ARTIGO

Por que no carnaval as pessoas soltam as fantasias nas fantasias?

Marcos Bueno
[1]



RESUMO

A proposta do artigo é de permitir uma reflexão sobre a necessidade humana de elaborar e liberar fantasias no carnaval como uma catarse provocada pela própria sociedade normótica, isto é por uma sociedade que se tornou doente de si mesma, de uma forma narcísica e castradora do crescimento humano.

Palavras-chaves: Inconsciente coletivo; arquétipos; fantasias; carnaval.



“Tenho em mim todos os sonhos do mundo” (FERNANDO PESSOA)

O carnaval é um grande palco global e transcultural onde as pessoas se permitem liberar suas fantasias nas fantasias, desejos e necessidades sem passarem pelo crivo da censura oficial, moral, social ou religiosa.

“Carnaval, fantasias, máscaras, muita euforia
Com o bloco da alegria, liberando emoções,
solto as amarras da vida entrando nesta folia no meio da multidão
Quero pular, suar, amar, cantar, cansar, liberdade total...
Esquecer dos desenganos que entristeceram minha vida...
E, depois de tanto sambar, me soltando em plena avenida
queimo na quarta feira de cinzas as máculas do meu coração”.

NELI NETO


A fantasia é criar roupagens aparentemente absurdas, mas que o desejo dá vida.

A fantasia é o arquiteto da psicologia profunda, onde dá formas aparentemente absurdas ou incompreensíveis para satisfazer os desejos.O mundo interno do homem é um mundo rico em fantasias e desejos.As antigas tradições sapienciais sempre representaram o mundo interno do ser humano através da dança, dos cultos sagrados, das pinturas, da escrita, das iniciações espirituais, em fim das mais diversas manifestações culturais.As fantasias estão no campo do simbólico.

Se Carl Gustav Jung estivesse vivo provavelmente ele se deliciaria com o carnaval, apesar de ter sido educado numa família protestante tradicional.Poderia ver a simbologia do inconsciente coletivo e os arquétipos soltos, brincando, mascarados se soltando livres, leves e soltos.

No Brasil a psiquiatra Nise da Silveira, discípula de Jung continuou com sua genialidade o trabalho simbólico de Jung com a criação do museu do Inconsciente no Rio de Janeiro.
O século vinte teve muitos acontecimentos e descobertas positivas, porém teve também o palco da loucura como diriam os antipsiquiatras Ronald Laing, Franco Basaglia, Thomas Zaz, David Cooper entre outros.

É no Arquétipo conceito criado por Jung - palavra grega que significa tipo ou modelo primordial - que os símbolos têm a sua fonte e raiz.

Por estarem tão profundamente radicados no nível coletivo do inconsciente humano, estes arquétipos pouco mudam com o passar dos tempos e com a evolução das culturas. Contudo, não são estáticos e muito menos estagnados.

Estes arquétipos (fonte de todos os símbolos) são, portanto, as "palavras" da linguagem simbólica. É comum a todos os seres humanos, independentemente da suas raízes culturais, religiosas ou étnicas.

O carnaval escancara no palco real da vida, as fantasias das mais loucas e absurdas as mais saudáveis, criativas e necessárias. Através das máscaras mais incríveis podemos retirar por três dias nossas máscaras sociais coladas com superbond não só no rosto, mas na alma.

Frustração e ansiedade geram fantasia

Como estamos vivendo o século da ansiedade, automaticamente estamos vivendo sob a égide da fantasia.Para a psicoterapeuta Mônica Levi, vivemos em um mundo onde a fantasia é incrementada e reforçada, muitas vezes, pelos nossos pais, pela televisão, novelas, cinemas, propaganda etc. E a questão é até que ponto estas fantasias podem ser favoráveis ou não às nossas vidas.

A fantasia é a arte do imaginário, uma imaginação, um devaneio, um sonho acordado. Fantasia é um dos mecanismos de defesa do ego e, portanto, aparece com freqüência nos estados de frustração.Para reduzir a frustração ou crio uma imaginação ou crio um bloqueio de evitação sobre algo que possa me deixar frustrado.Muitas pessoas aparentam ser fria, mas na realidade estão evitando as emoções causadas por possíveis frustrações.

O mecanismo de defesa é um processo mental inconsciente que possibilita ao ego reduzir a ansiedade ou de estresse. São mecanismos de defesa à racionalização, a projeção, conversão, fantasia, generalização, repressão etc.

É normal ter fantasias? É. Você pode fantasiar o que desejar, consciente que é uma criação sua. Você pode entrar e sair dela quando quiser e não é obrigado a realizá-la. A questão quanto à normalidade é uma questão de envolvimento: o quanto à fantasia está preenchendo sua vida ao invés da realidade.A realidade está focada na razão e a fantasia está na emoção.

A fantasia se torna um problema quando ela é pode estar dependente de uma ilusão e a ilusão é o engano dos sentidos ou da inteligência, é algo efêmero, inadequado, uma falha de leitura, interpretação de um fato e a percepção inexata de um objeto ou de dado contexto.

Os poetas vivem suas fantasias para criar suas poesias, seus contos, suas prosas. Os pintores criam suas obras de arte a partir de suas fantasias projetadas na tela.Os compositores, cantores e músicos projetam na sonoridade, no ritmo, na melodia, na harmonia as fantasias da musica que nos encantam.O arquiteto permite sua mente criar nas linhas da geometria mental os traços de sua fantasia e projetam no papel obras de arte como de Niemayer, Lucio Costa, Rui Otake e tantos outros artistas da arquitetura.

“O homem é o seu livro de estudo,
Ele precisa apenas ir virando
As páginas deste livro e
Descobrir o Autor”.

JEAN-YVES LELOUP



Fantasias do carnaval inspiram as estatísticas da economia.

Tempo de Carnaval é tempo de fantasias, inclusive estatísticas. Jornais e revistas costumam fazer suas previsões e seus balanços sobre o evento, publicando números cuja elaboração é fruto de projeções baseadas em dados estimados, divulgados à imprensa por entidade que fazem parte do trade turístico.As projeções para o carnaval de 2005 são na geração de mais de 770 empregos diretos e indiretos mil e faturamento de mais de 1 bilhão de reais. A industria do carnaval é muito significativa para o Brasil, para os empresários do setor e os que assistem e para os foliões que brincam o carnaval.

Nada mal um carnaval para escaparmos um pouco da pressão do dia-a-dia. Somos uma sociedade muito rígida, crítica e normótica: uma patologia da normalidade social.

Vivemos segundo as expectativas dos grupos sociais. Aprendemos a ser conforme o os outros nos querem ver. Desde crianças nos ensinam: em casa, na escola, na igreja, no trabalho, na política.Na Roma antiga, faziam-se festas populares. Nessas festas, também os nobres participavam. Para não serem reconhecidos, mascaravam-se. Nada diferente de hoje, continuam usando máscaras moldadas nos discursos políticos, religiosos, educacionais, empresariais e sociais.A pressão coletiva nos atinge fortemente, muitos ficam doentes do corpo, da mente ou do espírito e a saída para muitos é “soltar a franga” do ego. Nesse momento uma química-energia, age sobre o consciente deixando-o mais “grogue”, frouxo, entorpecido, sem a censura do superego (a sociedade), segundo Freud. Movimentos, atitudes, palavras, coreografias, refrões, que de sã consciência, em outros momentos ou outros lugares, acharíamos inconvenientes.Para os psicoterapeutas e sociólogos ocorre uma “catarse”, ou seja: a liberação de emoções que faz nos sentirmos bem.

Liberamos nossas fantasias, exibicionismos, e procuramos externar as emoções: medos, raivas e desejos.A psicologia explica em recalques: fatos e situações reprimidas, que fazem muito mal a saúde. É necessário e saudável livrar-nos desses problemas, traumas, angústias. O carnaval pode ser útil para isso. É uma poderosa válvula de escape.

A classe média e a classe operária (que continuam escravas do trabalho), e a classe pobre (que sobrevive de fantasias dos decretos governamentais), precisam liberar suas tensões, precisam realizar seus sonhos através de suas fantasias. Os ricos geralmente viajam, e em grandes festas, com tudo o que sonham, vivem sob menor pressões e maiores loucuras.

O carnaval torna-se espelho da realidade social, reflete duplamente e de forma alegórica a imagem invertida e contraditória da sociedade ao som dos tambores para produzir um transe utópico.

Inverte-se o dia pela noite; pobre vira rainha; pobre descamisado veste luxo, poder, glamour. Travestis, colombinas, topless, insinuações de sexo explícito.A fantasia acaba transitando na sedução, no erótico.

Vivemos sob autoritarismo muitas das vezes sutilmente camuflado (de governo, família, escola, patrão, igreja), uma sociedade de exclusão, excesso de leis que não funcionam, regras ineficazes de serem cumpridas, desejos inatingíveis, direitos não concedidos, doenças, contas a pagar, balas perdidas, queremos momentos de alívio, de esquecimento, de descontração, chega de discursos absurdamente demagógicos. Dessa forma através da liberação utópica das fantasias suportamos mais um ano e desejamos um feliz ano novo a cada ano.Com a perda dos sentidos, o carnaval se torna positivo. É uma possibilidade de aliviar o estresse, a tensão, pessoal e social, no extravasar nossos problemas. Não é por bondade que os governos e grandes organizações patrocinam este neurótico “circo e pão” para o povo, como faziam os romanos há 2000 anos.

O Carnaval é comemorada de forma diferente em vários países do mundo. O Carnaval constitui uma forma de expressão cultural em constante modificação, que nos liga ao nosso passado, ao presente e nos projeta para o futuro.

O carnaval é um estado da arte onde as tradições milenares são projetadas pela criatividade, poder e imaginação, aliadas ao poder econômico, a sedução e ao desejo do homem moderno que se transfigurou de homo sapiens para homo-demens-demens.

Quanto à origem e significado da palavra Carnaval, tem duas versões.A primeira atribui à palavra Carnaval uma origem profundamente religiosa, com um significado quase oposto ao da diversão, brincadeiras e malícia a que a associamos hoje em dia. "Carnaval" teria tido origem no latim carnevale (carne+vale = carne+adeus), e seria a designação da "Terça-Feira Gorda" o último dia do calendário cristão em que é permitido comer carne, uma vez que, no dia seguinte, inicia-se a Quaresma. Já a segunda versão é peremptória em afirmar que a palavra Carnaval vem de Carrus Navalis, por influência das festas em honra de Dionísio, onde um carro, com um enorme tonel, distribuía vinho ao povo na Roma antiga.Parece que hoje essa é a versão mais próxima da nossa realidade brasileira.Com raras exceções onde ainda se brinca o carnaval de forma saudável, ingênua e terapêutica.

As celebrações carnavalescas são até mais antigas do que a própria religião cristã, tendo sido alvo de diferentes manifestações ao longo da história. No fundo, todos os carnavais são reminiscências das festas dionisíacas da Grécia Antiga, dos bacanais de Roma e dos bailes de máscaras do Renascimento.

Carnaval começou no Brasil trazido de Portugal em 1723. No século XIX havia Zés Pereiras com zabumbas e tambores que percorriam as ruas da cidade, animando a festa.

Dos clubes que organizavam os festejos nasceram às tradições que hoje apresentam o Carnaval brasileiro. Os corsos e os desfiles datam de 1900, mais ou menos, e eram as principais atrações, que permanece até hoje com incorporação da tecnologia, do negócio lucrativo e ilegal.

Os cordões e blocos originaram as Escolas de Samba, que conhecemos. A primeira foi fundada em 1928 e se chamava Deixa Falar.

Tanto sucessos tinham os desfiles, que se arranjaram locais especiais: a «Passarela do Samba» era um deles. Hoje existe o «Sambódromo» onde as Escolas de Samba disputam aguerridamente a vitória no Carnaval.

No Brasil é uma festa tão importante que nesses dias mal se come e dorme. Dança-se, dança-se muito, quase até cair.O Brasil se torna o palco do mundo.
É o momento em que os mais pobres podem brilhar e a festa é tão especial que as escolas de samba começam a preparar o Carnaval do ano seguinte logo na quarta-feira de Cinzas...

“É carnaval...
Vou mergulhar nessa ilusão
Soltar meu bicho sideral
Fazer amor na diagonal
Dançar na chuva de verão
Vestir brilhante fantasia
Quero brincar no carnaval”.

JOSÉ ROBERTO PINHEIRO



Muitos pesquisadores sociais afirmam que o carnaval do Brasil é a maior festa mundial e organizada de forma invejável pelas Escolas de Samba e entidades ligadas ao turismo do país com milhões de clientes, milhares de colaboradores, fornecedores e uma organização com precisão invejável.

Independentemente da sensação que o Carnaval causa em cada um de nós, é sempre curioso tentar compreender o fenômeno: o que é, o que simboliza e como é comemorado um pouco por todo o mundo.

O período festivo de folia e rituais pagãos que precede o início do tempo de jejum e de abstinência da Quaresma no calendário religioso ocidental.

Do ponto de vista sagrado e antropológico, representa um período de renovação, que traz consigo um estado temporário de "desordem", em que a única autoridade é o rei ou a rainha do Carnaval.

Para o Jornalista Luís Nassif o Carnaval mais famoso do mundo é o do Rio de Janeiro, que é celebrado há mais de 130 anos. Muitas pessoas interrogam-se: porque é que um país tão economicamente desigual como o Brasil gasta tanto dinheiro nas comemorações anuais do Carnaval? Gilberto Amado, escritor e diplomata brasileiro, esclareceu a importância desta época para o brasileiro: “O Carnaval entre nós deixa de ser a festa pagã para ser muito mais do que tudo isto: uma tradição venerável, uma festividade adorada, um hábito da sociedade que tem a significação de um desafogo na existência árida do brasileiro, que vive sem comodidade, sem dinheiro, sem orgulho, sem heroísmo, sem coisa nenhuma”.

“Fantasia é poesia,
É ideologia,
É emoção,
É energia,
É o veiculo por onde transita o sonho.
Sem a fantasia o sonho nunca se tornaria à realidade”.

MARCOS BUENO

Pode brincar o carnaval, aquele que sabe transformar tudo em brincadeira saudável. Boa folia a todos e cuide com carinho de suas fantasias!


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CÂMARA, F. P. Vida e Obra de Nise da Silveira, Psiquiatria On-Line Brazil (7), setembro, 2002 (http://www.polbr.med.br/arquivo/wal0902.htm, acessada em 26.02.04).

FIERZ, H. K. Psiquiatria Junguiana (Jungian Psychiatry), Ed. Paulus, São Paulo, 1997.

LEVI, Mônica. Membro Didata Clínico da UNAT-BR, São Paulo / SP.Artigo publicado nos anais do Congresso Brasileiro de A.T, B.Horizonte/97 e em disquete dos artigos selecionados da UNAT-BR.

ROBLES, Teresa. A magia de nossos disfarces. Editorial Diamante. Belo Horizonte, 2001.

SILVEIRA, N. Imagens do Inconsciente, Ed. Alhambra, Rio de Janeiro, 1981.


[1] Psicólogo de orientação gestáltica e ericksoniana, professor universitário.
Mestre em Gestão da Inovação Tecnológica e Ambiental pelo PPGEP/UFSC. Especialista em Administração pela FGV e UFU/UQTR, Psicologia pela UnG.
Membro do Instituto Milton H.Erickson do Triângulo Mineiro e da Academia Catalana de Letras - ACL.
E-mail: mblbueno@brturbo.com