ARTIGO
Gestalt-terapia: fenomenologia na prática clínica
Gestalttherapy:phenomenologyon the clinical practice
Ulisses Heckemaier de Paula Cataldo*
UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - RJ, Brasil
RESUMO
O presente trabalho pretende estudar, através de uma revisão bibliográfica, a influência da fenomenologia na prática clínica da Gestalt-terapia. Para tal, por motivo de opção de trabalho, é realizada uma investigação da proposta fenomenológica, idealizada por Husserl, focando o contexto do seu surgimento (a crise do pensamento cartesiano), o uso da epoché como método, e a particularidade da consciência como Intencionalidade. Por fim é feita uma leitura da prática clínica da Gestalt-terapia como arte do contato, identificando o self como conceito central para o entendimento da metodologia fenomenológica na prática clínica, com a intenção de marcar a ruptura com o paradigma reducionista vigente nas demais abordagens psicoterapias, bem como de sinalizar as peculiaridades de tal postura.
Palavras-Chave: Gestalt-terapia, fenomenologia, intencionalidade, consciência, clínica.
ABSTRACT
This paper intends to study, through a literature review, the influence of phenomenology in clinical practice of Gestalt therapy. For this was conducted an investigation of the proposed phenomenological, as conceived by Husserl, focusing on the context of its emergence (the crisis of Cartesian thought), the use of epoché as a method, and the particularity of consciousness as intentionality. Finally we made a study of clinical practice of the Gestalt-therapy as art of contact, identifying the self as a central concept for understanding the phenomenological method in the clinic, with the intention of making a break with the prevailing paradigm reductionist approaches in other psychotherapies, and as signaling the peculiarities of such a stance.
Keywords: Gestalt therapy, phenomenology, intentionality, consciousnessclinic.
1 - INTRODUÇÃO
Modelos de construção da realidade, impreterivelmente, partem de bases epistemológicas. Isto é, toda teoria, movimento e escola de pensamento tem na sua base uma posição quanto à forma de se apreender a realidade. Identificar essas bases promove rigor às práticas que advém de tais movimentos e/ou teorias. Dessa forma, o estudo da epistemologia é relevante uma vez que sustenta todo o sistema conceitual que dá suporte às práticas proferidas por um determinado campo de saber.
A prática e a própria construção dos conceitos de uma teoria, devem corresponder à epistemologia que sustenta a teoria. Em outras palavras, a falta de coerência entre a forma basal de se interpretar o conhecimento, bem como a explicação do que é, ou não, real, com os conceitos e práticas de uma teoria a tornam pobre, fraca, desvalorizando suas hipóteses e técnicas.
No entanto, nem sempre essa base fundamental é devidamente estudada e compreendida. No que se refere à abordagem Gestáltica, ao contrário de outras abordagens, tal esforço é presente desde os primeiros autores que seguiramas ideias de Perls e seus colaboradores, como escrevem os teóricos da segunda geração Yontef (1993) e Ginger (1995). Preocupação, esta, também presente em recentes trabalhos, como Ribeiro (2007), Rodrigues (1999), e Müller-Granzotto (2004, 2007a). Em virtude das particularidades e discordâncias entre os trabalhos acima mencionados,priorizaremos o estudo da fenomenologia a fim de responder a seguinte indagação: a Gestalt-terapia, no que se refere à prática clínica, tem a fenomenologia como método e base epistemológica?
A resposta a essa indagação nos fez voltar às bases do pensamento cartesiano para identificar a particularidade e singularidade de fenomenologia. Como uma proposta de filosofia de rigor, Husserl almejou chegar às coisas mesmas: a uma epistemologia que servisse de base para todas as ciências. A fenomenologia vem criticar o universalismo e o psicologismo, pensamentos estes que confinam o fenômeno humano a uma consciência encapsulada, a uma interioridade entendida como essência. A psicanálise e o Behaviorismo, segundo Feijó (2000), são exemplos de abordagens que situam o fenômeno humano a partir de teorias que tem por base as ciências da natureza. Desse modo, o homem é encerrado a leis naturais ocultas ao aparente, ocultas ao sensível enganador. O self, sob a perspectiva do psicologismo, é entendido como centralidade numa lógica linear de causa-efeito, como uma instância essencial e formadora da personalidade, somente mutável de acordo com o funcionamento natural da mente.
A fenomenologia por sua vez, aborda o problema do conhecimento de forma totalmente diferente. Compreende o real como co-originário da consciência transcendental, num movimento de apreender as coisas, os fenômenos, como aparência para uma consciência, reintroduzindo o sensível a partir da redução fenomenológica.Husserl, que pretende, com a fenomenologia, uma nova atitude frente ao ser e a consciência, bem como um novo método que sirva de fundamento a todas as ciências, propõe uma visada ao ser em sua “doação originária”, tal como este se mostra à consciência. Para Husserl o sentido do ser e do fenômeno não pode ser dissociado, sendo a idéia de consciência transcendental fundamental para a compreensão do exercício da epoché. A consciência para a fenomenologia, ao contrário do racionalismo que a encapsula, e lhe confere faculdades, é entendida como atos em fluxo, ou seja, como atos intencionais. É transcendental por que não se reduz nem ao mundo empíriconem aos próprios pensamentos, sendo os fenômenos apreendidos como se revelam (não existindo por si, nem, muito menos, pela ação da consciência). A consciência, para Husserl, é transcendente ao mundo empírico, e ao domínio do pensamento (ao psicológico), sendo a visada do fenômeno entendida como um exercício do co-originalidade consciência-mundo.
O contraste entre a fenomenologia e as formas reducionistas (empíricas e idealistas) de abordar o fenômeno humano é evidente, no entanto, somente uma investigação detalhada da referida postura epistemológica em comparação com a prática da clínica Gestálticapodem responder nossa principal indagação. Propõe-se, pois, no primeiro capítulo, o estudo da fenomenologia de Husserl identificando seu contexto de surgimento, e sua principal característica: o uso da epoché como método, como atitude, que, segundo Husserl, embasaria todas as ciências.
No segundo capítulo discutimos a clínica Gestáltica compreendida como uma clínica do contato. Abordaremos, para maior rigor e compreensão dos processos clínicos, os principais conceitos da Gestalt-terapia, e identificaremos a metodologia clínica da Gestalt-terapia focando no conceito do self como sistema de contatos.
Para concluir, o terceiro capítulo visa identificar a prática clínica da Gestalt-terapia, construída no capítulo anterior, como não apenas condizente com o método fenomenológico de se interrogar a realidade, mas como um puro exercício da epoché.
Desta forma, espero contribuir para uma reflexão acerca da busca de rigor para as práticas psicoterapêuticas em Gestalt-terapia, e de investigação de suas bases epistemológicas, no intuito de posicioná-la ou interpretá-la à luz da fenomenologia, bemcomo refletir acerca de uma clínica sem naturalizações dos fenômenos humanos.
2- OBJETIVOS
2.1- GERAL
Investigar a pertinência da fenomenologia como método clínico e correlativa base epistemológica da Gestalt-terapia.
2.2- ESPECÍFICOS
•Identificar no que consiste a fenomenologia tal como entendida por Husserl.3 - METODOLOGIA
A metodologia empregada consiste na revisão bibliográfica de livros e artigos publicados, englobando tanto autores da Gestalt-terapia, quanto autores da filosofia. De acordo com Gil (1999), a pesquisa bibliográfica é desenvolvida mediante material já elaborado, abrangendo todo o material tornado público sobre determinado assunto.
A busca bibliográfica privilegiou leituras de publicações de professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e clássicos da literatura em Gestalt-terapia, e filosofia. Também foi utilizado artigos de revistas eletrônicas. As palavras Chave utilizadas foram: “self”, “fenomenologia”, “intencionalidade”, “clínica” e “Gestalt-terapia”.
4 - O QUE É FENOMENOLOGIA?
O termo Fenomenologia não é propriedade de apenas um filósofo. Derivado do grego phainesthai - aquilo que se apresenta ou que se mostra - e logos - explicação, estudo, a fenomenologia pode ser entendida como a ciência que trata do aparecimento do fenômeno; sendo este tudo aquilo que aparece. No entanto, sua essência, e seu uso foramcunhados de diferentes formas, por diferentes pensadores, designando, assim, diferentes contribuições e interpretações. Dessa forma, uma definição mais complexa e rigorosa do termo é necessária, uma vez que trataremos de visão específica de Husserl sobre a questão.
O que é a fenomenologia de Husserl? Segundo Dartigues (1992), Husserl deu um novo conteúdo para a palavra fenomenologia, bem diferente e inovador, comparado à filosofia até seus escritos. Como crítica aopensamento positivista, Husserlpropõe um método seguro e rigoroso para fundamentar todas as ciências, transformando a filosofia numa ciência de rigor.
A fenomenologia, conforme o pensamento de Husserl, portanto, é uma atitude filosófica e um método que visa o rigor mais radical para o conhecimento. O caráter inovador da fenomenologia é a volta ao fenômeno puro, às essências assim como aparecem, à retomada do sensível (abandonado pelo pensamento Cartesiano). O pensamento de Husserl marca a ruptura com as formas de visada do fenômeno até então, atingindo, dessa forma, o mais original: o fenômeno tal como aparece para a consciência - entendida como fluxo, não como interioridade.
Segundo Dartigues (1992), A fenomenologia nasceu na última década do século XIX, período dos primeiros trabalhos de Husserl. Período este também marcado por uma grande derrocada dos grandes sistemas filosóficos tradicionais. Hegel, que iluminou todo o pensamento alemão nas décadas anteriores, não é mais tão influente, assim como o pensamento de Schopenhauer entra em declínio. Autores como Marx, Freud e Nietzsche tão pouco tinham suas ideias difundidas. Quem preenche o espaço vazio deixado pelo declínio do pensamento é a ciência positivista.
O positivismo tem como marca principal o conhecimento objetivo, observável, empírico, que exclui toda a subjetividade. A pretensão das ciências ao utilizar tal método era desvelar o mistério do real, ou seja, as leis subjacentes que explicariam a natureza; leis estas mecânicas, obedecendo à doutrina mecanicista e determinista, que acompanham a ciência. O objeto das ciências naturais, como a física, por exemplo, era compreendido como o ser em-si, como a observação empírica da realidade. A realidade, o ser em-si, no caso, os objetos dessas ciências, guardariam todas as explicações dos fenômenos da natureza, compreendidos na relação de causa-efeito.
No domínio das ciências, do conhecimento empírico e objetivo, o naturalismo e a psicologia são as doutrinas mais criticadas por Husserl. O Naturalismo, regido por métodos indutivos e dedutivos (se distanciando do conhecimento intuitivo), procura construir sistemas que abracem todo o conhecimento, unificando sob um mesmo preceito - a medida, a mensuração, o cálculo - todo o campo do saber. A psicologia, por sua vez, busca constituir-se como ciência abraçando o modelo das ciências naturais naturalizando a consciência e encapsulando-a no sujeito. Os fenômenos humanos, na psicologia, são abordados através de uma dicotomia que entende a natureza a partir de mecanismos provenientes de faculdades mentais (faculdades da razão, faculdades do Eu). Esse movimento abandona totalmente o sensível e o corpo; um como enganador, e outro como natureza de ordem ultrajante ao espírito.
Dessa forma, como conclui Merleau-Ponty:
A fenomenologia se apresentou desde o seu início como uma tentativa para resolver um problema que não é o de uma seita: ele se colocava desde 1900 a todo o mundo, e ele se coloca ainda hoje. O esforço filosófico de Husserl é, com efeito, destinado em seu espírito a resolver simultaneamente uma crise da filosofia, uma crise das ciências do homem e uma crise das ciências pura e simplesmente, da qual ainda não saímos (citado por Dartigues, 1992, pag. 8).
Para melhor compreensão a crítica de Husserl é necessário voltar ao inicio do pensamento científico, e discutir suas propostas. Desde o século XV, segundo Morente (1964), fatores históricos como a destruição da unidade religiosa, as guerras de religião e o advento do protestantismo abalaram a crença aristotélica. A descoberta de que a Terra é redonda racha a física de Aristóteles, mudando radicalmente a imagem que se tinha da realidade terrestre. Além disso, o homem do século XVII também descobre o céu nos trabalhos de Kepler e Copérnico, e, com isso, a terra deixa de ser o centro do universo para ser mais um dos planetas em órbita.
Adventos como estes não puderam ser ignorados, e a necessidade de novas perguntas se fizeram presente. A dúvida é a palavra de ordem, e dessa crise nasce um novo campo na filosofia, a epistemologia, ou seja, o método para se chegar ao conhecimento.
René Descartes, filósofo francês, é o principal nome deste momento. Dele que toda a filosofia da subjetividade se desenvolverá, passando pelos empiristas ingleses, Leibnitz, Kant, e posteriormente Hegel, dentre outros. Descartes quer achar um princípio do qual não se possa ter dúvida. Uma certeza, uma verdade que resista a toda e qualquer dúvida, e que fundamente todo o conhecimento e as ciências. Para tal, utilizará o método da dúvida metódica.
Descartes parte do princípio de eliminar do seu juízo todos os elementos que lhe atribuíssem qualquer tipo de dúvida, tudo aquilo que não fosse uma certeza absoluta, ou uma “evidência apodídica”. Para ele, todo o conhecimento até então era enganador, assim como o senso comum, devendo ser abandonados como princípio para se chegar à verdade. Da mesma forma, os dados do sensível também eram enganadores, devendo, igualmente, serem postos de lado.
Na busca pela primeira verdade indubitável, que levaria, numa cadeia de razões, a outras verdades, a dúvida converte-se em método, e se torna hiperbólica. Descartes chega ao extremo com a dúvida, ao total cepticismo. A dúvida extrema, então, faz Descartes inverter a relação sujeito-objeto conhecida até então. Em atitude oposta do realismo, ele vai voltar-se para o próprio interior, para o próprio pensamento: a primeira certeza de Descartes, a verdade acima de qualquer suspeita é que ele não pode duvidar que duvida.
Nas palavras de Descartes:
(...) enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que esta verdade: eu penso, logo eu existo, era tão firme e tão certa que todas mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da filosofia que procurava (1637/1973, pag. 54).
Dessa forma, a filosofia muda por completo. A atitude natural do realismo, que prega a inteligibilidade da natureza (o conhecimento refletindo na mente a mesmíssima realidade) é invertida. E, a partir de Descartes, todo o conhecimento passa a derivar do pensamento, do Eu pensante, da razão; postura conhecida, na filosofia, como o Racionalismo.
A primeira certeza de Descartes é o próprio pensamento, que assegura a existência do mundo, das coisas. Enquanto se pensa, o objeto pensando existe. Descartes considera o pensamento não como um ato, mas como conhecimento, como uma substância dotada de existência: a substância pensante. Esta é a primeira dicotomia de Descartes: a separação entre o sujeito que conhece, e o objeto que é apreendido pela razão, pela consciência, pela alma do sujeito.
Partindo do principio da certeza no pensamento, Descartes distingue os pensamentos confusos, nebulosos, não distintos nitidamente dos pensamentos claros e distintos, estes bem nítidos, e que podem ser divididos nas partes que o compõe sem confusão alguma. Sendo Deus, então, uma ideia clara e distinta, portanto perfeita, ela deveria ser possível à alma devido a um ser mais perfeito que o próprio homem que pensa. Esse ser, Deus, portanto, como perfeito que é, é causa da própria existência.
Provada, pois, a existência de Deus, e como esse é perfeito, justo e bom (não enganador), Descartes prova, por conseguinte, a existência do mundo material. A dúvida metafísica é superada a partir da ideia de Deus, donde se podem derivar os critérios de verdade, justiça, beleza, clareza, além de provar uma causa soberana bela e justa. As ideias claras e distintas, pois, são o critério e a fonte de toda a verdade, de toda a certeza uma vez que são inatas, ou seja, são colocadas em nós por um Deus bom e justo.
O mundo cartesiano obedece às ideias claras e distintas das matemáticas, das geometrias; um mundo de puras realidades geométricas. Um mundo mecânico, regido por leis deterministas. Leis, essas, descobertas através da razão, onde o sensível é totalmente abandonado como meio para o conhecimento. É o mundo das ciências modernas.
A ciência, como uma invenção do século XVII, nutre-se do espírito cartesiano ao modular, principalmente segundo a física de Newton e Galileu, o universo como mecânico. A ideia de Descartes de eliminar o confuso e o obscuro aparece nas ciências, segundo Morente (1964), no sentido de eliminar (reduzir) do universo a qualidade, e não deixar mais do que a quantidade; esta submetida à medida, a lei.
O universo, antes imutável, como forma perfeita, agora, para o cientista, é uma máquina composta de polias e engrenagens, como um autômato, ou um relógio (símbolo do pensamento mecanicista). O universo passa a ser regulado e determinado por leis, as leis da física (as leis de Newton), comportando o principio da inércia e da causalidade.
A natureza, como pálida expressão de leis ocultas do seu real funcionamento, é o que procura o cientista através da observação empírica traduzida em equações matemáticas (através de exercícios da razão). “Neste modelo, portanto, o mundo possui a topologia do contínuo, a atitude do cientista é neutra, e a compreensão dos fatos dá-se pela explicação dos mecanismos e pela fragmentação do todo em suas partes” (Feijoó, 2000, p.18).
O espaço e o tempo são absolutos, dentro de um passar contínuo de tempo, e imutável; existindo independente da presença do observador. As leis respondem a uma causalidade mecanicista (linear e unidirecional), sendo todos os fenômenos do espaço determináveis no sentido passado, presente e futuro, formando cadeias de causa e efeito interdependentes. Matéria e energia são os fundamentos básicos, sendo a primeira, a substância, de todas as coisas, e a segunda a força propulsora dos objetos (constante e determinística).
Tem-se o primado da matéria, atribuindo-se ao empírico todo o método possível de apropriação do real. O homem moderno, pois, vai à realidade através da razão, tendendo a “considerá-la como realidade autônoma e mais ‘objetiva’ que a realidade sensível, já que era somente por seu intermédio que se podiam descobrir leis rigorosas, a propósito dessa ultima”(Dartigues, 1992, p. 76).
Citando novamente Manuel Garcia Morente:
Descartes extrai do Eu um mundo de pontos e figuras geométricas. Mas consultemos um livro de física contemporânea e veremos que realidade nos apresenta; apresenta-nos uma realidade composta de equações diferenciais, integrais, de prótons, de elétrons, de ‘quantas’ de energia; uma realidade entre a qual e nossa realidade vital sensível e tangível existe um abismo, não menor, antes muito maior ainda que aquele que abriu Descartes entre esses dois mundos. É que, com efeito, o pensamento de Descartes guia, anima, de um lado, todo o pensamento científico, e, de outro, todo o pensamento filosófico em nossa cultura moderna. (1964, pag. 174).
Descartes, no seu racionalismo, aprisiona a consciência (a alma, o pensamento, ou a razão) como algo localizado no tempo e no espaço, separando a substância que pensa da substancia corpórea (determinada pelo pensamento).
Nas palavras de Descartes:
“(...) compreendi por aí que era uma substancia cuja essência era pensar, e que, para ser, não necessita de nenhum outro lugar, nem depende de qualquer material. De sorte que esse eu, isto é, a alma, pela qual o que sou, é inteiramente distinta do corpo e, mesmo, que é mais fácil de conhecer do que ele, e, ainda que este nada fosse, ela não deixaria de ser tudo o que é” (1637/1973, p. 54).
Tal noção, foco da segunda meditação cartesiana, encerra o sensível como enganador, e o corpo como matéria extensa (regida por leis deterministas). A consciência encapsulada, dessa forma, responde às mesmas leis, na forma de leis do psiquismo. O homem passa a ser mecanismo em tudo aquilo que não é pensamento puro, como qualquer animal, como qualquer aparelho.
Descartes, pois, buscou a certeza e agiu em meio a um método que lhe garantisse rigor. Esse projeto tem continuidade com Husserl, que vai buscar na filosofia o seu rigor.
Husserl, como dito anteriormente, quer elevar a filosofia à ciência de rigor, que, por sua vez, embasaria todas as ciências. Ele reconhece no projeto moderno a fracassada intenção de criar uma filosofia, centrada na questão do método, como ciência rigorosa. A filosofia moderna teve como fruto, segundo Husserl, a fundamentação e a autonomia das ciências naturais, o que marca uma carência quanto a uma forma rigorosa de ciência. Para Husserl, a filosofia não pode apreender-se, não possui intelecções objetivamente compreendidas e fundamentadas, como no caso das matemáticas.
A filosofia é, segundo Husserl (1965), a representante da aspiração do conhecimento puro e absoluto não sabe como constituir-se como verdadeira ciência. Carece de problemas e métodos plenamente esclarecidos no seu significado. Nas palavras de Husserl:
“Não digo que a filosofia seja uma ciência imperfeita. Digo simplesmente que ainda não é ciência, que não chegou a sê-lo, a julgar pelo critério de um conteúdo – ainda que reduzido – teórico, objetivamente fundamentado, que possa ser doutrinado”(1965, pag. 20).
A fenomenologia, como nova doutrina filosófica, tem a proposta, portanto, de ser uma ciência que fundamente com bases sólidas e seguras todo o conhecimento. Para tal propõe uma reforma rigorosa da filosofia. A crítica de Husserl tem como alvo a falta de critérios rigorosos para os objetos de estudo das ciências positivistas.
O conhecimento científico, objetivo, é o alvo das ciências naturais, toma o real como empírico, como existente em si mesmo, como dado evidente, o mesmo ocorrendo para a ciência da consciência, a psicologia. Ainda mais, quanto a uma investigação da relação entre a consciência e o ser, o naturalismo identifica o ser como realidade da própria consciência, como correlativo, em conformidade com a essência da consciência.
A postura de que a realidade fala por si, na forma de leis, obscurece o discurso racionalista que habita suas profundezas. O cientista fala do ser como se este fosse constituído pelas próprias fórmulas e esquemas que o cientista fala, comportando propriedades e leis que podem ser estudadas por si próprias.
Como as leis da ciência transmitem sua exatidão aos fenômenos da realidade, elas tendem a reduzir a natureza como realidade autônoma, em si mesma; considerada, essa realidade científica, mais objetiva que os dados do sensível, enganadores e não suficientes para o desvelamento dessas leis.
O naturalismo, como escreve Husserl em (1965), “resulta do descobrimento da natureza como unidade do ser no tempo e no espaço” (p.12); ou seja, como dito anteriormente, essa doutrina, propaga-se na realização da ideia da natureza como ciência natural (que visa, através do método científico, encontrar as leis, as verdades, por detrás dos fenômenos). A forma extrema de naturalismo, seguindo o argumento de Husserl, é o psicologismo, a naturalização da consciência. A redução dos dados intencionais e imanentes da consciência a leis, e modos de funcionamento psicofísico.
O psicologismo é justamente essa tendência a encerrar às leis naturais os fenômenos psíquicos. É, senão, o modelo do método das ciências da natureza aplicado à consciência. Assim, os estudos acerca da consciência e do conhecimento ficariam reduzidos a uma substância pensante, a razão interiorizada, com suas faculdades, classificações e características. “O psíquico é dado como um Eu, como experiência vivida de um Eu, que empiricamente aprendemos manifestar-se relacionados com certas coisas físicas, chamadas de corpos” (Husserl, 1965, pag.15).
A psicologia, dessa forma, seria a disciplina que fundamentaria a lógica, teoria do conhecimento, ética, estética, e pedagogia numa metodologia científica experimental que serviriade base para todas as ciências do espírito.
O naturalismo, pois, é racionalista e objetivista. Em outras palavras, tira seus fundamentos nas premissas das suas próprias teorizações e julga montar teorias que negam as suas verdadeiras premissas. Ou seja, para sua valoração filosófica para fins metafísicos usa uma filosofia de base precedente. “Seu contra-senso oculta-se a ele próprio, residindo na naturalização da razão” (Husserl, 1965. Pag. 10).
Nas palavras de Husserl:
Evidencia-se que – igual a toda posição científica da Natureza – a sua posição pré-científica numa Teoria do Conhecimento que conserve o seu sentido uníssono, deve em princípio ficar excluída, e com ela todas as afirmações que implicam posições existenciais, téticas, de objetos concretos, como o espaço, o tempo, a causalidade, etc. Isto parece que se estende ainda a todas as posições existenciais que se referem à existência do homem investigador, das suas capacidades psíquica, e coisas semelhantes (Husserl, 1965, pag.17).
O que se deriva desse problema é a confusão por parte das ciências positivistas naturalistas quanto ao seu objeto de estudo. As ciências naturais (sendo a psicologia aqui também inclusa), devido a essa ingenuidade e arrogância, não têm claro seu objeto, “confundido a descoberta das causas exteriores de um fenômeno com a natureza própria desse fenômeno” (Dartigues, 1992. p.12); perdendo de vista a que se referem seus resultados obtidos através dos seus métodos e pesquisas.
Nomes como Dilthey e Brentano já propunham uma reformulação do objeto de estudos da psicologia. O primeiro era, conforme escreve Dartigues (1992),crítico do psicologismo, pregando o retorno de um “sentimento da vida” para a psicologia. Entendia que os dados psíquicos, diferente dos fenômenos naturais, com dados imediatos, supostos de descrição e compreensão.
Brentano, professor de Husserl, por sua vez, compartilha da critica de Dilthey. Estuda a exploração do campo da consciência com os modos de relação ao objeto. Vai distinguir fundamentalmente os fenômenos psíquicos dos físicos; sendo os primeiros dotados de uma intencionalidade,oquequer dizer que o modo de visada que temos dos fenômenos na sua percepção original, constituem o seu conhecimento fundamental (Dartigues, 1992).
No entanto, se ainda é evidente um subjetivismo no pensamento de Brentano, este ainda faz um psicologismo, buscando a operação mental que fundamenta a matemática. Husserl, por sua vez, busca a superação do psicologismo, ainda encontrado em Brentano, como coloca Dartigues: “Um ultrapassamento da psicologia descritiva de Brentano era necessário, e é este ultrapassamento que Husserl realizará sob o nome de fenomenologia” (1992, p.10).
A proposta Husseliana é de uma consciência inovadora, visto que a teoria do conhecimento jamais trabalhara a questão com rigor necessário. A investigação deste autor consiste no que a consciência é, na sua essência, e, simultaneamente, para aquilo que ela significa em todas as suas formas distintas. Em como ela, em virtude da essência dessas formas, prova o valor e a realidade das mesmas.
Husserl está interessado no pensamento mais original, no fenômeno puro, na consciência pura (a vivencia pura, essa, que não pode ser estudada a partir de nenhuma teorização). Os fenômenos puros, na sua originalidade, devem ser apresentados como dados (no sentido de dar-se, de modos de mostração), em conformidade com o sentido de cada intelecção (e não dados como verdades ocultas ao aparente). Vê a consciência como vivência, como simples presença do fenômeno imanente.
A psicologia das ciências naturais, ao apreender o fenômeno sob a ótica do psicofísico perde a sua originalidade. Uma análise da consciência pura, uma analise verdadeiramente rigorosa e basal de todo o conhecimento, entende o fenômeno como dado imediato: consciência como consciência de. Nas palavras de Husserl:
“O significado da afirmação de a objetividade concreta existir e provar-se inteligível como existente e no modo da sua existência, é que deve evidenciar-se meramente como a própria consciência, compreendendo-se, por conseguinte, perfeitamente. Para isso, é preciso o estudo da consciência total, visto ela por todas as suas formas assumir funções possíveis de intelecção. Sendo, porém, toda consciência, uma ‘consciência de...’, o estudo da sua essência inclui também o do significado e do seu objeto como tais” (1965.pag.19).
Àfenomenologia interessa a consciência pura, não a consciência empírica (existente em continuidade com a natureza). Portanto, Husserl foge às hipostasias realistas e racionalistas, e fala de uma terceira via; esta rigorosa o suficiente para fundamentar todo o conhecimento, a fenomenologia. O fenomenólogo vê o mundo a partir do campo de mostração que se dá a consciência, sem sentidos e determinações dadas.
A descrição fenomenológica pretende chegar ao universal, na estrutura. Para tal, aproxima o universal do singular, o objeto do sujeito, propondo uma consciência intencional - uma atividade de co-originalidade com o mundo.
Husserl não se contenta com nada que não seja um dado absolutamente evidente, com nada que não possa ser suscetível de um conhecimento originário. Isso é, remete-se a algo que seja fiel ao propósito de garantia do rigor. Para tal, procura sólidas que sejam evidencias absolutas, evidências “apodídicas”. O referido autor, dessa forma, se remete ao propósito cartesiano de eliminar toda a dúvida a fim de se chegar ao conhecimento como evidência última. Nas palavras do mesmo:
“Foi de um modo muito direto, diga-se expressivamente, que o estudo das meditações cartesianas interveio na nova configuração da fenomenologia nascente e lhe deu a forma e o sentido que agora tem e que quase lhe permite chamar-se de um novo cartesianismo, um cartesianismo do século XX” (Husserl, 1929, pag. 90).
No entanto, a proposta da fenomenologia vem de encontro não só com as proposições cartesianas, como com o conhecimento empírico das ciências, como visto anteriormente. Husserl retorna ao pensamento cartesiano o liberando da sua última ingenuidade: propõe ao invés de o cogito ergo sun, o cogito cogitatum(Penso pensamentos, lembro lembranças), o que marca a fenomenologia como um novo método, uma nova epistemologia, bem como uma nova atitude. Atitude esta que consiste em distinguir, a partir do que se busca elucidar, o sentido último das coisas, a coisa em sua “doação originária”. Husserl, como escreve Dartigues (1992) buscava a intuição originária, o “princípio dos princípios”.
Por atitude natural pode-se dizer o que Husserl chamou de “tese do mundo”.A crença de que o “mundo” revela-se a nós pela experiência sensível, este situado espaço-temporalmente. Trata-se das coisas consideradas como entes mundanos, dados em si, com suas respectivas propriedades. Postura esta caracterizada como “realismo ingênuo”, onde se aceita a existências das coisas pura e simplesmente como são, sem um exame crítico. As ciências da natureza se comportam sem qualquer dúvida ontológica a respeito dos objetos que estudam, ou seja, tem uma postura de equivalência do ser real e como ser percebido. Descartes critica esse realismo metafisico uma vez que deriva o mundo da consciência. Para ele a existência da realidade era garantida pelo pensamento, tinha a evidência do ser, do mundo, através do exercício do pensamento (o racionalismo cartesiano).Num primeiro momento Husserl, como escreve Tourinho (2011), ao criticar a hipostasia realista, chega a algo próximo ao cógito cartesiano com a idéia de “evidência cogitatio”; a evidência de que os dados dos sentidos não são suficientes para sustentar a evidência da realidade por si só.
No entanto, Husserl vai além de Descartes ao generalizar a epoché também para o âmbito da consciência, da vivência psicológica. Segundo Husserl, o sujeito empírico também é um ente, assim como os entes mundanos, dado por si. A consciência é vista como uma entidade interiorizada, psicologizada; localizada espaço e temporalmente. Seus objetos lhe diferem por substância, estes apreendidos, em si mesmos, por meio de suas faculdades,num plano espaço-temporal com sentidos e determinações dadas por si mesmas. “O transcendente passa a ser, portanto, entendido como fonte de dúvidas e de incertezas, porém, abrangendo agora o eu empírico em sua relação com o mundo natural” (Tourinho, 2011, pag.30).
Dessa forma, Husserl vai consolidar o deslocamento dos fatos empíricos, para os fenômenos. Da subjetividade transcendental para a consciência transcendental, capaz de ver os fenômenos tais como se apresentam, consistindo o “puro ver” das coisas, a visada original. A fenomenologia prescindirá da existência das coisas mundanas, para o puro ver, para os fenômenos como se revelam, como se mostram para a consciência em sua pureza irrefutável, na auto-reflexão da consciência transcendental.
Em outras palavras, para Husserl, conforme escreve Tourinho (2011), o transcendental é o próprio domínio do conhecimento, domínio da autenticidade. A consciência transcendental marca o retorno do sensível como fonte de conhecimento, tirando este do domínio da razão. É o “retorno às coisas mesmas”, ao puro fenômeno, a pura e original vivência. Tem-se sensível não encerrado à percepção, ao órgão dos sentidos, pois, como diz Dartigues (1992), tal posição encerraria ao cepticismo. Para Husserl, os fenômenos se dão por intermédio dos sentidos, mas aparecem intuitivamente como dotados de sentido, de uma essência (imanente ao fenômeno): “Eis por que, para além dos dados dos sentidos, a intuição será uma intuição da essência do sentido” (Tourinho,2011, pag.14).
Mas, por não se tratar de uma consciência interiorizada, empírica, mas sim da consciência transcendental, um fenômeno é um fenômeno na e para a consciência pura (ou transcendental). Ou seja, através do exercício da redução fenomenológica (a epoché), a consciência é compreendida como fluxo, como intencionalidade, em co-originalidade com o mundo. As coisas não são dadas em si mesmas para uma consciência interiorizada (doadora de sentidos e determinações), mas, do contrário, são visadas intencionalmente. A consciência, como escreve C. Tourinho:
“(...)deve ser concebida a partir de sua relação intencional com o seu objeto que, em sua versão reduzida, enquanto um dado imanente, um conteúdo intencional da consciência. Trata-se, com tal redução, de fazer o mundo reaparecer na consciência como um horizonte de idealidades meramente significativas, que se revelam como um dado absoluto e imediato para uma tal consciência pura que o apreende e o constitui intuitivamente” (2011, p. 33).
A mesma consciência que apreende o objeto intuitivamente é responsável pela constituição desse objeto no pensamento, como uma unidade de sentido, um fenômeno puro. Puro significa não mundano, não factual, aquilo que não pode ser pensado em termos de dados empíricos. Os objetos, as coisas, enquanto cogitatum exigem uma doação de sentido que só pode vir através dos atos intencionais, das unidades de sentido que pressupõe uma consciência doadora de sentido. O fenômeno, pois, em sua co-originalidade, é logosao mesmo tempo que fenômeno.
As coisas, portanto são para uma consciência a partir de um horizonte de sentidos, se dão em co-originalidade. Não é a consciência que posiciona o mundo, nem este impresso na consciência ingênua. A consciência como intencionalidade, como ato, como fluxo, acontece na co-originalidade do dado imanente, e da consciência doadora de sentidos. Se por um lado, na atitude natural, o mundo se revela a consciência como fatual, na atitude fenomenológica, de outra forma, o mundo se revela como pura significação; se revela em sua totalidade, como fenômeno.
A causalidade, com o acontecimento temporal linear desaparece como funcionamento da consciência. Como a consciência é correlacional, todo objeto é intencional (conteúdos intencionais da consciência) e toda intencionalidade é para o ato intencional – implicados mutuamente em co-originalidade. O tempo, como escreve Dartigues (1992), é entendido como uma rede de múltiplos agoras, cada um de uma vez,não como acontecimentos lineares que derivam de uma base prévia de aprendizagem.
Husserl, pois, acaba com a dicotomia sujeito e objeto (entendida como interioridade/exterioridade), nos remetendo sempre ao que é exterior, ao que é transcendental à consciência empírica (psicológica). A redução fenomenológica permite-nos lançar para o modo transcendental de consideração do mundo, recuperando a autêntica objetividade na própria subjetividade transcendental; “uma exterioridade objetiva na pura interioridade” (Husserl, 1929, p. 34), unindo, dessa maneira, o objetivo e o subjetivo
Husserl posiciona a dimensão intencional independente e anterior a toda descrição psicológica, a toda introspecção, recuperando, assim, de um modo original, a idéia de “objetividade imanente”. Dessa forma, o particular se torna também universal, cabendo ao fenomenólogo a investigação da intencionalidade - o exame dos elementos que, no ato de consciência pura, são responsáveis pela constituição das diferentes modalidades do “aparecer” enquanto tal (diferentes formas do dar-se dos objetos na consciência pura).
Analisar o sentido íntimo das coisas, segundo a fenomenologia, significa, portanto, analisar o sentido dos objetos intencionais, explicitando as significações que se encontram aí implicadas, bem como as diferentes modalidades de aparecimento desse mesmo conteúdo intencional.
Portanto, ao deslocar o eixo da epistemologia de uma apreensão empírica do mundo para uma visada intencional, Husserl se abstém de considerar sobre a existência do mundo, sem, no entanto, negá-lo. Para a fenomenologia, filosofia como ciência rigorosa, o que interessa é o sentido dos objetos intencionais, o “sentido do mundo”, e não os fatos. A consciência como fluxo, operando na intencionalidade, no cogitatum, garante a objetividade e pureza da fenomenologia como ciência do mais originário. Da “coisa mesma”, recuperada pela consciência transcendental. “Para Husserl, somente assim a filosofia poderia, definitivamente, se livrar das divergências de seu tempo, e da ameaça do ceticismo iminente, reerguendo-se de forma inabalável” (Tourinho, 2011, pag.39).
5 - GESTALT-TERAPIA E O SELF COMO CONCEITO OPERACIONAL FENOMENOLÓGICO
Concordando com Ribeiro (2007), a Gestalt-terapia é uma abordagem que tem por objetivo a arte do contato. É através do contato, na promoção de um encontro mais rico e criativo, que o mal-estar vivido pelo cliente pode ser ampliado e transformado em novas formas de existência. A terapia, dessa forma, é um espaço para o exercício do contato, um exercício de troca na vivência da relação entre terapeuta e cliente a fim de se expandir a awareness e desenrijecer processos bloqueados do sistemaself. Nas palavras do autor citado acima: “A Gestalt pode ser definida como uma terapia do contato em ação (...)” (pag. 25).
Os principais autores da Gestalt-terapia, Perls, Hefferline e Goodman (1951), partem do principio de que qualquer investigação psicológica, e de todo o campo do saber das ciências, deve-se considerar o organismo e seu ambiente. A Gestalt-terapia tem por objeto de estudo, e por finalidade clínica, o limite, a interação entre organismo e ambiente, entendendo tal fronteira enquanto campo de presença, e identificando os comportamentos humanos como função dessa interação. Nas palavras dos autores:
Denominemos esse interagir entre organismo e ambiente em qualquer função o ‘campo organismo/ambiente’, e lembremo-nos de que qualquer que seja a maneira pela qual teorizamos sobre impulsos, instintos etc, estamos nos referindo sempre a esse campo interacional e não a um animal isolado (1951, p. 42-43).
Para autores citados, organismo e ambiente não são substancias distintas,antagônicas em sua natureza, como no pensamento Cartesiano, pelo contrario, fazem parte do todo organismo/ambiente. O termo fronteira passa a ideia de um limite “entre”, porém, do contrário, Perls, Hefferline e Goodman (1951) preferem pensar em num limite “de”. A fronteira-de-contato, onde a experiência ocorre, não separa o organismo de seu ambiente, mas sim o limita, o contém, o protege e o diferencia. O Contato é função dessa fronteira.
A experiência, como escrevem Perls, Hefferline e Goodman (1951), é função, e se dá na fronteira entre organismo e ambiente, sendo, a realidadeum todo organizado, uma Gestalt (com a obtenção de algum significado e a conclusão de alguma ação). Pode-se dizer, portanto, que o contato “é a realidade mais simples e primeira, sendo a percepção sensível derivada da experiência da fronteira, constituindo, esta, uma estrutura unificada” (PHG, 1951, p 20).
O contato, em outras palavras, como escreve Perls (1973), pode ser definido como awareness do campo ou resposta motora no campo; entendido como tipo de interação que se tem na fronteira num movimento de consciência (de) e ação (para). Esta interação inclui a awareness da novidade assimilável e o comportamento com relação a esta; que pode ser da ordem da assimilação, ou rejeição: “É na fronteira que os perigos são rejeitados, os obstáculos superados e o assimilável é selecionado e apropriado” (PHG, 1951, pag.44).
Contato pressupõe sempre o encontro com o diferente, sendo que um organismo vive em seu ambiente por manutenção da sua diferença e por meio da assimilação do ambiente a sua diferença (Polster, 1979). Fronteira de contato é o limite onde o organismo se diferencia do meio, se atualiza enquanto diferente, enquanto singularidade. Diferenciar-se é obter uma relação onde a satisfação seja mútua, do organismo e do mundo: “O meio não cria o organismo, nem este cria o meio, cada um é o que é, com suas características, devido ao relacionamento com o outro e com o todo” (Perls, 1973, pag. 31).
O que é difuso, sempre o mesmo, ou indiferente não é um objeto do contato (como exemplo pode-se citar os órgãos internos em funcionamento saudável). O mundo ganha sentido quando os encontros viram contato, ou seja, na ocasião de mudança, do novo; quando um altera a natureza do outro. O organismo saudável goza de uma fronteira permeável, o que permite um bom contato na medida em que a fronteira se expande para o novo.
Todo contato é criativo e dinâmico. Como o organismo não é passivo do contato –este é espontâneo –o organismoassimila o ambiente. O que é selecionado e assimilado é sempre novo, sendo que o organismo persiste pela assimilação do novo, pela mudança e crescimento. No processo de assimilação o organismo é sucessivamente modificado, assim como o ambiente. Este processo faz com que o individuo se encontre sempre em ajustamento. É pelo ajustamento criativo que a mudança e o crescimento se dão.
No exercício clínico, como arte do encontro, do contato, toda vez que uma novidade é percebida no campo, toda vez que se tem um aumento da awareness na fronteira de contato, uma nova possibilidade é descoberta. Uma nova figura esta a disposição para o cliente exercer a sua liberdade, e a sua responsabilidade, na ação frente a este novo horizonte que emerge.
Um bom contato, portanto, é aquele consonante com a formação de uma figura nítida, de uma gestalt clara, onde se tem awareness acompanhado do comportamento motor que se completa, que fecha o ciclo da assimilação levando ao consequente crescimento. Isto implica numa clínica que não carece de teorias do comportamento normal, “a própria figura fornece um critério autônomo da profundidade e realidade da experiência” (PHG,1951, pag. 46).
O terapeuta tem por missão estimular o contato do cliente tendo a própria relação terapêutica como guia no aqui-e-agora. É por meio do contato que se promove awareness do campo e uma resposta condizente com o que o cliente quer, e com o que o aparece como horizonte de suas possibilidades existenciais.
Segundo Perls, Hefferline e Goodman(1951), todo ato de awareness exige contato, no entanto, não significa que todo contato impliquei em awareness. Dessa forma, como escreve Yontef (1993), a awareness pode ser entendida como fixação da uma gestalten, como um contato pleno; como uma integração total do campo organismo/ambiente. Contato completo, integrado, no sentido de haver uma total percepção, da parte de quem percebe, de todos os elementos do campo organismo/ambiente.É a experiência de minha pessoalidade como fundo de tudo que acontece na fronteira, no campo de presença.
Awareness, como escreve o casal Müller-Granzotto (2007a), é processo de orientação que se renova a cada instante. É uma unidade, uma fixação. Dá-se a partir de um sentir (entendido como espontaneidade), como abertura para a nossa “história impessoal”. É formação de gestalten, e acontece no aqui-e-agora, no movimento de formação e dissolução de figuras, consonante com a necessidade genuinamente emergente. Só existe awareness no contato, na percepção do campo organismo/ambiente (sempre no presente).
A emergência de uma figura na fronteira de contato, e a decisão do organismo perante as escolhas que lhe são possíveis diante dessa figura correspondem ao ciclo de abertura e fechamento de Gestalt. Ciclo este que pode ser definido como as polarizações do self no encontro com o mundo.Uma necessidade emergente, algo que seja do foco do interesse do organismo, ao ser contatada, é uma gestalt aberta, que necessita de movimento para ser fechada. Contato como percepção (de) e movimento (para), trás consigo a ideia de abertura e fechamento de gestalt, de configurações inteiras, através dos processos envolvidos o ciclo contato, ou, em outras palavras, na dinâmica do funcionamento do self.
O self pode ser considerado como o principal conceito da Gestalt-terapia. É em serviço do self, de suas dinâmicas e funções que o contato, o ajustamento criativo e a awareness são possíveis; sendo os fenômenos de empobrecimento do contato formas de inibições do sistema self (PHG, 1951). Dessa forma, toda a teoria da Gestalt-terapia, sua prática clínica, e seu próprio objetivo são orientados a respeito do sistema self, considerando suas funções e dinâmicas. Um bom terapeuta deve, dessa forma, ajudar o cliente, muitas vezes perdido em angustia, a organizar e tomar responsabilidade das suas escolhas, em outras palavras, ajudar o cliente a completar o ciclo de contato proporcionando satisfação e crescimento ao self. Mas, para nosso melhor entendimento, o que é propriamente o self?
A definição para o self encontrada na obra de Perls, Hefferline e Goodman (1951) é a de que o self é “o sistema complexo de contatos necessário ao ajustamento criativo” (p. 179). Ao definir o self como um sistema de contatos que tem a função de contatar o presente, Perls Hefferline e Goodman (1951) não o entendem como uma entidade psicofísica, mas sim como um processo, como algo que se dá através de uma relação, como um acontecimento na fronteira de contato. O self, para estes autores, é uma dinâmica de trocas energéticas entre o organismo e o meio, de modo a permitir, por um lado, a conservação de algumas formas de organização anteriores (junto às quais me experimento como aquilo que permanece) e, por outro, a destruição de formas antigas e assimilação de formas novas (o que permite que me experimente como algo integrado ao ambiente).
O self pode ser compreendido, então, como o estado na fronteira de contato; fronteira esta que pertence tanto ao organismo quanto ao ambiente. Dessa forma, não se deve pensar o self como uma instituição fixada; ele existe onde quer que haja de fato uma interação na fronteira, e sempre que esta existir: “quando se aperta o polegar, o self existe no polegar” (PHG, 1951, p.179).
Enquanto sistema de contatos o self não é uma regularidade de ações, mas um continuum que se modifica a cada instante. Ele a cada momento mobiliza, na forma de excitamento, um fundo (meu passado) que responde ao meu investimento em forma de figura, como potencialidade, como um horizonte de futuro.
Na leitura de Perls, Hefferline e Goodman (1951) é claro a identificação do self como um processo de formação de figura (presente) e fundo (passado). Para estes autores, o passado não é visto como uma instância imutável, mas está, também, em jogo, em constante mudança, em constante renovação. Por conseguinte, numa situação de awareness essa “preteriedade da situação se dá como sendo o estado do organismo e do ambiente, mas no instante mesmo da concentração, o conhecido (o passado) está se dissolvendo em muitas possibilidades” (Ibidem p. 181).
A dinâmica de formação de gestalt é função do self, uma vez que a formação de figura dá-se no processo de contato. Nas palavras de Perls, Hefferline e Goodman: “o self é a força que forma a gesltalt no campo; ou melhor, o self é o processo de figura/fundo em situação de contato” (1951, p.180). Em decorrência disso, os referidos autores vão dizer que o self é “a realização de um potencial” (p180), donde segue a ideia do self como uma potencialidade engajada.
Na medida em que a concentração prossegue- excitação pela qual o contato se dá- o self se identifica com algumas possibilidades, alienando-se de outras. Essas possibilidades, então, são transformadas em figura que emergem, por sua vez, do fundo de potencialidade. O futuro, o porvir, é a marca efetiva desse processo, sendo que a identificação e alienação dessas possibilidades, o surgimento de uma nova figura, é o ajustamento criativo (onde o novo é assimilado).
Nem ativo, nem passivo, mas - espontâneo e engajado numa situação - são, segundoPerls, Hefferline e Goodman (1951), as principais características do self. A espontaneidade, segundo os mesmos autores, “é o sentimento de estar atuando no organismo/ambiente que esta acontecendo, sendo não somente seu artesão ou seu artefato, mas crescendo dentro dele” (Ibidem p.182). Em outras palavras, essa característica do self o identifica a postura de descobrir-se e inventar-se ao mesmo tempo, agredindo e aceitando o que é contatado. Não se trata, pois, da ação do sujeito sobre si, mas da gênese desse sujeito na ação.
Sujeito este que, tendo sua gênese renovada a cada contato, se modifica,se surpreende ao perceber o ambiente também renovado a cada encontro. Logo, para a Gestalt-terapia, um sujeito não é uma interioridade imutável presa a um passado que o define e que, muitas vezes, o condena. O sujeito gestáltico é alguém em fluxo, em mudança, que organiza suas ações (na sorte de ajustamentos)a partir da intencionalidade da sua consciência.
Para além, no que consiste ao método fenomenológico e o self, o casal Müller-Granzotto (2004, 2007a) identificam as funções e dinâmicas do self como uma sorte de espontaneidade a luz da noção de temporalidade da fenomenologia de Husserl. Para os referidos autores, o self cria estruturas específicas para propósitos específicos, o que quer dizer que o self de acordo com o foco da experiência, cria funções específicas, em detrimento de outras. Essas formas elementares da vivência do self, ou seja, da pura vivência espontânea, constituem o que Perls, Hefferline e Goodman (1951) vão descrever como operações, ou funções do self.
Segundo o casal Müller-Granzotto (2007a) a descrição dos processos que constituem a reedição criativa de nós mesmos no campo organismo/ambiente (reedição, esta, na forma de um fundo, que se realiza como horizonte de possibilidades para a figura emergente), ou a descrição do self (que é a mesma coisa) é a descrição do que há de essencial na experiência. Por essa razão “Perls e seus colaboradores propõe não uma teoria da personalidade ou uma metapsicologia, mas uma psicologia formal, que não é senão uma descrição fenomenológica desse processo de apercepção da própria unidade no mundo – processo esse a que denominaram self” (MG, 2007a, p. 212, grifos meus).
Logo, a descrição das funções do self nada mais é do que a descrição e análise das estruturas por meio do qual podemos nos representar como uma unidade nos processos contato e ajustamento criativo. Estas estruturas, ou “sistemas parciais do self”, como nomeiam Perls, Hefferline e Goodman (1951), que, a partir da análise de como o contato (que pode ser física, química, emocional, política) se polariza como o fluxo de awareness,são as funções Id, Ego e Personalidade.
As funções do self não são etapas de uma sucessão cronológica (compreensão errônea que nos levaria ao entendimento da natureza do self como interioridade). As três funções são apenas três pontos de vista diferentes que se pode ter da mesma experiência. O que significa que no fluxo de awareness (em cada experiência vivida) é possível que se apresente, até concomitantemente, as três funções. O que vai por, pois, em evidência uma função do self em prol de outra é a escolha de quem está a descrever a experiência. Nas palavras de Marcos e Rosane Müller-Granzotto:
A frase ‘Sou eu que estou respirando neste momento’ designa, simultaneamente, uma personalidade, uma réplica verbal de uma identidade objetiva (marcada pelo pronome eu), uma função de ego, que é a ação mesma de emitir a frase em questão, quanto uma função id, que é a necessidade ou excitamento que ultrapassa ou sobeja os valores semânticos fixados pela frase supra (2007a, p.214).
A título de maior para o entendimento da dinâmica do selfcabe apresentar a releitura que o casal Müller-Granzotto (2007a) propõe a respeito das mesmas. Estes autores vão reportar-se a fenomenologia de Husserl para explicar “as condições dinâmicas que permitem à consciência transcendental representar, na forma de um objeto transcendente, a unidade de suas próprias vivências” (2007a, p. 224). Tais condições, como os mesmos dizem, reconhecem a vigências de um tipo especial de intencionalidade, a “intencionalidade operativa”.
A intencionalidade operativa, que é para Husserl uma “espontaneidade” (1893, p. 124 apud Müller-Granzotto, 2007a, p. 224) na qual vinculamos nossas vivências com as demais sem que uma substância seja criada, sem que haja um ato de unificação. Esse vínculo entre as vivências e pode ser experimentado de duas formas: como retenção do vivido enquanto modificações sucessivas e como um horizonte de tempo (passado e futuro).
Uma vivência, seguindo o fluxo da consciência, dá lugar a uma nova vivência, no entanto, como explica o casal Müller-Granzotto (2004, 2007a) a partir de Husserl, uma espécie de permanência ocorre como horizonte para novas vivências. Essa permanência, como, por exemplo, a sucessão da melodia que forma um todo coerente, implica numa variedade de modificações. A vivência permanece retida enquanto materialidade modificada, e a cada nova vivência se tem a modificação dessa modificação, até que todas essas modificações estabeleçam, para novas vivências, um tipo de horizonte. “Essa intencionalidade diz respeito, então, à organização espontânea desses vividos retidos enquanto horizonte de retrospecção e de prospecção para novos vividos materiais” (Müller-Granzotto, 2007a, p. 224).
Essa síntese, todavia, é provisória, e está em transito constante. Meus co-dados retidos, meu horizonte temporal, esta em constante formação e reformulação, na medida em que meu campo de presença em torno do dado material atual se desmancha em virtude do surgimento de um novo dado, com a consequente formação de um novo campo de presença. Esse fluxo de presença é denominado pelo casal Müller-Granzotto (2007a) de “consciência da vivência interna do tempo”, ou “consciência imanente do tempo”.
Husserl, segundo os mesmos autores citados acima, não concebe o tempo vivido como uma sucessão linear de agora(s), mas como uma rede que se arma em torno do novo agora que é vivido. Esse agora(s), em rede, é independente, e totalmente diferente dos demais; se não o que teríamos seria uma sucessão linear do tempo. No entanto, esse agora(s) não guarda uma relação material (um dado) com o(s) novo(s) agora(s), o que não significa que não haja relação alguma.
A relação que guardam apenas pode ser estabelecida do ponto de vista do vivido, ou seja, o que se pode saber do que já foi vivido é uma modificação deste perante a posição que me encontro agora. O que é exatamente o duplo sentido da intencionalidade operativa: a vivência retida em nossa consciência transcendental deixa de ser vivência para se tornar horizonte (ou fundo).
A cada novo agora nossas vivências retidas se modificam. Mas, mesmo se modificando constantemente, o horizonte é aquilo que eu sempre posso reivindicar como orientação para minha vivência atual (como fundo). O agora é um campo de presença, ou temporal, onde um horizonte de passado e um horizonte de futuro são possíveis. Entretanto, cabe ressaltar, que este campo de presença (futuro que se faz presente a partir do passado) trata-se de um contiuum, sendo meu campo de presençatranscendência para o dado vindouro. O que estabelece a abertura necessária para que um novo dado possa surgir, e que um novo campo possa se formar, com seus horizontes contingenciais – sempre em fluxo.
Para estes autores, portanto, o processo da experiência de formação de figura a partir de fundo histórico, ou seja, o self, como a realização de um potencial pode ser interpretado como funcionando em dois níveis, um de operação (de modificações sucessivas) e outro construído (o fundo, ou o horizonte histórico), da mesma forma que acontece na experiência consciência imanente do tempo de Husserl.
O self, como uma rede temporal, tem a cada fronteira de contato (ou presente transiente) um campo de presença, ou seja, em cada vivência, que se dá sempre no aqui e agora, temos em co-presença todas as nossas vivências passadas, quer estas se apresentem como lembranças ou como expectativas. Vivência esta que se dá de forma espontânea, pois ao mesmo tempo em que nos ocupamos de fixar um dado a partir de um fundo de preteriedade no campo organismo/ambiente, vemos essa preteriedade renovar-se em possibilidade futura, em busca de um novo dado, de uma nova figura.
Dessa forma, ao mesmo tempo em que o self é relação, ele é minha pessoalidade. Essa última, minha pessoalidade, é assegurada pelo fundo, uma base regular, como escreve Müller-Granzotto (2004), desde onde os dados na fronteira de contato aparecem como possibilidades. E, sendo arrebatado por essas possibilidades – com as quais o se identifica ou nas quais se alínea – o self, em proveito de um acontecimento espontâneo que ele não controla, vislumbra o surgimento de uma nova figura; “o que faz dele a unidade de um fluxo temporal que se renova a cada situação concreta em proveito da situação seguinte, junto a qual a situação antiga é assimilada” (Müller-Granzotto, 2007a, p.229).
Este processo é o próprio ajustamento criativo no campo, e, conforme o entendimento do casal Müller-Granzotto (2004), é somente tendo por base a fenomenologia que o campo de presença pode ser compreendido como dinâmica figura/fundo, e o self como a realização de um potencial. O que significa que o fluxo do contato envolve duas orientações temporais: uma prospectiva (formação e destruição de uma gestalt, de uma figura, na passagem do surgimento de um dado para outro) e uma orientação retrospectiva (assimilação do dado como um fundo para a formação da próxima Gestalt, para o surgimento da próxima figura). Na primeira orientação temos o crescimento, enquanto que na segunda temos a conservação.
Dessa apresentação temporal da formação e destruição de figura, do contato, da dinâmica do self, pode-se concluir que o self como sistema de contatos, é uma experiência de contato por vez (passagem ininterrupta de uma vivência de contato apara outra). Sendo que cada vivência contém as outras como horizonte de passado e futuro. “O self é a cada nova vivência de contato a co-presença de todas as outras” (Müller-Granzotto, 2007a, p. 235).
5.1 –A dinâmica do self e a clínica gestáltica
Quanto a dinâmica do self, suas polaridades e características, é possível dizer quetoda vez que um Gestalt-terapeuta usa o “o que”, o “quando” e o “como” como perguntas, ao invés do “por que”, está, na realidade, se voltando para as polaridades das dinâmicas do self em suas frequentes interrupções. Para cada função, em correspondente dinâmica, segundo Perls, Hefferline e Goodman (1951), existem formas específicas de trava, mecanismos de quebra da espontaneidade do ciclo de formação e destruição de figura.
Em algumas das suas últimas publicações, o casal Müller-Granzotto (2007b, 2008, 2009), imbuídos na missão de aprofundar as pistas que os principais autores da Gestalt-terapia criaram, desenvolvem novas contribuições teóricas e clínicas às originais formas de ajustamentos comprometidos em espontaneidade e criatividade sugeridos por Perls, Hefferline e Goodman(1951): os ajustamentos neuróticos, psicóticos, e de aflição. No entanto, antes de se abordar estas contribuições, é necessário, para um maior entendimento, uma apresentação mais aprofundada das funções e correlatas dinâmicas do self.
Conforme pensam os fundadores da Gestalt-terapia - Perls, Hefferline e Goodman (1951) -, o self cria estruturas específicas para propósitos específicos, o que quer dizer que o self de acordo com o foco da experiência, cria funções específicas, em detrimento de outras.Segundo o casal Müller-Granzotto (2007a) a descrição dos processos que constituem a reedição criativa de nós mesmos no campo organismo/ambiente (reedição, esta, na forma de um fundo, que se realiza como horizonte de possibilidades para a figura emergente), ou a descrição do self (que é a mesma coisa) é a descrição do que há de essencial na experiência. Por essa razão “Perls e seus colaboradores propõe não uma teoria da personalidade ou uma metapsicologia, mas uma psicologia formal, que não é senão uma descrição fenomenológica desse processo de apercepção da própria unidade no mundo – processo esse a que denominaram self” (MG, 2007a, p. 212, grifos meus).
As três funções (Id, Ego e Personalidade), e as respectivas dinâmicas (pré-contato, contato, contato final e pós-contato) a elas associadas, são apenas três pontos de vista diferentes que se pode ter da mesma experiência, que é o sistema self em funcionamento. O que significa que no fluxo de awareness (em cada experiência vivida) pode ser apresentar concomitantemente as três funções, sendo que o que vai conferir maior evidência a uma função do self em prol de outra é a escolha de quem está a descrever a experiência.
Cada uma das funções do self corresponde a um modo específico de organização gestáltica (a formação de uma figura em relação a um fundo). Quer dizer que em cada polarização do self, em cada estrutura, o self tem uma experiência diferente no sentido de formação e destruição de Gestalt. Na dinâmica do self, o processo do contatar, é, em geral, uma sequencia contínua de fundos e figuras, cada uma esvaziando-se e emprestando sua energia a figura em formação, que, por sua vez, servirá de fundo para uma nova figura.
A função Id é aquela em que o self encontra-se diminuído, disperso. Ela aparece nos hábitos, e também tem como característica o agigantamento do corpo. A função id é a retenção, como escrevem Perls, Hefferline e Goodman (1951), de algo que não se inscreveu como conteúdo: a forma impessoal e genérica da presença do mundo em mim.
Enquanto hábito, o Id sou eu mesmo, uma expressão do self, ou do processo de reedição criativa, mas um eu genérico, impessoal, que se manifesta como uma sabedoria prática, sem uma inscrição, sem uma significação consciente. Nesta função, o contato se dá quase que a revelia do eu, como o sono, o respirar (Ginger, 1995, pag.127).
O Id não existe fora do contato, no entanto, minhas experiências no exercício do contato são, ao mesmo tempo, minhas e inseparáveis do meio. De modo que minha vivência esta diluída, ou integrada ao meio circulante. “Enquanto Id sou um corpo, um corpo próprio, que antes de ser conhecido (representando para mim mesmo), é vivido como volume, como espessura, como transito entre eu e o mundo” (Müller-Granzoto, 2004,p.3).
Quando o self esta polarizado na função Id a figura não esta propriamente definida. Nesta função, quando muito, a figura é a vivência do hábito, uma vivência do corpo. Vivência esta no sentido de que nessa função não se tem propriamente uma dinâmica, mas sim uma inércia. Sobre a função Id pode-se dizer, segundo Perls, Hefferline, e Goodman (1951,) que esta serve como um estado de inércia, de passividade, onde o Ego pode acolher um dado como figura. Trata-se de um domínio próprio em que um dado indeterminado surge, onde um excitamento se dá.
A função Ego, por sua vez, é aquela em que o self se encontra ativo, agindo sobre o ambiente. É nesta função que uma figura clara pode ser identificada, ou alienada (a partir de um fundo histórico, a função Id), e se tem a emergência de um significante individual, que é, senão, nossa ação. Conforme escrevem Perls, Hefferline e Goodman, “[o] Ego é a identificação progressiva com possibilidades e a alienação destas, a limitação e a intensificação do contato em andamento, incluindo o comportamento motor, a agressão, a orientação e a manipulação” (1951, p. 154).
Cabe ao Ego a inscrição de uma figura num campo genérico de indiferenciação. O self na função ego esta identificado com o interesse ativo selecionado, e a realidade, aqui, “não é enfrentada de acordo com sua vividez espontânea, mas é selecionada ou excluída, de acordo com os interesses com o qual o nos identificamos” (PHG, 1951, p. 185).
Na função Ego Perls, Hefferline e Goodman (1951) identificam três dinâmicas: o pré-contato, o contato e o contato final. O pré-contato caracteriza-se pela apreensão de um dado a partir do fundo de excitamento fornecido pela função Id em decorrência do acontecimento de algo novo (seja este um estimulo que de desenvolve como uma emoção, ou uma dor). Nessa dinâmica, como escrevem os autores acima, “o corpo é fundo, e o apetite ou algum estímulo ambiental são a figura. Isto é o que esta consciente como sendo ‘aquilo que é dado’ ou o Id da situação, dissolvendo-se em suas possibilidades; (...) essas excitações ou pré-contato iniciam o excitamento do processo figura/fundo” (p.208).
No contato se tem a deliberação, por meio da qual o self se polariza na função Ego. O excitamento, dessa forma, torna-se fundo enquanto o conjunto de possibilidades figura. A deliberação pode ser entendida um ato de identificação, com uma possibilidade do meio que vem a satisfazer a necessidade do organismo, ou a alienação, a fuga, de um acontecimento perigoso. Opera no sentido de escolha dessas possibilidades, resultando na formação de uma figura.
Neste processo é onde ocorrem as emoções: a “awareness integrativa de uma relação entre o organismo e o ambiente” (PHG, 1951, p. 212). A emoção e sentida concomitantemente como uma manipulação potencial do ambiente, é a condição corporal que o organismo se encontra. As emoções são importantes, segundo os autores citados, pois na sequencia de fundos e figuras elas assumem o comando da força motivadora dos apetites e anseios, das identificações ou fugas (que é realizada na polarização do self no processo do contato final); dai a importância de checa-las, por parte do clínico, no processo terapêutico
A função Personalidade trata-se, para Perls, Hefferline e Goodman (1951), de certa generalidade (não perceptiva) na qual o self se sedimenta, tornando-se uma identidade histórica. É a representação que o sujeito faz de si mesmo, sua autoimagem, que lhe permite reconhecer-se como responsável pelo que sente, e pelo que faz (Ginger, 1995).
É por meio da função Personalidade, que experimentamos nossa capacidade de reconhecer nossas representações, nossa identidade, e, caso nos perguntem, serve de fundamento pelo qual seria possível explicar nossos comportamentos. Nesse sentido, Perls, Hefferline e Goodman dizem que a função Personalidade é “a figura na qual o self se transforma e assimila ao organismo, unido-a com os resultados de um crescimento anterior” (1951, p. 184).
A autoconsciência da função Personalidade é autônoma, responsável no desempenho de um papel numa situação concretaÉ importante, todavia, ressaltam os últimos autores citados, não confundir autonomia com espontaneidade. O que os autores citados querem dizer com autonomia é a capacidade de escolher livremente. Liberdade esta proporcionada pelo fato da base da atividade já fora obtida de antemão, ou seja, “nos comportamos de acordo com o que somos, isto é, com o que nos tornamos” (Ibidem p. 188). Nesse sentido, a personalidade pode responsabilizar-se na medida em que o self criativo não consegue. Por que, como escrevem os mesmos autores, a responsabilidade é o preenchimento de um contrato. Portanto, a “personalidade é a estrutura responsável do self” (Ibidem p. 189).
Todavia, a consistência dessa identidade esta em jogo, é perfurada pelo vazio do hábito (a função Id) e ultrapassada pelas criações da função Ego (pelo material sempre novo advindo do contato). A dinâmica da experiência enquanto um processo que responde a diferentes formas de discrição esta intimamente ligada com as estruturas das funções do self.
Quando o self se polariza numa ação, momento em que ele faz algo, tem-se o contato final. No contato final, como escreve Perls, Hefferline e Goodman (1951), “o self esta absorvido de maneira imediata e plena na figura que descobriu-e-inventou; no momento não há praticamente fundo. A figura incorpora todo o interesse do self, e o self não é mais nada que interesse presente. De modo que a figura é o self” (p.220). Aqui a figura descoberta é nítida e presente, sendo o ambiente e o corpo, desprovidos de interesse. A awarensess, segundo os mesmos autores, esta no seu ponto mais radiante, concentrada no objeto eleito.
Depois que o excitamento foi atenuado pela ação ego, o self pode relaxar, isto é, polarizar-se numa representação; regida, esta, pela cultura daquilo que ele próprio fez. Esta é a dinâmica do pós-contato, onde o self encontra-se diminuído, e assume a função personalidade.
Segundo o casal Müller-Granzotto (2007b), a procura pelas funções comprometidas do sistema self deve ser o foco da ação do terapeuta, do contrário de investigações por dados, por conteúdos, muitas vezes intrusivos e não condizentes com uma postura processual, fenomenológica de ser compreender a clínica. Para os referidos autores, que preferem o uso de novas nomenclaturas para as interrupções do sistema self (respectivamente ajustamento evitação, de busca e ético-político), clínico em Gestalt-terapia deve, uma vez diante do cliente, perceber o lugar que é convidado a ocupar, tornando o apelo (ou a sua falta) do cliente uma voz clareza aos processos de inibição que muitas vezes estão por trás de suas queixas.
Na clínica gestáltica cabe ao clinico, portanto, segundo os autores citados acima,“pontuar” os momentos em que inibições do ajustamento criador são percebidas na relação terapêutica, não diferenciando o trabalho de intervenção do trabalho de investigação (“diagnose”) das funções comprometidas do sistema self. Tal pontuação nada mais é do que a devolução, e a implicação do cliente em seu próprio processo, sendo o tempo clínico da Gestalt-terapia o aqui-e-agora.
O foco no momento presente, na relação genuína entre terapeuta e cliente, como esfera temporal da Gestalt-terapia, revela seu caráter diferenciado e inovador. Diferentemente de outras abordagens, nem o passado, nem o futuro, muito menos um cronograma linear de passos necessários, são postos em prática na clínica Gestáltica. Pelo contrário, o tempo na Gestalt-terapia é o tempo necessário para o contato fluido e espontâneo aparecer como possibilidade para o cliente, sendo o objeto da experiência clínica, como escreve o casal Müller-Granzotto (2007b) a “própria vivência atual da inibição, ou realização [...] do fluxo de contato temporal na atualidade da sessão” (p. 171).
Em cada ajustamento onde uma inibição, a sua maneira, limita a experiência de espontaneidade e completude do sistema self a partir de dinâmicas específicas, efeitos são observados, sendonecessárias intervenções pontuais, de forma a que as repetitivas e dolorosas formas de interrupção do livre fluir do sistema self sejam reescritas e que novas possibilidades possam ser postas em prática. Dessa forma, o casal Müller-Granzotto (2007b, 2008, 2009) propõe formas específicas de intervenção para cada forma de inibição do sistema self.
Contudo, como deixa claro o referido casal, para a Gestalt-terapia, do contrário das ciências médicas, por exemplo, os diferentes ajustamentos, mesmo entendidos comocomprometimentos de diferentes funções e demandarem intervenções diferentes, não correspondem a uma exclusão, ou classificação da pessoa como pertencente a um determinado tipo, ou forma de ser. Os comprometimentos, segundo o casal Müller-Granzotto (2007b) constituem um sistema único, sendo possível um mesmo cliente, em diferentes momentos, em função do campo de possibilidades, que sempre se atualiza no contato, experimentar e por em ação as três formas de ajustamento disfuncionais.
Cabe deixar claro, mais uma vez, tendo em vista o objetivo do presente trabalho, que Perls, Hefferline e Goodman (1951) afirmam que esta tipologia apresentada não é uma classificação de pessoas anormais, mas um método de decifrar a estrutura de um comportamento único. Para a Gestalt-terapia, como escreve o casal Müller-Granzotto (2004) não interessa os motivos dessas interrupções. Explicações universais não é o objetivo da descrição dos ajustamentos disfuncionais, mas sim, “sinalizar como algo, que não é da ordem de nossa materialidade, que não retorna enquanto horizonte”(p.13).
Ao invés de se construir uma gênese teórica das neuroses, psicoses e aflições, Perls, Hefferline e Goodman vão preferir descrever a forma ou a orientação específica da relação, da dinâmica da fronteira; descrever a relação entre meus horizontes temporais (fundo) e os dados no campo de presença.
A Gestalt-terapia como psicologia formal, interessa-se, pois, na descrição dos comportamentos no sentido de como são vividos. A clínica na Gestalt-terapia trabalha à luz dos processos do self, tendo como método a descrição, por parte do cliente das suas vivências. A terapia visa ajudar o cliente a restabelecer a awareness de seu próprio funcionamento, a fim de que o cliente possa transcender a forma de ajustamento em que está aprisionado. A tarefa do terapeuta, segundo Perls, Hefferline e Goodman (1951) “é apenas propor um problema que o paciente não esteja resolvendo de maneira adequada, e se estiver insatisfeito com seu fracasso; nesse caso, com ajuda, a necessidade do paciente destruirá e assimilará os obstáculos, e criará hábitos mais viáveis” (...) (p.248).
Os ajustamentos neuróticos, primeiramente, segundo Perls, Hefferline e Goodman (1951), podem ser entendidos como “a perda das funções de Ego para a fisiologia secundária sob a forma de hábitos inacessíveis” (1951, p. 235). O comportamento neurótico, segundo os mesmos autores, também é um hábito (resultado de um ajustamento criativo), no entanto, é um hábito que não entra no campo de contato, pois não apresenta nada de novo. Como se trata de uma interrupção na dinâmica do self, essa experiência, esse ajustamento, não flui, não se atualiza. Esse hábito passa, então, a fazer parte do corpo, não do self (PHG, 1951).
Como perda das funções do Ego, a neurose implica na confusão do agir no campo de presença organismo/ambiente. Nesse caso, a função Ego não consegue criar, para o dado, nada de novo (por vezes ela nem consegue admitir a existência do dado), e segundo Perls, Hefferline e Goodman (1951), o Ego nada pode fazer senão deliberar em função da inibição de sua ação. Nas palavras de Perls, Hefferline e Goodman (1951):
A neurose é a evitação do excitamento espontâneo e a limitação das excitações. É a persistência das atitudes sensoriais e motoras, quando a situação não as justificaou de fato quando não existe em absoluto nenhuma situação-contato, por exemplo, uma postura incorreta que é mantida durante o sono. Esses hábitos intervêm na auto-regulação fisiológica e causam dor, exaustão, suscetibilidade e doença. Nenhuma descarga total, nenhuma satisfação final: perturbado por necessidades insatisfeitas e mantendo de forma inconsistente um domínio inflexível de si próprio, o neurótico não pode se tornar absorto em seus interesses expansivos, nem levá-los a cabo com êxito, mas sua própria personalidade se agiganta na awareness: desconcertado, alternadamante ressentido e culpado, fútil e inferior, impudente e acanhado, etc. (p.235-6)
Como dinâmica na fronteira de contato, a neurose, segundo o casal Müller-Granzotto (2004), pode ser entendida sob a ótica das relações figura e fundo, por conseguinte, como um evento temporal. Segundo Perls, Hefferline e Goodman (1951), na neurose o self esta inibido, isto é, incapaz de conceber a situação vivida como processo, e preso num passado que intervém impedindo as diversas dinâmicas temporais de contato (pré-contato,contato,contato final e pós-contato). A inibição do self tem como efeito mecanismos que são correlatos às diversas polaridades das dinâmicas expostas, como explicam o casal Müller-Granzotto (2007a, 2007b). A saber, segundo estes autores, a cada dinâmica do sistema self se tem, respectivamente, como ajustamentos disfuncionais característicos a confluência, a introjeção, a projeção, a retroflexão,e, por fim, o egotismo.
No que consiste aos ajustamentos neuróticos, o casal Müller-Granzotto (2007b) propõe duas formas de abordagem, de intervenção, que o Gestalt-terapeuta deve executar: a frustração habilidosa, o uso de experimentos. Na primeira, utilizada com maestria por Perls, o terapeuta deve-se colocar na posição de não aquecer aos pedidos, aos apelos do cliente, visando estabelecer uma relação de campo que tem como meta instaurar uma situação de contato que possa trabalhar “por um lado, a inibição reprimida (que esta a atuar nos ajustamentos neuróticos)e, por outro, a angústia característica da presença de algo que se repete na função Id” (Müller-Granzotto, 2007b, p. 176). É esta, pois, “habilidosa” por ser necessário, em primeiro lugar, que esteja estabelecida em um contexto no qual o cliente esteja protegido, e, em segundo lugar, que esteja, também, eticamente comprometida com a autonomia da função Ego no cliente.
O uso de experimentos, individuais e espontâneos, que, necessariamente, não são prioridade da clínica dos ajustamentos neuróticos, são sempre pautados no aqui-e-agora, e no trato da relação terapêutica. Os experimentos são ferramentas úteisno sentido de ajudam o cliente, muitas vezes depois de graves comprometimentos da função de Ego, a articular por conta própria uma situação de contato. É, enquanto reabilitação da função ego, aquilo que introduz uma novidade que, muitas vezes, nem o clínico, nem o cliente podem esperar.
Quanto aos ajustamentos psicóticos e aos ajustamentos de angústia, o casal Müller-Granzotto (2008, 2009) apresenta notória contribuição expandindo as noções de tais processos, bem como das intervenções possíveis.
No que se consiste aos ajustamentos psicóticos, que os referidos autores preferem chamar de “ajustamentos de busca”, o que se evidencia é um tipo de ajustamento criador em que a função Ego opera em função da ausência do fundo temporal de vivências que a função Id espontaneamente não reteve, ou não pode articular. Sem a base da função Id, que, fenomenologicamente, fica indisponível em suas operações fundamentais, como escreve mais uma vez os referidos autores (2008), a saber, a retenção (formas de orientações habituais) e a repetição (fundo disponível para um novo dado), a pessoa, apresenta uma desprovida de “motivos” para lidar com um dado na fronteira de contato, apresentando uma “rigidez”.
Como também é um ajustamento criador, por conseguinte, no ajustamento de busca, a pessoa vive, frente às condições de campo possíveis, uma relação atípica da função Id. Esse processo, como escreve o casal Müller-Granzotto (2008), leva a função ego à procura no dado (no percebido) o excitamento que a função Id não forneceu. Nessas circunstâncias o sistema self inventa histórias que ele não pode reter, ou espontaneamente arranjar.
A respeito da rigidez dos ajustamentos psicóticos, o casal Müller-Granzotto afirma:
“ [...] nos ajustamentos psicóticos percebemos uma espécie de rigidez, tal não tem relação com aquelas respostas comportamentais aparentemente desorganizadas, com as quais, na maioria das vezes, costumamos caracterizar a psicose como uma sorte de “doença”. A rigidez tem antes relação com a “repetição” das tentativas de preenchimento e articulação daquilo que, espontaneamente, não se organiza em alguns momentos de nossa vida, a saber, nossos próprios desejo, nossos próprios excitamentos” (2008, p. 11).
Inspirados pelas palavras acima, cabe marcar a diferença epistemológica de uma abordagem psiquiátrica e do olhar gestáltico para os ajustamentos psicóticos, ou de busca. Enquanto a psiquiatria propõe um modelo negativo, evidenciando no psicótico uma doença, um comprometimento de faculdades mentais, o Gestalt-terapia, baseada numa postura fenomenológica, vê esse fenômeno pelo seu lado positivo, como um ajustamento também criador (priorizando o que este ajustamento produz), não identificando numa pessoa que realiza tais ajustamentos um “psicótico”, um “doente”, ou um “anormal”. Ademais, como dito anteriormente, ajustamentos de busca não são privilégio, ou exclusividade, de apenas um grupo da população, mas sim ajustamento que todos têm potencial de realizar a todo tempo. O que leva uma pessoa a um ajustamento psicótico mais rígido, do contrário de ser uma natureza, é uma forma de lidar com o mundo frente as possibilidade que lhe são oferecidas, sempre tendo em mente os fenômenos humanos como uma relação de fronteira.
Cabe ao terapeuta nesses casos apoiar o cliente para que este possa fazer valer seu modo de vida, seus ajustamentos de busca nos contextos em que ele se insere, o que revela o caráter politico clínica Gestáltica, uma vez que esta não normatiza e excluí o cliente em ajustamento de busca como um anormal e incapaz.
Os ajustamentos de aflição, nomeados pelo casal Müller-Granzotto (2009) de ajustamentos ético-político, são voltados não produção da função Personalidade. Os ajustamentos ético-políticos são ajustamentos criativos que tem relação com a solidariedade, com um pedido de inclusão. Nesses casos, a função Ego, em relação com os múltiplos casos de exclusão social, faz da ausência de dados de pertencimento um “pedido de socorro” que, ao mesmo tempo, aliena seu poder de deliberação e confere ao meio o status de alteridade, de total diferença.
Funda-se, dessa maneira, como escrevem os referidos autores, por ausência de identificação da função Personalidade, um tipo especial de identificação, a solidariedade. Os nossos semelhantes, nesse contexto, não são responsabilizados pelo sofrimento gerado, mas sim convocados a nos favorecer essa inclusão. Em vez de uma manipulação ou destruição do outro, o que acontece é uma autorização do outro, o que configura o ajustamento ético-político como um pedido de reconhecimento. Nas palavras dos referidos autores: “Trata-se de um ajustamento cuja meta é encontrar suporte para que se possa voltar a criar, para que os ajustamentos criadores voltem a acontecer” (2009).
Ao clínico, nesse contexto, cabe acompanhar o processo de reconstrução da autonomia e deautoconhecimento da função Ego por parte do cliente. Nas palavras doa autores citados acima: “Nos contextos de sofrimento ético-político, o clínico é aquele que cuida da autonomia dos sujeitos (funções Ego) envolvidos no processo criativo de ajuda” (2009).
6 - CONCLUSÃO
A psicologia científica, no campo da psicoterapia, como escreve Feijoó (2000), esforçou-se para cumprir o rigor positivista de ciência, adaptando seu objeto de estudo, e suas práticas aos princípios da mecânica clássica. Como representantes de tal proposta, como escreve a autora, se pode citar, como exemplo, a psicanálise e o behaviorismo.
Para estas abordagens, o comportamento humanopode ser explicado, e encaixado em modelos (classificações de tipos, como psicose, esquizofrenia, etc.). São teorias onde o particular não passa de uma forma de expressão do universal, do essencial (a lei). Tais abordagens pregam o Eu como núcleo, como identidade central e imutável. Dessa forma, o terapeuta, na posição de especialista, interpreta o psiquismo (um universal) a fim de identificar seu mecanismo de funcionamento e de prescrever uma ação. É de acordo com as leis de um psiquismo mecânico que os fenômenos humanos, para essas abordagens, são compreendidos como efeitos de um passado miserável. Ou seja, para tais abordagens as mazelas do presente são fruto de acontecimentos passados determinantes, compreendendo-se o tempo como linear. A clínica, pois, marca o sujeito não como singularidade, mas sim como a expressão do conjunto de leis, de a priores a serem descobertos, e o terapeuta uma figura neutra (como um cientista).
Na abordagem fenomenológica o terapeuta não procura as causas latentes de acordo com as leis psíquicas que regem a consciência. Os fenômenos humanos, do contrário, distinguem-se por essência de um fenômeno natural puramente objetivo. A linguagem da fenomenologia é uma linguagem puramente humana, entendendo o homem, na clínica psicológica, como uma ordem superior a reduções e fragmentações. As interpretações a cerca do humano se perdem de vista, como fica notório no trabalho clínico da Gestalt-terapia, que privilegia a descrição dos processos de ajustamento do sistema self a fazer qualquer tipo de interpretação das causas ou das qualidades da mente do cliente.Pela fenomenologia, abre-se a possibilidade de uma conversa sobre a essência humana, onde se fala com o outro, do ponto de vista da sua vivência, e não sobre o outro para ele mesmo (um diálogo e não dois monólogos).
A partir do método fenomenológico o cliente é encarado como consciência intencional, ou seja, apreendido e compreendido por si próprio, a partir do fluxo das suas próprias vivências. O terapeuta trabalha pelo desvelamento de sentidos do cliente por si só. A posição de especialista em psiquismo (em causas deterministas e mecanicistas) cai, dando lugar a uma postura fenomenológica, no sentido de se ater a como o cliente se mostra, e como ele, o terapeuta, experiência a relação (quebrando, também, a ideia de neutralidade por parte do terapeuta).
Com efeito, a Gestalt-terapia ao trabalhar à luz dos processos do self, como visto, assume a postura da epoché como método, valorizando a descrição, por parte do cliente, das suas vivências. A terapia visa ajudar o cliente a restabelecer a awareness de seu próprio funcionamento a fim de que o cliente possa transformar a forma de ajustamento em que está aprisionado. A tarefa do terapeuta fica a cabo de suas pontuações a respeito das inibições que percebe, no exercício de campo, e devolve para cliente. Nas palavras dePerls, Hefferline e Goodman (1951) “é apenas propor um problema que o paciente não esteja resolvendo de maneira adequada, e se estiver insatisfeito com seu fracasso; nesse caso, com ajuda, a necessidade do paciente destruirá e assimilará os obstáculos, e criará hábitos mais viáveis” (...) (p.248).
A ideia de um tempo linear e espaço encapsulado cedem ao fluxo de consciência intencional (que opera no aqui-e-agora), sendo o tempo necessário para a mudança o tempo do clientefrente as suas possibilidades de ajustamento. As queixas do cliente, seus sintomas, não pertencem mais a uma classificação de manifestações psíquicas bioquímicas, mas a modos de se posicionar e encarar a sua existência. Causas atribuídas a um passado miserável e determinador não fazem mais sentido frente a uma consciência como fluxo, operando em co-originalidade com o mundo.
As dinâmicas do self, bem como a “diagnose” e intervenção frente aos ajustamentos comprometidos em sua espontaneidade e criatividade, servem de guia para as intervenções do terapeuta, que, ao identificar qual função do sistema self esta interrompida, pode pontuar, do contrário de aquecer o pedido à repetição da parte do cliente, ou criaruma vivência, que facilitará a autonomia do cliente.
A tentativa de compreender o self como um sistema temporal, embasado pela fenomenologia de Husserl, como conceito base, e operativo metodológico, é outro ponto que nos remete às reflexões abordadas ao logo deste trabalho no sentido de diferenciação entre o entendimento dos fenômenos humanos para as ciências da natureza, e para a fenomenologia. Segundo a leitura do self a partir da Intencionalidade operativa, em outras palavras, admitindo-se o self como um fenômeno temporal (Müller-Granzotto, 2007a) se tem uma postura em relação ao tempo diferente da ciência positivista. Enquanto que, para a última, o tempo se apresente como uma cadeia linear entre passado, presente e futuro, estando o sujeito determinado pelo que já viveu, a Gestalt-terapia entende o sujeito em fluxo, no aqui- e - agora. Estando sua inscrição no tempo condizente a Intencionalidade de uma consciência enquanto fluxo.
A Gestalt-terapia elege não o indivíduo, mas os acontecimentos na fronteira de contato, as relações como foco. Entende o homem como a interação, como processo organismo/ambiente, não como um animal isolado (Perls, Hefferline e Goodman, 1951). A clínica na Gestalt-terapia, levando em consideração seus métodos e objetivos, como escreve o casal Müller-Granzotto (2007a) cumpre a função, em seu exercício, de ser uma transposição da fenomenologia do campo epistemológico, para o campo ético, uma vez que visa autonomia do cliente em realizar seus contatos e fugas de maneira espontânea, sem levar em consideração nenhum comprometimento moral ou regulador do que seja normal ou anormal.
Para concluir, portanto, em virtude da revisão proposta, fica claro que a Gestalt-terapia não tem como proposta prática e epistemológica as bases racionalistas e idealistas das ciências.Em oposição,aclínica Gestáltica, baseada no exercício do contato, sendo o self entendido como um sistema temporal, como fluxo, como um acontecimento de fronteira, funciona no princípio do imperativo fenomenológico da descrição da experiência pura, o que marca uma nítida diferença em comparaçãoàs propostas modernas positivistas.
Ademais, acrescentado a este ponto, pode-se dizer que a fenomenologia não é apenas uma orientação para o entendimento do self, nem apenas uma influência para a metodologia clínica da Gestalt-terapia, mas a base epistemológica sem a qual a compreensão do processo clínico e da própria Gestalt-terapia, na forma de um campo singular de saber, torna-se inviável.
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Endereço para correspondência
Ulisses Heckemaier de Paula Cataldo
Endereço eletrônico: ulissescataldo@gmail.com
Recebido em: 26/04/2013
Aprovado em: 19/07/2013
Notas
* Psicólogo formado pela UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), e pós-graduando em terapia de família pelo instituto de psiquiatria da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) - Rio de Janeiro - RJ - Brasil.