ARTIGO

Gestalt-Terapia e cuidado em saúde mental:Um diálogo possível e necessário

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Patrícia Bessa Silva

 

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Resumo: O artigo vem expor conceitos pertinentes à Gestalt-terapia, priorizando sua concepção de homem e mundo, o processo dialético saúde/doença e refletindo de que modo seu viés humanista pode contribuir com as práticas de cuidado em saúde mental. Partindo de uma revisão epistemológica, apresentamos as ideias centrais dessa abordagem, traçando um panorama histórico a partir dos pensamentos que a embasaram, e contemplando possíveis contribuições dessa teoria às práxis de cuidado nos novos dispositivos de atenção psicossocial. Para tanto, levamos em consideração o novo enfoque dado pela Reforma Psiquiátrica ao paradigma da saúde mental e as novas modalidades de cuidado preconizadas por ela. A metodologia utilizada é de enfoque qualitativo, realizada através de pesquisa bibliográfica na literatura de base da Gestalt-terapia e produção teórica na área da saúde mental. Os resultados indicam que o diálogo entre Gestalt-terapia e cuidado em saúde mental, além de possível é necessário, visto essa abordagem trazer as noções de singularidade, liberdade e responsabilidade para a relação homem/mundo, ideias também preconizadas no novo paradigma de cuidado em saúde mental.

Palavras-chaves: Gestalt-terapia; Saúde Mental; Humanização do cuidado; Atenção Psicossocial.



ABSTRACT: This article has been exposed to the concepts relevant Gestalt therapy, focusing his conception of man and world, the dialectical process health / illness and reflecting how his humanistic bias may contribute to the practice of mental health care. Starting from an epistemology, we present the main ideas of this approach, drawing from a historical overview of the thoughts which formed and contemplating the possible contributions of this theory to practice care in the new devices psychosocial care. To this end, we consider the new focus by Psychiatric Reform the paradigm of mental health and the new modalities of care recommended by it. The methodology used is qualitative approach, carried out through literature review of the literature base of Gestalt therapy and theoretical work in the area of mental health. The results indicate that the dialogue between Gestalt therapy and mental health care, as well as possible is necessary because this approach to bring the notions of uniqueness, freedom and responsibility to the male / world, ideas also recommended the new paradigm of care mental health.

Keywords: Gestalt Therapy; Mental Health; Humanization of care; psychosocial care.


1 INTRODUÇÃO

Quando se trata de questões relativas à saúde do homem, deve-se sempre levar em consideração o cenário cultural, social e econômico em que este homem encontra-se inserido, visto que o contexto exerce inúmeras influências na dinâmica saúde/doença e nos processos de cuidado.

No âmbito da saúde mental não é diferente, na medida em esse homem é percebido como parte integrante e ativa desse contexto, estabelecendo com o mesmo uma relação estreita e genuína de reciprocidade. O distanciamento do modelo de cuidado biomédico e a compreensão moderna acerca do homem trouxeram uma nova visão sobre a doença mental, repercutindo em novas formas de cuidado em saúde mental. (AMARANTE, 2007)

Em conformidade com esse pensamento, o Movimento de Luta Antimanicomial que culminou com a Reforma Psiquiátrica, lançou um novo olhar sobre o paradigma da saúde mental. A partir dela a doença mental foi posta entre parêntese e os sujeitos que antes eram reduzidos a seus sintomas e subjulgados a formas de tratamento e cuidado pouco humanizados, passaram a receber atenção especial e apoio de políticas públicas na implementação de novas modalidades de cuidado.

Os hospitais psiquiátricos gradativamente vêm cedendo espaço aos serviços substitutivos, denominados dispositivos de atenção psicossocial. Estes “enquanto serviços que lidam com pessoas, e não com doenças, devem ser lugares de sociabilidade e produção de subjetividade.” (Amarante, 2007, p. 69).

No que diz respeito à Gestalt-terapia, esta também traz ferramentas valiosas para a compreensão da dinâmica saúde/doença e os processos de cuidados. ““Saúde” e “doença”, ou “funcionamento saudável” e “não saudável”, são pensados dialeticamente, uma vez que um mesmo comportamento pode ser saudável ou não, dependendo de “a serviço do que” ele está.” (Frazão in D’acri, G; Lima, P; Orgler, s, 2007, p.72). Seu objetivo primordial é criar possibilidades para que o indivíduo possa restabelecer um contato satisfatório com o ambiente, a partir do seu potencial natural ao crescimento e desenvolvimento. A doença é vista como nada mais que uma desarmonia, um desequilíbrio nessa relação do homem com o mundo. Cada indivíduo possui um modo particular de estar-no-mundo, e consequentemente seu modo próprio de adoecer. É dessa maneira que a visão gestáltica busca ir além da descrição e compreensão dos sintomas, para ir em busca do sentido daquela patologia e quais vivências subjetivas da pessoa que está adoecida (RIBEIRO, 2006).

Desse modo, o trabalho objetiva uma reflexão acerca das possíveis repercussões do olhar fenomenológico-existencial do homem e concepção dialética da dinâmica saúde/doença defendida pela Gestalt-terapia, para à práxis do processo de cuidado em saúde mental.

A metodologia utilizada é de enfoque qualitativo, realizada através de pesquisa bibliográfica na literatura de base da Gestalt-terapia e produções teóricas na área da saúde mental.

O interesse por esse tema partiu tanto de nossa motivação pessoal, quanto necessidade acadêmica e profissional. No decorrer de nossa prática como psicólogas de dispositivos de atenção em saúde mental, fomos percebendo o crescente número de clientes em intenso sofrimento psíquico e suas diversas modalidades de cuidado. Além disso, a aproximação com a Gestalt-terapia começou cedo, através do nosso encantamento quanto sua compreensão de homem e de mundo. Percebemos também que as produções teóricas envolvendo a inserção do profissional de psicologia nos dispositivos de atenção psicossocial, ainda são predominantemente focadas na psicanálise.

Com base nisto, o presente trabalho justifica-se pelo fato de tratar-se de uma abordagem psicológica que traz novos olhares acerca do processo saúde/doença, podendo lançar valiosas ferramentas e contribuições em termos de cuidado humanizado a pessoas acometidas psiquicamente.


2 GESTALT-TERAPIA: PRINCIPAIS CONCEITOS

O surgimento da Gestalt-terapia se deu a partir dos anos 50 e foi resultante do Movimento para o Desenvolvimento Humano (Human Growth Movement). Como tal, “mostra-se mais preocupada com as questões relativas ao crescimento e desenvolvimento da pessoa em sua totalidade do que em definir especificamente saúde e doença.” (Frazão in D’acri, G; Lima, P; Orgler, S., 2007, p.70). Antes disso, percorreu um longo caminho iniciado por Perls (1969/1977) até tornar-se um sistema teórico a parte. Passou a incorporar as abordagens humanistas, concebendo uma visão fenomenológico-existencial do homem.

Yontef (1998) conceitua fenomenologia como a busca pela atenção ao que é dado, ao que é óbvio, através da awareness do que é presente, e livre de a prioris. Define awareness como uma espécie de insight, um modo da experiência de estar em contato com o fenômeno mais importante do campo homem/meio, com total disposição cognitiva, emocional, sensorial e motora. Assim, a fenomenologia implica-se no estudo dos fenômenos conforme eles são experienciados por uma pessoa, num dado momento, considerando como dado apenas o que é experienciado neste momento.

Perls (1969/1977) enfatizava a awareness do sujeito e a estrutura da experiência imediata, ideias que serviram como pilares para a Gestalt-terapia. No entanto, esta não descarta passado nem futuro, mas acredita que qualquer maneira de acessá-los será feita no presente, no agora. “... todos os tipos de coisas se juntam fim de criar este momento específico que é o agora.” (p. 69).

Viver o aqui-agora significa buscar uma presentificação, ou seja, trazer a atenção e a intenção ao que acontece no momento presente. É nesse sentido que a Gestalt-terapia compreende a noção de tempo enquanto "espiral" e a self enquanto uma dinâmica temporal, diferentemente das ideias da psicanálise freudiana.

A partir dessa perspectiva, a Gestalt-terapia trás modificações no âmbito terapêutico e na própria relação terapeuta/cliente. A atenção dada ao presente abre portas para que terapeuta e cliente possam iniciar a partir de qualquer ponto e com qualquer material disponível. Ou seja, não só a fala, mas os gestos, expressões, entonações, também são elementos importantes a serem observados. “[...] a personalidade total expressa por movimentos, posturas, sons, silhuetas, revela tanto material de valor incalculável, que não temos que fazer nada além de obter o óbvio, a superfície extrema e devolver isso de forma a tornar consciente o paciente” (Perls, 1969/1977, p. 82).

Essas ideias apontam para uma concepção holística do homem, na medida em que este é percebido enquanto unidade indivisível e compreendido a partir da interação das partes que o compõem. É dessa compreensão de homem enquanto totalidade, que a cisão corpo/mente inexiste na Gestalt-terapia. Se algo muda em determinada parte dessa estrutura, seja no âmbito emocional, físico ou espiritual, o todo sofrerá mudanças e será reconfigurado.


“[...] a primeira coisa a ser considerada é que o organismo sempre trabalha como um todo. Nós não temos um fígado e um coração, nós somos fígado, coração, cérebro, e assim por diante: e mesmo isto esta errado. Nós não somos uma soma das partes, e sim uma coordenação, uma coordenação muito sutil de todos esses diferentes pedaços que compõem o organismo” (Perls, 1969/1977, p.20).

A partir dessas ideias, surge o conceito de fronteira do ego e, posteriormente fronteira de contato. Para Perls (1969/1977) é nessa fronteira que ocorre a relação homem/mundo. Ela não se apresenta de forma fixa ou rígida, como algo que separa, mas é constituída na e durante essa relação. É na fronteira onde ocorrem as trocas com o mundo, permitindo a auto-regulação organísmica. É através dela que o homem consegue atingir seu equilíbrio homeostático homem através da satisfação de suas necessidades, sejam elas físicas ou emocionais.

Yontef (1998) ressalta que, o processo de adoecimento psíquico ocorre quando a fronteira perde sua função de permeabilidade, nitidez ou mesmo desaparece da relação, resultando na perda da distinção entre o self e o mundo e em formas não saudáveis de relação entre ambos. Perls introduz sua teoria da personalidade através dessas ideias, fazendo distinção entre o bom e o mau funcionamento da fronteira, ou seja, a pessoa sadia e a doente.

Na abordagem gestáltica a concepção sobre o normal e anormal foi influenciada principalmente pelo neuropsiquiatra Kurt Goldstein, que vê a doença como um distúrbio no processo de crescimento do homem. No entanto, ela está a serviço da sobrevivência psíquica e nesse sentido pode até ser pensada como um aspecto funcional e saudável. Perls (1942/2002) já fazia uma particular distinção entre pessoa sadia e a não-sadia em seus primeiros escritos: “Uma pessoa absolutamente sadia está inteiramente em contato consigo mesma e com a realidade. A pessoa louca, o psicótico, está mais ou menos completamente fora de contato com ambos, mas principalmente, ou consigo ou com o mundo” (p. 72).

Nesse sentido, observamos que, entender o funcionamento psíquico não-saudável a partir da Teoria da Gestalt, é buscar uma compreensão fenomenológica das formas disfuncionais de existência, tirando o foco do método investigativo das possíveis causas destas manifestações e direcionando a atenção para o tipo de relação que o indivíduo estabelece consigo, com o mundo e de que forma se posiciona diante da vida. A Gestalt-terapia busca descrever e compreender como as disfunções se apresentam e de que modo estão contribuindo para um funcionamento não saudável desse indivíduo como um ser total e integrado.


“Perls, Hefferline e Goodman não acreditam que essas questões possam ser esclarecidas a partir de uma suposta causa ou origem. Afinal, se mesmo os ajustamentos disfuncionais são fenômenos de campo, toda tentativa de eleger um elemento como determinante da configuração resta uma empresa arbitrária. Por isso, em vez de uma interrogação genética sobre as causas dos ajustamentos disfuncionais, Perls, Hefferline e Goodman preferem uma visada fenomenológica” (MÜLLER-GRANZOTTO, 2006, p.5).

A visão de homem como ser-no-mundo, relacional, trás a idéia de que a doença nada mais é que uma desarmonia, um desequilíbrio nessa relação do homem com o meio. Daí Ribeiro (2006) dizer que “a doença é relacional. Não existe doença em si. Doença é um fenômeno como processo; como dado, existe em alguém, e não como realidade em si mesma” (p.36). Cada indivíduo possui seu próprio modo de estar-no-mundo, e consequentemente seu modo particular de adoecer. É dessa maneira que a visão gestáltica busca ir além da descrição e compreensão dos sintomas, para ir em busca do sentido daquela patologia e das vivências subjetivas da pessoa que está adoecida.

Desse modo, podemos perceber que a Gestalt-terapia, assim como as demais abordagens humanistas, que tem como base o pensamento fenomenológico-existencial, traz uma nova compreensão acerca da concepção sobre saúde e doença, quebrando com a antiga tendência do pensamento científico, onde o processo de adoecimento estava intimamente ligado a uma relação causal com fatores etiológicos. A Gestalt-terapia salienta uma visão holística do homem e do seu processo de adoecimento, compreendendo-a de uma forma plural e multifatorial, incorporando a influência do ambiente e a importância da subjetividade nas formas de manifestações das patologias.


3 REFORMA PSIQUIÁTRICA E CUIDADO EM SAÚDE MENTAL: PANORAMA GERAL

No Brasil ao final dos anos 1980, o processo de redemocratização e as pressões dos movimentos sociais associadas à luta pelos direitos humanos, levaram à construção da Reforma Psiquiátrica, que obteve sucesso na consolidação de uma nova Política de Saúde Mental. Esta tem como principais características a redução de leitos e o maior controle sobre os hospitais psiquiátricos; a criação de rede de serviços substitutivos; a aprovação de nova legislação em saúde e a criação de dispositivos de apoio aos processos de desinstitucionalização, além da introdução da saúde mental na pauta de prioridades da educação permanente para o Sistema Único de Saúde - SUS (MANGIA, 2008).

O início do processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil é contemporâneo ao surgimento do “Movimento Sanitário”, mas tem uma história própria, inscrita em um contexto internacional de mudanças pela superação da violência asilar. Fundado, ao final dos anos 70, na crise do modelo de assistência centrado no hospital psiquiátrico por um lado, e na eclosão, por outro, dos esforços dos movimentos sociais pelos direitos dos pacientes psiquiátricos, o processo da Reforma Psiquiátrica brasileira é maior do que a sanção de novas leis e normas e mais do que o conjunto de mudanças nas políticas governamentais e nos serviços de saúde. (BRASIL, 2005).

Na década de 90, tendo em vista o compromisso firmado pelo Brasil na assinatura da Declaração de Caracas e pela realização da II Conferência Nacional de Saúde Mental, passam a entrar em vigor no país as primeiras normas federais regulamentando a implantação de serviços de atenção diária de caráter extra-hospitalar, fundadas nas experiências dos primeiros CAPS, NAPS, Hospitais-dia, centros de convivência, residências terapêutica, dentre outros, além das primeiras normas para fiscalização e classificação dos hospitais psiquiátricos. (MANGIA, 2008).

Após muitas lutas e enfrentamentos políticos, em 06 de abril de 2001, depois de 12 anos de tramitação no Congresso Nacional, a Lei Paulo Delgado é sancionada no país. Assim, a Lei Federal Nº 10.216 reformulou o modelo assistencial em saúde mental no Brasil, determinando a desinstitucionalização de pacientes que se encontravam por muito tempo internados nos hospitais psiquiátricos.

A desinstitucionalização repercutiu na consequente redução das internações nos manicômios e a desconstrução do modelo hospitalocêntrico da psiquiatria como sinônimo de exclusão e violência institucional, bem como a criação de um novo lugar social para a loucura, dando ao portador de transtorno psíquico a possibilidade do exercício de sua cidadania. Neste sentido, a reinserção social passa a ser o principal objetivo da Reforma Psiquiátrica, tendo em vista potencializar a rede de relações do sujeito, através do resgate da noção de complexidade do fenômeno humano e reafirmação da capacidade de contratualidade do sujeito, criando assim um ambiente favorável para que aquele que sofre psiquicamente possa ter o suporte necessário para reinscrever-se no mundo como ator social.

Com a virada do século, a Reforma Psiquiátrica no Brasil deixou definitivamente a posição de “proposta alternativa” e se consolidou como o marco fundamental da política de assistência à saúde mental oficial. Mais do que isso, a influência do seu ideário vem-se expandindo no campo social, no universo jurídico e nos meios universitários que formam os profissionais de saúde. Apesar das conhecidas dificuldades enfrentadas pelo sistema de saúde pública no Brasil, é fato que o cenário psiquiátrico brasileiro vem mudando consideravelmente (BEZERRA, 2007).

Em nosso país, a expansão de leitos psiquiátricos atingiu seu ápice em 1985, com 123.355 leitos credenciados ao Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (INAMPS), que representavam 23,57% do total de leitos oferecidos no Brasil, ocupando o primeiro lugar em oferta por especialidade. Atualmente, estima-se que o número de leitos psiquiátricos, credenciados ao SUS, esteja em torno de 38.842, ao lado da expansão progressiva da cobertura assistencial em saúde mental composta por uma rede com 1.123 CAPS distribuídos em todo o país, 479 Serviços Residenciais Terapêuticos, 860 ambulatórios de saúde mental, cerca de 60 Centros de Convivência e Cultura e 2.741 beneficiários do Programa de Volta para Casa (MANGIA, 2008).

Os mais de mil Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) espalhados pelo país vêm modificando fortemente a estrutura da assistência à saúde mental. A rede composta por este tipo de equipamento vem substituindo progressivamente o modelo hospitalocêntrico e manicomial, de características excludentes, opressivas e reducionistas. Em seu lugar vem sendo construído um sistema de assistência orientado pelos princípios fundamentais do Sistema Único de Saúde (universalidade, equidade e integralidade), acrescido da proposta de desinstitucionalização, cujo alcance ultrapassa os limites das práticas de saúde e atinge o imaginário social e as formas culturalmente validadas de compreensão da loucura (BEZERRA, 2007).

O referido autor ressalta ainda a importância da criação desses modelos substitutivos ao constatar que os diferentes tipos de transtornos mentais acometem uma em cada três pessoas ao longo da vida. Além disto, dados de um estudo realizado em 1990 pela Organização Mundial da Saúde, pela Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard e pelo Banco Mundial, demonstram que entre as dez maiores causas de incapacitações em todo o mundo, cinco são transtornos mentais.

Assim, questões como o trabalho em equipe multiprofissional e interdisciplinar, a pluralidade dos saberes e a complexidade das ações e dos serviços assistenciais passam a dominar o campo acadêmico e profissional como requisitos fundamentais para o processo de reforma da assistência psiquiátrica. Conceitos como Desospitalização e Desinstitucionalização guiam o processo de mudança de foco dominante das ações em saúde mental da área intra-hospitalar especializada para a extra-hospitalar, onde serviços ambulatoriais e centros de atenção diária, todos referidos à comunidade, passam gradativamente a assumir e dividir o papel da assistência em saúde mental (JORGE; FRANCA, 2001).

E mais do que buscar a aceitação de uma nova política assistencial, o desafio no campo da Reforma Psiquiátrica é produzir uma nova sensibilidade cultural para com o tema da loucura e do sofrimento psíquico. Trata-se de promover uma desconstrução social dos estigmas e estereótipos vinculados à loucura e à figura do doente mental, substituindo-os por um olhar solidário e compreensivo sobre a diversidade e os descaminhos que a experiência subjetiva pode apresentar. Olhar fundado numa atitude de respeito, tolerância e responsabilidade com aqueles que se encontram com sua normatividade psíquica restringida (BEZERRA, 2007).


4 GESTALT-TERAPIA E CUIDADO EM SAÚDE MENTAL: POSSÍVEIS ARTICULAÇÕES

A Gestalt-terapia considera o homem enquanto ser-no-mundo, ser que vive e existe na e para a relação. Procura focalizar a totalidade da relação que o indivíduo estabelece com seu meio e como isso pode repercutir na dinâmica saúde/doença. O homem age sobre esse mundo, mas ao mesmo tempo em que o transforma, recebe influencias, numa relação recíproca. Essa relação é compreendida na Gestalt-terapia a partir das noções de singularidade, liberdade, responsabilidade e potencial criativo.

A Gestalt-terapia acredita no poder de transformação e crescimento do homem, na sua tendência natural ao equilíbrio e capacidade de se construir e reconstruir na sua relação com o mundo (PERLS, 1942/2002). Promover o crescimento e desenvolver o potencial humano é o papel fundamental da Gestalt-terapia, e isto só pode ser alcançado através da awareness do sujeito, ou seja, da tomada de consciência da experiência vivida. “Tudo está baseado na tomada de consciência. A tomada de consciência é a única base do conhecimento, comunicação, e assim por diante.” (Perls, 1969/1977, p.69).

O gestalt-terapeuta busca acompanhar o indivíduo no seu inevitável encontro com a dor, auxiliando-o nesse processo, pois acredita que fugir dela é não-ser. Essa idéia está relacionada com a Teoria Paradoxal da Mudança também encontrada na Gestalt-terapia. “Eu chamo-lhe teoria paradoxal da mudança por motivos que se tornarão óbvios. Em poucas palavras, consiste nisso: a mudança ocorre quando uma pessoa se torna o que é, não quando tenta converter-se no que não é” (Beisser in Fagan; Shepherd,1980, p.110).

Nesse sentido, a Gestalt-terapia acredita que o crescimento e a mudança ocorrem a partir do momento em que se torna cada vez mais o que é e não, quando tenta ser o que não é. Para isso, é necessário que na relação terapêutica sejam explicitados e aceitos todos os pensamento e desejos, mesmo desagradáveis e dolorosos, pois só assim a pessoa pode se experienciar e a mudança ocorrer. Assim, faz parte do papel do Gestalt-terapeuta possibilitar subsídios para que a pessoa possa ser o que é, e a partir daí construir uma base sólida para que possa caminhar sozinha. No entanto, para que isso aconteça é preciso que a mudança seja vista como ligada ao risco, o risco de experimentar novas situações e papéis, para que ela possa chegar ao que é. A respeito disso Ribeiro (2006) nos fala que: “ Trabalhar paradoxalmente é colocar o cliente diante de suas possibilidades reais para, ao vivenciar suas contradições internas, descobrir que o risco é o cotidiano de sua existência e que a palavra ‘fácil’ não pertence ao vocabulário dos adultos, e sim ao das crianças” (p.149).

A partir dessas ideias podemos perceber clara relação entre os conceitos pertinentes à Gestalt-terapia e o novo paradigma de cuidado em Saúde Mental outrora citado. Nas duas abordagens o indivíduo em sofrimento psíquico é visto de forma contextualizada, a partir de um prisma biopsicossocial, onde se prioriza uma visão compreensiva e multifatorial da sua doença, está vista enquanto processo e construção.

Da mesma forma, a saúde não é percebida apenas como ausência de doença, mas sim enquanto um processo contínuo de busca de equilíbrio e autorregulação entre o homem e o mundo, tendo o indivíduo como ser ativo nessa construção. Nesse sentido, levando em consideração os sujeitos em sofrimento psíquico, as duas teorias focam a atenção e cuidado não na doença mental propriamente dita, mas no sujeito que vive, convive, sofre e que encontrou nessa vivência subjetiva uma maneira de estar no mundo, mesmo de forma disfuncional ou pouco saudável.

É nesse sentido, que nos atrevemos a dizer que tanto a Gestalt-terapia quanto o novo paradigma de cuidado em saúde mental proveniente da Reforma Psiquiátrica, possuem um axioma na qual embasam suas perspectivas epistemológicas e práticas. Possuem como uma de suas premissas básicas a percepção do indivíduo, mesmo aquele comprometido pelo transtorno mental, como ser detentor de potencialidades naturais que possibilitam buscar e/ou resgatar o equilíbrio do seu organismo como um todo, (re)estabelencendo sua autorregulação através da relação saudável com o mundo. Por mundo entende-se todo o aparato intra e interpsíquico, social, familiar, comunitário, biológico, espiritual e econômico em que o indivíduo encontra-se inserido e no qual mantém recíproca relação. Estes aspectos são abordados de forma exaustiva e preconizados nos novos moldes de cuidado em saúde mental.

Diante do exposto, podemos pensar que o psicólogo enquanto gestalt-terapeuta torna-se ferramenta útil e necessária para os novos dispositivos de cuidado em saúde mental, na medida em que também reconhece no homem um sujeito autônomo e responsável, senhor de sua história e capaz de trilhar seu caminho em busca de formas de existência mais saudáveis, mesmo em situações pouco favoráveis.

Colocando de outra forma, ousamos dizer que a Gestalt-terapia tem muito a contribuir com o processo de cuidado em saúde mental, visto ser uma prática que se orienta pela visão do homem como um todo, não o vendo como um "neurótico" ou “psicótico”. Nessa abordagem a patologia é percebida apenas como mais uma das várias partes do todo que aquele indivíduo é, e sua doença é encarada como a maneira mais "saudável" que encontrou para enfrentar situações ruins, insuportáveis e ameaçadoras. Por outro lado, isto não significa dizer que há uma negação do estado patológico, ou mesmo do sofrimento do paciente no qual se encontra. Mas somente é feito um novo enfoque, baseado na constatação de que, através de tal estado, o sujeito foi capaz de se ajustar ao mundo e garantir sua sobrevivência, chegando até ali, ao ponto em que está.


5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir dos conceitos e ideias supracitados, pudemos perceber que o aporte teórico e prático da Gestalt-terapia pode atuar como ferramenta valiosa para as práxis dentro dos novos dispositivos de cuidado em saúde mental, principalmente no que diz respeito à atuação do profissional de psicologia. Amparada por uma abordagem humanista e de cunho fenomenológico-existencial, essa teoria trouxe novos e importantes olhares sobre o homem e suas diversas manifestações saudáveis e não saudáveis, repercutindo nos modos de atenção e cuidado.

Da mesma forma, os novos dispositivos de atenção psicossocial e respectivas modalidades de cuidado provenientes do movimento da Reforma Psiquiátrica, contribuíram para uma nova abordagem dos indivíduos em sofrimento psíquicos, não mais os reduzindo a sua doença ou sintomas, mas percebendo-os enquanto sujeitos em sofrimento e ativos seu processo de adoecimento.

Os resultados do estudo indicam que o diálogo entre Gestalt-terapia e cuidado em saúde mental, além de possível se faz necessário, visto que a abordagem gestáltica trás as noções de singularidade, liberdade, responsabilidade e potencialidade para a relação homem/mundo e dinâmica saúde/doença, ideias também preconizadas pelo novo paradigma da saúde mental.

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YONTEF, Gary. Processo, Diálogo e Awareness. São Paulo: Summus,1998.

 

Endereço para correspondência :

Patrícia Bessa Silva

patybessa@ibest.com.br



Recebido em: 01/07/12
Aprovado em: 28/11/12