ARTIGO
A inserção cultural como ocasião para se produzir novos elementos culturais
Cultural insertion as an occasion to produce new cultural elements
Poliana Barbosa Gonçalves
Endereço para correspondência:
RESUMO
A relação indivíduo-cultura vem sendo estudada por psicólogos, sociólogos, antropólogos, biólogos, entre outros. Este trabalho tem por objetivo descrever o que entendemos por cultura, a forma como ela é transmitida e nos orienta no mundo, bem como o modo pela qual nós (indivíduos ) a produzimos. Para tanto recorremos a um trabalho teórico sustentado por autores clássicos que fizeram essa discussão. Descrevemos a cultura possuindo uma estrutura universal, mas também capaz de apresentar especificidade e dinamicidade de acordo com cada grupo. Sua transmissão é ativa e se dá de geração em geração pelas tradições, rituais, hábitos ou mesmo por meio da escrita. O indivíduo inserido em um contexto cultural, prenhe de significados, pode produzir cultura por seu posicionamento. Tal visão responsabiliza o sujeito na construção de sua cultura por implica-lo nesse processo e não aponta-lo como vítima de uma força externa que condiciona seus comportamentos e bloqueia sua consciência.
Palavras-chave: Cultura; inserção cultural; posicionamento; produção cultural; fenomenologia.
Abstract
The relationship between individual and culture has been studied by psychologists, sociologists, anthropologists, biologists, among others. This paper aims to describe what we mean by culture, how it is transmitted and guides us in the world, besides the process by which we (individuals) produce culture. For this, we turn to a theoretical work supported by classical authors who previously discussed it. We describe the culture possessing a universal structure, but also able to present specificity and dynamicity according to each group. Its transmission is active and happens through generations by traditions, rituals, habits, or even through writing. The individual embedded in a cultural context, full of meaning, can produce culture by its positioning. This lets the people responsible for the construction of their culture once it implies them on this positioning and doesn’t set them as victims of an external force which determines their behavior and blocks their awareness.
Keywords: Culture; cultural insertion; positioning; cultural production; phenomenology.
Introdução
A relação indivíduo-cultura vem sendo estudada por sociólogos, psicólogos antropólogos, biólogos, entre outros. Em função das finalidades dessas discussões, em alguns momentos a cultura é privilegiada e, em outros, o sujeito inserido nela. Neste trabalho temos por objetivo discutir a relação cultura-sujeito, procurando valorizar a complementaridade dessa ralação sem priorizar um de seus polos. Primeiramente iremos definir o que entendemos por cultura com ajuda de alguns autores que fazem essa problematização. Posteriormente, destacaremos a cultura enquanto doadora de signos repletos de sentidos que orientam a ação humana. A partir dessa noção, questionaremos a ideia de cultura enquanto algo que apenas determina o sujeito, argumentando como ela pode ser construída pelo posicionamento humano.
Embora iremos fazer uma divisão didática nos próximos tópicos, salientamos que a confluência entre eles é notória, uma vez que não são herméticos e acabam por se entrelaçarem. Procuraremos esclarecer essa noção de complementaridade ainda mais nas discussões finais realçando a complexidade desse tema e importância de compreendermos o ser humano imerso em uma cultura que o orienta, mas que não o determina. Tal concepção dá abertura para a ação humana e sua responsabilização frente às respostas que dá às provocações da realidade.
O que é cultura?
O conceito de cultura tem sua raiz etimológica próxima à da palavra natureza, tendo como significados primordiais o cultivo e o cuidado com a terra, quer dizer, a relação de colaboração entre o homem e a natureza (EAGLETON, 2005; GRYGIEL, 2000). Cultura denotaria, portanto, “um cuidar, que é ativo, daquilo que cresce naturalmente, o termo sugere uma dialética entre o artificial e o natural, entre o que fazemos ao mundo e o que o mundo nos faz” (EAGLETON, 2005, p.11). Seria um mútuo respeito em homem e natureza, um equilíbrio entre aquilo que se pode regular e aquilo que é espontâneo (EAGLETON, 2005; GRYGIEL, 2000).
Entretanto, ao longo do tempo, essa noção de cultura foi sendo deixada de lado e novos entendimentos foram surgindo. Eagleton (2005) destaca essas variações em torno do termo como versões de cultura, destacando em seu livro algumas delas, a saber: (a) cultura como sinônimo e crítica ao processo civilizatório-capitalista (progresso intelectual, material e espiritual), (b) cultura como um modo de vida característico (pluralismo, apenas os selvagens teriam cultura) e, finalmente, (c) cultura como sinônimo de arte (ser culto, erudito, filósofo, músico, pintor, escritor, cientista, etc.).
Por sua vez, Massimi (2006) também faz um percurso de revisão do conceito cultura, mas restrito às correntes psicológicas nomeadas behaviorismo e da psicanálise. Criticando as noções daí emergidas, Massimi (2006) aponta o caráter reducionista delas nas suposições de Skinner de que a cultura seria fabricada pelas agências de controle e de Freud, de que ela seria uma sublimação dos desejos. Dessa forma, a autora censura a subordinação da cultura à ciência, salientando que nesse processo existem perdas, por exemplo, quando temos cultura e civilização designando uma mesma ideia como aconteceu na Idade Moderna.
Ainda, outra crítica acerca da palavra cultura, é a de que ela é muito ampla (abarca tudo) e ao mesmo tempo restrita demais (identitária) (EAGLETON, 2005). Dentro desse paradigma encontramos a noção de Cultura e cultura, respectivamente. Eagleton (2005) define Cultura como um domínio da subjetividade social, uma definição etérea, desinteressada, que visa à integração absoluta, a ser universal. Por outro lado, cultura representaria visões localizadas, concretas, seria mundana e sectária por se referir a uma identidade populacional específica. Temos aqui um paradoxo para pensar cultura que talvez mais nos perturbe do que nos ajude por pressupor objetivos tão diferentes partindo de um mesmo nome.
Fizemos um caminho invertido até aqui, partimos de uma ideia originária de cultura e das críticas aos significados abrangidos por esse conceito ao longo dos tempos para então buscarmos entender qual o âmbito, a amplitude da cultura. Diante de tal exposição, nos vemos mergulhados em uma confusão em torno do que chamamos cultura, porém, acreditamos conseguir colher nessa diversidade alguns eixos que nos orientem na resposta à pergunta “o que é cultura?”.
Contrapondo a ideia de cultura à de civilização, Grygiel (2000) fala que a cultura, por estar próxima da palavra natureza, traz em si uma essência à qual precisamos respeitar e cultivar com amor para ser realizada. Essa sentença não guarda nela um determinismo, mas sim uma relação de crescimento mútuo entre sujeito e cultura. Essa essência a que nos referimos se expressa pelo desejo do belo e do bem e da verdade (GRYGIEL, 2000; MASSIMI, 2006), os quais, por serem constituintes de todos os seres humanos, ainda que respondidos por conteúdos diferentes, são o fundamento para dizermos da existência de apenas uma cultura, ainda que manifestada através de diferentes teores em cada grupo. Partindo dessa perspectiva, vemos como essa definição de cultura dada, nos abre para a dimensão de totalidade. Em consonância com esse horizonte totalizante, Massimi (2006) afirma que a cultura é uma “expressão de uma comunidade humana em busca da verdade” (p.182).
Para a Massimi (2006), a cultura também é o significado atribuído pelas pessoas à realidade. Tal afirmação tem como consequência a aproximação das construções teóricas de realidade material e das experiências vividas em um único termo (EAGLETON, 2005). Nesse sentido, cultura se refere a um “complexo de valores, costumes, crenças e práticas” (EAGLETON, 2005, p.54), é uma teia de significados entrelaçados (GEERTZ, 1989) que traz em si elementos explicativos e prescritivos que orientam a ação do indivíduo no mundo. Essa conceituação nos permite pensar no mundo-da-vida proposto por Husserl ao qual Ales-Belo (1998) assemelha à cultura. Por mundo da vida entendemos o “complexo de atos, momentos e aspectos de nossa existência que é ao mesmo tempo pessoal e coletiva: trata-se do mundo para nós, e o fato de o pronome ser usado no plural reveste a máxima importância” (ALES-BELO, 1998, p.38). O mundo-da-vida como cultura é o cotidiano, o tradicional, aquilo que está ligado à experiência humana, mas que transcende o indivíduo.
Outro ponto importante para entendermos cultura é percebê-la conectada com o tempo, inserida em uma tradição (ALES-BELO, 1998; GRYGIEL, 2000; MASSIMI, 2006). Se há uma ruptura com o passado, os significados e sentidos abarcados pela cultura enfraquecem. Tal característica, entretanto, não diz de uma imutabilidade, afinal, “as culturas não são ovos herméticos, mas comunicação, intercomunicação em processo” (SANCHIS, 1996, p.32). Reconhecemos sim que existe um núcleo imutável, que como discutido acima seria a busca pelo belo, pelo bom e pela verdade, mas, ao redor desses universais também existe uma zona fluída que está constantemente mudando (BASTIDE, 1979), que dá dinamismo à cultura (LARAIA, 2005).
Ales-Belo (1998) descreve como pela percepção captamos os estímulos vindos do mundo, e pela apresentação completamos essa percepção, a organizamos e lhe damos um sentido, um nome. O processo de apresentação só se torna possível porque estamos inseridos em uma cultura, a qual nos fornece categorias por meio das quais podemos tomar a realidade (OLIVEIRA, 2005). Frente a isso constatamos que a cultura é uma estrutura de mundo oferecida a nós, construída coletivamente e comum a todos, com a qual cada grupo lidará de uma forma única. Novamente percebemos como a cultura nos ultrapassa, quer dizer, não se restringe ao indivíduo.
Por fim, a cultura traz imbuída em si a noção de alteridade compreendida enquanto relação (JODELET, 2008) – não existe uma cultura pura ou um grupo culturalmente isolado, ela sempre está em contato com outras culturas o que favorece o acontecimento de trocas constantes – e de memória, a qual liga presente e passado, possibilitando o reconhecimento entre pessoas de um mesmo grupo (POLLAK, 1992).
Dessa forma, compreendemos que a cultura traz em si um conjunto de buscas (pelo belo, bom e pela verdade) humanas que nos assemelharia a ponto de nos dizermos seres de cultura. Ao mesmo, essas buscas trazem em si realizações diferentes para cada grupo de pessoas, uma vez que a resposta dada a elas são colhidas no cotidiano, na experiência vivida de cada um, à qual é contornada pela tradição, pelos significados que recebemos ao longo da vida de pessoas próximas ou distantes, mas que se fazem presentes. Assim, o termo cultura se abre para um horizonte de totalidade e de alteridade ao abarcar em um único termo o universal e o particular, além de trazer em si a possibilidade de mudança (temos expressões culturais que deixaram de existir e novas expressões emergindo na atualidade), dinamicidade essa que apenas ocorre por estar sustentada por um passado (tradição) que nos permite colher o presente e olhar para o futuro. A cultura traz em si uma mediação categorial que nos dá acesso ao mundo (OLIVEIRA, 2005), uma teia de significados em construção, que não se encerra em si mesma, pois se nos fecharmos nos conceitos dados perderemos a vivacidade característica dela e sua proposta de provocação do indivíduo para à realidade. A cultura, sustentada pela memória, nos dá o “ponto de partida” e a “reticências”, nunca o “ponto final” (o que nos feriria por nos aprisionar e nos alienar simultaneamente em uma caverna na qual, apesar de sabermos da possibilidade de vida lá fora, só veríamos as sombras referentes a ela).
Conseguimos chegar a uma definição acerca do conceito de cultura que contem uma estrutura flexível e aberta, que dá espaço para entendermos tanto a atuação da cultura enquanto contexto de sentido, quanto o espaço ocupado ativamente pelos indivíduos nela inseridos. Tentaremos agora abarcar o modo como a cultura é transmitida, além de retomarmos mais profundamente a discussão sobre a forma como ela nossas ações, sensações, reações, pensamentos e juízos.
Como a cultura é transmitida e como ela orienta a vida humana?
Podemos pensar que ao nascermos recebemos, além de uma herança genética, uma “herança cultural” (LARAIA, 2005, p.70), a qual condiciona nossa forma de ver o mundo e de valorizar determinados aspectos dele. Somos inseridos em categorias simbólicas pré-concebidas transmitidas a nós pincipalmente por nossos pais e pelas pessoas próximas a nós. Essas categorias são constituídas por juízos e valores, nem sempre conscientes, que são ilustradas pelos diversos hábitos desenvolvidos “naturalmente” por nós (LARAIA, 2005). Ainda que pré-reflexivos, esses significados abarcados por uma determinada cultura são públicos, o que a torna, por sua vez, também pública (GEERTZ, 1989).
Rodrigues e Caroso (1998) e Paim (1998) ilustram de forma clara tal aspecto em seus artigos ao mostrarem (a) como os significados atribuídos à gravidez e à doença são culturalmente construídos (socialmente atribuídos) e (b) que não herdamos a cultura da mesma forma que instinto biológico de fome, por exemplo, mas sim pelo aprendizado, pela educação (BASTIDE, 1979).
Uma forma possível de entendermos a transmissão cultural é pensar no senso comum (GEERTZ, 1988) ou mesmo na psicologia popular (BRUNER, 1997). Ambos são considerados sistemas culturais e são transmitidos de geração em geração por meio das narrativas vivas. O primeiro seria um saber empírico, incompleto, mas suficiente para nos orientar nas atividades cotidianas (GEERTZ, 1988); e, o segundo, um saber interpretativo que ressalta as convenções comuns ao interlocutor e ao ouvinte, com o intuito de organizar a experiência humana no mundo social (BRUNER, 1997).
Para que aconteça essa partilha da cultura entre os indivíduos torna-se imprescindível a memória. Nesse sentido, a memória é uma lembrança que justifica um afeto despertado em nós pelo mundo ou pelas pessoas (BRUNER, 1997), sendo importante salientarmos que a forma e a intensidade como somos tocados pelas sensações e estímulos ao nosso redor é, até certo ponto, prescrito culturalmente. A memória pode ser uma esquematização narrativa de uma experiência (BRUNER, 1997), um passado sedimentado no corpo por meio das incorporações ou um passado fixado pela inscrição (CONNERTON, 1999), em todos os casos se trata de um fenômeno coletivo (POLLAK, 1992).
Nas narrativas a memória é revigorada por um relato intrigante, que contem certa sequencialidade e dramaticidade que nos envolve independente de ser real ou não, pois compartilhamos as experiências e sentidos comunicados por personagens que vivenciam situações concretas, passíveis de serem experimentadas por nós (BRUNER, 1997).
A conservação da memória pela incorporação não é intencional e pode ser reconhecida por meio das cerimônias e rituais culturais que envolvem o corpo. Esses estão presentes em nosso cotidiano, por exemplo, por meio dos gestos que utilizamos e dos hábitos que desenvolvemos, os quais são diferentes em cada cultura (CONNERTON, 1999). Já a inscrição é uma seleção intencional daquilo que se deseja passar para as próximas gerações, sendo a escrita uma das possíveis formas de registro visando a transmissão (CONNERTON, 1999).
Por fim, Pollak (1992) afirma que a memória é sempre seletiva, sendo em parte herdada e em parte construída. A importância da memória enquanto guardiã da cultura se dá também para além dessas características, por sua flexibilidade; afinal podemos nos lembrar de acontecimentos vividos pessoalmente por nós ou por outras pessoas, de personagens e lugares que estivemos ou sobre os quais alguém nos contou (POLLAK, 1992). Assim, ao sermos inseridos em uma cultura, aos poucos, vamos dividindo recordações semelhantes que vão colorindo de sentindo nossa vida ao nos mostrar como devemos nos relacionar com o mundo e com as pessoas ao nosso redor. Nesse processo acontece ainda a construção de nossa identidade, em parte pessoal e em parte coletiva, porque traz em si sempre a marca do social. Ou seja, essa identidade, fortalecida pela memória, é preenchida por fatores culturais. De acordo com Nascimento e Menandro (2005), ainda que nos lembremos sozinhos, “o lembrar implica inserção em um meio social que o possibilita” (p.4). Portanto, por meio da memória, a cultura é transmitida e nos orienta em nosso meio.
Se dizemos que a cultura é uma herança, é memória e aprendizado, isso implica no mínimo em um outro com o qual a compartilhamos. Nesse ponto, nos deparamos com a alteridade. Para Ales-Belo (1998), cultura é intersubjetividade e, nesse sentido, podemos apreender a alteridade como pilar das culturas (JODELET, 1998). Podemos pensar isso em nível interpessoal, mas para essa discussão, nos interessa mais discorrer sobre processos intergrupais. A intersubjetividade, expressão que traz em seu seio a alteridade, torna-se fundamento do humano por comportar a possibilidade de nossa inserção na cultura, fenômeno que, consequentemente, nos permite tomar as coisas ao nosso redor (ALES-BELO, 1998); por isso dizemos que a alteridade supõe o social (JODELET, 1998), ela se evidencia no fato de precisarmos do outro para conseguirmos elaborar nossas experiências. Assim, precisamos primeiramente de um outro que nos possibilita a imersão em nossa cultura, e, simultaneamente, também necessitamos de outros grupos a partir dos quais nos diferenciamos a fim de afirmar nossos próprios valores. Para fortalecermos nossos valores, sentidos e juízos culturais e nos orientarmos por eles, precisamos excluir valores e juízos compartilhados por outras pessoas de outros grupos culturais. Logo, a cultura é transmitida e reforçada nesse processo psicossocial de construção social, que traz implícito em si a alteridade enquanto produto e meio para tal (JODELET, 1998). A alteridade se mostra no desejo pela totalidade, pois ultrapassamos a nós mesmos ao nos voltarmos para o outro, nos constituindo nesse movimento. Ela não é dada, mas sim é construída na relação a partir do reconhecimento da diferença, que pode tanto levar à exclusão quanto à solidariedade. Para que esse movimento não se torne violento, Ales-Belo (1998) exalta a importância de reconhecermos a humanidade mesmo em uma tradição cultural estranha a nós.
Berger e Luckmann (2004) são outros autores que nos auxiliam em nossa tarefa de entender como a cultura orienta nossas ações. De acordo com eles, o sentido se constitui na consciência humana a partir das vivências e das relações entre elas. Essas vivências normalmente são classificadas segundo um acervo de conhecimento social prévio. É pela objetivação que se dá a tipificação dos significados que serão acolhidos nesse acervo. Assim, Berger e Luckmann (2004) explicam como os significados são controlados ao serem selecionados e mantidos em um reservatório histórico de sentidos. Esses reservatórios oferecem solução para problemas de nossas experiências e ações ao doarem um significado a elas, não sendo necessário a nós busca-los toda vez que agimos ou experimentamos algo (BERGER & LUCKMANN, 2004). Os autores exemplificam com o caso de um homem diante de uma rosa: ele reconhece a coisa enquanto uma rosa que simboliza o amor porque tem prévio esse significado dado em sua cultura e a partir dele, resolverá se colherá (agirá) a flor para levar até sua amada. Vemos como somos consumidores ativos de sentidos e que uma comunidade – cultura – deve compartilhar um mínimo de significados para se sustentar enquanto tal (BERGER & LUCKMANN, 2004).
No sentido de nos orientar, Grygiel (2002) ressalta a importância dos mitos e dos ritos como elementos fundamentais em qualquer tradição. Para o autor, eles são referências históricas que visam responder aos desafios da própria cultura e trazem um si uma força simbólica frente à qual o sujeito deve se posicionar.
Concluímos que a cultura é sustentada pela memória, sendo transmitida de geração em geração pelas tradições, rituais, hábitos ou mesmo por meio da escrita como uma herança ativa. Porém, esse processo nem sempre é consciente e intencional. Essa transmissão sempre envolve o outro, ou seja, tem a alteridade enquanto fundamento. A cultura nos fornece significados e categorias que nos permitem tomar tudo ao nosso redor, nos orientando em nossas ações ao salientar aquilo que é valoroso e significativo, quer dizer, ela nos insere em um contexto, favorecendo nossa aceitação do mesmo bem como legitimando a aceitação dos outros em relação a nós. Nesse sentido, Oliveira (2005) pontua que:
“O ser humano se encontra sempre inserido num mundo histórico determinado, numa rede de relações intersubjetivas gestada pela partilha de um sentido comum, que constitui seu mundo vivido, resultado das ações e dos pensamentos das gerações procedentes. Este constitui o quadro próximo possibilitador de suas ações e pensamentos no mundo: sua situação originária é a de inserção num modo específico de ser homem, de relacionar-se com as coisas, com a natureza e com os outros seres humanos, num modo específico de interpretar a totalidade do ser, numa maneira determinada de conceber e configurar o mundo humano, inserido, portanto, numa totalidade histórica que o condiciona e no seio da qual se move (...)”. (p.22)
Obviamente, a cultura transmitida, que orienta nossas ações não é um determinante total da ação humana, não trata e algo maquiavélico. Existe uma relação individuo-cultura presente em toda a argumentação que fizemos até aqui, afinal, embora a cultura tenha certa delimitação (uma natureza a ser respeitada, como vimos na definição da mesma) e seja herdada (não pode ser inventada individualmente), ela é também construída pelos indivíduos por meio de questionamentos e ações. Não se trata de um círculo fechado de sentidos no qual o ser humano passivo está preso, mas, ao contrário, é uma membrana permeável, na qual são integrados e expulsos valores, sentidos e juízos transportados por pessoas ativas. Procuraremos no próximo tópico aprofundar essa noção.
Como
o ser humano, inserido na cultura, produz cultura?
O ser humano imerso em sua cultura não é completamente regulado
por ela. A cultura nos oferece símbolos, nos orienta, mas nós
mesmos podemos questioná-los, produzindo novos sentidos. Em consonância
com essa noção, Eagleton (2005) afirma que o ser humano não
é um mero produto da cultura e nem um produtor arbitrário dentro
dela.
Se o senso comum e a psicologia popular, como vistos acima, são considerados sistemas culturais e são sustentadas por narrativas que expressam vivências e experiências (GEERTZ, 1988; BRUNER, 1997) e se a memória ganhar espaço na transmissão dos valores culturais, nessa construção teórica que aqui fizemos, encontramos espaço para o posicionamento humano. Ainda que essas narrativas ressaltem vivências dentro de um âmbito cultural que as doem sentido e que a memória seja social (guardamos informações que são socialmente importantes e plenas se sentido), o indivíduo aparece como ativo nesse processo, capaz de elaborar a cultura e se posicionar frente a ela. Podemos argumentar que ele se posiciona a partir de elementos culturais já dados, o que é verdade, mas isso não impede que a pessoa vá além deles, pois como vimos, a cultura também se configura por uma abertura à totalidade (GRYGIEL, 2000; MASSIMI, 2006).
Como vimos no item anterior, Berger e Luckmann (20004) descrevem como dentre os sentidos criados intersubjetivamente, alguns deles são selecionados e armazenados em um acervo social, provavelmente aqueles signos que nos orientam na concretude da vida. Ao pontuarem que os sentidos que chegam a ser compartilhados socialmente partem de vivências intersubjetivas, os autores nos dão subsídios para pensarmos no sujeito implicado na formação das teias de significados de uma cultura. Os significados são construídos no pertencimento a uma tradição e pela experiência real. Uma vez que eles são constantemente produzidos, entendemos o porquê de uma cultura ser um sistema parcialmente aberto e dinâmico (SANCHIS, 1996; BASTIDE, 1979; LARAIA, 2005), em constante mudança e não, um container hermético.
A cultura nos fornece, portanto, sentidos, conceitos e categorias, os quais, na verdade, são instrumentos que nos possibilitam a imersão na complexidade do mundo, é apenas a partir deles que conseguimos nos relacionar empírica, sensorial e imaginativamente com tudo ao nosso redor (OLIVEIRA, 2005). Essa inserção cultural nos dá elementos a partir dos quais podemos pensar e refletir sobre os objetos, elementos esses que nos permitem elaborar nossa própria cultura, questioná-la, afirma-la, muda-la. Oliveira (2005) ao discutir sobre o que seria a subjetividade lança luz a essa nossa argumentação ao propô-la enquanto uma abertura ao todo, possibilidade de doação de sentidos e de ação. Para o autor, a subjetividade é atividade do espírito1 (posicionamento, reflexão, avaliação, juízo), sendo ela, portanto, o que nos permite o posicionamento e a elaboração de nossa cultura. A subjetividade perde seu status de superficialidade e subjetivismo com Oliveira (2005), passando a ser indispensável para a produção cultural pelo sujeito, para a mudança de elementos dentro de sua própria cultura.
O sujeito só pode colocar elementos novos em sua cultura a partir de sua elaboração pessoal (ALES-BELO, 1998), não há como fazê-lo se não compartilha dos valores tradicionais que circulam ao seu redor. Ao mesmo tempo, a cultura só tem valor porque a elaboramos (ALES-BELO, 1998), porque a “trazemos para dentro de nós”; se a vemos como algo externo não a tomamos pessoalmente, ela não nos provoca, deixando de ser interessante para nós transformá-la. Para Grygiel (2002) a consciência moral humana interroga constantemente pela verdade o que nos permite elaborar a cultura. O autor chega a afirmar radicalmente que o posicionamento gera cultura.
Embora tomando um caminho argumentativo diferente, Laraia (2005) afirma que o indivíduo é capaz de questionar seus hábitos (culturais) e muda-los, sendo, consequentemente, capaz de produzir cultura. “(...) a aprendizagem dos modelos culturais de conduta e interpretação da realidade não leva necessariamente à manutenção do status quo” (AUGRAS, 1995, p.17). O ser humano ao produzir a realidade – a cultura –, produz a si mesmo (AUGRAS, 1995), existindo, por assim dizer, um constante processo de transformação oriundo do conflito, elaboração e integração entre natureza, cultura, e sujeito. Nesse sentido, Furtado (2002) pontua que os produtos culturais são, simultaneamente, elaborações pessoais do sujeito e expressão coletiva e que a realidade é constantemente elaborada em suas bases matérias e valorativas.
“O indivíduo é o sujeito singular dessa dinâmica e assim como recebe pronta a base material (dada pela sua inserção na classe) e valores (o plano de socialização), também é agente ativo da transformação social independentemente de ter ou não consciência do fato.” (FURTADO, 2002, p. 92).
A partir da definição de cultura que propusemos no primeiro item
e do que discutimos nesse tópico, podemos dar um passo mais radical e
afirmar a cultura enquanto uma natureza espiritualizada (ALES-BELO, 1998). Quer
dizer, pela atividade do espírito nós podemos transformar a natureza
em cultura, respeitando sempre sua essência (busca pelo belo, pelo bom,
pela verdade e abertura à totalidade), caso contrário, estaríamos
falando de civilização – uma produção arbitrária
humana. Grygiel (2002) diferencia civilização e cultura justamente
salientando que na segunda há uma relação de respeito do
ser humano com a natureza, ao passo que na primeira predomina o querer humano,
o tecnicismo puro, logo, fazemos cultura se respeitamos a natureza. Ao falarmos
de natureza espiritualizada implicamos inquestionavelmente o homem na construção
cultural, o que parece óbvio se pensarmos que não há cultura
onde não existe humanidade. Nós somos sujeitos porque respondemos
à tradição que recebemos, ainda que a problematização
que venhamos a fazer das coisas não parta apenas de nós, mas também
da relação com outras pessoas de nossa cultura.
De acordo com Oliveira (2005) a categorização é uma forma de entrarmos na complexidade do mundo, mas traz em si o risco de reduzimo-los. Elas são instrumentos que nos permitem uma ralação empírica com os objetos, mas não os cria. Se nos empenhamos por meio do empírico, podemos elaborar a cultura, afinal, cultura é a forma como tomamos a realidade (ALES-BELO, 1998).
Os sujeitos culturais são pessoas, comunidades, grupos com uma identidade que querem preservar. Tal fato nos permite entender o indivíduo como ativo, como detentor de memórias que preservam a cultura. Frente a esses elementos históricos preservados em lembranças, podemos nos posicionar produzindo cultura. O fato de nos percebermos inseridos em uma totalidade maior, em um contexto cultural, nos fortalece em nossas elaborações e em nosso posicionamento, pois ele deixa de ser uma ação individual para ser coletivo, ainda que realizado por apenas uma pessoa.
Husserl (2006) nos chama atenção para o fato de a cultura definir-se já de início pela atividade humana. Ao tomarmos posição frente à nossas experiências, respondermos às provocações da realidade e tocamos o outro. Logo, nosso posicionamento não se encerra em nós mesmos, mas gera um movimento porque colocamos algo de novo na cultura e porque estabelecemos uma relação. Se cuidamos da nossa posição, damos continuidade a ela, provocamos as pessoas com quem nos encontramos e isso vai gerando uma força suficiente para produzirmos cultura, para muda-la ou reafirmá-la. A cultura é capaz de prolongar um posicionamento humano e por isso o ser humano torna-se capaz de transformá-la. Nas palavras de Husserl:
Numa cultura, objectiva-se precisamente uma unidade de vida activa, cujo sujeito coletivo é a respectiva humanidade. Por cultura não entendemos outras coisa senão o conjunto das realizações que se efectivam nas actividades consecutivas do homem comunalizado, que têm uma existência espiritual permanente na unidade da consciência comunalizada e da sua tradição persistente (HUSSERL, 2006, p. 40).
Concluímos que uma vez que façamos parte de uma cultura, que estejamos
inseridos nela e compartilhamos de seus significados, podemos por meio de nosso
posicionamento produzir novos elementos culturais. Obviamente não temos
a pretensão de dizer que sozinhos conseguimos reformular completamente
nossa cultura, mas somos capazes de produzir novos sentidos, de questionar o
status quo e de colocar em movimento noções previamente construídas
através da tomada de posição, da atividade do espírito
e da forma como nossas ações ressoam em outras pessoas, as provocando.
Pela tomada de consciência dos significados culturais que partilhamos,
pela reflexão e ação, pela doação de juízo
ao mundo que nos cerca, produzimos cultura.
Discussões finais
A palavra cultura traz imbuída em si várias noções. Não é algo claro, definido, simples, mas sim, algo complexo, um conjunto de ideias e não um conceito amarrado. Por isso, discutir cultura implica em um posicionamento político. Nossa proposta aqui foi de romper com a dicotomia do pensamento cartesiano, ao propormos a cultura como flexível e dialética, e não como determinista. Defendemos uma definição de cultura que ressaltasse os aspectos relacionais e constituintes entre mundo e sujeito.
Atualmente há uma banalização do termo cultura (EAGLETON, 2005), que passou a designar qualquer grupo específico. Tentamos mostrar que entendemos por cultura uma estrutura que vai além de modismos atuais, agregando o tempo em todas as suas dimensões e apresentando uma estrutura universal expressa pelo desejo pelo belo e do bom e pela busca da verdade. Tal estrutura nos une enquanto humanos porque respondemos a tais exigências por meio da cultura e nos diferencia na medida em que cada um de nós responde de acordo com as tradições e valores nos quais se está imerso.
A cultura apresenta esta união do individual e do coletivo, é uma teia de significados entrelaçados que produzimos e colhemos no nosso dia, em nossas vivências e experiências, ou seja, a cultura se expressa enquanto mundo-da-vida (ALES-BELO, 1998). É dinâmica, traz uma abertura para a totalidade ao ser constituída na alteridade, quer dizer, ao se formar para além de nós mesmos.
Os ritos e mitos que aprendemos desde criança tem a função de transmissão da cultura, de nos orientar em um universo possível de significados. Também pelas narrativas vamos apreendendo sentidos tradicionais, ainda que de forma inconsciente. Podemos afirmar que a cultura sobrevive justamente por implicar o ser-humano em sua passagem de geração em geração, lhe dando meios para interpretar o mundo, apreendê-lo e questioná-lo.
Nós só nos fazemos humanos por estarmos inseridos em uma cultura e, ao mesmo tempo, a cultura só se dá nesse processo de nos tornarmos humanos. O ser humano, justamente por ser cultural, encontra-se em rodeado de valores e sentidos, por meio dos quais pode tomar a realidade e se posicionar, produzindo novos elementos culturais, colocando algo de novo em sua cultura, dinamizando-a e se transformando também nesse movimento, se constituindo enquanto sujeito.
Nesse processo dialético, vimos como o ser humano produz cultura ao se posicionar frente à realidade, elaborando os signos culturais que recebe. Ao respondermos à cultura, colocamos algo de novo no mundo, tocamos as pessoas ao nosso redor, dando sequencia à contínua transformação da tradição.
Todo e qualquer produto cultural, é uma obra da atividade do espírito (de uma reflexão, julgamento, atitude e posterior ação humana) e simultaneamente uma expressão do coletivo no qual estamos imersos. Tal visão responsabiliza o sujeito na construção de sua cultura, ele não pode mais ser visto como vítima de uma força externa, que o condiciona e bloqueia sua consciência. A cultura fornece ao indivíduo, consciente de si, possibilidades de questioná-la e afirma-la. Não somos marionetes, mas atores ativos nesse processo.
É importante ressaltar também que não somos produtores arbitrários. Vivemos em uma lógica do mundo utilitarista no qual “fazemos o que quisermos” se tivermos tecnologia para tal. Mas, como vimos, esse narcisismo não leva à cultura que exige o respeito pela natureza. Como fruto de uma ação humana não consciente de sua posição de sujeito cultural, temos a civilização, a qual nos é válida, mas não nos basta.
Pensamos que a contribuição desse artigo, se encontra na possibilidade de afirmamos que sujeito e cultura só existem em uma relação recíproca, não podemos falar sobre um isolado do outro. Ao contrário, dizer de cultura e sujeito humano é tratar de uma dialética que se abre para a totalidade, para a alteridade, que não se fixa em pontos rígidos.
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Endereço para correspondência:
Poliana Barbosa Gonçalves
Polianabarbosa87@gmail.com
Recebido em : 29/03/2012
Aprovado em : 11/09/2012
NOTA
1 Em fenomenologia, compreendemos o ser humano em três dimensões, corpo, psique e espírito, as quais estão sempre integradas. Por copo, entendemos o nível das sensações; por psique, o nível das reações emocionais (atos impulsivos e instintivos); e, por espírito, designamos os atos de avaliação, reflexão, decisão (posicionamento) (Ales-Belo, 2006).