, a fé na capacidade de lidar com a diferença, a
ambigüidade, o invisível, o desconhecido.” ALVIM (2007, p.
312).
Assim como a Gestalt-terapia, o pensamento de Merleau-Ponty foge aos dualismos que separam mente e corpo, sujeito e o mundo propondo conceitos integradores dessas dimensões da nossa existência no mundo. Um dos conceitos do autor que ilustra bem essa tentativa integradora é a noção de carne que poderia ser entendida, de forma breve, como o fundo sócio-histórico-cultural do qual todos emergimos e através do qual nos relacionamos.
3 - Fala como gesticulação corporal
Merleau-Ponty propõe que o corpo integra homem e mundo, é o ponto de onde partem todas as manifestações do ser. Dessa forma, a fala é considerada um gesto corporal dotado de sentido que é compreendido pelo outro, possibilitando a relação do sujeito com o mundo e sendo, portanto, considerada prerrogativa da unidade corpo-mente-mundo. A fala emerge como gesto do corpo que está em relação de sentido com o mundo. Assim, para compreender a linguagem é necessário entender o gesto que é considerado seu movimento expressivo originário (FURLAN e BOCCHI, 2003).
A fala é vista como uma das formas de uso do corpo, que não depende de representações, já que não tem uma relação de exterioridade com o pensamento, não é tradução do mesmo, mas ambos estão interligados. Assim, a fala é pensada enquanto expressão, dando existência à significação. “O pensamento não é exterior à expressão, tampouco ele existe antes que ela se concretize, seja em palavra, gestos, sons ou cores” (FURLAN e BOCCHI, 2003 p. 449).
Habitualmente temos a impressão de que o pensamento existe antes da fala porque nos lembramos de pensamentos já construídos, falas prontas. Mas se procurarmos compreender o surgimento da fala, sua expressão original, fica mais evidente que a fala surge enquanto gesto na espontaneidade de expressão. Ainda que esteja construída com base em um fundo de falas instituídas, se constrói de forma singular naquela situação.
Como menciona Merleau-Ponty (1945/1994 p. 248), “a denominação dos objetos não vem depois do reconhecimento, ela é o próprio reconhecimento” e “os sons não são apenas os signos das sonatas, mas ela está ali através deles, ela irrompe neles.”. Assim, a significação da fala não é conceitual, ela advém do gesto realizado pelo corpo.
Na perspectiva empirista a fala era vista ou como efeito de relações neuronais-fisiológicas e de associações de linguagem. Na perspectiva intelectualista, como efeito de categorizações e representações do pensamento; nessa segunda orientação ela era pensada como invólucro vazio, portador das elaborações de uma atividade intelectual. Em nenhuma das perspectivas a palavra portava significação. Merleau-Ponty vai romper com essa tradição, afirmando a fala como portadora de sentido. A fala evoca através de cada palavra um campo de possibilidades (de ação) (virtualidades) que emergem de minhas situações vividas, tanto quanto um gesto que uso em meu cotidiano é a expressão de uma possibilidade que para mim se abre.
Quando pronuncio a frase “vou pegar o copo”, essas palavras que me vem à boca são como o próprio gesto de pegar o copo. Ambos existem em ato, eles se realizam no próprio fazer.
“Reporto-me à palavra assim como minha mão se dirige para o lugar de meu corpo picado por um inseto; a palavra é um certo lugar de meu mundo lingüístico, ela faz parte de meu equipamento, só tenho um meio de representá-la para mim, é pronunciá-la, assim como o artista só tem um meio de representar-se a obra na qual trabalha: é preciso que ele a faça.” (MERLEAU-PONTY, 1945/1994, p.246).
A fala é a tomada de posição do sujeito no mundo das significações. Ela pode ser singular, instituinte de uma novidade e então denominada fala falante ou pode ser uma fala já instituída no mundo que possibilita a comunicação social, isto é, fala falada. Dito de outra forma, a fala falante/autêntica, ou também chamada de fala primária, consiste numa linguagem em estado nascente, como um ato criativo; e a fala falada ou secundária se refere a uma linguagem sedimentada, constituída por significações banais, correntes e pelas demais formas embasadas em conceitos já naturalizados. Nesse sentido, a fala instituída não exige esforço de expressão nem de compreensão por parte do ouvinte porque já é conhecida.
“A fala autêntica é o pensamento em ato: não existe um pensamento precedente, do qual ela seria a tradução. O que existe antes dela não é o pensamento e sim a gestação de uma intenção significativa. Na fala autêntica o pensamento está se fazendo no ato de falar e não apenas se traduzindo externamente.”. (AMATUZZI, 1989).
A partir da citação acima se pode compreender que a fala falante ocorre na dimensão pré-reflexiva, acontece em ato e se expressa enquanto gesto corporal. Não há uma representação que é falada como uma tradução, mas uma fala que se faz presente em situação e que aponta para um sentido. Essa fala é a produção de um sentido e pode ser entendida como uma espécie de registro corporal da situação que se apresenta. Dessa forma, palavra e fala, para Merleau-Ponty (1945/1994), precisam deixar de ser uma maneira de designar um pensamento ou objeto tornando-se assim, a presença desse pensamento no mundo sensível, seu emblema, seu corpo e não sua vestimenta.
Assim, ao pensar na produção de sentidos, lidamos com a possibilidade momentânea de um vazio de significado. Esse vazio nos permite possibilidades de instauração de novos sentidos e nos abre para a experiência, para o aqui e agora. É um vazio fértil que possibilita a criação, o novo. “Antes da expressão há apenas uma ausência determinada que o gesto ou a linguagem procura preencher e completar” (FURLAN e BOCCHI, 2003).
Na relação entre fala falada e fala falante percebe-se a dimensão sócio-histórica do ser humano que adota algumas falas instituídas no mundo ao mesmo tempo em que é capaz de instituir e significá-lo. Dito de outra forma, a fala aparece de um fundo cultural instituído que também pode ser modificado pelo sujeito quando se apropria das significações disponíveis e a partir delas recria, reinventa novos sentidos. “A fala falante é o ato cultural ou a cultura fazendo-se; a fala falada é o produto cultural que, no entanto, serve também de rampa de lançamento para novos atos culturais. A fala secundária é útil e dá continuidade. A fala original cria. Uma depende da outra.” (AMATUZZI, 1989).
Portanto, entende-se que não existe fala instituinte sem um fundo do qual ela se destaca. O mundo percebido não é um objeto puro de pensamento, mas um estilo universal convencionado por aqueles que o percebem e que não pode ser tomado como acabado.
Num diálogo, o entendimento da fala de alguém não ocorre como mera assimilação do que está sendo dito, mas implica em transformação. A fala é entendida pelo outro da mesma forma como ocorre com a compreensão de um gesto na medida em que “através do meu corpo posso torná-la minha” (FURLAN e BOCCHI, 2003, p. 449) porque faz parte do campo de possibilidades.
“Os gestos, portanto, não são oferecidos deliberadamente ao espectador como uma coisa a ser assimilada; eles são retomados por um ato de compreensão, cujo fundamento nos remete à situação em que os sujeitos da comunicação- eu e o outro- estão mutuamente envolvidos em uma relação de troca de intenções e gestos” (FURLAN e BOCCHI, 2003, p. 449).
Dessa forma, diz-se que o comportamento tem uma conotação intersubjetiva visto que vemos “no outro um reflexo de minhas próprias possibilidades, intenções que podem fazer parte de minha própria conduta” (op.cit). Isso porque o corpo tem a capacidade de apreender o sentido de outra conduta.
Segundo Merleau-Ponty (1945/1994, p. 257-258), “a fala é a única, entre todas as operações expressivas, capaz de sedimentar-se e de constituir um saber intersubjetivo”. Essa característica intersubjetiva da fala pode ser percebida na medida em que o direcionamento da fala a outra pessoa ou a orientação da compreensão de quem fala é mediada pela capacidade de antecipação e transgressão da fala que faz com que ela transmita mais dos signos linguísticos (MERLEAU-PONTY 1945/1994). Isso porque a existência de sons e de palavras escritas segundo o significado de um dicionário não é suficiente para a produção de sentido. Podemos ter um exemplo disso quando lemos um livro e, apesar de estarmos familiarizados com certos termos, estranhamos a sua linguagem e demoramos um tempo para compreendê-la porque está sendo usada de forma diferente, transmitindo um sentido novo (MERLEAU-PONTY 1945/1994).
O outro a quem dirigimos nossa fala é um outro eu mesmo mas isso não significa dizer que o outro é eu. O outro é visto por mim como objeto dentre outros que permeiam meu mundo, mas quando ele se movimenta, exibe gestos para o mundo, percebo que nós compartilhamos o mesmo mundo, ou seja, o mundo ao qual ele se dirige é o mesmo que eu percebo. O outro é um eu generalizado e por isso não coincide comigo. Essa noção de compartilhamento de um mundo em comum pode ser entendida como intercorporeidade, tal como aponta Merleau-Ponty (1969/2002, p. 171): “Há uma universalidade do sentir- e é sobre ela que repousa nossa identificação, a generalização do meu corpo, a percepção do outro”.
Segundo o autor, nós vivemos em relação carnal com o mundo e com o outro, o pensamento é fundado no sujeito encarnado, essa é nossa forma de inserção primeira no mundo. Nossa relação com o mundo torna possível uma situação comum e a percepção de um outro nós mesmos, que enfrenta dificuldades na interação com o mundo, que se expressa e constrói novos sentidos. O outro é percebido como
diferente de mim quando ele me surpreende e emprega um estilo de se expressar que é misterioso aos outros.
De acordo com Merleau-Ponty (1969/2002) a fala que se utiliza de significações disponíveis no mundo estabelece uma situação comum, uma comunidade do fazer. Assim, a fala do outro afeta nossas significações na medida em que pertencemos a mesma língua e cultura. E o uso da língua fornece uma comunidade do ser, é o que caracteriza o ser humano. Isso porque a sedimentação da cultura dá aos gestos e a fala um fundo em comum que a significação ultrapassa. Nos comunicamos porque todos possuem a capacidade de fala, de deixar-se conduzir pelo discurso a uma nova significação.
A fala se estabelece na relação entre o falante e o ouvinte. É importante destacar que não se é ativo apenas quando se fala e passivo quando se é ouvinte, mas precedo a fala do outro enquanto ouvinte e precedo a minha fala enquanto pronuncio algo.
Tais considerações podem ser tomadas para uma reflexão sobre o diálogo terapêutico, assunto que ultrapassa o escopo desse trabalho. Entretanto, destacamos aqui um ponto comum entre a concepção de fala em Merleau-Ponty e a fala na Gestalt-terapia que é a característica de expressão criativa da fala falante. Uma fala falante interessa à Gestalt-terapia na medida em que essa busca privilegiar a experiência pré-reflexiva e evitar uma fixação em significados e conceitos já formados que constituem uma fala falada ou em significados construídos posteriormente à experiência no momento reflexivo. Nesse sentido, pode-se dizer que a Gestalt-terapia estimula a fala falante do paciente, isto é, a sua capacidade criativa de expressão sem bloqueios fixados, buscando o sentido que emerge da experiência e evitando a reprodução do que já foi dito e que tende a distanciar o cliente da singularidade da experiência aqui-agora.
Conclusão
Esse estudo é uma pesquisa teórica desenvolvida no âmbito do grupo de estudos e pesquisas "Fenomenologia e Gestalt-terapia", cujos resultados visam contribuir para as discussões sobre a expressão e o corpo na terapia e para o desenvolvimento teórico da abordagem da Gestalt-terapia. Consideramos esta uma reflexão fundamental, pois é com o corpo que o homem atua, se expressa e inter-relaciona com o mundo. Por meio de uma revisão bibliográfica de algumas obras do filósofo Merleau-Ponty e da literatura da Gestalt-terapia - uma abordagem de base fenomenológica - descobrimos pontos de encontro que nos trazem um olhar sobre o corpo na psicoterapia.
Para Merleau-Ponty, o corpo é matriz da experiência que une corpo-mente-mundo na medida em que o corpo, a mente e o mundo não se relacionam de forma dualista, mas compõem um campo de onde emergem todas as experiências e seus sentidos. Para o referido autor, a fala é concebida como gesticulação corporal, uma expressão de sentido eminentemente corporal que não representa um pensamento porque não está em relação dualista com a mente, ao contrário, a expressão da fala ocorre no mesmo momento da construção de sentido, portanto, a fala enquanto expressão é corporal.
A partir da compreensão de Merleau-Ponty de que a fala é gesticulação corporal podemos nos aproximar da proposta gestáltica no contexto da psicoterapia de refletir sobre como esse homem fala: uma fala espontânea, com awareness, ou seja, conectada com o campo e com a situação, produtora de sentidos e instituinte? Ou
uma fala bloqueada, fixada em uma forma rígida, repetitiva? Quando esse último fenômeno ocorre no processo terapêutico, o terapeuta auxilia o cliente no sentido de que ele se dê conta do bloqueio na expressão espontânea, isto é, perceba a fixação numa determinada forma de se expressar. Assim, o terapeuta visa que o cliente recobre a fluidez, reintegrando o bloqueio que se configura como uma dimensão apartada de si para que sua consciência possa ser um continuum criador, como propõe Alvim (2007, p.10), quando fala de "uma consciência que é um corpo dirigido para uma situação presente". Nesse sentido, a Gestalt-Terapia busca uma fala falante, produtora de sentidos e instituinte.
Merleau-Ponty entrelaça esses conceitos, em geral tratados de forma dualista pelo pensamento intelectualista ou empirista, como compondo um mesmo campo de existência do modo de ser do homem no mundo, contribuindo, portanto, para uma visão holística do ser humano em sua complexidade que interessa ao estudo tanto da filosofia como da psicologia e, em especial, da Gestalt-terapia, na medida em que possibilita um diálogo enriquecedor para sua teoria e prática.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
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AMATUZZI, M.M.
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FURLAN, R.; BOCCHI, J.C. O corpo como expressão e linguagem em Merleau-Ponty.
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Endereço para correspondência:
Mônica Botelho Alvim, Diego Visconti Araújo, Camilla Santos Baptista, Felipe T.W. Barroso, Karina Marques Ferreira Queiroz, Thatiana Caputo Domingues da Silva
E –mail: mbalvim@gmail.com/ divisconti@gmail.com/ baptista.camilla@gmail.com/ felipetwb@hotmail.com/ karinamfq@yahoo.com.br/ thati_caputo@hotmail.com
Recebido em:24/11/2012
Aprovado em:20/12/2012