ARTIGO

 

Direitos da criança/adolescente: Limites entre a proteção e o respeito à convivência familiar.

 

Rights of children / adolescents: Boundaries between the protection and respect for family life.

 

Tatiana Queiroz de Almeida Santos

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Tomando como base o ECA, a criança e o adolescente têm que ser protegido de forma prioritária de qualquer situação de risco ao seu desenvolvimento. Essa proteção aos seus direitos deve ser realizada preferencialmente preservando a convivência familiar. Neste trabalho é discutido como proteger a criança e ao mesmo tempo preservar o vínculo materno/familiar, na situação em que a negligência contra a criança/adolescente é cometida por uma mãe portadora de esquizofrenia.

Palavras- chave: Direitos da criança/adolescente, convivência familiar, cuidados maternos.


ABSTRACT

Building on the ECA, children and adolescents must be protected as a priority of any risk to their development. This protection of their rights should preferably be done while preserving their family. In this paper we discussed how to protect children while preserving the maternal bond / family in the situation where the neglect of the child / adolescent is committed by a mother with schizophrenia.

Keywords:Rights of the child ;adolescent; family life;mothering.


Introdução

Hoje em dia, tem se discutido muito sobre a violência intra-familiar contra crianças/adolescentes. Um dos tipos de violência intra-familiar que ocorre com mais frequência é a negligência, estando entre as maiores causas de denúncias. (MORAIS; EIDT, 1999). Entender esse fenômeno não é tarefa fácil, pois para entendê-lo é preciso contextualizá-lo. Gomes et al (2002) em sua pesquisa mencionam três causas principais para a ocorrência de negligência contra crianças/adolescentes, e entre elas estão as doenças mentais dos pais.

Mesmo quando a “negligência” é decorrente de um transtorno mental dos pais, ou seja, independente do contexto em que ela ocorre, é realizada uma denúncia que possibilitará que a criança/adolescente seja introduzida nas redes de proteção do Estado e da sociedade. Nessas circunstâncias, a criança geralmente é afastada de sua família de origem, como medida protetiva, podendo ser encaminha para abrigos ou para o programa família acolhedora, até que sua situação se resolva.

Esta situação pode criar a possibilidade de apoio para esta família, possibilitando a reintegração familiar, ou mesmo, na impossibilidade de retorno da criança para sua família de origem, a colocação da criança em família substituta, pela via da adoção. Entre o afastamento dessa criança de sua família, e a possibilidade de resolução dos conflitos familiares e sua reintegração, existe um processo. Para possibilitar o apoio a esta família, primeiramente será preciso analisar o contexto em que essa negligência ocorreu. Será que podemos chamar de negligente uma mãe portadora de esquizofrenia? Como entender um caso de negligência contra criança/adolescente, onde de um lado existe uma mãe portadora de esquizofrenia e de outro uma criança/adolescente?

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei Federal n. 8.069/90) estabelece que as políticas de atendimento as crianças e adolescentes devem ser regidas pela Doutrina de Proteção Integral, ou seja, estabelece que os direitos fundamentais das crianças/adolescentes sejam garantidos com absoluta prioridade. Se por um lado, a Doutrina de Proteção Integral entende que a criança/adolescente deve ser protegida de qualquer situação de risco, inclusive da família, caso essa seja negligente, por outro lado, a proteção dessa criança envolve também a preservação dos vínculos familiares.

Através da minha experiência em um estágio em saúde mental, num serviço de atenção diária, percebi que era comum ocorrerem casos em que a mãe portadora de esquizofrenia tinha seus filhos afastados devido à ocorrência de negligência. Questionando o próprio conceito de “negligência” nesse contexto, passei a me perguntar como seria possível proteger a criança de situações de risco decorrente do transtorno mental da mãe e ao mesmo tempo possibilitar a convivência materna e familiar tão importante para o seu desenvolvimento.

Neste artigo procuro refletir sobre como a proteção de crianças/adolescentes consideradas em situação de risco tem sido realizada, levando em conta seu direito à convivência familiar. E como é importante olharmos para a “negligência”, assim como para qualquer tipo de violência intra-familiar contra crianças/adolescente de forma contextual, pois em muitos casos em que os pais são considerados negligentes, o que pode estar “por trás” são questões de vida além do controle desses. No final, utilizo o caso em que acompanhei mais de perto, para ilustrar como o Sistema de Garantia de Direitos tem atuado em casos como este.

1- Violência Intra-familiar

1.1 Negligência: Um tipo de violência intra-familiar

A violência intra-familiar segundo o Ministério da Saúde (2001) se caracteriza por: “Toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de outro membro da família. Pode ser cometida dentro ou fora de casa por algum membro da família, incluindo pessoas que passam a assumir função parental, ainda que sem laços de consangüinidade, e em relação de poder à outra”. (p.15)

Ela não se relaciona apenas ao espaço onde ocorre, como no caso da violência doméstica que está relacionada ao espaço doméstico, mas diz respeito à violência cometida por familiares, independentemente do espaço em que ocorreu. O que parece favorecer esse tipo de violência é justamente o tipo de relacionamento existente entre seus membros, relações de poder/afeto, subordinação/dominação, onde homem/mulher, pais/filhos estão em posições opostas, desempenhando muitas vezes papeis rígidos, cristalizados. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001).

A violência intra-familiar é considerada um problema multicausal, que conforme Morais e Eidt (1999) “envolvem vários fatores, macro (sistema sócio – econômico – político) e micro (história da vida dos pais, estrutura e funcionamento familiar)”. (p.3)

Gomes et al (2002) realizaram uma pesquisa bibliográfica sobre as causas dos maus-tratos infantis e chegaram a três causas principais. A explicação mais recorrente é o fato dos próprios pais já terem sido vitimas de maus-tratos, contribuindo assim, para um círculo vicioso. O segundo fator se refere aos desajustes familiares, que incluem o alcoolismo e os desajustes psíquicos, como a doença mental. A terceira causa envolve as influências de questões culturais e sociais nas ocorrências de maus-tratos.

A violência intra-familiar vem atingindo principalmente crianças/adolescentes e diante desta realidade, diversas áreas do conhecimento buscam compreender esse fenômeno e esse interesse parte não só da área acadêmica, mas da mídia e da própria sociedade como um todo, que tem ficado alarmada com as estatísticas encontradas nos últimos anos.

O Ministério da saúde (2001) menciona que de 1997 a 1998 em Porto Alegre, foram identificados 1.754 casos de violência contra crianças/adolescentes de zero a quatorze anos. Rezende (2008) relata que de 2000 – 2003 em Ribeirão Preto – SP, foram notificados 7.272 casos de violência contra crianças/adolescentes. Somente no período de Julho de 1999 a agosto de 2000, foram notificados pela rede de saúde, 1.061 casos de maus-tratos no Rio de janeiro. (GOMES, et al, 2002).

Costa et al. (2007), mencionaram que no período de 2003 – 2004 na Bahia, os Conselhos Tutelares registraram 1.293 casos, onde a violência mais frequente foi à negligência, totalizando 727 casos.

Morais e Eidt (1999) constataram que, dentre os diversos tipos de violência intra-familiar, como violência física, sexual, psicológica, a negligência está entre as maiores causas de denúncias, as autoras entendem a negligência como a ponta do iceberg da violência e é justamente daí que quero começar minha discussão, da “ponta do iceberg”.

O tema negligência não é fácil de ser discutido, pois há poucos trabalhos realizados que falam sobre o tema, além disso, é difícil defini-la e identificá-la, já que a negligência é diagnosticada pela “omissão” e não necessariamente por uma “ação”.

Lidchi apud Sedlak et Broadhurst (1996) mencionam que as consequências da negligência podem ser tão irreversíveis quanto qualquer outro tipo de violência e tem como resultado o fato das crianças/adolescentes não receberem nutrição, proteção ou estimulação adequada para se desenvolverem física, intelectual e emocional. As pesquisas sobre sua incidência são raras, no entanto, Lidchi (2010) indicou que são denunciados 879 mil casos nos Estados Unidos e Silva apud Tomison (1995) constataram que nos casos de maus-tratos contra crianças, 65% estão relacionados à negligência, demonstrando que esse tipo de violência é mais frequente do que outros.
Sobre a definição de negligência, Brasil apud Morais e Eidt (1999) afirma que é:

“A omissão da família em prover as necessidades físicas e emocionais de uma criança ou adolescente. Configura-se no comportamento de pais ou responsáveis quando falha no alimentar, vestir adequadamente seus filhos, medicar, educar e evitar acidentes. Tais falhas só poderão ser consideradas abusivas, quando não são devidas à carência sócio-econômica”. (p. 9).

Caminha apud Morais e Eidt (1999) caracteriza a negligência em: Leve, moderada ou severa. Leve, em casos em que crianças/adolescentes vivem num lar desregrado, sem horário para se alimentar, se banhar, dormir. Quando a criança não tem regras, não é cuidada e com o tempo acaba sendo negligenciada. A negligência moderada pode ser entendida como, descuidar da higiene da criança em um dado momento a ponto desse descuido se tornar uma doença. E negligência grave é classificada pelo autor como aqueles pais que não mandam os filhos para escola, gerando prejuízos cognitivos, e também quando não cumprem ordens médicas, dificultando o tratamento adequado. Ele ainda menciona que ela pode ser intencional e não intencional. E que aqueles pais que são negligentes apresentam deficiências importantes nas suas funções parentais e essas, podem ser resultados de três fatores: Biológico, cultural e contextual.

No que diz respeito a fatores biológicos, podemos citar casos em que a mãe principalmente, fica indiferente aos cuidados e necessidades dos filhos se retirando física ou psicologicamente da relação. Conforme Morais e Eidt (1999) a principal causa desse tipo de negligência é a depressão, a toxicomania e a doença mental. Muitas mães apresentam um comportamento negligente devido á uma reação depressiva a situações estressantes ou mesmo como consequência de um quadro psiquiátrico, como a esquizofrenia, que é um problema crônico, onde seus sintomas se relacionam com mudanças de humor, ideias delirantes e muita dificuldade de estabelecer trocas interpessoais.

Os fatores culturais também influenciam, quando pensamos que os pais são portadores de certos tipos de crenças familiares ou grupais. Essas crenças vão influenciar diretamente a forma como os pais cuidam e se relacionam com seus filhos. É aqui também que o autor incluiu aqueles pais que não conseguem cuidar de seus filhos devido à falta de experiência. (MORAIS; EIDT, 1999)

A negligência também pode surgir do próprio contexto, neste caso, é chamada de negligência contextual, que envolvem ambiente de pobreza e exclusão social. (MORAIS; EIDT, 1999)

Como podemos verificar, a partir dessas definições, a negligência ocorre através da influência de diversos fatores e para entender melhor esse fenômeno é preciso levar em conta os diversos contextos em que ela está inserida. Por exemplo, numa pesquisa realizada por Beserra et al (2002) sobre a representação social que profissionais de saúde têm a respeito do que seria a negligência, ficou claro que havia uma dificuldade em definir o termo, justamente por estar envolvido neste, todas essas questões. Um dos profissionais disse o seguinte: “A criança chegou com o abdômen superdistendido. O que foi dado para ela? Foi dado farinha. Então, foi dado por quê? Pela cultura da mãe ou por que ela não tinha outra coisa para dar? Ou, se ela tinha leite materno, por que não deu?” (p.73)

São perguntas que nos ajudam a refletir sobre o próprio conceito de negligência. Percebemos, neste caso, que quando olhamos além, ou seja, quando olhamos para aquela família dentro de seu contexto cultural, social e até mesmo biológico, as coisas mudam.

Quando uma mãe é portadora de esquizofrenia e “negligente” nos cuidados com seus filhos, como já mencionada por Morais e Eidt (1999), podemos nos perguntar também: Até que ponto a falta de cuidados com seus filhos esta relacionada aos sintomas da esquizofrenia? Até que ponto sua aparente indiferença não pode ser um dos muitos efeitos colaterais de psicofármacos utilizados no tratamento de sua doença?

Morais e Eidt (1999) afirmam que “não podemos acusar os pais pobres de serem negligentes somente pelos sinais de negligência presentes em seus filhos”. Da mesma forma, eu me pergunto se podemos acusar pais portadores de esquizofrenia de “negligentes”. Antes de acusá-los de negligentes, precisamos considerar o contexto onde a negligência ocorre, por exemplo: No caso de pais pobres, onde vive essa família? Quais as condições de habitação? Com que renda essa família vive? Se é que há uma renda. No caso em que a mãe é portadora de um transtorno mental, também é necessário se indagar: Que tipo de transtorno essa mãe tem? Ela é capaz de cuidar de seu filho? Qual a relação existente entre essa mãe e seus filhos? Que tipo de suporte poderia ser utilizado para que essa mãe pudesse cuidar adequadamente de seu filho?

Portanto, quando se trata de definir e estudar a negligência é preciso contextualizá-la. Day, et al. (2003) definem negligência como: “Quando pais ou responsáveis falham em prover cuidados de saúde, nutrição, higiene pessoal, vestimenta, educação, habitação e sustentação emocional, e quando tal falha não é o resultado das condições de vida além do seu controle”. (p.10)

Quando as autoras mencionam que negligência é quando os pais falham em prover os cuidados de seus filhos e quando tal falha não é o resultado das condições de vida além de seu controle, incluo aí, além das condições socioeconômicas da família, também a questão do transtorno mental, ambos, doença mental e condições econômicas estão além do controle dos pais. Diante disso, neste trabalho, ao me referir á negligência, no contexto do transtorno mental, usarei aspas, pois, por mais que o ato em si seja negligente, não podemos qualificar esses pais como negligentes, visto que, suas condições de vida estão além de seu controle. Essa afirmação está de acordo com Beserra et al (2002) que mencionam que a negligência pode ser consequência da condição econômica da família e Morais e Eidt (1999), que mencionam a negligência como consequência de doenças mentais.

Mas, independente das multi-causas da negligência, existem algumas consequências para as crianças/adolescentes que dela sofrem. Essas consequências também são múltiplas, e Morais e Eidt (1999) mencionam que:

“A criança pode ter ausência ou insuficiência crônica de cuidados físicos, psicológicos, afetivo e cognitivo. A criança negligenciada se considera como uma criança à parte. Sua falta de higiene, assim como suas roupas inapropriadas e sujas, desperta a rejeição por parte dos adultos e, sobretudo de seus colegas de escola, seu aspecto e seu odor podem afastar todos que estão à sua volta, ampliando as consequências da negligência afetiva intra-familiar pelo isolamento social”. (p 10)

Segundo Barudy apud Morais Eidt (1999), as crianças/adolescentes negligenciados recebem o tempo todo a mensagem “você não é digno de nosso amor, nem muito importante para nos interessar e fazer com que nos ocupemos de ti”. Esse sentimento pode se expressar por baixa auto-estima, sentimentos de inferioridade, pode desenvolver uma visão ameaçadora e distorcida do mundo. Além disso, Lidchi (2010) cita várias síndromes associadas à negligência: Síndrome de falta de progresso, síndrome de nanismo psicossocial, síndrome de munchausen por procuração ou doenças fictícias.

Diante das consequências da negligência para o desenvolvimento da criança é necessário que se pense em estratégias para solucionar o problema. Ter a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarado que a violência é um problema de saúde pública, motivou vários profissionais a estudarem os fatores de riscos envolvidos para que se possam desenvolver estratégias de prevenção. Quando se trata de violência intra-familiar que envolve crianças/adolescentes, é necessário realizar um trabalho de prevenção que se inicie na gravidez, pois, segundo Lidchin (2010), uma experiência positiva de parto cria um apego seguro entre mãe e filho. Ela também menciona que é preciso se concentrar nas famílias em situação de risco, integrando serviços que apóiem tanto crianças quanto seus pais portadores de deficiências físicas ou mentais. Pois fatores sociais (pobreza) e fatores familiares (transtorno mentais) exercem um impacto negativo sobre as interações das crianças/adolescentes com as pessoas ao seu redor.

Lidchi (2010) trata da questão levando em conta o modelo ecológico articulado com o modelo sistêmico. O modelo ecológico vê o desenvolvimento da criança como resultado da interação do contexto familiar, comunitário, institucional e social. E, para compreender essas influências sobre o desenvolvimento da criança, segundo esse modelo, é preciso verificar os fatores de risco e proteção. Quando as crianças/adolescentes têm um acúmulo de fatores de proteção, a autora chama de “resiliência”, que é a capacidade da criança/adolescente de se recompor diante dos efeitos negativos dos fatores de risco. Tanto o modelo ecológico como o sistêmico entende o mundo como uma rede de conexões, então, a negligência e outros tipos de violência contra crianças/adolescentes, estão envolvidos a escola, a comunidade, e também a família. Não podemos simplesmente acusar os pais de negligência, temos que buscar explicações para esta situação dentro do funcionamento daquela família e até mesmo da própria sociedade. (BARUDY 1997 apud MORAIS; EIDT, 1999)

Da mesma forma que buscamos explicações para a negligência e outros tipos de violência intra-familiar contra crianças/adolescentes, examinando seu contexto, no que diz respeito à solução do problema, devemos fazer o mesmo. Segundo Teixeira (2010), para que ocorram avanços quanto à proteção de crianças/adolescentes, levando em conta o respeito à Doutrina de Proteção Integral, presente no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é necessário que seus direitos sejam garantidos de forma “articulada” e “integrada”, com a família, Estado, comunidade e sociedade. Para que isso se dê, de forma efetiva, o ECA concebeu um “Sistema” que visa assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos que envolvem crianças/adolescentes.

1.2 A criança como sujeito de direitos

Hoje entendemos que a infância é uma fase fundamental para o desenvolvimento do individuo e a adolescência não é uma simples passagem para a vida adulta, mas é um momento onde nos confrontamos com valores, escolhas e diversos questionamentos que afetarão diretamente nosso desenvolvimento, nossa identidade. Com a aprovação do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, no início da década de 1990, a criança foi definida como pessoa em “situação peculiar de desenvolvimento”, devendo ter todos os seus direitos garantidos, competindo à família, a sociedade e ao Estado, garanti-los com absoluta prioridade.

Mas, nem sempre foi assim, quanto mais regressarmos na história, maiores as chances de nos depararmos com a falta de proteção da criança. De acordo com Lidchi (2010), a violência dirigida à criança sempre existiu, no passado as crianças indesejadas eram mortas pelos seus pais, eles tinham o direito absoluto sobre elas. Azambuja (2004) menciona como o significado da infância está presente ao longo da história:

“No tempo do Código de Hamurábi (1700 a.C-1600 a.C), no Oriente Médio, ao filho que batesse no pai havia a previsão de cortar a mão, uma vez que a mão era considerada o objeto do mal. Também o filho adotivo que ousasse dizer ao pai ou à mãe adotivos que eles não eram seus pais, cortava-se a língua; ao filho adotivo que aspirasse voltar à casa paterna, afastando-se dos pais adotivos, extraíam-se os olhos. Em Roma (449 a. C), a Lei das XII Tábuas permitia ao pai matar o filho que nascesse disforme mediante o julgamento de cinco vizinhos, sendo que o pai tinha sobre os filhos nascidos de casamento legítimo o direito de vida e de morte e o poder de vendê-los. Na Grécia antiga, as crianças que nascessem com deficiência eram eliminadas nos Rochedos de Taigeto. Em Roma e na Grécia a mulher e os filhos não possuíam qualquer direito. O pai, o chefe de família, podia castigá-los, condená-los à prisão e até excluí-los da família”. (p.9)

No Brasil, a situação da criança não foi diferente. Contam os historiadores que as primeiras embarcações que Portugal lançou ao mar, mesmo antes do descobrimento, foram povoadas com as crianças órfãs do rei. Nas embarcações vinham apenas homens, e as crianças recebiam a incumbência de prestar serviços na viagem, que era longa e trabalhosa, além de se submeter aos abusos sexuais praticados pelos marujos rudes e violentos. Em caso de tempestade, era a primeira carga a ser lançada ao mar. (LIDCHI, 2010)

Essas práticas foram se tornando comuns, pautadas, muitas vezes, em configurações familiares, onde o homem e pai é o “Senhor” a quem todos, mulheres e crianças devem submissão absoluta. Essa relação de poder estabelecido ao longo da historia vem se perpetuando até hoje fazendo parte das dinâmicas familiares, castigos físicos e disciplinas rigorosas. (FERREIRA, 2002)

Até o advento da Constituição Federal de 1988, a criança não era considerada sujeito de direitos, pessoa em “peculiar fase de desenvolvimento” e tampouco “prioridade absoluta”. A partir de 1988, no Brasil, passamos a contar com uma legislação moderna, em consonância com a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, inaugurando uma nova época na defesa dos direitos daqueles que ainda não atingiram os dezoito anos de idade.

Portanto, foi no século XX, que ocorreu uma mudança significativa no entendimento do que seria uma “criança”. De uma propriedade dos pais, ela passa a ser vista como sujeito de direitos.Como consequência desse novo olhar para a criança, surge o que chamamos de Sistema de Garantia de Direitos, concebido pelo ECA, onde se realiza uma parceria com o poder público e a sociedade civil com o objetivo de elaborar e monitorar a execução de todas as políticas públicas voltadas para as crianças/adolescentes. (TEIXEIRA, 2010)

Segundo Minayo (2006), a teoria da proteção integral parte da compreensão de que as normas que cuidam de crianças e de adolescentes devem concebê-los como cidadãos plenos, porém sujeitos à proteção prioritária, tendo em vista que são pessoas em desenvolvimento físico, psicológico e moral.

Conforme, a Resolução 113 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), Art. 2, o Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente, tem como premissas:

(...) “promover, defender e controlar a efetivação dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, coletivos e difusos, em sua integralidade, em favor de todas as crianças e adolescentes, de modo que sejam reconhecidos e respeitados como sujeitos de direitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento; colocando-os a salvo de ameaças e violações a quaisquer de seus direitos, além de garantir a apuração e reparação dessas ameaças e violações”. (2006)

O Sistema de Garantia de Direitos está organizado em três eixos: Promoção, Defesa e controle.

A Promoção tem como objetivo promover políticas de atendimento dos direitos de crianças/adolescentes. Essa política deve-se dar de modo transversal, articulando políticas públicas. Os principais atores responsáveis pela promoção desses direitos são as instâncias governamentais e da sociedade civil que se dedicam ao atendimento direto de direitos, prestando serviços públicos e/ou de relevância pública, como ministérios do governo federal, secretarias estaduais ou municipais, fundações, ONGs, etc. (CEDECA, 2007 apud TEIXEIRA, 2010)

A Defesa é composta por órgãos de fiscalização (Juizado da Infância e Juventude, Ministério Público, Conselhos Tutelares) é o eixo que vai responsabilizar pelo não atendimento, pelo atendimento irregular ou pela violação de direitos das crianças/adolescentes.

Já o Controle estabelece a vigilância do cumprimento da legislação para a garantia dos direitos. Existe então o controle exercido pelos órgãos e poderes governamentais e o controle chamado de social que é exercido pela sociedade civil. (SECRETÁRIA DA JUSTIÇA E DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL, S/D)

O trabalho realizado pelo Sistema de Garantia de Direitos é realizado em rede visando à proteção das crianças/adolescentes. Para entendermos como esse trabalho é articulado é necessário entendermos qual é a participação de cada órgão:

- Os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente são compostos pelos Conselhos, Nacional, Estadual e Municipal. É estabelecido pelo ECA como um instrumento de discussão, formulação das políticas voltadas para as crianças/adolescentes, numa co-responsabilidade de poderes públicos e sociedade civil. (TEIXEIRA, 2010)

- Conselho Tutelar é um órgão encarregado pela sociedade para zelar pelos direitos da criança/adolescente, previsto na legislação. Atua requerendo do poder público a construção e a efetivação das políticas assegurando a proteção integral á Crianças/adolescentes. (TEIXEIRA, 2010)

- Juizado da Infância e da Juventude representa o poder judiciário. O juiz atua como julgador em processos nos quais se discutem os interesses das crianças/adolescentes em situação de risco. (TEIXEIRA, 2010.)

- Ministério Público dá inicio ao procedimento de apuração dos casos envolvendo crianças/adolescentes, acionando a justiça sempre que algum direito fundamental da criança ou do adolescente for violado. (TEIXEIRA, 2010)

- Defensoria Pública é o órgão público que garante as pessoas carentes o acesso a justiça, de forma que aqueles que não podem arcar com as despesas de um advogado possam ter seus direitos defendidos. (TEIXEIRA, 2010)

Com o Sistema de Garantia de Direitos trabalhando de uma forma articulada ouve uma ruptura, ou melhor, uma passagem que García (1999) qualifica como a passagem do atendimento de necessidades (saúde, educação, moradia, profissionalização) para o atendimento de direitos. Hoje temos um sujeito de direitos e não mais um “objeto de tutela”.

As necessidades não atendidas no que diz respeito às crianças/adolescentes constituem violação de direitos e esta mudança não é colocada no ECA apenas como discurso, ela é tão importante, que a própria legislação prevê um Sistema de Atendimento e de Garantia de Direitos.

Mas, vale ressaltar, que embora tenham ocorrido diversos avanços no que diz respeito ao nosso olhar e cuidado para as crianças/adolescentes, a proteção integral ainda não ocorre de forma plena. Acredito que o grande avanço, é podermos olhar hoje para esse fenômeno de uma forma mais ampla, entendendo a responsabilidade pelo cuidado de crianças/adolescentes, como sendo de “todos”, família, sociedade e Estado.

Quando a família tem plenas condições de assegurar os cuidados com seus filhos, a sociedade e o Estado não intervêm. Contudo, se por algum motivo, a família “falha” em relação a esses cuidados, a sociedade e o Estado pode intervir a fim de assegurar o pleno desenvolvimento da criança/adolescente envolvido. (SANTOS; DIAS, 2009)

Em casos em que a criança sofre negligência, o Sistema de Garantia de Direitos é acionado, ou seja, geralmente é realizada uma denúncia ao Conselho Tutelar, que tomará as medidas iniciais de proteção, que podem ser: advertências, aconselhamentos para serviços de saúde ou educação. Em casos mais graves, o Conselho Tutelar encaminhará o caso para o Ministério Público, que formalizará a denúncia, acionando o sistema de justiça, que buscará uma solução para o problema. (SANTOS; DIAS, 2009). A criança/adolescente sendo introduzida nas redes de proteção do Estado e da sociedade, tanto pode ser criada uma situação de apoio, para que a família seja ajudada a lidar com seus problemas, quanto pode se iniciar um percurso de afastamento da criança/adolescente de sua família.

No intuito de se proteger essa criança/adolescente, muitas vezes esta, é afastada de sua família de forma provisória ou definitiva. Quando a criança é afastada de forma provisória, ela pode ser encaminhada para abrigos, ou para o projeto família acolhedora, que é um projeto do governo que visa possibilitar que a criança/adolescente fique num ambiente familiar até que sua situação se resolva. Quando ela é afastada de forma definitiva da família, é quando se conclui que ela realmente não poderá voltar para sua família de origem. Neste caso, o afastamento consiste na destituição do poder familiar dos pais biológicos, que possibilitará a adoção.

Em casos em que a mãe, normalmente a principal cuidadora da criança/adolescente, “negligencia” os cuidados com seu filho, devido às consequências de sua doença, mesmo em casos como este, em que a situação está além do controle desta, a Doutrina de Proteção Integral estabelece que a criança/adolescente seja tratada com absoluta prioridade. Segundo Jones (S/D), o bem-estar da criança deve preceder os direitos dos pais, mesmo quando seu afastamento é necessário e isso agrave a doença deles. Proteger a criança, assegurando seus direitos para um pleno desenvolvimento, requer protege – lá, inclusive da família, caso essa seja negligente.

No entanto, a proteção integral de crianças/adolescentes também envolve fazer o possível para preservar os vínculos familiares. Diante disso, podemos nos perguntar: qual a importância do vinculo materno, e da convivência familiar para o desenvolvimento da criança? Como assegurar seus direitos, quando se trata da “negligência” cometida por uma mãe portadora de esquizofrenia?

 

2- Cuidados maternos e convivência familiar

2.1 A importância dos cuidados maternos para o desenvolvimento da criança

Desde sua concepção até o seu nascimento, o bebê tem uma relação simbiótica com a mãe, por isso, essa relação é tão importante para o desenvolvimento da criança, para seu “vir a ser”. Pretendo discutir essa relação com base em dois autores, Winnicott e Bowlby. Winnicott (1988) menciona que esta relação é tão próxima, a ponto de “a mãe ser o bebê, e o bebê ser ela”.

Portanto, para que o bebê se desenvolva se sinta seguro e protegido, a mãe precisará desenvolver uma condição que Winnicott (1978) chamou de preocupação materna primária:

“Esta condição gradualmente se desenvolve, se torna um estado de sensibilidade aumentada durante, especialmente, no final da gravidez; Continua por algumas semanas depois do nascimento da criança; Não é facilmente recordada, uma vez tendo a mãe se recuperado dela; Eu iria mais além,e diria que a recordação que a mãe tem deste estado tende a ser reprimida”. (p.493)

A preocupação materna primária permite a mãe identificar-se com o bebê, criando condições para que seu desenvolvimento seja possível. É interessante que o autor compara este estado, a um estado de perturbação em um nível profundo e diz que “se não fosse gravidez, seria doença”, uma “doença normal”. (WINNICOT, 1978). Neste estado, as mães se tornam capazes de colocar-se no lugar do bebê, por assim dizer. Isto significa que elas desenvolvem uma capacidade surpreendente de identificação com o bebê, o que lhes possibilita ir ao encontro das necessidades básicas do recém-nascido, de uma forma que, conforme o autor menciona, “nenhuma máquina poderia imitar”. (WINNICOTT, 1988)

A mãe que propicia esse desenvolvimento saudável é chamada por Winnicott, de “mãe suficientemente boa”, que não necessariamente é a mãe do bebê, mas alguém que ocupa essa função. A mãe suficientemente boa é aquela que efetua uma adaptação ativa as necessidades do bebê, mas que gradativamente, na medida em que o tempo passa, e que a criança vai se desenvolvendo, vai se adaptando cada vez menos. (WINNICOT, 1958/1993 apud ARRUDA; ANDRIETO, 2009)

Essa mãe, tendo a capacidade de se por no lugar do bebê, saberá exatamente do que ele necessita. Essas necessidades vão desde necessidades corporais, como virá-lo no berço, colocar ou tirar mais roupas dependendo da condição do tempo, acariciá-lo ao perceber cólicas, limpá-lo, alimentá-lo, até o contato que só um ser humano pode satisfazer, tais como Winnicott, (1970/1994, p. 76 apud Arruda; Andrieto, 2009):

(...) “Deixar-se envolver pelo ritmo respiratório da mãe, ou mesmo ouvir e sentir os batimentos cardíacos de um adulto. Talvez seja-lhe necessário sentir o cheiro da mãe ou do pai, ou talvez ele precise ouvir sons que lhe transmitam a vivacidade ,e a vida que há no outro meio ambiente, ou cores ,e movimentos, de tal forma que o bebê não seja deixado a sós com os seus próprios recursos, quando ainda jovem, e imaturo para assumir plena responsabilidade pela vida”. (p.5)

Segundo Anna Freud apud Winnicott (1978) no inicio, a vida do bebê é governada por sensações de necessidades e desconforto, e a mãe como um objeto, desempenha o papel de trazer satisfação e remover o desconforto. Quando as necessidades do bebê estão satisfeitas, isto é, quando ele se sente aquecido, confortável, com sensações agradáveis gástricas, ele retira o interesse no mundo dos objetos e dorme. Quando está faminto, com frio, e molhado, se volta para o mundo externo buscando ajuda. Por volta do quarto ou sexto mês, o bebê passa a prestar atenção na mãe também nas horas em que não está sob a influência de impulsos corporais. Neste momento, aos poucos, a mãe vai introduzindo o mundo externo para o bebê. Então, por mais que pareça que estejamos falando somente de necessidades físicas, como fornecimento de comida no momento adequado, limpá-lo, vesti-lo, Winnicot (1988) menciona que a mãe que supre essas necessidades, está suprindo também necessidades psicológicas e emocionais de seu bebê, favorecendo seu desenvolvimento.

Para explicar o desenvolvimento emocional de um bebê, Winnicott fala da existência de dois estágios. O primeiro ao final do nono mês de gestação, onde o bebê se torna maduro para o desenvolvimento emocional. E o segundo, ocorre entre os 5 ou 6 meses de vida do bebê, é o estágio onde ele começa a levar os objetos à boca, mostrando que sabe que tem um interior, que as coisas vêm de fora, admitindo assim a mãe com um interior próprio. (WINNICOTT, 1978). Paralelamente a esses dois estágios, onde o bebê poderá conhecer a si mesmo e os outros como pessoa total que são, ocorrem três estágios que compõem seu desenvolvimento primitivo emocional. A integração, personalização e realização.

A integração começa logo no inicio da vida, mas não é algo natural. A integração ocorre por dois conjuntos de experiências: a técnica de cuidado infantil através do qual a temperatura do bebê é mantida, ele é manipulado, banhado, embalado e nomeado e, também, as experiências pulsionais, que tendem a tornar a personalidade una a partir do interior. (WINNICOTT, 1978)

A integração vai ocorrer a partir de, um estágio não integrado. O bebê vai começar a perceber uma série de sensações, que vão sendo identificadas e integradas com a ajuda da mãe, suprindo as necessidades do bebê. (WINNICOTT, 1978)

A personalização é o sentimento de que se está dentro do próprio corpo. Esse processo é ajudado pela experiência de cuidado corporal realizado repetidas vezes, pela mãe. (WINNICOTT, 1978)

O terceiro estágio, diz respeito à realização, que é o perceber a existência do mundo e o relacionar-se com ele. O par bebê e seio da mãe se constituem o primeiro laço feito pelo bebê com um objeto externo. Segundo Winnicott (1978) a ilusão tem um papel fundamental neste processo. Primeiro a mãe irá iludir o bebê, por fazê-lo pensar que seu seio faz parte dele, e a tarefa da mãe consiste em desiludi-lo, ajudando seu bebê a diferenciar-se dela. A amamentação então, não se limitará apenas a alimentar o bebê, mas será fundamental para que ocorra a relação do bebê com o objeto, ou mundo externo.

Diante desta afirmação, é importante entendermos que embora, o autor comente sua preferência pela amamentação como sendo uma experiência onde está envolvido gosto, cheiro e uma relação bem achegada com a mãe ele não deixa de notar que, existe um enorme número de pessoas que se desenvolveram satisfatoriamente sem ter passado por essa experiência. Pensando naquelas mães que tem uma dificuldade pessoal a respeito da amamentação, o autor fala que, embora ela seja uma forma do bebê experimentar um contato físico e intimo com a mãe, esta não é a única forma. Manipulá-lo, segurá-lo, é mais importante do que a “experiência concreta” da amamentação.

Corroborando com a teoria de Winnicott, Bowlby vai falar da importância da relação materna para a saúde mental da criança, assim como também, dos prejuízos da privação desta relação. Segundo Bowlby (1995) é essencial para a saúde mental do bebê e da criança pequena, que estas, tenham uma vivência de relação calorosa, íntima e contínua com a mãe (ou a mãe substituta permanente, uma pessoa que desempenha, regular e constantemente, o papel de mãe para ele), na qual ambos encontrem satisfação e prazer. É essa relação que segundo o autor, irá propiciar uma relação saudável com o pai e com os irmãos, e que está relacionado ao desenvolvimento da personalidade e da saúde mental da criança. Por outro lado, segundo o autor, a “privação” desse tipo de relação pode trazer sérios danos à saúde mental da criança.

Esta noção de “privação” é muito importante, pois quando se trata de “negligência” nos cuidados com a criança, o afastamento da criança é algo a ser considerado. Proteger a criança, muitas vezes, significa afastá-la de sua mãe e família. Estudos mostram que crianças privadas dos cuidados maternos, principalmente quando isso ocorre antes dos três anos de idade, tem o seu desenvolvimento retardado – física, intelectual e social e podem aparecer sintomas de doenças físicas e mentais. (BOWLBY, 1995)

Bowlby (1995) esclarece o que significa esse termo, por mostrar que uma criança sofre privação, quando:

(...) “vivendo em sua casa, a mãe (ou substituta permanente) é incapaz de proporcionar-lhes os cuidados amorosos de que uma criança precisa. E ainda uma criança sofre privação se, por qualquer motivo, é afastada dos cuidados de sua mãe. Esta privação será relativamente suave se a criança passar a ser cuidada por alguém em quem ela já aprendeu a confiar e a quem já conhece, mas pode ser acentuada se a mãe substituta em questão, embora amorosa, for uma estranha”. (p.14)

O autor deixa claro que a privação não está relacionada apenas com a privação física da mãe, mas com a falta de investimento afetivo desta. Ele ainda menciona que outra pessoa pode atuar como “mãe substituta”, desde que, seja alguém amorosa e que a criança confie. Para uma mãe (ou mãe substituta) ser capaz de desempenhar sua função de modo a proporcionar o pleno desenvolvimento de seu filho, segundo o autor, ela precisa dispensar atenção constante a ele, sentir satisfação por vê-lo crescer e se tornar um homem ou uma mulher, sabendo que foram seus cuidados que tornaram isto possível. Por isso, ele diz que o amor materno de que uma criança necessita é tão difícil ser encontrado no seio de sua família e extremamente difícil fora da mesma. (BOWLBY, 1995)

Em seu livro “cuidados maternos e saúde mental”, Bowlby menciona um estudo, onde foi comparado um grupo de 113 crianças, com idade de um a quatro anos, sendo que elas passaram quase toda a vida numa de doze instituições diferentes, com um grupo equivalente que residia em suas casas e ficava em creches durante o dia. As mães das crianças do segundo grupo trabalhavam fora e seus lares eram com frequência insatisfatório. Mesmo assim, o desenvolvimento médio das crianças que estava com suas famílias mostrou-se normal, enquanto as outras demonstraram um atraso no desenvolvimento. (BOWLBY, 1995). Esse exemplo mostra, que mesmo que a criança não vivencie a situação ideal, no que diz respeito à relação materna e familiar, ainda assim, é melhor do que não ter essa relação, ou seja, do que sofrer a “privação”. Tanto Winnicott (1988), quanto Bowlby (1995) concordam sobre a importância dessa relação para o desenvolvimento físico, emocional e social da criança, e o quanto a falta dessa relação é prejudicial.

Quando falamos de “negligência”, ou melhor, da dificuldade de uma mãe esquizofrênica em cuidar adequadamente de seus filhos, talvez não estejamos falando de um ambiente ideal. No entanto, sabendo agora da função que uma mãe (ou alguém que desempenhe essa função) tem na vida de uma criança, como pensar na relação mãe-bebê que envolve uma mãe esquizofrênica?

2.2 Os cuidados maternos na esquizofrenia

Para pensar a relação que envolve uma mãe esquizofrênica e seu bebê, precisamos entender o que é esquizofrenia e como esta se dá, no contexto da maternidade. Visto que, estamos discutindo a “negligência” neste contexto, é preciso entender quais os possíveis riscos para a criança.

A esquizofrenia é um transtorno mental que se caracteriza por desorganização do pensamento, embotamento afetivo, delírios, alucinações. Os sintomas característicos da esquizofrenia envolvem uma faixa de disfunção cognitiva e emocionais que acometem a percepção, o pensamento, a linguagem, o afeto, a capacidade hedônica, a volição, o impulso e atenção. Ela é causada por fatores genéticos, hereditários e ambientais. (GUTT, 2005). Ao observar indivíduos portadores de esquizofrenia, é possível perceber sentimentos de irrealidade. Esses sujeitos fundem-se com outras pessoas e coisas mais facilmente do que pessoas sem esse diagnóstico, e têm mais dificuldades de sentirem-se separados enquanto indivíduos. (WINNICOTT, 1961/2005)

Winnicott com base em sua teoria sobre a importância do ambiente para o desenvolvimento do bebê chega à conclusão de que a esquizofrenia é uma doença de deficiência ambiental, e que, portanto, suas origens se encontram no desenvolvimento primitivo infantil. Segundo o autor, o paciente psicótico é aquele que não teve um ambiente que facilitasse o processo de integração, de personalização e das relações objetais, seus sentimentos são os de desintegração da personalidade, despersonalização e desrealização, havendo perda do contato com a realidade. (WINNICOTT, 1961/2005)

Como vimos, no início da vida de um bebê, a mãe e o bebê formam uma unidade, assim, o desenvolvimento do bebê depende dessa unidade, mãe. Para que essa mãe consiga desempenhar sua função de forma efetiva, ela precisa segundo Winnicott, desempenhar o papel de mãe suficientemente boa. A mãe suficientemente boa saberá exatamente de que seu bebê necessita, se relacionando com o bebê como se fossem um, atuando por um período, como seu Ego e aos poucos, à medida que o bebê vai se desenvolvendo, a mãe vai permitindo que o bebê seja cada vez mais independente. Se por outro lado, ela não for suficientemente boa, o bebê não é capaz de começar o desenvolvimento de seu Ego, ou então, haverá um desenvolvimento distorcido. (WINNICOTT, 1961/2005)

Diante disso, percebemos que uma mãe portadora de esquizofrenia terá grandes dificuldades para desempenhar o papel de “mãe suficientemente boa”. A esquizofrenia afeta profundamente a capacidade de maternagem das mães, e isso vai variar de acordo com a intensidade do transtorno. Mazet; Stoleru (1990, p. 301 apud ARRUDA; ANDRIETO, 2009)

“A relação entre uma mãe psicótica (transtornos psicóticos, esquizofrênicos, evoluindo há vários anos) e seu bebê parece marcada pela extrema dificuldade para a mãe de ver a criança real, pela inversão da relação mãe-criança, a criança procurando adaptar-se a mãe, o que traz para ambos uma relação de uma angústia intolerável. A mãe não pode perceber as necessidades e desejos de seu próprio bebê, a quem não pode reconhecer como um indivíduo separado, donde um comportamento materno frequentemente inadaptado, incoerente, imprevisível e, portanto deficiente, em contraste com a impressão geral eventual de um ‘belo bebê, sorrindo, comendo bem e não chorando”.(p.13).

Como vimos, no principio a mãe e o bebê, são como um, é ela quem vai suprir as necessidades desse bebê, ela funcionará como sua personalidade. Com o tempo, essa mesma mãe irá proporcionar a seu bebê a separação. Só assim, se diferenciando dela, que ele poderá se desenvolver, sabendo que é uma pessoa distinta.

A mãe que é portadora de esquizofrenia tem dificuldade de perceber seu bebê como individuo separado. Isso trás grandes prejuízos para o desenvolvimento do bebê, pois como ela poderá perceber suas necessidades? Como ela poderá propiciar que ele se perceba como pessoa? Cid e Matsukura (2009) reconhecem que dentro das características ambientais que podem colocar a crianças em maior risco para o seu desenvolvimento, está a doença mental dos pais. Mencionam que independente do tipo de transtorno mental das mães, elas se apresentam mais ansiosas, inseguras e negativas, se envolvem pouco em situações de brincadeira e interação com suas crianças, têm dificuldades em identificar as necessidades dos filhos e são menos disponíveis afetivamente.

Outros fatores considerados de risco para a criança nesse contexto é o próprio efeito das drogas para o feto, as desvantagens sociais associadas ao transtorno mental, assim como também , os cuidados parentais que são comprometidos. Jones (S/D) menciona que embora seja aconselhável evitar medicação na gravidez, os riscos de suspendê-la frequentemente superam os riscos para o feto. A gravidez usualmente não é detectável antes de 30 a 40 dias de gestação; assim, bebês concebidos por mulheres que estão regularmente tomando medicamentos são expostos a riscos teratogênicos.

Além disso, o autor menciona outros riscos à criança, como a presença de “maus-tratos” e “negligência”. Ele diz que não é tanto o diagnóstico que confere o risco, mas a gravidade e cronicidade da psicopatologia, e que muitos pais com graves transtornos depressivos, ansiosos ou alimentares, e mesmo aqueles que sofrem de psicose, são excelentes cuidadores.

Jones (S/D) lista algumas variáveis as quais a criança fica exposta, quando um, ou ambos os pais possuem um transtorno mental.

1-) “Indisponibilidade emocional, que vai variar de acordo com a gravidade do transtorno; 2-) comportamento perturbado, o que é perturbador para uma criança; 3-) separação, quando a relação é interrompida pela hospitalização, o que faz com que esta criança tenha cuidados parentais múltiplos; 4-) o estigma da doença, que por conta da doença dos pais a criança seja submetida a provocações e rejeição”.p.7-9)

Ao lermos essas variáveis mencionadas pelo autor, podemos pensar no conceito de privação, pois como vimos, esse conceito diz respeito a uma dificuldade da mãe de perceber as necessidades dos filhos, assim como também, de uma indisponibilidade emocional. Portanto, se tratando da mãe portadora de esquizofrenia, a criança poderá sofrer privação afetiva e física, já que o tratamento do transtorno, na maioria dos casos envolve internações.

Quando o autor fala da psicose especificamente, menciona que nessas circunstâncias, o cuidado com a criança é frequentemente irregular e intermitente, com baixa qualidade da sensibilidade e de envolvimento. Os filhos de pessoas com psicose têm risco aumentado para distúrbios psicológicos, não somente devido a problemas nos cuidados parentais, mas também porque podem compartilhar uma predisposição genética e serem expostos a uma série de fatores ambientais associados à doença mental nos pais.

Paralelamente a esses fatores de risco, existem também os fatores de proteção, que são os recursos pessoais da criança, e os sociais, que podem inibir o impacto dos fatores de risco. Segundo Winnicott (1961/2005) situações em que a mãe é esquizofrênica, a criança pode encontrar meios de viver de forma sadia. Ele acredita que o “distúrbio da criança pertence á criança”, no sentido de que ela pode se desenvolver apesar dos fatores ambientais, da mesma forma que crianças podem apresentar distúrbios, apesar do bom cuidado materno e ambiental.

Zornig e Levy (2006) reconhecem que os cuidados parentais recebidos por crianças no inicio de suas vidas, é de vital importância para sua saúde física e mental. Porém, lembram que não podemos desconsiderar o potencial criativo e a incrível capacidade regenerativa das crianças na procura de vínculos alternativos que possam lhes fornecer experiências de acolhimento, intimidade e relacionamento contínuo.

Halpern e Figueiras acrescentam que no caso da psicose dos pais, ainda que os mesmos não possam ajudar a criança por causa da gravidade do quadro, é importante que alguém do ambiente próximo consiga perceber a dificuldade da mãe, e desta forma, a doença da mãe sendo percebida, algo pode ser feito.

Quando se trata de solução para a situação, Jones (S/D) menciona que a Convenção das Nações Unidas estipula que as nações devem garantir cuidados apropriados à saúde pré-natal e pós-natal. Serviços (perinatais) mãe-bebê, tanto como um ramo da psiquiatria infantil quanto como uma subespecialidade da psiquiatria de adultos, podem servir à população, manejando doenças graves e intratáveis, treinando equipes, desenvolvendo serviços e conduzindo pesquisas.

No que diz respeito à ocorrência de negligência infantil, a Convenção das Nações Unidas estabelece que a proteção à criança deva incluir programas de apoio à criança e seus cuidadores, bem como identificar, notificar, investigar, tratar, acompanhar e prevenir maus-tratos e negligência contra crianças/adolescentes. Em casos como esses, onde por um lado temos uma mãe com transtorno mental e do outro uma criança, deve-se sempre predominar o que for melhor para a criança. (JONES, S/D)

Tanto Halpern e Figueiras (2004), quanto Arruda e Andrieto (2009) falam sobre a importância da prevenção em casos como estes. Halpern e Figueiras mostram que o aleitamento materno, embora ainda não existam estudos com conclusões definitivas, influencia positivamente o desenvolvimento das crianças e a relação mãe-bebê.

Arruda e Andrieto (2009) dão ênfase ao diagnóstico precoce do transtorno da mãe, como forma de prevenção. Com isto, de um lado, procura-se tratar a mães o mais rapidamente possível, evitando um agravamento do seu estado mental. Do outro lado, procura-se garantir ao bebê quer um ambiente facilitador, quer pessoas que estejam preparadas para atender às suas necessidades básicas, parcial ou plenamente, em função do estado mental da mãe e enquanto a mesma não tiver capacidade para tal.

Algo importante a considerar nessas situações em que a mãe é esquizofrênica, e não tem possibilidade de cuidar de seu filho de forma adequada, é que desde que, seu estado mental o permita, é importante que ela e o bebê sejam mantidos em contato. É igualmente importante que não se assumam atitudes de rotular a mãe ou a criança, bem como fazer previsões do que possa vir a ocorrer no futuro, quer em termos de desenvolvimento emocional saudável, quer de transtornos mentais. (ARRUDA; ANDRIETO, 2009)

No que diz respeito a crianças que tem pais com transtorno mentais sofrerem privação, Bowlby (1995) menciona que dependerá de alguns fatores: a) se ambos os pais, ou apenas um deles, é afetado; b) quando apenas um dos pais é afetado, se o outro recebe ou não auxilio; e c) se os parentes ou vizinhos podem – e desejam – atuar como substitutos.

Esses fatores são muito importantes, pois fica evidente que dependendo da gravidade do transtorno dessa mãe, ela precisará de ajuda para exercer sua função. Corroborando com essas idéias, Winnicott (1961/2005) também menciona que nesses casos é importante que a mãe tenha outras pessoas que possa assumir os cuidados com o bebê.

Portanto, diante dessas informações, percebemos que a mãe que possui esquizofrenia tem uma dificuldade maior para exercer sua função e este é considerado um fator de risco para o desenvolvimento da criança. Por outro lado, a criança poderá encontrar meios para viver de forma sadia, usando sua capacidade de adaptação e fazendo uso de vínculos alternativos.

Com base nessas teorias, ficou clara a importância da relação materna e familiar para o desenvolvimento saudável da criança. Com o advento do ECA, essa relação de cuidado por parte da mãe e da família, passou a ser entendido como um direito fundamental. E para garantir os direitos da criança/adolescente que envolve a preservação dos vínculos familiares, assim como também, a proteção da violação dos seus direitos no contexto familiar, foi criado um Plano Nacional destinado à promoção, proteção e defesa do direito de crianças/adolescentes à convivência familiar.

2.3 O direito fundamental à convivência familiar

Crianças consideradas em situação de risco têm um grande histórico de internações em instituições. Desde o final do século XIX, foram instauradas práticas de internação como forma de proteger as crianças/adolescentes. (RIZZINI, S/D)

Com a lei federal 8.069, o Estatuto da Criança e do Adolescente transformou essa concepção, priorizando diretrizes de atendimento contrário a institucionalização. Hoje, o abrigamento é uma medida excepcional e temporária. Crianças e adolescentes não podem ser privados de liberdade, e havendo a necessidade de serem afastadas de sua família, devido a uma situação de risco, o abrigo, ou o programa família acolhedora poderá ser usado como um recurso temporário. (RIZZINI, S/D)

Com o ECA a ênfase começa a ser colocada no direito á convivência familiar, o Art. 19 dispõe que:

“Toda criança ou adolescente tem direito a ser criado e educado no seio da sua família e excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes”. (Art. 19, Lei 8.069)

Desta forma, a convivência familiar passa a ser uma prioridade e essa prioridade passa a ser reforçada com a criação do Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária. O PNCFC (2006) constitui um marco nas políticas públicas no Brasil, visa lançar luz sobre a necessidade de olharmos para esse vinculo e investirmos no resgate deste, nas situações de risco.

O PNCFC (2006) está fundamentado primordialmente na prevenção ao rompimento dos vínculos familiares, e no investimento para o retorno da criança ao convívio com sua família de origem. Colocando a criança/adolescente em família substituta, somente quando forem esgotadas todas as possibilidades de retorno desta, levando em conta o melhor interesse da criança/adolescente, ou seja, o que trará o menor prejuízo ao seu desenvolvimento.

Desta forma, a criança passa a ser vista, não mais de modo dissociado de sua família. O lugar que a família ocupa na construção de sua subjetividade é reconhecido, afinal, é na família onde construímos nossos primeiros vínculos afetivos, onde temos referência de afeto, proteção e cuidado. Estando esta, estreitamente ligada ao pleno desenvolvimento da criança, passa a ser vista, como um direito que deve ser protegido pela sociedade e pelo Estado. (RIZZINI, S/D)

De acordo com Rizzini (S/D), o Estado zelar pela criança/adolescente quando a família por algum motivo não conseguir fazer isso, não mais significa substituir a família por algum equipamento estatal de “proteção” e sim garantir os direitos da família, proporcionando a ela condições de se fortalecer e desempenhar seu papel de protetora de seus filhos.

Infelizmente, na prática isso não tem ocorrido de forma efetiva. Quando uma criança/adolescente sofre “negligência”, mesmo quando esta, provém de um contexto de doença mental dos pais, geralmente ela é afastada de sua família, como medida protetiva, até que se resolva sua situação. Entre o afastamento e a resolução do problema, a criança ficará em abrigos ou poderá fazer parte do programa família acolhedora. Embora esse projeto se proponha a possibilitar que a criança/adolescente tenha convivência familiar, até que se resolva sua situação, ele não consegue atender todas as crianças em situação de risco. Desta forma, os abrigos continuam sendo uma realidade, onde as crianças são deixadas e esquecidas.

O grande problema, é que em muitos casos em que a criança é afastada de sua família, estas jamais retornam para sua família de origem. Segundo Cesca (2004) a maioria das famílias não recebe o apoio adequado para enfrentar seus problemas e reverter a situação. E a autora ainda complementa dizendo que, a tendência do sistema jurídico é pegar os casos de negligência e maus-tratos contra crianças/adolescentes e jogar numa “vala comum”.

Quando uma mãe é “negligente” nos cuidados com seu filho, devido a um transtorno mental, é preciso pensar em como ajudar está família independente da decisão que irá ser tomada. Embora em muitos casos o afastamento da criança/adolescente seja a única alternativa, deve-se fazer o possível para a reestruturação familiar. Caso contrário, apenas ficará a impressão tanto para a criança, quanto para a família de estarem sendo punidas. Levando em conta o contexto familiar da criança, o ECA propõe medidas de apoio para a família, como inclusão em programas de orientação, encaminhamento a tratamento psicológico ou psiquiátrico, inclusão em programas assistenciais, etc.

A história de uma mãe portadora de esquizofrenia, atendida em um serviço de atenção diária, na qual tive contato através de um estágio, ilustra bem o que tem sido feito hoje, pelo Sistema de Garantia de Direitos para assegurar a proteção da criança e ao mesmo tempo respeitar o seu direito à convivência familiar.

2.4 Mães psicóticas e seus filhos: Limites entre proteger e cuidar

R tem 40 anos, é casada e mãe de 5 filhos. J de 19 anos, C 18 anos, E 14 anos, M 12 anos e A de 5 anos. R é portadora de Esquizofrenia, tem um histórico de várias internações, é bastante afetada pela doença, tendo dificuldades até mesmo de cuidar dela mesma, no entanto, sempre lutou par dar conta dos cuidados de seus filhos.

R chegou ao serviço de atenção diária, ao qual trabalhei como estagiária, através de um encaminhamento do Conselho Tutelar. Houve uma denúncia de que R e seu esposo estavam levando os filhos para guardar carros na rua. Neste primeiro momento, os filhos de R foram levados para um abrigo. Isso reforça a idéia já mencionada, de que hoje em dia, os abrigos continuam sendo uma alternativa, uma medida protetiva, mas muitas vezes usada de forma indiscriminada.

Uma vez constatada pelo Conselho Tutelar a necessidade de afastamento dos filhos de R, ainda que temporário, o caso foi imediatamente levado ao Ministério Público e à autoridade judiciária. Desta forma, uma decisão só será tomada depois de o caso ter sido analisado, junto a uma equipe multidisciplinar. Lembrando que, essa decisão será baseada no que representar o melhor interesse da criança. O melhor interesse da criança inclui protegê-la de qualquer situação de risco, e promover a reintegração familiar. Segundo o ECA, somente quando se esgotarem todas as possibilidades da criança/adolescente retornar para sua família de origem, é que deve se pensar em colocação familiar definitiva, por meio da adoção.

Quando o Conselho Tutelar chega até a casa de R, o cenário é uma família pobre, uma mãe com transtorno mental sem tratamento e um pai com problemas de alcoolismo. A idéia neste primeiro momento era possibilitar um suporte para essa família, para que houvesse a possibilidade das crianças voltarem para seu lar. Uma das medidas adotadas foi encaminhar R para um tratamento psiquiátrico, nesse serviço de atenção diária o qual mencionei.

Para que as crianças não ficassem em abrigo por muito tempo, visto que, o abrigo, segundo o ECA é uma medida provisória e excepcional, tentaram mobilizar alguém da família para que cuidassem dos filhos de R, mas não houve ninguém que se prontificou. P, uma vizinha da família que já ajudava R com os cuidados dos filhos, se sensibilizou e ficou com a guarda das três crianças (E 14 anos, M 12 anos e J 10 anos). Desta forma, R pode seguir seu tratamento e ao mesmo tempo cuidar de seus filhos que ficou na responsabilidade de sua vizinha. Em relação aos filhos maiores, J de 19 anos sempre foi criado pela avó materna e C de 18 anos sempre ficou com R.

Mais tarde, R tem A. Quando A faz 2 meses de idade, fica doente e R leva A ao hospital. Lá é constatado pela equipe que A sofre de desnutrição e desidratação, devido à “negligência” materna. Neste momento, a equipe aciona o Conselho Tutelar e A é acolhida, fazendo parte do programa família acolhedora.

Esse programa organiza o acolhimento nas residências de famílias acolhedoras, como medida protetiva e com o objetivo de que a criança/adolescente tenha um atendimento em ambiente familiar, cuidado individualizado e preservação do vinculo com a família de origem. O funcionamento desse programa prevê que a família de origem seja acompanhada por uma equipe multidisciplinar com o intuito de reintegração familiar, assim como também, uma articulação com o Sistema de Garantia de Direitos (Conselho Tutelar, Vara da Infância e Juventude) e outros atores desse sistema. (PNCFC, 2006)

A equipe do serviço de atenção diária e a equipe da família acolhedora trabalharam sempre de forma articulada. Conseguiram benefícios em dinheiro que possibilitou que P ficasse com os três filhos de R. Desta forma, R continuou a ter contato com os filhos e A ficou acolhida por uns 4 anos, vendo a mãe aos fins de semana, enquanto sua situação não se resolvia.

Um dos objetivos do trabalho da equipe do serviço era preparar R para receber A. Embora, ela seja bastante comprometida pela doença, sempre demonstrou motivação para se tratar com o objetivo de conseguir seus filhos de volta.

A equipe do serviço de atenção diária conseguiu que R recebesse um beneficio que é dado aquelas pessoas com transtornos mentais graves e que, ficam impossibilitadas de trabalhar. Desta forma, R pôde arrumar sua casa para que pudesse receber seus filhos e pôde contratar G, sua cunhada como cuidadora. G foi fundamental nesse processo, pois ela foi ajudando R com respeito aos cuidados com a casa, a sair na rua para resolver coisas, sempre trabalhando para que ela conseguisse ter autonomia.

C seu filho de 18 anos, sempre esteve com ela, também foi um grande suporte para a mãe, ajudando com os afazeres de casa, levando ela ao tratamento. Enfim, a equipe foi trabalhando de forma articulada, possibilitando que a família também fosse um suporte para R. Segundo Melman (1998) o grupo familiar enfrenta a maior responsabilidade pelos cuidados das pessoas com transtornos mentais, e torna-se então, parte importante da rede social e suporte dos pacientes.

Com o tempo, R foi apresentando melhoras e seu desejo de ter os filhos de volta a motiva a melhorar cada vez mais. Desta forma, seus filhos aos poucos foram retomando o contato com ela, ficando alguns dias combinado para as crianças passarem com ela. Neste período foi percebido que, pra ela era muito difícil ainda dar conta dos cuidados dos filhos. Ela mesma chegou a falar do medo de não conseguir ser uma boa mãe. Disse que achava que seus filhos ficavam melhores com outras famílias.

Foi aí que decidiram então, que as crianças que estavam com P, viriam à mãe apenas aos finais de semana e A, a mais nova ficaria aos cuidados da avó materna, que se prontificou a ficar com a neta.

Quando comecei a acompanhar o caso, A estava aos cuidados da avó materna e R tendo o contato com os outros filhos aos fins de semana. Num dado momento, a mãe de R fica doente e precisa ser internada, desta forma R ficou com A, com o apoio da G e supervisão de todos, inclusive das meninas da família acolhedora que sempre combinavam visitas em sua casa.

Mesmo com todo o suporte, se constatava que R não estava conseguindo cuidar de A, nem de si mesmo, principalmente com respeito à higiene. Como sua mãe ainda permanecia no hospital, foi sugerido pela equipe da família acolhedora que fizesse um pedido de acolhimento para A.

A equipe toda se mobilizou para definir se a criança poderia ficar ou não com R , até que sua mãe melhorasse. Neste momento eu já estava inserida na equipe, e me perguntaram o que eu achava, se A tinha que ser acolhida ou não. Foi neste momento que surgiu meu interesse por esse tema, pois me deparei respondendo que achava melhor que a criança fosse acolhida.

Por mais que eu notasse o quanto R amava seus filhos e se esforçava para cuidar deles, quando olhamos para a criança de forma prioritária a coisa muda de figura. Neste momento não havia ninguém da família que pudesse ficar com A, portanto, para ela parecia que ficar acolhida, se constituía seu “melhor interesse”.

Semanalmente é realizada uma reunião com toda equipe, R e sua família. Neste momento foi deixado bem claro que não havia mais possibilidade de A voltar para os cuidados deles. A solução seriam eles pensarem em mais alguém da família que pudesse ficar com a guarda de A. Caso não conseguissem, A iria ficar acolhida até a adoção.

Para nossa surpresa, uma Tia de R apareceu no serviço e se colocou a disposição para cuidar de A. Ficou combinado então com a família acolhedora, que se realizaria uma integração da criança com a Tia.

A equipe da família acolhedora fez um pedido para o Juiz, de que A á principio ficasse com a Tia de R por três meses apenas aos fins de semana, para observar como será a adaptação para a criança e para a família.

Já foi definido pelo Juiz, que a Tia de R ficará a principio com a guarda provisória de A. Desta forma, A estará protegida de qualquer risco ao seu desenvolvimento e ao mesmo tempo continuará tendo convivência com sua mãe, pai e irmãos.

Considerações Finais

Diante dos aspectos avaliados neste trabalho, percebe-se que a “negligência” contra crianças e adolescentes é um fenômeno que deve ser visto de forma contextual, pois em muitos casos, estas são decorrentes de transtorno mentais dos pais. Portanto, não podemos simplesmente acusar os pais de negligentes.

Quando a negligência envolve uma mãe portadora de esquizofrenia, o caso é ainda mais complexo, levando em conta o papel fundamental que a mãe tem no desenvolvimento da criança. O grande desafio em situações como esta é, assegurar que os direitos da criança/adolescente sejam respeitados de forma efetiva, pois, se de um lado, ela tem o direito de ser protegida de situações de risco, por outro, ela tem o direito à convivência familiar.

Para encontrar o limite entre esses dois direitos fundamentais, geralmente o afastamento da criança de sua família é inevitável, como medida protetiva. Nesse ínterim, entre o afastamento da criança e o processo que envolve a resolução do problema, é necessário que tanto a família como a criança tenham suporte.

Acredito que o que fará diferença no desfecho de casos como este, é justamente o olhar dos profissionais envolvidos na rede de apoio do Sistema de Garantia de Direitos, que refletirá em como conduzirão o caso.

É importante que percebam a importância do vinculo materno e familiar para a criança/adolescente, e estejam dispostos a trabalharem visando à reintegração familiar. O olhar desses profissionais para a mãe portadora de transtorno mental também influenciará muito, pois, para investir nessa relação é preciso acreditar que a doença mental por si só, não desqualifica a mãe de exercer sua função.

Para se chegar a uma conclusão referente à condição ou não desta mãe, de cuidar de seus filhos, questões como a gravidade do transtorno, se ambos os pais são portadores da doença e principalmente, se existem pessoas da família que podem contribuir com a mãe nos cuidados de seus filhos, devem ser consideradas.

O caso ilustrado é um exemplo perfeito disso, pois os profissionais envolvidos puderam mobilizar familiares e vizinhos para darem suporte a essa mãe, dando condições para que ela continuasse, com a ajuda deles, a desempenhar sua função materna.

Portanto, fica evidente a importância dos profissionais envolvidos conseguirem dialogar entre si, não só tendo o objetivo de “salvar a criança” de um ambiente ruim, mas trabalhar visando resgatar os vínculos familiares, tendo em vista que, mesmo aquelas mães que devido a um transtorno mental, não consegue cuidar adequadamente de seus filhos, estarão lhe proporcionando muita coisa, “mesmo que uma criança seja pessimamente alimentada, e abrigada, mesmo que viva suja e doente, mesmo que seja maltratada, ela se sentirá segura (a não ser que os pais a rejeitem totalmente) por saber que tem algum valor para alguém que se empenhará em cuidar dela”. (BOWLBY, 1995)

Encontrar o limite entre dois direitos fundamentais da criança/adolescente não é uma tarefa fácil, levando em conta a complexidade da problemática. No entanto, os profissionais envolvidos devem ser flexíveis e estarem dispostos a traçar novos percursos.

Como psicólogo integrante dessas equipes multidisciplinares, podemos contribuir por facilitar a promoção da saúde, sendo facilitadores na procura de garantir os direitos fundamentais de crianças/adolescentes, visando à saúde mental e a busca de cidadania.

 

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Endereço para correspondência
Tatiana Queiroz de Almeida Santos

Endereço eletrônico: tatiana@tatianaqueiroz.psc.br

 

Recebido em: 30/04/2013
Aprovado em: 06/06/2013